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Introdução
do Outro, o ser humano responde à condição de ser “agente de seu próprio destino”.8 A
vida se revela humanamente como um caminho em constante construção. Então, a vida
surge como uma intermitente questão existencial que permeia a condição humana.
Deus é vida. Esse é o sentido do teológico que motiva este estudo, no qual
enfoco o conceito de economia para a vida, tendo como ponto de partida o pensamento
do filósofo, economista e teólogo da libertação Franz Joseph Hinkelammert. Nascido
em Herford, uma pequena cidade ao norte da Alemanha, em 1931, e radicado na
América Latina desde 1963, primeiramente no Chile e, a partir de 1976, na Costa Rica.
Trata-se de um autor que reflete a presença e a atuação do cristão no mundo, que sai das
fronteiras visíveis da Igreja, no sentido proposto por Gutiérrez quando diz que “a vida,
pregação e compromisso histórico da Igreja há de ser, para a inteligência da fé
[teologia], um privilegiado lugar teológico”. 9
O cuidar para que as necessidades condicionais à vida possam ser supridas,
permitindo que todos os seres humanos tenham vida em abundância e em harmonia com
o meio ambiente, é o sentido e a tarefa primordial do universo econômico, a economia
como sustendo da casa, da cidade (oikonomia). Essa é uma concepção fundamental de
economia que, a partir de Hinkelammert, pretendo discernir como significado da
economia ética, uma economia a serviço da vida que se insere no sentido de uma ética
da libertação, desde a realidade latino-americana. “A orientação da teologia para a vida
– o fundo da teologia da libertação – é a afirmação da esperança humana em todas as
suas formas, da utopia como anima naturaliter cristã.”10
A centralidade da reflexão hinkelammertiana é o “sujeito [que] irrompe nos
cálculos de utilidade que subjazem a todas as forças compulsivas dos fatos: eu sou se
você é; eu vivo se você vive”. 11 Nessa perspectiva, apresenta-se uma via que é, ao
mesmo tempo, crítica e transformadora do fetichismo contemporâneo, isto é, do
automatismo do mercado que pesa sobre a vida, uma racionalidade econômica que
produz injustiças e crimes como se fossem sacrifícios necessários ao progresso. Essa é a
lei e a racionalidade de uma economia essencialmente voltada para o lucro
(crematística), uma perspectiva que se alimenta da exploração e da exclusão do outro –
„sou se derroto você‟.
8
GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia da libertação. Petrópolis: Vozes, 1975, p. 34.
9
GUTIÉRREZ, 1975, p. 24.
10
HINKELAMMERT, Franz. As armas ideológicas da morte. São Paulo: Paulinas, 1983, p. 290.
11
HINKELAMMERT, Franz. A maldição que pesa sobre a lei: as raízes do pensamento crítico em
Paulo de Tarso. São Paulo: Paulus, 2012, p. 320.
3
16
ASSMANN, Hugo. Reencantar a educação. 10. ed. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 182.
17
DUSSEL, Enrique. Ética da libertação: na idade da globalização e da exclusão. 2. ed. Petrópolis:
Vozes, 2002, p. 11.
5
se encaminha se não mudar o rumo de seu agir irracional”. 18 Com efeito, a ética da
libertação é o pano de fundo metodológico e epistemológico do presente trabalho, tendo
presente, ao mesmo tempo, como disse Morin, que “conhecer e pensar não é chegar a
uma verdade absolutamente certa, mas dialogar com a incerteza”. 19 A Teologia da
Libertação, em seu sentido plural, 20 como reflexão e ação teológica, significa fazer eco à
sabedoria profética delineada a partir da epifania na sarça ardente, a passagem de Deus
no rosto do outro que manifesta um clamor que intervém de forma intermitente,
solicitando minha resposta.
Nas palavras de Oliveira e Schaper, não obstante aos que “decretaram que esta
teologia acabou, passou, está imóvel”, tendo em conta inclusive que “muitos dos seus
propugnadores/as já foram levados a explicar suas teses e, em alguns casos, abjurar de
parte delas”, 21 pode-se afirmar que a Teologia da Libertação ainda se move, imbuindo
um sentido vivo do fazer teologia a partir da realidade dos empobrecidos. Ela está viva
porque, “assim como a abjuração de Galileu [diante dos inquisidores] não alterou a
rotação da terra em torno do sol, a semente do pensar crítico, ainda que cerceada, não
deixa de brotar continuamente”.22
18
DUSSEL, 2002, p. 11.
19
MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma; repensar o pensamento. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2005, p. 59.
20
A referência a Teologia da Libertação indica uma perspectiva que deve ser entendida na pluralidade,
isto é, teologias da libertação. Como indica DUQUE, José. Do passado ao presente: um balanço da
Teologia da Libertação. In SUSIN, Luiz Carlos. Sarça ardente: teologia na América Latina –
perspectivas. São Paulo: Paulinas, 2000, p. 22, “a Teologia da Libertação, enquanto corpo monolítico não
existe. Portanto, pode ser mais coerente com a realidade falar no plural quando fazemos referência à
Teologia da Libertação. Enquanto teologia concreta, ela foi assumida por uma ampla diversidade
subjetiva. Daí que hoje já podemos nos referir a produções teológicas como as indígenas, afros,
feministas, pentecostais etc., e cada uma delas nós a anunciamos igualmente no plural”.
21
OLIVEIRA, Kathlen L. de; SCHAPER, Valério G. A teologia contemporânea na América Latina:
teologia em movimento. OLIVEIRA, Kathlen L. de; REBLIN, Iuri A. SCHAPER, Valério G.; In: A
teologia contemporânea na América Latina e no Caribe. São Leopoldo: Oikos; EST, 2008, p. 8.
22
OLIVEIRA; SCHAPER, 2008, p. 8.
6
23
DUSSEL, 2002, p. 65.
24
DUSSEL, 2002, p. 263.
25
DUSSEL, 2002, p. 264.
26
HIGGINS, Sílvio Salej. Prefácio da edição brasileira. In: HINKELAMMERT, Franz. Crítica da razão
utópica. Chapecó: Argos, 2013, p. 13: “Hinkelammert estudou em profundidade o modelo de
planejamento econômico soviético, em especial a teoria de Kantorovich, quem veio anos mais depois
ganhar o prêmio Nobel de economia. Eram os anos 50 do século XX, e a União Soviética estava
atravessada por uma intensa discussão sobre os mecanismos e o significado da passagem ao comunismo.
Porém, para Hinkelammert, a crítica do fetichismo da mercadoria servia para demonstrar também o
fetiche do crescimento na economia soviética. Era o que se esperava de um centro de estudos que se
7
destinava a monitorar o que acontecia do outro lado do muro de Berlim. Não obstante, quando as críticas
do jovem economista Hinkelammert se dirigiam ao fetiche do equilíbrio econômico neoclássico [de
vertente liberal], a chefia do instituto rejeitava este tipo de discussão, assim, vários manuscritos ficaram
sem ser publicados. O professor de economia do Instituto de Europa Oriental afirmava que esse não era
um centro para formar comunistas. Continuar num ambiente tão refratário à crítica tornou-se
insustentável [para Hinkelammert].”
27
Cf. GIBELLINI, Rosino. A teologia do século XX. 2. ed. São Paulo: Loyola, 1998, p. 359.
28
Interessante observar, segundo HIGGINS, 2013, p. 13, “o fato de ter trabalhado, do ponto de vista
econômico, a doutrina social da Igreja católica, assim como ter sido formado num centro de estudos
anticomunistas, faziam de Hinkelammert um bom prospecto, na óptica de uma fundação conservadora,
para irradiar um pensamento de oposição ao movimento social que logo desembocaria na Unidade
Popular”.
29
HIGGINS, 2013, p. 13.
30
DUSSEL, 2002, p. 260.
31
HIGGINS, 2013, p. 14.
8
39
DUSSEL, Enrique. Teologia da libertação: um panorama de seu desenvolvimento. Petrópolis: Vozes,
1999, p. 94.
40
DUSSEL, 1999, p. 95.
41
Além da erradicação da pobreza extrema e da fome, em 2000, a ONU estabeleceu outros sete
„Objetivos de Desenvolvimento do Milênio‟, a saber: atingir o ensino básico universal; promover a
igualdade entre os sexos e autonomia das mulheres; reduzir a mortalidade infantil; melhorar a saúde
materna; combater o HIV/AIDS, a malária e outras epidemias mortais; garantir a sustentabilidade
ambiental.
42
HINKELAMMERT, 2013, p. 383.
43
HINKELAMMERT, 2013, p. 377.
44
GUTIÉRREZ, 1975, p. 15.
11
A teologia, como diz Trigo, vê “o Espírito atuar vitoriosamente nos que vivem
quando não há elementos para se viver, quando a vida não tem mais objetivo do que
viver, porque não se pode dar a vida por óbvia”.45 A partir da realidade humana, no
sentido hinkelammertiano, “o querer viver é uma tarefa e não o resultado de uma reação
instintiva. Esta última é só o ponto de partida”. 46 Essa tarefa pode ser frustrada, como de
fato o é, na medida em que há realidades humanas que não estão voltadas para a vida,
mas par a morte, as quais fazem jus às palavras do personagem Zacaria de Antes de
nascer o mundo, romance do moçambicano Mia Couto, em que o “homem é bicho
morredouro, que adora a Vida, mas gosta mais ainda de não deixar viver”. 47
Em cada manhã desperta um novo dia, como possibilidade do dom de viver a
Sabedoria do Amor, uma Sabedoria revelada desde o desabrochar de uma flor, o cantar
de um pássaro, o sorrir de uma criança... Por isso, a retomada do pensamento de
Hinkelammert, como oportunidade para compreender o conceito de economia para a
vida, que por si só já implica em denúncia da „cultura de morte‟, abre espaço para que
as alegrias e as esperanças percorram novos caminhos. Ou seja, no sentido recolhido
pelo documento conciliar Gaudium et Spes, “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as
angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são
também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de
Cristo”.48
No dizer de Trigo, “a teologia tem que ser profética, porque deve se realizar
não como exposição de doutrinas e de disciplinas, mas sim como leitura dos sinais dos
tempos, uma leitura que só pode ser feita a partir da encarnação solidária a partir dos
debaixo”. 49A partir de uma perspectiva crítica e autocrítica, a teologia deve assumir a
“reflexão, em níveis diversificados de elaboração, sobre os deuses (e os demônios) nos
quais os homens, de uma ou de outra forma, acreditam e com os quais presumem ter
diferentes graus de contato na história”.50
45
TRIGO, Pedro. Teólogos enclausurados na academia: um desafio. IHU On-Line,São Leopoldo, n. 402,
10 set. 2012, p. 42.
