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FRANZ HINKELAMMERT: UMA ORIENTAÇÃO TEOLÓGICA E

ECONÔMICA PARA A VIDA

Introdução

Parafraseando Guimarães Rosa, em que o “viver é um descuido


prosseguindo”,1 creio que a vida humana é um „milagre prosseguindo‟, com constantes
intermitências, que revela sua singularidade e, ao mesmo tempo, sua complexidade.
Antes do nascer de um mundo, o qual seria manifesto como um sentido a ser desvelado
pelo ente existente, o humano – o Dasein de Heidegger –2, apresenta-se a vida como
dom que flui. “A primeira intencionalidade humana não se constitui em „consciência de
algo‟, mas em prazer de „viver de algo‟. A relação do eu com o mundo é gratuidade,
sem pretensões”.3 A vida simplesmente acontece como comunhão da Sabedoria do
Amor. Palavra do Amor: “Nela estava a vida” (Jo 1,4).
Nas palavras de Küng, “num pequeno planeta localizado na orla de uma das
talvez 100 bilhões de galáxias, cada uma delas contendo em média mais de 10 bilhões
de estrelas, vive, há cerca de apenas duzentos mil anos, a humanidade”. 4 Então,
manifesta-se o humano como “homo vivens”, porque “ele é humano enquanto é vivo”.5
Como canta a tradição andina Allpa-Runa, quíchua, a vida humana “é terra que anda,
somos terra que anda”.6 Daí que, no dizer de Boff, “o ser humano se entende como filho
e filha da Terra, emergindo de forças e energias ancestrais que estão atuando no
universo há bilhões de anos”.7
O humano se percebe chamado à vida, para viver e cuidar dela como
celebração do querer viver na Sabedoria do Amor – “Deus tomou o [homo vivens] e o
colocou no jardim do Éden, para que o cultivasse e o guardasse” (Gn 2,15). Na epifania
1
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 19. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 86.
2
HEIDEGGER, Martin. Que é metafísica? In: Martin Heidegger: conferências e escritos filosóficos. 2.
Ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 59 (Os pensadores): “O ente que é ao modo da existência é o
homem. Somente o homem existe. [...] „O homem existe‟ significa‟: o homem é aquele ente cujo ser é
assinalado pela in-sistência ex-sistente no desvelamento do ser e a partir do ser.”
3
DALLA ROSA, Luís Carlos. Educar para a sabedoria do amor: a alteridade como paradigma
educativo. São Paulo: Paulinas, 2012, p. 41.
4
KÜNG, Hans. O princípio de todas as coisas. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 68.
5
MONDIN, Battista. O homem, quem é ele: elementos de antropologia filosófica. São Paulo: Paulus,
1980,p. 43.
6
CASALDÁLIGA, Pedro. Quando os dias fazem pensar: memória, ideário e compromisso. São Paulo:
Paulinas, 2007, p. 270.
7
BOFF, Leonardo. Ethos mundial: um consenso mínimo entre os humanos. Rio de Janeiro: Sextante,
2003, p. 07.
2

