Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Jung Mo Sung
Não somente 150 anos nos separam do Manifesto Comunista. Mais do que todos estes
anos, as quedas do Muro de Berlim e do bloco socialista parecem ter transformado as ideias e
os ideais dos comunistas e dos socialistas em coisas do passado, em algo “jurássico”. Para
muitos, os escombros do Muro enterraram não somente o Marx, mas também a Teologia da
Libertação. Estes fariam parte do passado, tornando-se objetos de estudo e reflexão só dos
historiadores.
Mesmo que assim fosse, a história é mais do que um simples olhar para o passado, é
também uma tentativa de compreender o presente e vislumbrar as possibilidades do futuro.
Neste momento de grandes transformações e crises sociais, nunca é demais voltarmos aos
textos clássicos que estão na origem dos nossos tempos.
Para podermos “dialogar” com o Manifesto hoje, precisamos distinguir três níveis do
texto. O primeiro se refere às análises e propostas conjunturais, típicas de um documento de um
partido ou um movimento político. Próprios autores afirmaram, no prefácio da edição alemã de
1872, que com a mudança das condições históricas “não se deve atribuir nenhuma importância
particular às medidas revolucionárias propostas no final do capítulo II.”2
O segundo se refere às análises ainda válidas de aspectos mais estruturais do
capitalismo. Por exemplo, o fato de que onde a burguesia chegou ao poder destruiu todas as
relações feudais e “afogou nas águas gélidas do cálculo egoísta” todas as relações humanas e
sociais, até mesmo as relações familiares e “os sagrados frêmitos da exaltação religiosa”.3 Nos
últimos anos, economistas como Gary Becker e James Buchanan, ganhadores de Nobel,
construíram suas carreiras acadêmicas propondo a utilização da racionalidade econômica
neoclássica em outras esferas da vida, como política, burocracia, racismo, família e fertilidade.
1
Texto publicado na Cultura Vozes, vol.91, n.6, Petrópolis, 1997, pp. 3-10.
2
MARX, K. & ENGELS, F., Manifesto do Partido Comunista, 6a.ed., Petrópolis: Vozes, 1996, p.42. (A
partir de agora citado como Manifesto)
3
Idem, p.68.
2
2. A não-factibilidade da utopia.
4
FUKUYAMA, Francis, Confiança: as virtudes sociais e a criação da prosperidade, Rio de Janeiro: Rocco,
1996
5
Manifesto, pp.45-46.
6
Idem, p.87.
7
BOFF, Leonardo, Teologia do cativeiro e da libertação, 2a.ed., Petrópolis: Vozes, 1980, p.19.
3
interior da história. Uma realização que significaria a criação de um novo ser humano e da
verdadeira história, que já não seriam mais o ser humano e a história como nós conhecemos.
Esse mito de um tempo áureo, não no passado como era apresentado nas antigas
religiões, mas no futuro, baseado no mito típico da modernidade — o mito do progresso—, foi
sustentado “cientificamente” com o diagnóstico de que todas as lutas de classe e as dominações
e explorações eram fundadas basicamente na propriedade privada. Desenvolvimento das forças
produtivas, em grande parte já realizada pela burguesia, e a superação da propriedade privada
dos meios de produção: aqui estava o segredo da nova história e nova humanidade. Por isso,
Marx e Engels escreveram: “os comunistas podem resumir sua teoria nessa única expressão:
abolição da propriedade privada”.8
O problema é que a alienação não se funda somente na propriedade privada, mas
fundamentalmente na divisão social do trabalho. É a necessidade de se dividir socialmente o
conjunto de trabalhos necessário para a reprodução da vida material e simbólica da sociedade
que leva à necessidade de intercâmbio dos produtos entre os agentes econômicos. A
especialização, que gera o aumento da produtividade, é também causadora da maior
complexificação do sistema econômico, o que leva ao aumento das relações mercantis, das
trocas mediadas pelo dinheiro no mercado.
A experiência do modelo socialista soviético nos mostrou que o fim da propriedade
provada dos meios de produção não extinguiu as relações mercantis, nem a alienação do
trabalho. Isso só seria possível se fosse atingida a planificação completa e perfeita de toda a
divisão social da trabalho. O que pressupõe o conhecimento perfeito de todos os fatores diretos
dos sistema produtivo, de todas as necessidades e desejos dos consumidores e das variações da
natureza, como clima e o funcionamento do sistema ecológico. O que sabemos ser impossível.