46
HINKELAMMERT, 2013, p. 322.
47
COUTO, Mia. Antes de nascer o mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 85.
48
CONCÍLIO VATICANO II. Constituição pastoral Gaudium et Spes: sobre a Igreja no mundo atual.
Disponível em: < http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/index_po.htm>. Acesso
em: 28 jan. 2014.
49
TRIGO, 2012, p. 42.
50
ASSMANN, Hugo; HINKELAMMERT, Franz. A idolatria do mercado: ensaio sobre economia e
teologia. São Paulo: Vozes, 1989, p. 11.
12
51
DUSSEL, 1999, p. 10.
52
DUSSEL, 1999, p. 10.
53
DUSSEL, 1999, p. 10.
54
HINKELAMMERT, Franz; JIMÉNEZ, Henry Mora. Hacia una economía para la vida: preludio a una
reconstrucción de la economía. San José: DEI, 2005, p. 29.
55
HINKELAMMERT; JIMÉNEZ, 2005, p. 29.
56
Cf. LÉVINAS, Emmanuel. De otro modo que ser: o más allá de la esencia. Salamanca: Sígueme, 2003,
p 243.
57
DALLA ROSA, 2012, p. 109.
58
GUTIÉRREZ, Gustavo. Beber no próprio poço. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1984, p. 41.
13
59
CASALDÁLIGA, 2007, p. 81.
60
PASTORAL DA JUVENTUDE ESTUDANTIL (PJE): Marco referencial da Pastoral da Juventude
Estudantil: nossa vida, nossos sonhos. [S.I.: s.n.], 2005, p. 185.
61
GUTIÉRREZ, Gustavo. O Deus da vida. 3. ed. São Paulo: Loyola, 2004, p. 75.
62
TRIGO, 2012, p. 41.
14
principal fonte da práxis e da consciência cristãs”.63 Daí que uma teologia, que não se
enclausura na mera erudição acadêmica, mas procura articular um discurso relevante e
pertinente, para responder aos desafios hodiernos,os quais implicam também as
comunidades eclesiais, tem a possibilidade de reivindicar a fé no interior da economia.
Em Hinkelammert, com efeito, a vida também “é um problema espiritual
ligado a organização material do nexo corporal entre os homens” 64 e, de modo especial,
ligado à realidade ambiental. Entende-se, assim, “que qualquer imagem de Deus
incompatível com a vida real, será um fetiche, e o Deus verdadeiro não pode ser senão
aquele que é compatível com a vida humana real”. 65 Como diz Gutiérrez, trata-se de
uma idolatria que exige vítimas humanas, pois “o deus da idolatria é um deus assassino.
Muito é o sangue que se derrama no afã do lucro”.66
A vida é a essência da criação de Deus. Deus doa a vida ao ser humano e a
todas as criaturas. O evangelho de João ensina que Jesus veio “para que todos tenham
vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10). Para que haja a vida, vida em abundância, é
imprescindível que tenha comida, bebida, vestuário, moradia, saúde, liberdade e
acolhimento. Aliás, esse conjunto de coisas que possibilita a vida, como nos lembra
Jung Mo Sung, a partir do evangelho de Mateus 25, 31-45, constitui “o ponto chave no
nosso juízo perante Deus”.67 Isso não quer dizer que a salvação de Jesus se reduza a
uma questão meramente material, pois até mesmo os glutões se preocupam com isso.
Antes,
A salvação vem pela busca da comida, bebida, roupa, casa, saúde, liberdade
dos pequenos, daqueles que a sociedade excluiu, daqueles que não podem
pagar ou retribuir. Pois só os que são movidos pelo Espírito de Deus são
capazes desse tipo de gratuidade. Os que dedicam sua vida a defender a vida
e a dignidade humana dos „pequenos‟ têm experiência de Deus que é amor,
mesmo que não tenham consciência disso.68
63
TRIGO, 2012, p. 41.
64
RICHARD, Pablo; VIDALES, Raúl. Introdução. In: HINKELAMMERT, Franz. As armas
ideológicas da morte. São Paulo: Paulinas, 1983, p. 08.
65
HINKELAMMERT, 1983, p. 337.
66
GUTIÉRREZ, 2004, p. 80.
67
SUNG, Jung Mo. Desejo, Mercado e religião. 4. ed. São Paulo: Fonte Editorial, 2010, p. 25.
68
SUNG, 2010, p. 26.
15
defendemos. Julgamos que ela é mais coerente com o cristianismo”. 69 Para os autores de
A idolatria do mercado, “a luta em favor da vida humana real e concreta”,70 como uma
razão eminentemente econômica, e a assunção de uma reflexão comprometida com a
realidade social dos homens, como uma motivação explicitamente teológica, devem
ensejar o encontro entre a economia e a teologia.
Certo, há pressupostos teológicos presentes no tecido econômico, como a
transformação do mercado “em sujeito divino, em Divina Providência”, 71 que põe por
terra “a severa austeridade da economia, que muitos afirmam ser a mais avançada das
Ciências Sociais”.72 Desse modo, a reflexão sobre o tema da economia remete para
“uma tomada de posição, teórica e prática, acerca das formas viáveis e dos caminhos
possíveis para fazer o bem a seus semelhantes.”73 Se a economia tem a ver com a vida,
entende-se que “a articulação dos critérios econômicos não é um assunto da exclusiva
competência profissional dos economistas. Por isso, se os teólogos se preocupam com
este assunto não é porque desejam retornar ao imperialismo teológico da Idade
Média”.74
Se a reflexão teológica deve ser reivindica também no interior da economia,
por outro lado, a realidade teologal não se basta por ela mesma. Com efeito, na
perspectiva de Hinkelammert, “também são necessários técnicas, procedimentos,
políticas econômicas adequadas. É necessário colar em prática a fé, para que seja viável.
É necessário organizar a economia para que cumpra com seus fins elementares”. 75
Trata-se, pois, de “assegurar a sobrevivência de todos os seres humanos através de seu
trabalho e uma distribuição adequada dos ingressos, e basear esta solução no respeito à
sobrevivência da própria natureza, sem a qual o próprio homem não pode existir”. 76
A vida clama como uma questão incontornável. Desse modo, “talvez seja esta a
questão mais grávida de implicações concretamente históricas, que se refere ao
entrelaçamento da economia com a teologia.”77 Porque, não permitir ou dificultar que o
sujeito acesse as condições necessárias à vida digna, significa cerceá-lo da condição de
conceber fins e sonhos, de levar adiante seus projetos enquanto sujeito atuante e
69
ASSMANN; HINKELAMMERT, 1989, p. 28.
70
ASSMANN; HINKELAMMERT, 1989, p. 09.
71
ASSMANN; HINKELAMMERT, 1989, p. 242.
72
ASSMANN; HINKELAMMERT, 1989, p. 09.
73
ASSMANN; HINKELAMMERT, 1989, p. 137.
74
ASSMANN; HINKELAMMERT, 1989, p. 422.
75
HINKELAMMERT, 1990, p. 59.
76
HINKELAMMERT, 1990, p. 59.
77
ASSMANN; HINKELAMMERT, 1989, p. 137.
16
De modo específico, qual a relação entre teologia e economia? O que tem uma
a ver com a outra? À primeira vista, parece ser algo estranho, sobretudo quando se olha
e pensa a realidade a partir de uma óptica conservadora, fragmentária, distante da
realidade. Entretanto, como esclareceu Galilea, a partir da Teologia da Libertação, “a
teologia, como reflexão-da-fé, tem por missão não apenas aprofundar a Revelação em
si, mas também a revelação de Deus nas realidades históricas”. 80
Conforme Hinkelammert, a economia se apresenta como “ciência da produção
da vida.” Por conseguinte, ela “só pode ser teológica”.81A economia para a vida indica a
recuperação da dignidade do sujeito e do sentido da vida, propondo a construção de uma
sociedade onde caibam todos, que inclui a reformulação da economia ora vigente em
função da satisfação das necessidades humanas e da reprodução da vida. Entende-se,
portanto, que “a demanda da recuperação do sujeito, da vida humana concreta, da vida
para todos, nas instituições sociais e nas construções culturais – ciência, filosofia,
teologia, etc. – é a demanda mais urgente no mundo de hoje”. 82
Para a teologia hinkelammertiana, “a presença de Deus é algo atuante; a
relação primordial não é entre ser humano-sujeito e um Deus-sujeito, mas entre seres
humanos-sujeitos que ao se tratarem como tais trabalham a presença de Deus”. 83 Infere-
se, assim, que a teologia surge como um momento segundo em relação à própria
vivência da fé que se fez vida, gesto, atitude concreta. E essa condição primeira não é
apenas um ponto de partida a partir do qual se ergue o edifício da teologia, com toda sua
78
DUSSEL, Enrique. Filosofia da libertação: crítica à ideologia da exclusão. São Paulo: Paulus, 2002, p.
19.
79
GUTIÉRREZ, 2004, p. 93.
80
GALILEA, Segundo. Teologia da libertação: ensaio de síntese. 2. ed. São Paulo: Paulinas, 1978, p.
18.