do Outro, o ser humano responde à condição de ser “agente de seu próprio destino”.8 A
vida se revela humanamente como um caminho em constante construção. Então, a vida
surge como uma intermitente questão existencial que permeia a condição humana.
Deus é vida. Esse é o sentido do teológico que motiva este estudo, no qual
enfoco o conceito de economia para a vida, tendo como ponto de partida o pensamento
do filósofo, economista e teólogo da libertação Franz Joseph Hinkelammert. Nascido
em Herford, uma pequena cidade ao norte da Alemanha, em 1931, e radicado na
América Latina desde 1963, primeiramente no Chile e, a partir de 1976, na Costa Rica.
Trata-se de um autor que reflete a presença e a atuação do cristão no mundo, que sai das
fronteiras visíveis da Igreja, no sentido proposto por Gutiérrez quando diz que “a vida,
pregação e compromisso histórico da Igreja há de ser, para a inteligência da fé
[teologia], um privilegiado lugar teológico”. 9
O cuidar para que as necessidades condicionais à vida possam ser supridas,
permitindo que todos os seres humanos tenham vida em abundância e em harmonia com
o meio ambiente, é o sentido e a tarefa primordial do universo econômico, a economia
como sustendo da casa, da cidade (oikonomia). Essa é uma concepção fundamental de
economia que, a partir de Hinkelammert, pretendo discernir como significado da
economia ética, uma economia a serviço da vida que se insere no sentido de uma ética
da libertação, desde a realidade latino-americana. “A orientação da teologia para a vida
– o fundo da teologia da libertação – é a afirmação da esperança humana em todas as
suas formas, da utopia como anima naturaliter cristã.”10
A centralidade da reflexão hinkelammertiana é o “sujeito [que] irrompe nos
cálculos de utilidade que subjazem a todas as forças compulsivas dos fatos: eu sou se
você é; eu vivo se você vive”. 11 Nessa perspectiva, apresenta-se uma via que é, ao
mesmo tempo, crítica e transformadora do fetichismo contemporâneo, isto é, do
automatismo do mercado que pesa sobre a vida, uma racionalidade econômica que
produz injustiças e crimes como se fossem sacrifícios necessários ao progresso. Essa é a
lei e a racionalidade de uma economia essencialmente voltada para o lucro
(crematística), uma perspectiva que se alimenta da exploração e da exclusão do outro –
„sou se derroto você‟.

8
GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia da libertação. Petrópolis: Vozes, 1975, p. 34.
9
GUTIÉRREZ, 1975, p. 24.
10
HINKELAMMERT, Franz. As armas ideológicas da morte. São Paulo: Paulinas, 1983, p. 290.
11
HINKELAMMERT, Franz. A maldição que pesa sobre a lei: as raízes do pensamento crítico em
Paulo de Tarso. São Paulo: Paulus, 2012, p. 320.
3

Hinkelammert assume e motiva a tarefa de “perguntar por um ordenamento


econômico tal que permita a vida de todos os seres humanos e da natureza”. 12 Daí a
problemática que proponho como tarefa investigativa para este trabalho: qual
significado e contribuição do conceito hinkelammertiano de economia para a vida? Qual
o seu alcance crítico e propositivo enquanto alternativa para outro mundo possível, tanto
em nível local como global, tendo em conta o atual modelo de globalização identificado
com a economia de mercado livre e que se tornou hegemônico? Dito isto de outro
modo, em que medida o conceito de economia para a vida pode explicitar e atualizar o
sentido da ética da libertação, desde e para além da realidade latino-americana, como
um conteúdo reflexivo e prático – práxis ética –, para “a emergência de uma Nova
Consciência Planetária”, nos termos de Boff? 13
A Crítica da razão utópica,14 central no pensamento de Hinkelammert, é a obra
de referência deste estudo, mesmo que de forma não exclusiva. Além do conceito da
razão utópica, que é a base da crítica hinkelammertiana à antiutopia neoliberal de
Hayek, sobretudo, mas também aos outros modelos de sociedade (socialismo,
anarquismo, conservadorismo), nessa mesma obra, há dois marcos categoriais que dão
suporte à reflexão de Hinkelammert, que são sujeito humano e reprodução da vida real
(condições materiais do viver). As duas categorias são os referenciais que devem aguçar
a compreensão do sentido de uma economia para a vida e que, portanto, devem ser os
fios condutores do presente trabalho. O sujeito humano é o sujeito vivo e, para poder
viver – vida real –, necessita satisfazer as condições básicas e insubstituíveis inerentes à
própria natureza humana, como alimento, roupa, casa... Por isso, no dizer do autor,
“monopolizar e concentrar os meios materiais de vida é destruir as possibilidades da
vida do outro, dado que aquilo que se concentra e se tira não são simples riquezas, mas
meios de vida – víveres o sentido mais literal da palavra”. 15
Este trabalho, que é a primeira parte da investigação que ainda está em
processo, divide-se em sete partes. Primeiramente, exponho uma breve contextualização
do autor e seu itinerário intelectual. Em seguida, partindo do conceito da ética da
libertação, que perfaz um modo de pensar e fazer teologia, exponho o sentido
12
HINKELAMMERT, Franz. Economia e teologia: as leis do mercado e a fé. Boletim Teológico, São
Leopoldo, v. 11, n. 4, abr. 1990, p. 60.
13
BOFF, Leonardo. Civilização planetária: desafios à sociedade e ao cristianismo. Rio de Janeiro:
Sextante, 2003, p. 50.
14
Cf. HINKELAMMERT, Franz. Crítica da razão utópica. Chapecó: Argos, 2013. A obra foi publicada
originalmente em 1984 (edição costa-riquenha), revisada e ampliada em 2002 (edição espanhola). A
tradução da Argos segue esta última versão, que é a referência para este trabalho.
15
HINKELAMMERT, 2013, p. 337.
4