Mesmo que fosse possível conhecer plenamente os fatores materiais e naturais do
sistema produtivo, não é possível fazer planejamento perfeito da economia por que os desejos
dos consumidores (a esquerda costuma esquecer do desejo e só trabalhar com o conceito de
necessidades humanas básicas) não são estáveis e nem finitos. Nós somos animais com desejos
ilimitados e mutantes, enquanto que os recursos econômicos são finitos e escassos.9 Além
disso, seria necessário poder calcular perfeitamente a contribuição real de cada na produção
social para que não houvesse exploração ou injustiça na distribuição de riqueza ou renda.
8
Manifesto, p.80.
9
Sobre a relação entre desejo, necessidade, economia e teologia, vide: SUNG, J.M., Desejo, mercado e
religião, a sair pela Vozes, em fev/98.
4
3. A imprescindibilidade da utopia.
No caso da engenharia, ele sabe que o seu objetivo último é impossível, que está
buscando uma aproximação que no limite será impossível. Mas no caso dos movimentos
sociais, sejam de afirmação do sistema vigente, sejam de oposição, esquecem facilmente da
não factibilidade histórica da utopia. Mas o segredo das grandes utopias está exatamente neste
esquecimento. Pois é este esquecimento que acende a esperança da realização plena dos nossos
desejos. Freud dise que a força da religião reside no desejo, aqui podemos parafraseá-lo e dizer:
a força da utopia está no desejo. O que nos leva a dizer que, em certo sentido, as grandes
utopias sociais modernas não são tão distantes assim das religiões.
A diferença fundamental entre movimentos sociais movidos pelas utopias seculares,
como o do consumo infinito do mercado capitalista ou a associação livre do Manifesto, e as
religiões é que nestas há, pelo menos teoricamente, uma consciência mais clara do limite da
condição humana e das ações humanas. Porque, no fundo, o fundamento da realização da
esperança religiosa não reside na ação humana e nem nas instituições messianizadas, mas sim
em Deus ou em outros seres sobre-naturais; e o tempo da espera da realização não se limita ao
interior da história, mas atinge -em muitas das religiões- ao eterno, ao escatológico, ao que está
além da história humana.
Deus aparece aqui não como um anulador da ação humana, mas sim aquele que com a
sua presença no discurso mostra o limite da condição humana, ao mesmo tempo em que suscita
a esperança de se alcançar algo que nos transcende, que vai além dos nossos limites. E isto é
fundamental para evitarmos a sacralização das instituições que acabam por exigir sacrifícios de
vidas humanas. Na história humana já conhecemos demais histórias de vitimações em nome
das Igrejas/religiões, do Mercado ou Estados sacralizados.
Mas é óbvio que a consciência da utopia como um conceito limite não é uma
exclusividade da consciência religiosa. Próprio Marx chegou a esta conclusão quando disse
que “assim como o selvagem tem de lutar com a Natureza para satisfazer suas necessidades,
para manter e reproduzir sua vida, assim também o civilizado tem de fazê-lo, e tem de fazê-lo
em todas as formas de sociedade e sob todos os modos de produção possíveis”, por isso mesmo
numa possível sociedade de produtores associados “este sempre continua a ser um reino da
necessidade”,10 sobre o qual se deve construir o reino da liberdade, que não será plena.
Esta concepção de utopia como uma necessidade epistemológica que nos fornece um
ponto a partir do qual podemos criticar a negatividade presente na realidade e assim nos
fornece horizontes de intervenção social; como um objetivo do qual podemos nos aproximar
10
MARX, Karl, O capital: crítica da economia política, vol 3, tomo II, 2a.ed., São Paulo, Nova Cultural,
1986, p. 273.
6
mas nunca realizar plenamente; e como um fator de aglutinação e de mobilização social serve
tanto para analisar a utopia neoliberal conservadora, quanto utopias sociais provenientes das
esquerdas “seculares” ou religiosas.11
11
Vide, HINKELAMMERT, Franz, Crítica da razão utópica, São Paulo: Paulinas, 1985; SUNG, Jung Mo,
Teologia e economia: repensando a Teologia da Libertação e utopias, 2a.ed., Petrópolis: Vozes, 1995, cap.4
e 5.
12
Manifesto, p.96.
7
_________
13
HINKELAMMERT, F., “Los muertos en el sótano del Ocidente: la metafísica de la inhumanidad y nuestra
respuesta”, Pasos, San José (Costa Rica): DEI, n.67, set-out/96, p.30.