81
HINKELAMMERT, Franz. Pensar alternativas: capitalismo, socialismo e a possibilidade de outro
mundo. In: PIXLEY, Jorge (coord.) Por um mundo diferente: alternativas para o mercado global.
Petrópolis: Vozes, 2003, p. 09.
82
HINKELAMMERT; JIMÉNEZ, 2005, p. 14.
83
HINKELAMMERT, 2013, p. 377.
17
84
GUTIÉRREZ, 1975, p. 15.
85
HINKELAMMERT, 2013, p. 377.
86
HINKELAMMERT, 2013, p. 378.
87
HINKELAMMERT, 2013, p. 378.
88
HINKELAMMERT, 1983, p. 328.
89
HINKELAMMERT, 2013, p. 378.
18
analogia, é preciso falar do Deus-sujeito”.90 Deus, então, não é uma ideia, uma
ideologia, mas experiência vivida em comunidade, em caminhada de um povo-
comunidade. Como diz Boff, “experimentar Deus não é pensar sobre Deus, mas sentir
Deus com a totalidade de nosso ser. Experimentar Deus não é falar de Deus aos outros,
mas falar de Deus junto com os outros”.91
A experiência de Deus está no âmbito da vivência. Em termos
hinkelammertianos, “embora Deus seja o âmbito no interior do qual os sujeitos
humanos se reconhecem, só se pode falar sobre Deus em termos que o apresentem como
sujeito”. Consequentemente, “o âmbito do reconhecimento entre sujeitos constitui o
reino de Deus na história. Ou seja, a presença histórica de Deus só pode ser concebida
em termos de um Deus-sujeito.”92 Por essa razão, há a vivência de uma comunidade que
compartilha uma aspiração escatológica como perspectiva de ressurreição, porque Deus
é o Deus da vida, um Deus que não quer a morte. “A fé não significa deixar de viver,
mas viver mais”.93
Por isso, “a esperança vai considerar o Deus-sujeito como aquele que,
contrariando as possibilidades humanas, a levará à sua plenitude”. Embora, há aqui uma
ponte com uma “teologia objetiva”, em que Deus é concebido como aquele que
ressuscitará os seres humanos dentre os mortos, para Hinkelammert, esse sentido não é
derivado de um pensar teológico que parte “de um Deus acima dos seres humanos que
se dirige a eles através de seu amor”.
A aspiração transcendental da ressurreição como sentido do teológico,
“segundo o qual o humanamente impossível, apesar de tudo é possível”, é vivida e
refletida “a partir de um amor entre sujeitos humanos, que é o amor de Deus. O amor de
Deus não vem de fora, torna-se efetivo à medida que há amor entre os seres humanos”.
E, nesse amor, “é exatamente igual dizer que o Reino de Deus é obra de Deus ou obra
dos seres humanos, ainda que o Deus-sujeito seja considerado como aquele que pode
realizá-lo em sua plenitude”.94 A experiência de um amor que é vida, é perpassada pelo
Logos que se fez carne, porque Deus é Deus da vida.
Nesse sentido, Gutiérrez nos lembra: “Deus é amor. Jesus o manifesta ao
dirigir-se a Ele como o seu Pai. Deus está onde o dom do Reino e suas exigências são
90
HINKELAMMERT, 2013, p. 378.
91
BOFF, Leonardo. Experimentar Deus: a transparência de todas as coisas. 4. ed. Campinas: Verus,
2002, p. 10.
92
HINKELAMMERT, 2013, p. 378.
93
HINKELAMMERT, 1983, p. 195.
94
HINKELAMMERT, 2013, p. 379.
19
95
GUTIÉRREZ, 2004, p. 187.
96
HINKELAMMERT, 2013, p. 379.
97
HINKELAMMERT, 1983, p. 290.
98
HINKELAMMERT, 1983, p. 294.
99
HIGGINS, Sílvio Salej. Prefácio da edição brasileira. In: HINKELAMMERT, 2013, p. 12.
100
HINKELAMMERT, 2013, p. 381.
20
101
GUTIÉRREZ, 2004, p. 11.
102
HINKELAMMERT, 2013, p. 373.
103
HINKELAMMERT, 2013, p. 373.
104
HINKELAMMERT, 2013, p. 373.
105
HINKELAMMERT, 2013, p. 373.
106
HIGGINS, 2013, p. 12.
107
ASSMANN; HINKELAMMERT, 1989, p. 09.
21
lados, a vida é ameaçada por estruturas sociais que pedem sacrifícios e produzem morte,
embora se apresentem racionalmente fornecedoras da sociedade perfeita. Sejam de
esquerda, sejam de direita, as ideologias totalitárias “querem fazer o céu na terra”, mas
acabam “produzindo somente o inferno”.108
A busca e, até mesmo, a rejeição de mundos impossíveis, nas palavras de
Higgins, “torna-se o mecanismo de legitimação de diferentes formas de ordem social”.
Então, “o ideológico, entendido como legitimação social, é um denominador comum
tanto do positivismo cientifico, e sua fé no progresso, como das doutrinas políticas
libertárias ou conservadoras.”109 Com efeito, esta foi a suspeita de Hinkelammert em
relação as principais correntes das sociedades modernas e que ele explicitou nos
primeiros seis capítulos de a Crítica da razão utópica.110
Referindo-se à primeira edição dessa obra (1984), Dussel lembra que
Hinkelammert a publicou um ano antes da Perestróica (1985), evento que demarcou o
início do desmantelamento da antiga União Soviética e da queda do socialismo. A
Crítica da razão utópica “antecipava as causas da queda do socialismo”, fazendo “uma
crítica, em nível estritamente teórico, da planificação burocrática de tipo estalinista,” e,
ao mesmo tempo, criticando “os fundamentos da proposta neoliberal, mostrando sua
inconsistência, que hoje vem sendo aceita por muitos.”111
Hinkelammert demonstra que tanto a proposta da economia de mercado livre
como a planificação burocrática socialista, assomando-se nesse mesmo horizonte
também as perspectivas do conservadorismo e do anarquismo, em última instância,
assentam-se num dominador comum, a razão utópica. Trata-se, esta racionalidade, de
“uma espécie de ingenuidade utópica, que cobre como véu a percepção da realidade
social”.112 Cada uma ao seu modo, essas teorias sociais se apresentam como portadoras
empíricas dos maiores sonhos da humanidade, porém, invariavelmente redundaram em
fracasso e mesmo em potencialidade destrutiva. Inclusive, o pensamento antiutópico da
tradição neoliberal, capitaneado pela ideia de mercado livre, à medida que “seu lema é
108
HINKELAMMERT, 2013, p. 274.
109
HIGGINS, 2013, p. 12.
110
Como se pode notar, o título do livro faz alusão à Crítica da razão pura de Kant. De fato,
HINKELAMMERT, 2013, p. 26, procura seguir, em sua crítica, “os elementos centrais das críticas
kantianas, convencido de que uma crítica da razão utópica, em última instância, consiste em uma
transformação dos conteúdos utópicos dos pensamentos modernos em conceitos e reflexões
transcendentais. Como as críticas kantianas à razão são críticas que as transcendem, procuro demonstrar
que também a crítica da razão utópica não pode ser senão uma crítica transcendental.”
111
DUSSEL, 2002, p. 260.
112
HINKELAMMERT, 2013, p. 19.
22
destruir a utopia para que não exista mais utopia”, seu extremismo utopista reverbera
uma “antiutopia como utopia verdadeira”. 113 Revela-se, então, um conteúdo teológico,
porque “são seguidores do „In god we trust‟, com a condição de que se trate daquele que
está impresso no dólar”.114
Para essa visão de mundo, em que não há alternativas, a ideia de justiça social
é rechaçada. De modo efetivo, Hayek, que foi um dos principais pensadores neoliberais
do século XX, entendeu que a dedicação à causa da justiça social é uma ameaça à
sociedade livre - “só podemos proteger-nos dessa ameaça submetendo até nossos mais
caros sonhos de um mundo melhor a uma implacável dissecação racional”. Diz ele
ainda, “acredito que a „justiça social‟ será, finalmente, identificada como uma miragem
que induziu os homens a abandonarem muitos dos valores que inspiraram, no passado, o
desenvolvimento da civilização [...]”.115
Ora, para a visão neoliberal, o mercado é a sua religião. Daí o sentido de
“cativeiro da utopia”, referido por Hinkelammert, em que a vida é desprezada. Desse
modo,
113
HINKELAMMERT, 2013, p. 20.
114
HINKELAMMERT, 2013, p. 376.
115
HAYEK, Friedrich. Direito, legislação e liberdade: a miragem da justiça social. São Paulo: Visão,
1985, p. 85. Ainda HAYEK, 1985, p. 86; “aquilo com que nos defrontamos no caso da „justiça social‟ é
simplesmente uma superstição quase religiosa, do gênero que deveríamos respeitosamente deixar em paz
na medida em que apenas traz felicidade aos que nela creem, mas que temos obrigação de combater
quando se torna pretexto para a coerção de outros homens. E a crença reinante na „justiça social‟ é
provavelmente, em nossos dias, a mais grave ameaça à maioria dos valores de uma civilização livre.”
116
HINKELAMMERT, 2013, p. 289.
117
ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio
de Janeiro: Zahar, 1985, p. 11.
23
conduziu a civilização para uma nova barbárie, justamente em sua inabalável confiança
em querer dominar o mundo. Daí o mito do progresso técnico-científico ligado à razão
instrumental, uma razão que se moldou a partir dos ideais da sociedade industrial.
“Doravante, a matéria deve ser dominada sem o recurso ilusório a forças soberanas ou
imanentes, sem a ilusão de qualidades ocultas. O que não se submete ao critério da
calculabilidade e da utilidade torna-se suspeito para o esclarecimento.”118
Retomando Hinkelammert, a razão utópica é a razão técnico-científica que se
entende capaz de levar adiante a promessa de oferecer à humanidade as respostas
últimas de suas aspirações, muitas vezes, perdendo o contato com a própria realidade.