epistemológico e metodológico deste estudo, tendo em conta o lugar que o pensamento


hinkelammertiano ocupa na Teologia da Libertação. Depois, toco na relação entre
economia e teologia de forma mais específica, enfocando como esse processo se dá em
Hinkelammert. Na quarta seção, apresento o conceito crítico de razão utópica que
perpassa as principais teorias sociais, como o socialismo e o capitalismo, e que é uma
racionalidade formatada a partir do ideal da sociedade industrial. Seguindo, apresento
dois marcos categoriais que são centrais na perspectiva de uma economia para a vida, a
reprodução da vida real e o sujeito humano.
Em o terceiro mundo globalizado e o desejo de outro mundo possível, como
conceito e realidade, desenvolvo uma leitura de conjuntura social que é compartilhada
de forma mundial, em que o empobrecimento e a destruição ambiental colocam em
xeque o modelo de globalização vigente, o qual é associado ao capitalismo de mercado
total. Mas, o desejo de um outro mundo possível – a „civilização planetária‟ – também é
sonho e tarefa compartilhados, seja de forma articulada (por exemplo, o Fórum Social
Mundial) ou não. Daí que, na parte final do trabalho, apresento a necessária utopia do
outro mundo possível como ponto de partida para a construção de uma sociedade ética,
a qual deverá se desdobrar na ideia de uma economia para a vida.
A recepção do teológico hinkelammertiano, que implica a economia como um
ponto de intersecção com a realidade, irrompe como uma problemática a ser levada
adiante, a partir de um estudo transdisciplinar. O princípio científico e pedagógico da
transdisciplinaridade assume a perspectiva dialógica como uma nova consciência
metodológica e epistemológica, pretendendo elevar as diferentes áreas do conhecimento
intervenientes, como diz Assmann, “a um patamar de conhecimentos melhorados nas
áreas disciplinares [...], admitindo que é importante que determinados conceitos
fundantes possam transmigrar através (trans) das fronteiras disciplinares”. 16
Certamente, como diz Dussel, a “vida humana que não é um conceito, um
ideia, nem um horizonte abstrato, mas o modo de realidade de cada ser humano
concreto, condição absoluta da ética e exigência de toda libertação”,17 apresenta-se
como critério de uma ética da libertação. A partir de um horizonte planetário, que inclui
a relação com o meio ambiente, a vida da natureza, trata-se de “uma ética de afirmação
total da vida humana ante o assassinato e o suicídio coletivo para os quais a humanidade

16
ASSMANN, Hugo. Reencantar a educação. 10. ed. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 182.
17
DUSSEL, Enrique. Ética da libertação: na idade da globalização e da exclusão. 2. ed. Petrópolis:
Vozes, 2002, p. 11.
5

se encaminha se não mudar o rumo de seu agir irracional”. 18 Com efeito, a ética da
libertação é o pano de fundo metodológico e epistemológico do presente trabalho, tendo
presente, ao mesmo tempo, como disse Morin, que “conhecer e pensar não é chegar a
uma verdade absolutamente certa, mas dialogar com a incerteza”. 19 A Teologia da
Libertação, em seu sentido plural, 20 como reflexão e ação teológica, significa fazer eco à
sabedoria profética delineada a partir da epifania na sarça ardente, a passagem de Deus
no rosto do outro que manifesta um clamor que intervém de forma intermitente,
solicitando minha resposta.
Nas palavras de Oliveira e Schaper, não obstante aos que “decretaram que esta
teologia acabou, passou, está imóvel”, tendo em conta inclusive que “muitos dos seus
propugnadores/as já foram levados a explicar suas teses e, em alguns casos, abjurar de
parte delas”, 21 pode-se afirmar que a Teologia da Libertação ainda se move, imbuindo
um sentido vivo do fazer teologia a partir da realidade dos empobrecidos. Ela está viva
porque, “assim como a abjuração de Galileu [diante dos inquisidores] não alterou a
rotação da terra em torno do sol, a semente do pensar crítico, ainda que cerceada, não
deixa de brotar continuamente”.22