Note-se que “uma sociedade tecnológica também mata o ser humano ao dar-lhe uma
ilusão transcendental do progresso técnico quando ele pede trabalho, pão e teto”.119
Não obstante ao marco da crítica da razão kantiana, que discerniu os limites de
possibilidade da razão cognoscível, dada a própria condição da finitude humana, as
principais correntes de pensamento e modelo da sociedade moderna sucumbiram aos
mecanismos da ilusão transcendental, uma razão utópica. Há uma expectativa
compartilhada de que a humanidade poderá realizar plenamente seus maiores sonhos, a
saber: plena liberdade, imortalidade, mundo social sem dor e sem miséria. Ou seja,
“para qualquer lugar que olharmos, surgem teorias sociais que buscam as raízes
empíricas dos maiores sonhos humanos para descobrir, posteriormente, alguma forma
de realizá-los a partir do tratamento adequado de tal realidade”.120
Trata-se, por conseguinte, a razão utópica, de uma ingenuidade que está
presente tanto no pensamento liberal como no pensamento socialista. Enquanto o
primeiro “atribui à realidade do mercado burguês a tendência ao equilíbrio e à
identidade de interesses originados por alguma mão invisível”, o segundo “atribui a uma
reorganização socialista da sociedade uma perspectiva igualmente total de liberdade do
homem concreto”.121 Tanto pensamento socialista como no liberal, “da terra ao céu
parece existir uma escada e o problema é encontrá-la”. 122
Do mesmo modo, a razão utópica ocorre no pensamento conservador, tal como
aparece na obra O dossel sagrado de Peter Berger.123 Conforme Hinkelammert, em
118
ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 21.
119
HINKELAMMERT, 2013, p. 83.
120
HINKELAMMERT, 2013, p. 19
121
HINKELAMMERT, 2013, p. 19.
122
HINKELAMMERT, 2013, p. 19.
123
HINKELAMMERT, 2013, p. 22, “Berger […] é hoje uma figura política importante na confrontação
ideológica do atual governo dos Estados Unidos [George W. Bush] com os movimentos e libertação na
24
América Latina, especialmente por sua influencia no “Instituto sobre Religião e Democracia”, um
importante órgão do governo norte-americano que luta contra a Teologia da Libertação”.
124
HINKELAMMERT, 2013, p. 203.
125
HINKELAMMERT, 2013, p. 216.
126
HIGGINS, 2013, p. 15.
127
HINKELAMMERT, 2013, p. 31.
25
inegável.”128 Até é possível tentar esse impossível, porém, isso implica em imposição,
violência, destruição. É o que ocorreu na sociedade socialista soviética, a qual se
embasou na ideia de que era possível adotar um modelo de sociedade firmado no
planejamento perfeito. Hinkelammert está de acordo com Popper quando este diz que “a
tentativa de construir o paraíso na terra invariavelmente resulta no inferno. Leva à
intolerância. Leva às guerras religiosas e à salvação das almas por meio da
inquisição”.129
Até aqui, Hinkelammert assente com o pensamento popperiano. Porém, quando
Popper adota o princípio de que todo utopista é um inimigo a ser reprimido e assume
uma ferrenha postura de combate, em nome de uma sociedade sem utopias, seu
antiutopismo reverberou, no fundo, em um novo utopismo. Agora, em nome da
sociedade aberta e da racionalidade científica, os inimigos devem ser combatidos. Nas
palavras do próprio Popper, referindo-se aos „utopistas‟, “apesar desses líderes da
humanidade saberem como fazer uso da razão para seus propósitos, nunca são homens
da razão. [...] A criatividade é uma faculdade inteiramente irracional, mística”. 130
Portanto, “a utopia leva o utopista à violência e, portanto, é preciso reprimi-lo, inclusive
violentamente”.131 Para resumir, com Hinkelammert,
128
HINKELAMMERT, 2013, p. 31.
129
POPPER, Karl. A sociedade aberta e seus inimigos. In: Popper: vida e obra. 2. ed. São Paulo: Abril
Cultural, 1980, p. 193.
130
POPPER, 1980, p. 182.
131
HINKELAMMERT, 2013, p. 33.
132
HINKELAMMERT, 2013, p. 25.
133
HINKELAMMERT, 2013, p. 47.
134
HINKELAMMERT, 2013, p. 277.
26
que se sustenta agora o mercado livre, impõe-se a sociedade para a qual não há
alternativa.
135
HINKELAMMERT, 2013, p. 394.
136
HAYEK apud HINKELAMMERT, 2013, p. 275.
137
HINKELAMMERT, 2013, p. 275.
138
HAYEK, 1985, p. 89.
139
HAYEK, 1985, p. 89.
140
HAYEK, 1985, p. 85.
141
HINKELAMMERT, 2013, p. 279.
27
exclui a ideia de eficiência em si. Para ele, o resgate da vida real e do sujeito humano, a
partir de uma economia para a vida, deve introduzir necessariamente o “conceito de
eficiência reprodutiva”, isto é, “a produção de riqueza deve ser feita de tal forma que as
suas fontes – o ser humano e a natureza – sejam conservadas, reproduzidas e
desenvolvidas junto com a riqueza produzida”.142
Certamente, a vida e tudo o que nela implica transcende à técnica, ao cálculo,
embora estes possam ser necessários e úteis, apenas isso. O cálculo e a técnica não
determinam valores. “Os valores da convivência não podem surgir em nome da
eficiência. Mas o reconhecimento desses valores é o ponto de partida da possibilidade
de assegurar a eficiência reprodutiva, e com ela tornar possível a vida no futuro”. 143 A
eficiência reprodutiva é o elemento qualitativo que surge como critério nas análises
quantitativas.
Esse aspecto apontado por Hinkelammert, de modo geral, está ausente na ideia
de eficiência na ordem de mercado. Para Hayek, de fato, a economia de mercado livre
ocorre sob os critérios da eficiência e calculabilidade. Fora destes critérios, o
conhecimento científico seria uma pretensão. Note-se a gratidão de Hayek aos
“filósofos modernos da ciência, como Sir Karl Popper, por fornecer-nos um teste pelo
qual podemos distinguir o que devemos aceitar, ou não, como científico – teste este que
não aprovaria [...] algumas doutrinas amplamente aceitas agora como científicas.” 144
Em nome das relações capitalista de produção, de acordo com Hinkelammert,
“o critério formal da eficiência do mercado se transforma no critério supremo de valores
e, por conseguinte, também de todos os direitos humanos. O próprio critério não é um
valor, ele dirige o mundo dos valores”. 145 Entende-se, desse modo, a recusa de Hayek
pela viabilidade de organizar a sociedade a partir de outros pontos de vista, exceto pela
via do “sistema de economia livre”. 146 Para esse economista, tal como um
supercomputador, a economia de mercado é “capaz, por si mesma, adaptar-se a uma
infinidade de variáveis imprevisíveis”. Assim, na crença de Hayek, a economia de
mercado pode empregar à produtividade, por vias automáticas, “um enorme volume de
informações extremamente dispersas entre milhões e milhões de pessoas (toda a
142
HINKELAMMERT, 2013, p. 280.
143
HINKELAMMERT, 2013, p. 281.
144
HAYEK, Friedrich A. Von. Conferência Nobel: A pretensão do conhecimento. Revista Brasileira de
Economia, Rio de Janeiro, v. 37, n. 04, out./ dez. 1983, p. 520.
145
HINKELAMMERT, 2013, p. 274.
146
HAYEK, Friedrich apud RANGEL, Carlos. Capitalismo y socialismo: entrevista a Friedrich August
von Hayek. El Universal, Caracas, 17.mayo. 1981, p. 01.
28
Santo Padre, temos fome. [...] Sofremos miséria, falta-nos trabalho, estamos
doentes. Com o coração partido de dor, vemos que nossas esposas passam a
gestação tuberculosas, que as nossas crianças morrem, que nossos filhos
crescem frágeis e sem futuro. [...] Mas apesar de tudo isso, cremos no Deus
da vida.151
147
HAYEK apud RANGEL, 1981, p. 01.
148
HINKELAMMERT, 2013, p. 276.
149
HINKELAMMERT, 2013, p. 276.
150
HINKELAMMERT, Franz. O cativeiro da utopia: as utopias conservadoras do capitalismo atual, o
neoliberalismo e o espaço para alternativas. Revista eclesiástica brasileira, Petrópolis, p.807.
151
GUTIÉRREZ, 2004, p. 11. Palavras de saudação proferidas por Víctor e Isabel Cheno, em nome das
comunidades pobres de Lima, ao papa João Paulo II, quando este visitou o Peru, em 1985.
29
existência do ser humano e, por ele, ao mesmo tempo, é o critério da verdade prática e
teórica. Todo enunciado ou juízo tem por última referência a vida humana”. 152
A formação de uma visão de mundo não se dá por acaso ou de forma isolada,
mas é fruto de um mundo vivido e compartilhado por sujeitos históricos, que vivem
suas conquistas e também dilemas. O ser humano se faz humano na relação com o outro
e a outra. Como escreveu Marx, em sua crítica à visão burguesa, “o caçador e o
pescador, singulares e isolados, pelos quais começam Smith e Ricardo, pertencem às
ilusões desprovidas de fantasia das robinsonadas [Robinson Crusoé] do século
XVIII.”153 Desse modo, concordando com Holanda, “toda sociedade produz uma
imaginação política que legitima tanto a ordem estabelecida quanto as ações contrárias a
ela. [...] A vida em sociedade supõe, de modo permanente, a produção de
significados”.154
A realidade social, na perspectiva de Hinkelammert, “não é uma realidade sem
mais, mas uma realidade percebida sob determinado ponto de vista. Só podemos
perceber aquela realidade percebida que nos aparece mediante as categorias teóricas
usadas”.155 Isso é válido para todos os fenômenos sociais e, portanto, implica o universo
econômico. Dessa maneira, “o marco categorial, dentro do qual interpretamos o mundo
e dentro do qual percebemos as possíveis metas da ação humana, está presente nos
próprios fenômenos sociais e pode ser derivado deles”. 156
Em outras palavras, a afirmação e acolhida da vida, numa atitude de
hospitalidade e cuidado, indica um caminho de dignificação da vida real, isto é, dos
sujeitos vivos que comungam da mesma esperança – o pão da Vida é posto em comum
(cf. At 5,1-12). “Indistintamente, poderíamos afirmar as teses, derivadas tanto para os
sujeitos isolados como Robinson quanto para sujeitos em sociedade. Mas o sujeito
humano sempre existe em sociedade”. Ou seja, “não há um sujeito humano, mas um
conjunto de sujeitos humanos que formam a sociedade através de suas inter-
relações”.157
152
HINKELAMMERT; JIMÉNEZ, 2005, p. 08.