1 Hinkelammert e seu encontro com a realidade latino-americana

A partir da periferia, de acordo com Dussel, a ética da libertação – sentido que


incute também um modo de fazer teologia – oferece um critério reflexivo e prático de
humanização que implica diversas perspectivas. Desse modo,

A superação da razão cínico-gerencial (administrativa mundial) do


capitalismo (como sistema econômico), do liberalismo (como sistema
político), do eurocentrismo (como ideologia), do machismo (na erótica), do
predomínio na raça branca (no racismo), da destruição da natureza (na

18
DUSSEL, 2002, p. 11.
19
MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma; repensar o pensamento. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2005, p. 59.
20
A referência a Teologia da Libertação indica uma perspectiva que deve ser entendida na pluralidade,
isto é, teologias da libertação. Como indica DUQUE, José. Do passado ao presente: um balanço da
Teologia da Libertação. In SUSIN, Luiz Carlos. Sarça ardente: teologia na América Latina –
perspectivas. São Paulo: Paulinas, 2000, p. 22, “a Teologia da Libertação, enquanto corpo monolítico não
existe. Portanto, pode ser mais coerente com a realidade falar no plural quando fazemos referência à
Teologia da Libertação. Enquanto teologia concreta, ela foi assumida por uma ampla diversidade
subjetiva. Daí que hoje já podemos nos referir a produções teológicas como as indígenas, afros,
feministas, pentecostais etc., e cada uma delas nós a anunciamos igualmente no plural”.
21
OLIVEIRA, Kathlen L. de; SCHAPER, Valério G. A teologia contemporânea na América Latina:
teologia em movimento. OLIVEIRA, Kathlen L. de; REBLIN, Iuri A. SCHAPER, Valério G.; In: A
teologia contemporânea na América Latina e no Caribe. São Leopoldo: Oikos; EST, 2008, p. 8.
22
OLIVEIRA; SCHAPER, 2008, p. 8.
6

ecologia), etc., supõe a libertação de diversos tipos de vítimas oprimidas e/ou


excluídas. É neste sentido que a ética da libertação se define como
transmorderna (já que os pós-modernos são ainda eurocêntricos).23

Para a efetivação de uma ética da libertação, que implica tanto o momento


material como o momento formal discursivo da ética, segundo Dussel, Hinkelammert
introduz um terceiro elemento decisivo, o “da „factibilidade‟ realizadora”, que é inferida
a partir do sujeito humano atuante que “põe fins para reproduzir sua vida”.24 Isso quer
dizer que o sujeito vivo é a condição material e primordial para que se desenvolva o
sujeito atuante – o sujeito que torna factíveis projetos de vida. Na medida em que para
viver é preciso poder viver, torna-se imprescindível uma economia para a vida. E isso
significa, efetivamente, satisfazer „necessidades‟ (comer, vestir-se, habitar, ter cultura,
assim por diante). Essa última condição não se confunde com a satisfação de
„preferências‟ dentro de uma pluralidade mercadológica, tal como pretende o ideal
capitalista.
É nesse sentido que Hinkelammert, no dizer de Dussel, apresenta-se como um
filósofo, economista e teólogo que abriu “o caminho para uma ética material e
universal”, desde o contexto latino-americano. Então, “Hinkelammert vai além das
éticas materiais comunitaristas (como MacItyre ou Taylor) e indica que é razão
reprodutiva (que nós chamamos de „razão-prático material‟, ou „ética originária‟) que
„coloca‟ (ou „nega‟) os fins e os valores.”25
De modo efetivo, o percurso intelectual de Hinkelammert começa na
centralidade europeia. Porém, sua originalidade irrompe a partir de sua inserção na
realidade latino-americana, conformando um pensamento de superação do
eurocentrismo. O autor estudou economia na Universidade de Friburgo (1955) e
realizou sua pesquisa doutoral (1960) no Instituto de Europa Oriental da Universidade
Livre de Berlim. Tendo como enfoque a relação interna entre ideologia e economia, sua
tese versou sobre o modelo de racionalidade do processo de industrialização soviético,
sobretudo no período stalinista (1922-1953).26

23
DUSSEL, 2002, p. 65.
24
DUSSEL, 2002, p. 263.
25
DUSSEL, 2002, p. 264.
26
HIGGINS, Sílvio Salej. Prefácio da edição brasileira. In: HINKELAMMERT, Franz. Crítica da razão
utópica. Chapecó: Argos, 2013, p. 13: “Hinkelammert estudou em profundidade o modelo de
planejamento econômico soviético, em especial a teoria de Kantorovich, quem veio anos mais depois
ganhar o prêmio Nobel de economia. Eram os anos 50 do século XX, e a União Soviética estava
atravessada por uma intensa discussão sobre os mecanismos e o significado da passagem ao comunismo.
Porém, para Hinkelammert, a crítica do fetichismo da mercadoria servia para demonstrar também o
fetiche do crescimento na economia soviética. Era o que se esperava de um centro de estudos que se
7

Nessa época, Hinkelammert recebeu um importante influxo do teólogo alemão


Helmut Gollwittzer (1908-1993), de vertente socialista e que vinculava o conceito de
revolução ao Reino de Deus, no sentido de que o Reino de Deus contém o conteúdo de
uma promessa capaz de transformar a realidade do presente. 27 Em 1963, respondendo ao
convite da Fundação Konrad Adenaur, vinculada à democracia-cristã chilena,
Hinkelammert segue para o Chile, para trabalhar em cursos de formação política para
lideranças partidárias e sindicais e assumir uma cátedra de Sociologia Econômica na
Universidade Católica de Chile. 28
A partir do contexto latino-americano, uma realidade de Terceiro Mundo, “a
temática destes cursos – utopia, teorias do desenvolvimento, teoria da dependência –
levaram a Hinkelammert a ressituar todos seus estudos anteriores sobre a
industrialização soviética – própria de um país subdesenvolvido”.29 Desde então, como
diz Dussel, “o consideramos um latino-americano por sua larga experiência desde a
década de 60 no Chile do tempo de Frey e de Allende, onde foi um dos teóricos da
Unidade Popular, a revolução democrática inconclusa pela violência orquestrada dos
Estados Unidos”.30
Importante registrar, nas palavras de Higgins, que “a experiência do golpe
militar traz de volta ao foco da análise econômica de Hinkelammert a dimensão
ideológico em sua forma teológica-religiosa”. 31 De fato, além do apoio militar e
financeiro do governo norte-americano, a política econômica do governo golpista de
Pinochet foi conduzida por um grupo de economistas ligado ao centro de formação
econômica da Universidade Católica de Chile. Este grupo foi assessorado pela escola de
economia da Universidade de Chicago, a qual tinha em Milton Friedman sua principal
referência, um defensor do laissez faire e do mercado livre, que fora discípulo de
Hayek. Assim, a formatação do governo ditatorial de Pinochet teve como um de seus

destinava a monitorar o que acontecia do outro lado do muro de Berlim. Não obstante, quando as críticas
do jovem economista Hinkelammert se dirigiam ao fetiche do equilíbrio econômico neoclássico [de
vertente liberal], a chefia do instituto rejeitava este tipo de discussão, assim, vários manuscritos ficaram
sem ser publicados. O professor de economia do Instituto de Europa Oriental afirmava que esse não era
um centro para formar comunistas. Continuar num ambiente tão refratário à crítica tornou-se
insustentável [para Hinkelammert].”
27
Cf. GIBELLINI, Rosino. A teologia do século XX. 2. ed. São Paulo: Loyola, 1998, p. 359.
28
Interessante observar, segundo HIGGINS, 2013, p. 13, “o fato de ter trabalhado, do ponto de vista
econômico, a doutrina social da Igreja católica, assim como ter sido formado num centro de estudos
anticomunistas, faziam de Hinkelammert um bom prospecto, na óptica de uma fundação conservadora,
para irradiar um pensamento de oposição ao movimento social que logo desembocaria na Unidade
Popular”.
29
HIGGINS, 2013, p. 13.
30
DUSSEL, 2002, p. 260.
31
HIGGINS, 2013, p. 14.
8