153
MARX, 2011, p. 39.
154
HOLANDA, Francisco U. X. de. Do neoliberalismo ao neoliberalismo: o itinerário de uma
cosmovisão impenitente. 2. ed. Porto Alegre: Edipucrs, 2001, p. 13.
155
HINKELAMMERT, 1983, p. 19.
156
HINKELAMMERT, 1983, p. 19.
157
HINKELAMMERT, 2013, p. 336.
30
E tudo isso tem a ver com o universo econômico, que deve ter como sentido
primordial possibilitar que o sujeito viva. E viva dignamente. O estar vivo, isto é, a
possibilidade do viver, concretiza-se enquanto vida material, concreta, corpórea. A vida
não se dá no vazio. Há o pressuposto sem o qual a vida não seria possível: “a
possibilidade da vida pressupõe o acesso aos meios para poder viver”. 163 Do mesmo
modo, “da própria necessidade de reproduzir a vida humana material se segue a
necessidade de garantir a reprodução da natureza ou, em termos atuais, do meio
ambiente”.164
158
HINKELAMMERT, 1983, p. 337.
159
HINKELAMMERT, 2013, p. 335.
160
HINKELAMMERT, 2013, p. 333.
161
ASSMANN; HINKELAMMERT, 1989, p. 92.
162
HINKELAMMERT, 2013, p. 333.
163
HINKELAMMERT; JIMÉNEZ, 2005, p. 17.
164
ASSMANN; HINKELAMMERT, 1989, p. 92.
31
165
HINKELAMMERT, 2013, p. 337.
166
SOBRINO, Jon. Onde está Deus? São Leopoldo: Sinodal, 2007, p. 78.
167
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 1993,
p.171. A autora, que nasceu no interior de Minas Gerais, foi catadora de papel e viveu na comunidade do
Canindé, às margens do rio Tietê, em São Paulo, onde hoje fica o estádio da Portuguesa de Desportos.
168
JESUS, 1993, p. 30. Observo que os erros de português, contidos nos originais da autora, foram
conservados pelo editor para sinalizar o realismo da obra que retrata a vida de um povo alijado, inclusive,
da educação formal.
32
Senhor (que nos questiona e interpela)”.169 Por isso, em cada grito, em cada angústia, há
uma “revolta [que] é justa”.170 E, neste desejo de justiça, como um sopro de esperança –
ressurreição – que restitui a vida, há o apelo de Deus: “Eu vi, eu vi a miséria do meu
povo” (Ex 3, 7).
Como escreveu Mandela, “a esperança é uma arma poderosa, mesmo quando
tudo o mais parece perder a força”.171 De fato, no humano, Deus se faz morada quando
a própria esperança não é mais permitida. Daí o sentido de uma Palavra que solicita a
incontornável resposta ética, uma resposta de firme denúncia das condições injustas que
geram sofrimento e morte. Ao mesmo tempo, uma firme resposta de solidariedade
transformadora que tem como critério a sabedoria do amor, isto é, o amor a serviço do
próximo. No sentido de Moltmann, trata-se do amor expresso pela sabedoria dos
profetas, em que a causa do pobre e do indigente (cf. Jr 22,16) demanda a “ética da paz
justa”. Isso porque “justiça é, segundo o Antigo Testamento, um nome de Deus (Jr
23,6) e, segundo o Novo Testamento (2Pd 3,13), a materialização da presença da paz na
nova terra”.172
A justiça não é a justiça legalista que pede sacrifícios, nem a justiça dos
tribunais, mas é a justiça que liberta e restaura o humano. Trata-se da justiça que
“abrange todos os aspectos do salvar e do compadecer-se, do auxiliar e do curar, do
justificar e restaurar”, que implica tanto o humano como de maneira especial a terra.173
Desse modo, “o clamor por justiça é, para os impotentes e humilhados, o clamor por
Deus. Inclusive o silêncio do povo fatigado e sobrecarregado expressa o clamor por
Deus e pela sua justiça.”174
Com efeito, esse é o conteúdo da „justa revolta‟ de Carolina de Jesus, um
clamor carregado de sonhos, mesmo que frustrados, quando expressou em seu diário:
“[hoje, é] aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu pretendi comprar um par de
sapatos para ela. Mas o custo dos generos alimenticios nos impede a realização dos
nossos desejos. [...] Eu achei um par de sapatos no lixo, lavei e remendei para ela calçar
[sic]”. 175
169
CELAM – Conselho Episcopal Latino-Americano. Conclusões da Conferência de Puebla. 13.
Ed.São Paulo: Paulinas, 2004, p. 94.
170
JESUS, 1993, p. 30.
171
MANDELA, Nelson. Conversas que eu tive comigo. Rio de Janeiro: Rocco, 2010, p. 176.
172
MOLTMANN, Jürgen. Ética da esperança. Petrópolis: Vozes, 2012, p. 195.
173
MOLTMANN, 2012, p. 211.
174
MOLTMANN, 2012, p. 212.
175
JESUS, 1993, p. 171.
33
176
JESUS, 1993, p. 42.
177
JESUS, 1993, p. 26.
178
JESUS, 1993, p. 52.
179
JESUS, 1993, p. 34.
180
JESUS, 1993, p. 34.
181
JESUS, 1993, p. 38.
34
pobreza só surge quando após a fome não vem a refeição, após a sede a
bebida, após o frio o calor agradável e ao calor uma boa brisa refrescante. 182
A alimentação não é uma concessão, uma caridade, uma ação assistencial, mas
um direito básico. Como disse Dom Morelli, em entrevista a Zero Hora, diante da
realidade da fome que atinge sobretudo crianças, “não é porque tenho pena de criança
com fome. Tenho vergonha. A criança privada do alimento fica mirrada, não se
desenvolve, a humanidade dela foi negada e a minha foi atingida.[...] Ela [alimentação]
é um direito inalienável do ser humano”.183 Entende-se, por conseguinte, que o acesso à
alimentação é muito mais uma questão de distribuição, a qual está concentrada, do que
propriamente de produção.184
Diante da abundância de alguns que demanda em miséria de outros, no Quarto
de despejo, há a palavra de quem testemunha o sofrimento do faminto e, ao mesmo
tempo, denuncia o opulento que gera a injustiça. “Quando eu fui catar papel encontrei
um preto. Estava rasgado e sujo que dava pena. [...] Indigno para um ser humano. [...]
Não estava embriagado, mas vacilava no andar. Cambaleava. Estava tonto de
fome”.185Assim como tantos outros, ele era um retirante que, não podendo mais viver
nas fazendas, onde era explorado, foi tentar a vida na cidade grande, mas não encontrou
emprego porque já era idoso. Como diz Hinkelammert, “os pobres sofrem injustiça; a
falta de „pão e teto, de saúde e cultura”, porém, “no momento em que começam a exigir
justiça e a obrigar a respeitá-la, a justiça dos pobres é violência”. 186
No Quarto de despejo, há também a poesia de quem tem lado. É a poesia
política de uma causa que é justa. “Os políticos sabem que sou poetisa. E que o poeta
enfrenta a morte quando vê o seu povo oprimido. [...] Eu estou ao lado do pobre, que é
braço. Braço desnutrido. Precisamos livrar o paiz dos políticos açambarcadores
182
HINKELAMMERT, 2013, p. 358.
183
MORELLI, Mauro. Zero Hora, Porto Alegre, 7 maio. 2014.
184
Cf. ALCÁZAR, José E. Eliminar a fome requerer inteligência e ética. IHU On-Line, São Leopoldo, n.
442, 05 maio. 2014, p. 07-10: “Hoje, segundo dados da Organização das Nações Unidas para
Alimentação e Agricultura – FAO, há alimentos no mundo para alimentar folgadamente a população
mundial. Os alimentos estão no mercado internacional, mas não chegam às mesas nem às bocas dos que
têm fome. Em outras palavras, o problema não é a produção de alimentos, mas o acesso aos mesmos. O
problema é, essencialmente, de índole política. Isto foi reconhecido explicitamente há mais de 50 anos
por um grande presidente dos Estados Unidos. Em 1963, John F. Kennedy, em seu discurso no primeiro
Congresso Mundial de Alimentos, disse: “Em nossa geração temos os meios e a capacidade de eliminar a
fome da face da Terra.Necessitamos, para tanto, apenas de vontade política”. Se há 50 anos já existiam os
meios e a capacidade para acabar com a fome, imagine hoje! No entanto, continua faltando vontade
política para isso.
185
JESUS, 1993, p. 48.
186
HINKELAMMERT, 1983, p. 260.
35
[sic].”187 Essa é uma poesia que admoesta, com firmeza, a política da demagogia, do
discurso ludibriante, da manipulação, do político que, depois do voto, “divorcia-se do
povo. Olha o povo com os olhos semi-cerrados. Com um orgulho que fere a nossa
sensibilidade”. Então, com lucidez, a poetisa alerta: “a democracia está perdendo seus
adeptos. No nosso paiz tudo está enfraquecendo. [...] A democracia é fraca e os políticos
fraquíssimos. E tudo que está fraco, morre um dia [sic].” 188
Como diz Lévinas, o opulento trata o oprimido “como filantropo, como se ele
fosse um mísero, espécie estranha”. 189 O farto que está fechado em sua indiferença e
vive da injustiça não compreende o esfomeado. Donde o sentido da palavra de Carolina
de Jesus que repudia a caridade do desprezo, da especulação comercial: “[...] chegou um
caminhão aqui na favela. O motorista e o seu ajudante jogam umas latas. É linguiça
enlatada. [...] Já está pobre.” Pois, “é assim que fazem os comerciantes insaciáveis.
Ficam esperando os preços [dos produtos] subir na ganancia de ganhar mais. E quando
apodrece jogam fora para os corvos e os infelizes favelados [sic]”. 190
A partir do Quarto de despejo, emerge o justo e incontornável grito que vem da
Outra Margem: “nós somos pobres, viemos para as margens do rio [Tietê]. Gente da
favela é considerado marginais. [...] Os homens desempregados substituíram os corvos
que voavam as margens do rio, perto dos lixos [sic].”191 É a narrativa de quem “[luta]
contra a escravidão atual – a fome!.”192 Por isso, é uma palavra que repudia o político
do discurso demagógico, denuncia a falsa filantropia e admoesta aquele que faz da
miséria um mero cenário para „fita de cinema‟ – “o que se nota é que ninguem gosta da
favela, mas precisa dela. [...] Eles estão filmando as proezas do Promessinha. Mas o
Promessinha não é da nossa favela [sic]”. 193
A palavra que clama em o Quarto de despejo, como palavra que se funde
àquela de Jesus, o nazareno (cf. Mt 8, 20), pede o pão que sacia a fome e, ao mesmo
tempo, o pão da fraternidade e da igualdade. “As aves deve ser mais feliz que nós.
Talvez entre elas reina amizade e igualdade. (...) O mundo das aves deve ser melhor do
que dos favelados, que deitam e não dormem porque deitam-se sem comer.”194 Como
187
JESUS, 1993, p. 35.
188
JESUS, 1993, p. 34-35.
189
LÉVINAS, Emannuel. Totalidade e infinito. Lisboa: Edições70, 2000b, p. 104.
190
JESUS, 1993, p. 29.
191
JESUS, 1993, p. 48.
192
JESUS, 1993, p. 27.
193
JESUS, 1993, p. 27. A autora se refere à filmagem do filme “Cidade Ameaçada” (1960), dirigido por
Roberto Farias, em que Promessinha foi um dos personagens.
194
JESUS, 1993, p. 30.
36
sugere Gutiérrez, entende-se que “a solidariedade com o pobre oferece uma base firme
para que se possa falar de Deus. [...] O Senhor pede a solidariedade com os
marginalizados e o oprimidos. É a ética do Êxodo. Deus está presente neles [...]”. 195 Em
suma, é o Deus que clama no rosto do povo que pede libertação.
A palavra de Carolina de Jesus, registrada em Quarto de despejo, é uma
palavra que clama em outros rostos, como naqueles que são cotidianamente despejados
de sua dignidade, ante uma sociedade que gera e pede sacrifícios, como denunciou
Hinkelammert em Sacrifícios humanos e sociedade ocidental. Ou seja, nos porões dos
poderes totalitários ou ditatoriais, nas dinâmicas sociais que geram pobreza, as
realidades que geram sacrifícios são monstruosidades:
Na sociedade do sacrifício, o outro não existe mesmo que ele esteja aí, ele é um
estorno, deve ser retirado, excluído, para dar lugar ao império, ao “capitalismo como
religião”.197Assim, por exemplo, no Brasil, mais de 150.000 pessoas foram removidas
de suas casas, para dar lugar aos empreendimentos ligados à Copa do Mundo de 2014 e
às Olimpíadas 2016. 198 Do mesmo modo, sob a lógica sacrifical, minimizam-se crimes
cometidos pelo próprio Estado – “erros de operação” –, como no Morro da Congonha,
Rio de Janeiro, em março de 2014, em que uma ação policial resultou no assassinato de
Cláudia da Silva Ferreira, mãe de quatro filhos, que teve seu corpo exposto e arrastado
pelas ruas de seu bairro como se fosse um objeto.199
Cláudia que foi notícia num dia, no outro, sob a cultura da indiferença, caiu no
esquecimento, tornando-se apenas um número que compõe estatísticas da violência.
Aliás, conforme Maricato, entre 1980 e 2010, a taxa de homicídios no Brasil cresceu
259%. “Em 1980, a média de assassinatos no país era 13,9 mortes para cada 100 mil
195
GUTIÉRREZ, 2004, p. 200.
196
HINKELAMMERT, 1995, p. 231.
197
Conceito referido por BENJAMIN, Walter. O capitalismo como religião. São Paulo: Boitempo,
2013, p. 21, segundo o qual “o capitalismo deve ser visto como uma religião, isto é, o capitalismo está a
serviço da resolução das mesmas preocupações, aflições e inquietações a que outrora as assim chamadas
religiões quiseram oferecer resposta.”
198
PORTAL POPULAR DA COPA. Dossiê: Megaeventos e violações dos direitos humanos no Brasil, p.
14. Disponível em: <http://www.portalpopulardacopa.org.br/>. Acesso em 17 abr. 2014.
199
Cf. Jornal do Brasil. Disponível em: http://www.jb.com.br/rio/noticias/2014/03/17/rio-policiais-que-
arrastaram-mulher-por-rua-em-madureira-sao-presos/. Acesso em: 17 abr. 2014.
37
habitantes. Em 2010, saltou para 49,9. A principal vítima dos homicídios é o jovem
negro e pobre, morador da periferia metropolitana”.200
Essa é uma realidade sacrifical que não se restringe ao contexto brasileiro. Os
quartos de despejo do Terceiro Mundo se tornaram globais. Como lembra Moltmann,
“estar entregue desamparadamente à injustiça e aos atos de violência das pessoas e
instituições é, hoje, uma experiência global da maior parte da humanidade”. 201 Ziegler,
que foi relator da ONU para o direito à alimentação entre 2000 e 2008, em Destruição
em massa: geopolítica da fome, testemunha que “a destruição anual de dezenas de
milhões de homens, mulheres e crianças pela fome constitui o escândalo de nosso
século. A cada cinco segundos, morre uma criança de menos de dez anos”.202 Porém,
essa realidade não é nenhuma fatalidade, sobretudo tendo em conta a quantidade de
alimentos, hoje, produzidos no mundo, que é mais do que o suficiente para alimentar a
atual população mundial (em torno de sete bilhões de pessoas). Por isso, sem
eufemismos, concordando com Ziegler, “uma criança que morre de fome é uma criança
assassinada”.203
A realidade dos quartos de despejo ressoa como condição ética incontornável.
Por isso, celebrar o Deus da vida é também denunciar as armas ideológicas da morte, a
sociedade que pede sacrifícios. “Uma teologia da vida – base de qualquer teologia da
libertação – desemboca nessas exigências”.204 Na perspectiva cristã, somos insuflados
por homens e mulheres que, a partir de múltiplas formas de ser igreja, assumiram e
assumem a condição de serem portadores de uma Boa Nova, em que a vida se apresenta
como critério de transformação dos mecanismos que geram sacrifícios.
200
MARICATO, Ermínia. É a questão urbana, estúpido. In: VAINER, Carlos (et al.). Cidades rebeldes:
passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo Boitempo; Carta Maior, 2013, p.
21.
201
MOLTMANN, 2012, p. 212.
202
ZIEGLER, Jean. Destruição em massa: geopolítica da fome. São Paulo: Cortez, 2013, p. 21.
203
ZIEGLER, 2013, p. 21.
204
HINKELAMMERT, 1983, p. 329.
205
RIEGER, Joerg: Lembrar-se dos pobres: o desafio da teologia no século XXI. São Paulo: Loyola,
2009, p. 218: “A conferência dos bispos latino-americanos de Medellín, em 1968, em que Gutiérrez atuou
como assessor teológico, marcou o principal retorno ao encontro com os pobres. Aqui, a Igreja latino-
americana passou a ter um contato mais próximo com seu próprio contexto.”
38
pobres sua verdadeira fonte de inspiração, como sinal de uma comunidade de fé que
assume a condição de um Jesus que se faz próximo no rosto do próximo que clama.
Como diz Gutiérrez, “a espiritualidade [libertadora] é uma aventura comunitária. Passo
de um povo que segue o seu próprio caminho em seguimento a Jesus Cristo, através da
solidão e das ameaças do deserto”.206 O encontro com a realidade é o chão da fé vivida
que profetiza a esperança, em que se palmilha, passo a passo, a utopia da sabedoria do
amor. Caminhada esta, muitas vezes, acompanhada de dor, incompreensão, perseguição,
tortura e martírio de companheiros e companheiras. De modo especial, nas palavras de
Sobrino, “o lugar em que convergem como por necessidade profetismo e utopia é o
Terceiro Mundo, onde a injustiça e a morte são intoleráveis, e onde a esperança é como
a quintessência da vida”. 207
Para Gibellini, “o Terceiro Mundo é um conceito complexo, mas tem um
componente socioeconômico, geográfico e político, e também uma dimensão teológica:
é o „fruto amargo da opressão‟.”208 A noção de „Terceiro Mundo‟209 enquanto conteúdo
teológico nasceu no contexto da América Latina, onde o grito massivo dos
empobrecidos se fez ouvir por uma comunidade cristã sensível ao Jesus de Nazaré
sofredor no rosto desses irmãos e irmãs. Como diz Sobrino, de forma apropriada, trata-
se de “um continente não só atrasado ou subdesenvolvido, mas também oprimido e
escravizado pelo primeiro mundo, europeus e norte-americanos. E em Igrejas, se não
oprimidas pelas europeias, fortemente dependentes delas”. 210
Aliás, atualmente, a polarização entre países centrais e entre países periféricos
tem se intensificado. No dizer de Stiglitz, “a distância cada vez maior entre os que têm e
os que não têm vem deixando um número bastante grande de pessoas do Terceiro
Mundo num espaço lamentável de miséria, sobrevivendo com menos de um dólar por
dia.”211 E nessa realidade, segundo o sociólogo Boaventura Santos, “se as assimetrias
206
GUTIÉRREZ, 1984, p. 151.