principais ingredientes a orientação econômica neoliberal, que foi conduzida por um


grupo de economistas que ficou conhecido pelo cognome Chicago Boys.
Logo após o bombardeio ao Palácio De La Moneda, com a consequente morte
do presidente Allende, no dia 11 de setembro de 1973, o diretor do canal de televisão da
Universidade Católica, o padre Hasbun, justificou o golpe e o uso da violência com
discursos religiosos, entendendo que a situação foi desencadeada pelo orgulho e soberba
dos próprios governistas. Para ele, os orgulhosos não tinham cura e, por isso, eles
desonravam a Cristo que assumiu a condição de servo e humilhou-se na cruz. 32 Para
Hinkelammert, que gravou essas declarações e pôde, assim, analisar o seu conteúdo,
esse discurso explicitava a confluência ideológica da miragem religiosa com a prática
ditatorial e o pensamento econômico conduzido pelos „meninos de Chicago‟. Ou seja,
“Friedman é discípulo de Hayek, a junta militar chilena é discípula de Friedman. O
„Espírito de Deus‟ que faltou a Allende [segundo o padre Hasbun], era aquele „Espírito‟
que leva para o lugar indicado pelo principal livro de Hayek: O caminho da servidão”.33
Higginz comenta que “na perspectiva de uma crítica da razão utópica, o
antiutopismo neoliberal de Friedrich Von Hayek e as análises ditas pós-modernistas, as
do fim dos metarrelatos, não são nada diferentes de utopismos invertidos”.34 Com
efeito, essa foi uma importante chave de leitura hinkelammertiana, traduzida na sua
crítica e denúncia das armas ideológica da morte e na crítica da razão utópica de uma
sociedade alicerçada sob a moral do sacrifício que justifica qualquer violação dos
direitos humanos e a destruição da natureza.35
Com o golpe, Hinkelammert foi obrigado a sair do Chile e, de 1973 a 1976,
passa um período na Alemanha. Em 1976, a convite do Consejo Superior Universitario
Centroamericano (Csuca) seguiu para San José da Costa Rica, onde reside até hoje,
32
Cf. HINKELAMMERT, 1983, p. 74.
33
Referência à obra O caminho da servidão de Hayek, publicada em 1944, considerada uma obra clássica
do pensamento neoliberal. Nesse livro, o economista austríaco defende a tese de que todas as formas de
coletivismo invariavelmente conduzem uma sociedade à tirania e à supressão das liberdades, como no
caso do nazismo na Alemanha e do comunismo na União Soviética. De forma contundente, Hayek se
opôs à social-democracia europeia, particularmente o partido trabalhista inglês, e à escola econômica
keynesiana que estava em ascensão e se fundamentava na afirmação do Estado como um agente
articulador da economia política. Hayek estava convencido que tais propostas político-econômicas
continham matizes socialistas e, por conseguinte, conduziriam ao totalitarismo. Para HAYEK, Friedrich.
O caminho da servidão. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010, p. 49, “sem dúvida a
promessa de maior liberdade tornou-se uma das armas mais eficazes da propaganda socialista, e por certo
a convicção de que o socialismo traria a liberdade é autêntica e sincera. Mas essa convicção apenas
intensificaria a tragédia se ficasse demonstrado aquilo que nos prometiam como o caminho da liberdade
era na realidade o caminho da servidão”.
34
HIGGINS, 2013, p. 15.
35
Cf. HINKELAMMERT, Franz. Sacrifícios humanos e sociedade ocidental: Lúcifer e a besta. São
Paulo: Paulus, 1995, p. 37.
9

para organizar um programa de mestrado em economia. Na Costa Rica, com Hugo


Assmann, articulou o Departamento Ecuménico de Investigaciones (DEI). Logo
uniram-se ao DEI outros teólogos e teólogas, como Pablo Richard, Elsa Tamez, José
Duque e Helio Gallardo.