207
SOBRINO, Jon. Fora dos pobres não há salvação: pequenos ensaios utópico-proféticos. São Paulo:
Paulinas, 2008, p. 56.
208
GIBELLINI, 1998, p. 452:
209
A expressão „Terceiro Mundo‟ é relativamente recente. De acordo com GIBELLINI, 1998, p. 447,
essa expressão “foi usada pela primeira vez pelo demógrafo francês Alfred Sauvy em 1952, [segundo o
qual] „este Terceiro Mundo, ignorado, explorado, desprezado como o Terceiro Estado, quer, também ele,
ser algo‟. A expressão nascia juntamente com o início do processo de descolonização, que, depois da
Segunda Guerra Mundial, levou muitos países da África e da Ásia à independência política.”
210
SOBRINO, Jon. O absoluto é Deus, e o coabsoluto são os pobres. IHU On-Line, São Leopoldo, n.
404, 05 out. 2012, p. 10.
211
STIGLITZ, Joseph. A globalização e seus malefeitos: a promessa não-cumprida de benefícios
globais. 4. ed. São Paulo: Futura, 2003, p. 31.
39
sociais aumentaram no interior de cada país, elas aumentaram ainda mais entre o
conjunto dos países do Norte e o conjunto dos países do Sul”.212
Por isso, o chamado „terceiro mundo‟, hoje, continua sendo o contexto dos
povos da América Latina, África, Ásia e Oceania meridional, em que a exploração
imperial segue se renovando, repercutindo em destruição ambiental, marginalização,
desigualdade social, apartheid, campos de detenção, miséria e violência. No entanto, o
encontro da teologia latino-americana com outras realidades, desde a teologia negra e
feminista, ainda nos de 1970, revelou que os empobrecidos têm muitos rostos. Segundo
Gibellini,
212
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 13. ed.
São Paulo: Cortez, 2010, p. 18.
213
GIBELLINI, 1998, p. 357.
214
ALIGHIERI, Dante. A divina comédia. São Paulo: Nova Cultural, 2003, p. 17.
215
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. 8. reimp. São Paulo: Companhia das letras, 2000,
p. 29.
40
Portanto, nessa realidade, soa o grito dos imigrantes que sofrem um sistema
político discriminatório e opressivo. Sistema este que é comandado por um Estado cada
vez mais policialesco. No testemunho de Jappe,
216
WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. 2. ed. Zahar, 2011, p. 121.
217
JAPPE, Anselm. Violência, mas para quê? São Paulo: Hedra, 2009, p. 07-09:
218
GROPPO, Luís Antônio. A condição juvenil e as revoltas dos subúrbios na França. Política e
sociedade, Florianópolis, v.05, n. 08, abr. 2006, p. 89.
219
Para um resgate dos principais eventos, cf. ALVES, Giovanni. Ocupar Wall Street... e depois?
In:HARVEY, David (et al.). Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas. São Paulo:
Boitempo; Carta Maior, 2012, p. 31-32,“o M12M, Movimento 12 de Março ou Geração à Rasca, em
Portugal, o M15M, Movimento 15 de Março ou Movimento dos Indignados, na Espanha, e o Occupy
Wall Street, nos Estados Unidos, surge no bojo da aguda crise financeira que atinge o núcleo orgânico do
capitalismo global desde 2008. O Occupy Wall Street foi inspirado nos movimentos sociais europeus
como o M15M, que por sua vez foram influenciados pelas rebeliões de massa que impulsionaram a
Primavera Árabe e derrubaram governos na Tunísia e no Egito. [...] Em todos esses movimentos, o papel
das redes sociais, como Facebook e Twitter, na organização das manifestações foi importante”.
41
tomaram uma dimensão global, repercutindo inclusive no Brasil, como nas „Jornadas de
Junho de 2013‟.
Por ser um fenômeno social recente e ainda em andamento, levando-se em
conta também o papel catalisador das redes sociais da internet para a organização dos
protestos,220 qualquer análise dessa insurreição político-social disseminada pelo mundo,
parece-me que está ainda no âmbito da hipótese, suscitando mais perguntas do que
respostas. O que significam e sinalizam os novos movimentos sociais diante da atual
conjuntura mundial, tendo em conta a crise do sistema capitalista? Qual é o alcance da
exigência de descontinuidade que emana das ruas? Além de expor as misérias e as
barbáries do sistema hegemônico de Wall Street, que alternativas de „outros mundos
possíveis‟ podem ser construídas, no sentido de uma democracia para a cidadania? Qual
é o potencial de libertação dos movimentos de protesto? Enfim, como escreveu
Blanchot, “questões sussurrantes. Qual é o seu valor? O que dizem? São ainda
questões.”221 Não obstante, questões, dentre outras, que suscitam a dimensão da
alteridade, possibilidades inauditas.
Certo, concordando com Alves, “não podemos ser apenas seduzidos pelo
fascínio da contingência indignada nas praças e ruas”,222 sob o risco de não percebermos
que os movimentos de protesto que tomaram as ruas também têm contradições. Na
medida em que esses movimentos não conseguem fazer frente ao modelo hegemônico
de democracia liberal representativa, para articular novas formas de organização social,
de reinventar a própria democracia, enfim, que sejam capazes de traduzir os anseios dos
indignados, gera-se a frustração. No Brasil, por exemplo, mesmo que de forma tímida,
uma nova „Marcha da Família com Deus pela liberdade‟ foi organizada em 2014,
inspirada nos moldes daquela que, em 1964, deu sustento ao Golpe Civil-Militar
brasileiro.
No alerta de Santos, o colapso de expectativas sociais, em que o contrato social
é impugnado, torna-se o combustível do fascismo social. 223 Daí que, lembrando o
conceito hinkelammertiano de razão utópica, discursos ideologicamente constituídos,
220
Para uma análise do conceito de rede social e o papel da internet nesse contexto, como forma de
participação na vida política, destaco CASTELLS, Manuel. Redes de indignação e esperança:
movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
221
BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita: a palavra plural. São Paulo: Escuta, 2010, v.1, p. 41.
222
ALVES, 2012, p. 38.
223
Cf. SANTOS, Boaventura de Sousa. Poderá o direito ser emancipatório? Crítica de ciências sociais,
Lisboa, n. 65, maio 2003, p. 10
42
229
STIGLITZ, 2003, p. 31.
230
STIGLITZ, 2003, p. 31-32
231
HINKELAMMERT, Franz. A dívida externa da América Latina: o automatismo da dívida.
Petrópolis: Vozes, 1989, p. 07. Do mesmo modo, STIGLITZ, Joseph. Globalização: como dar certo. São
Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 335: “Em todo o mundo, da Argentina à Moldávia, da África à
Indonésia, a dívida representa um problema opressivo para os países em desenvolvimento. Às vezes, as
consequências da dívida são dramáticas, como nas crises, mas mais comumente, o ônus da dívida mostra
sua face quando os países lutam para evitar a moratória. Pagá-las exige muitas vezes que os países
sacrifiquem programas de educação e saúde, o crescimento econômico e o bem-estar de seus cidadãos.”
44
232
HINKELAMMERT, 2013, p. 339.
233
ALI, Tariq. O Espírito da época. In: HARVEY, 2012, p. 66
234
CAMUS, Albert. A peste. 3. ed. Rio de Janeiro: Bestbolso, 2013, p. 173: “Os nossos cidadãos tinham-
se adaptado, como se costuma dizer, porque não havia outro modo de proceder. Tinham ainda,
naturalmente a atitude da desgraça e do sofrimento, mas já não os sentiam. [...] essa era justamente a
desgraça e que o hábito do desespero é pior que o próprio desespero”.
235
HINKELAMMERT, 2013, p. 318.
236
HINKELAMMERT, 2013, p. 321.
237
HINKELAMMERT, 2013, p. 321.
45
inerte do sistema, para submetê-la a uma lógica diferente”. Porém, essa resistência não
pode ser cega, porque quando “a humanidade fica embriagada com o heroísmo do
suicídio coletivo, ela tem o poder de realizá-lo e ninguém pode impedi-lo”. 238 Donde o
sentido da crítica da razão utópica:
Casaldáliga, “Deus é só amor. Nós somos amor, egoísmo e medo... mas também
esperança”.244
Concluindo esta parte, com as palavras de Lévinas, “[...] é em nome da
responsabilidade por outrem, da misericórdia, da bondade às quais apela o rosto do
outro homem que todo discurso da justiça se põe em movimento [...]. Justiça sempre a
ser aperfeiçoada contra suas próprias durezas”.245 Daí o sentido de uma economia para a
vida, como um ponto de partida para a construção de uma sociedade ética e uma
necessária utopia do outro mundo possível que a Teologia da Libertação, desde uma
realidade de „terceiro mundo‟, compartilha o salutar e justo desejo de uma civilização
planetária, como tarefa e esperança que se faz caminho.
244
CASALDÁLIGA, 2007, p. 286.
245
LÉVINAS, Emmanuel. Entre nós: ensaios sobre a alteridade. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 294.
246
MANDELA, 2010, p. 181.
247
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 247.
248
ARENDT, 2009, p. 265.
249
ARENDT, 2009, p. 265.
47
250
RUIZ, Castor. As encruzilhadas do humanismo: a subjetividade ante os dilemas do poder ético.
Petrópolis: Vozes, 2006, p. 32.
251
Cf. MORIN, Edgar. Amor, poesia, sabedoria. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001, p. 07.