[O DEI] é uma comunidade de investigação e formação com visão ecumênica


e latino-americana em diálogo com movimentos socais e eclesiais da região e
intelectuais orgânicos. Propõe-se aportar aos atores envolvidos elementos de
análise crítico da realidade que possibilitem uma ação transformadora desde a
ação perspectiva do pensamento social crítico, as teologias da libertação e a
educação popular. Assume como valores: a vida de todas e todos e
integralidade da natureza; diálogo ecumênico e inter-religioso; igualdade de
gênero; interculturalidade; solidariedade e esperança; responsabilidade.36

Efetivamente, o DEI se constituiu na principal plataforma a partir da qual


Hinkelammert, por cerca de trinta anos, desenvolveu um robusto e consistente trabalho,
ao mesmo tempo crítico e propositivo, em que a economia para a vida é o prelúdio para
a reconstrução do próprio sentido da economia. Assim, publicada por Hinkelammert em
1977, As armas ideológicas da morte é considerada a primeira obra gestada pelo DEI.
Nesse contexto, com a assinatura do economista e teólogo alemão, além de inúmeros
artigos, destacam-se as seguintes obras: Crítica da razão utópica; A dívida externa da
América Latina; Sacrifícios humanos e sociedade ocidental; A maldição que pesa sobre
a lei. Do mesmo modo, são relevantes A idolatria do mercado, escrito em colaboração
com Assmann, e Rumo a uma economia para a vida, trabalho que Hinkelammert
desenvolveu com o economista costa-riquenho Henry Jiménez.
Trata-se, o pensamento de Hinkelammert, de uma perspectiva que desvela o
sentido do ser cristão no mundo de hoje, que torna atual a mensagem do evangelho que
liberta, porque, nas palavras de Küng, “Jesus havia tomado o partido dos pobres, dos
que choram, dos famintos, fracassados, impotentes, insignificantes.” 37 Estes são os bem-
aventurados que clamam por justiça. Jesus aponta a origem da injustiça: “os ricos, que
acumulam tesouros, presa fácil da ferrugem, da traças e dos larápios, os ricos apegam-se
aos seus milhões e, apesar de sua parcimônia, são apresentados como exemplo a não ser
seguido.”38 Esta é uma realidade que deve ser transformada, em favor da vida de todos.
Concluindo essa breve apresentação do itinerário hinkelammertiano, “se a
teologia da libertação iniciou sua reflexão a partir da dialética fé e política”, tal como
formulada por Gutiérrez e outros pioneiros desse modo de fazer teologia, como nos
36
Disponível em: <http://www.dei-cr.org/>; Acesso em: 02 jun.2014.
37
KÜNG, Hans. Ser Cristão. Rio de Janeiro: Imago, 1976, p. 229.
38
KÜNG, 1976, p. 230.
10

lembra Dussel, a partir de Hinkelammert, “reitera-se melhor a relação vida-


economia”.39 Ao lado da exigência cristã de optar pelo empobrecido, que implica o
compromisso com a transformação política, “agora é a fome das maiorias o imperativo
para modificar os sistemas de produção injustos. É a relação „pão-produção‟ e daí a
centralidade da Eucaristia como „pão da vida‟ na justiça”. 40
Num tempo como o nosso, em que a produção de alimentos alcançou uma
escala bem superior ao número total de habitantes existentes no planeta, não se pode
aceitar que ainda existam a fome endêmica e desnutrição infantil, como é a realidade em
muitas regiões do mundo. Essa, com efeito, é considera pela ONU a primeira meta do
milênio, que deve ser alcançada por todas as nações.41 Que “o realismo em política
como arte do possível”42 deve se traduzir numa agenda pública global, é um argumento
chave para que se possa defender que a sabedoria política e o saber técnico, implicando
o planejamento e alocação eficiente de recursos, estejam a serviço da vida real. Daí a
relevância do pensamento teológico e econômico presente em Hinkelammert como
objeto de estudo e reflexão.