252
Cf. COSTA, Marcos Roberto Nunes. O problema da moral no sistema cosmológico, soteriológico,
necessitarista maniqueísta. Anales del seminario de historia de la filosofía, Madrid, vol. 21, 2004, p.
25-42: “Os maniqueus acreditavam que no homem há uma alma ontologicamente boa, um „eu original‟,
consubstancial com Deus ou o Bem, mas que na sua fusão com o corpo, se vê envenenada por tendências
perversas, passando a ser uma alma má, um „eu demoníaco‟, uma „consciência sombria‟ ou uma
„inteligência obscura‟ [...].”
253
HINKELAMMERT, 2013, p. 194.
254
DOWBOR, Ladislau. Esquerda e direita frente à ética. Disponível em: < http://dowbor.org/ladislau-
dowbor>. Acesso em: 06. maio.2014
48
está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos.
Existem duas maneiras de não sofrer”. E quais são elas? Diz o autor: “a primeira é fácil
para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar
de percebê-lo”. Ou seja, este é o estado da indiferença, do „estou nem aí‟, do narcisismo,
é a sementeira do fascismo. Por seu turno, “a segunda [maneira] é arriscada e exige
atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do
inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço”.255 Significa, então, abrir espaço à
esperança, mesmo que esta não seja permitida.
Por isso, a rejeição da visão maniqueísta permite recepcionar o viver do
humano que se abre a novas possibilidades, numa relação dialógica, de aprendência,
porque o aprender é um contínuo abrir-se ao outro.256 O humano que se abre ao outro
humano dignifica a própria vida, numa relação que é de humanização, isto é, de
libertação. Por conseguinte, o homo vivens transcende ao mundo natural, criando um
horizonte que lhe é todo peculiar, que é o mundo da cultura.
A realidade cultural não se opõe ao processo biológico que compõe também a
vida humana. Ambas as dimensões, cultural e biológica, indicam que a vida humana
não é apenas um conceito, uma ideia, mas uma realidade concreta a partir da qual o
homo vivens estabelece inter-relações e cria suas próprias possibilidades de realização
do viver, possibilitando a superação, pelo menos em parte, de suas incongruências. E
isso não é diferente quando se pensa a dimensão da economia.
255
CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo:Companhia das letras, 1990, p. 150.
256
DALLA ROSA, 2012, p. 185.
257
HINKELAMMERT, 2003, p. 19.
258
HINKELAMMERT, 2003, p. 20.
49
qual todos caibam”. 259 Ou seja, ao lado da dimensão crítica, implica-se a perspectiva
orientativa que diz: “o mundo no qual caibam todos os seres humanos – e natureza
igualmente – é uma exigência. De fato, expressa uma ética que hoje se impõe, se a
humanidade quiser sobreviver. É a ética do mundo sustentável”. 260
Em si, a ética não é “um projeto de sociedade, pois não tem um projeto de um
sistema de instituições – sistema de propriedade, sistema político, sistema social – para
implantar em função de uma sociedade em que todos caibam”. 261 Em outras palavras, o
sentido do ético não pode ser reduzido a qualquer esquema, tanto em nível de reflexão
como de prática. Entretanto, no dizer de Hinkelammert, a ética “dá o critério para a
constituição de instituições e um critério para criticá-las sob sua luz, mas é antes a
exigência de constituir tal sistema de instituições, que permita que todos caibam”. 262
A partir do sentido ético, as instituições devem estar orientadas em função da
vida como uma condição sine qua non. Trata-se de pensar a ética da economia, da
política, da educação, assim por diante, como uma condição inerente, em que a vida é a
razão incontornável. “A condição da necessária reprodução da vida humana é o critério
para julgar sobre qualquer ética e qualquer estrutura possível”. 263 É a vida que deve
orientar as instituições e não o inverso, como ocorreu na sociedade industrial socialista,
sistema de propriedade estatal, e capitalista, sistema de propriedade privada. Para o
autor, “a discussão sobre o planejamento econômico torna-se difícil à medida que é feita
a partir de uma polarização excludente e maniqueísta que conduz, então, à alternativa:
ou mercado ou planejamento”.264 De fato, ambos os sistemas “não deixam liberdade
diante da constituição das instituições. Elas são deduzidas de princípios abstratos, dando
lugar a um humanismo abstrato que, em última análise, destrói a própria
humanidade”.265 E, do mesmo modo, destrói a natureza.
A utopia é a expressão de um imaginário de sociedade desejada pela
humanidade. Trata-se de um horizonte que, como perspectiva de realização, encontra-se
sempre adiante da condição humana. O imaginário – a utopia – de uma sociedade na
qual caibam todos e todas é o horizonte necessário e salutar à humanidade. A partir
desse imaginário, desponta o princípio que orienta os passos de uma sociedade que
259
HINKELAMMERT, 2003, p. 20.
260
HINKELAMMERT, 2003, p. 20.
261
HINKELAMMERT, 2003, p. 20.
262
HINKELAMMERT, 2003, p. 20.
263
HINKELAMMERT, 2013, p. 387.
264
HINKELAMMERT, 2013, p. 341.
265
HINKELAMMERT, 2003, p. 20.
50
[...] cada realismo político tem que se defrontar sempre com o perigo que
surge do utópico. Ninguém pode saber a priori quais fins políticos se
revelam, no final das contas, como utópicos e quais não. Não há certeza que
poderia substituir a necessária sabedoria política. Não há critérios técnicos,
válidos em última instância, que estejam à disposição. Onde quiserem
substituir a sabedoria política por critérios técnicos é preciso suspeitar que se
quer fazer política em nome de alguma societas perfecta que, novamente, e
sempre, reivindica o fim da história.266
Por mais que se oriente a partir da utopia desejada, um projeto político é sempre
algo parcial, um passo no caminho que se constrói, dia a dia, sem a imposição que
desencadeia a violência e a instrumentalização. Desse modo, “um projeto
correspondente ao imaginário de uma sociedade na qual caibam todos não pode ser
nunca um projeto definitivo de instituições definitivas”.267 Um projeto de sociedade, em
que todos e todas caibam, não é um programa de governo, mas constitui-se em “projeto
em função do qual se devem e se podem exercer pressões para se chegar a negociar
programas de governo que assumam o projeto em geral ou parcialmente”.268
Encontramo-nos diante de um contexto em que as relações de poder estão muito
distantes de se orientarem pela perspectiva ética. As relações de poder que se baseiam
em princípios do mercado capitalista tornam “totalmente impossível garantir um
desenvolvimento sustentável para a humanidade”. 269 Entretanto, essa impossibilidade
não impede e não muda a responsabilidade ética de se lutar por projetos alternativos. De
certa forma, abrir mão da busca por projetos correspondentes à utopia de uma sociedade
inclusiva, significaria colaborar com o atual processo de destruição que se impõe sobre
a natureza e a própria humanidade. Dito de outra forma, no dizer de Hinkelammert,
seria aceitar “as relações de poder [que] programam [...] o suicídio coletivo da
humanidade e declaram a impossibilidade de se opor à paranoia”. 270
O processo mais visível de globalização, que tem suas raízes no século XVI,
“reside na crescente interdependência de todas as economias e na integração de todos os
mercados, formando o mercado total”.271 Ao redor do mercado total, “desencadeia-se a
266
HINKELAMMERT, 2013, p. 401.
267
HINKELAMMERT, 2003, p. 20.
268
HINKELAMMERT, 2003, p. 20.
269
HINKELAMMERT, 2003, p. 20.
270
HINKELAMMERT, 2003, p. 20.
271
BOFF, 2003, p. 37.
51
272
BOFF, 2003, p. 80.
273
BOFF, 2003, p. 82.
274
BOFF, 2003, p. 82.
275
BOFF, 2003, p. 92.
276
BOFF, 2003, p. 92.
277
BOFF, 2003, p. 91.
52
Isso significa que ele é pessoa, quer dizer um ser aberto (ex-istência) a dar e a receber, à
participação, à solidariedade e à comunhão”.278 É nesse sentido que podemos compor “o
nosso sonho uma humanidade comunitária, participativa, solidária e espiritual”. 279 Esse
é o significado de uma democracia social e participativa, que “se abre à dimensão
cósmica, pois não podemos existir sem a comunidade de vida (meio ambiente) da qual
dependemos em nossa existência”.280
Que seja possível a plena realização de uma civilização planetária, enquanto
sentido de utopia, trata-se de um horizonte que está além da condição humana. Porém,
como escreve Hinkelammert, é necessário “conceber utopias, pois sem elas não seria
possível conhecer os limites da condição humana”. 281 A utopia provoca a realização de
passos rumo a um caminho de dignificação da vida. Concretamente, nas palavras de
Harvey,
278
BOFF, 2003, p. 91.
279
BOFF, 2003, p. 93.
280
BOFF, 2003, p. 94.
281
HINKELAMMERT, 2003, p. 21.
282
HARVEY, David. O enigma do capital e as crises do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2011, p.
58.
283
BOFF, 2003, p. 111.
284
Sobre o Fórum Social Mundial (FSM), cf. WHITAKER, Chico. O desafio do Fórum social Mundial:
um modo de ver. São Paulo: Loyola; Perseu Abramo, 2005, p. 21, trata-se de um processo que “torna
evidente que não será por meio dele que construiremos o „outro mundo possível‟. Ele não mudará o
mundo; quem o mudará é a sociedade. o Fórum cumpre, na luta pela mudança, um papel unicamente
intermediário. Para que possamos atingir esse objetivo, ele dá uma contribuição específica, diferente
daquela que devem dar os demais instrumentos de ação política. E essa diferença o caracteriza como um
meio a serviço desses instrumentos.”
53
viagem, não no porto”.285 Esse é o conteúdo ético que perpassa também o âmbito da
economia, assunto este que será desdobrado no capítulo que segue.
285
GALEANO, Eduardo. De pernas para o ar: a escola do mundo avesso. Porto Alegre: L&PM, 1999,
p. 336.