2 A ética da libertação como sentido teológico

Para Hinkelammert, “Deus não é primordialmente uma construção objetiva a


qual nos aproximamos com a pergunta: Deus existe? Mas é alguém que está presente
quando os sujeitos se tratam como sujeitos”.43 Nesse sentido, a teologia, antes de ser um
discurso articulado, é kairós, tempo que nasce como graça naquele que se abre à
Interpelação, à Palavra que se faz carne, realidade, comunidade. Como diz Gutiérrez, “a
teologia é inerente à vida de fé que procura ser autêntica e plena, portanto à colocação
em comum dessa fé na comunidade eclesial.” Assim, “em todo crente, mais ainda em
toda comunidade cristã, há pois um esboço de teologia, de esforço da inteligência da
fé.”44

39
DUSSEL, Enrique. Teologia da libertação: um panorama de seu desenvolvimento. Petrópolis: Vozes,
1999, p. 94.
40
DUSSEL, 1999, p. 95.
41
Além da erradicação da pobreza extrema e da fome, em 2000, a ONU estabeleceu outros sete
„Objetivos de Desenvolvimento do Milênio‟, a saber: atingir o ensino básico universal; promover a
igualdade entre os sexos e autonomia das mulheres; reduzir a mortalidade infantil; melhorar a saúde
materna; combater o HIV/AIDS, a malária e outras epidemias mortais; garantir a sustentabilidade
ambiental.
42
HINKELAMMERT, 2013, p. 383.
43
HINKELAMMERT, 2013, p. 377.
44
GUTIÉRREZ, 1975, p. 15.
11

A teologia, como diz Trigo, vê “o Espírito atuar vitoriosamente nos que vivem
quando não há elementos para se viver, quando a vida não tem mais objetivo do que
viver, porque não se pode dar a vida por óbvia”.45 A partir da realidade humana, no
sentido hinkelammertiano, “o querer viver é uma tarefa e não o resultado de uma reação
instintiva. Esta última é só o ponto de partida”. 46 Essa tarefa pode ser frustrada, como de
fato o é, na medida em que há realidades humanas que não estão voltadas para a vida,
mas par a morte, as quais fazem jus às palavras do personagem Zacaria de Antes de
nascer o mundo, romance do moçambicano Mia Couto, em que o “homem é bicho
morredouro, que adora a Vida, mas gosta mais ainda de não deixar viver”. 47
Em cada manhã desperta um novo dia, como possibilidade do dom de viver a
Sabedoria do Amor, uma Sabedoria revelada desde o desabrochar de uma flor, o cantar
de um pássaro, o sorrir de uma criança... Por isso, a retomada do pensamento de
Hinkelammert, como oportunidade para compreender o conceito de economia para a
vida, que por si só já implica em denúncia da „cultura de morte‟, abre espaço para que
as alegrias e as esperanças percorram novos caminhos. Ou seja, no sentido recolhido
pelo documento conciliar Gaudium et Spes, “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as
angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são
também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de
Cristo”.48
No dizer de Trigo, “a teologia tem que ser profética, porque deve se realizar
não como exposição de doutrinas e de disciplinas, mas sim como leitura dos sinais dos
tempos, uma leitura que só pode ser feita a partir da encarnação solidária a partir dos
debaixo”. 49A partir de uma perspectiva crítica e autocrítica, a teologia deve assumir a
“reflexão, em níveis diversificados de elaboração, sobre os deuses (e os demônios) nos
quais os homens, de uma ou de outra forma, acreditam e com os quais presumem ter
diferentes graus de contato na história”.50

45
TRIGO, Pedro. Teólogos enclausurados na academia: um desafio. IHU On-Line,São Leopoldo, n. 402,
10 set. 2012, p. 42.
46
HINKELAMMERT, 2013, p. 322.
47
COUTO, Mia. Antes de nascer o mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 85.
48
CONCÍLIO VATICANO II. Constituição pastoral Gaudium et Spes: sobre a Igreja no mundo atual.
Disponível em: < http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/index_po.htm>. Acesso
em: 28 jan. 2014.
49
TRIGO, 2012, p. 42.
50
ASSMANN, Hugo; HINKELAMMERT, Franz. A idolatria do mercado: ensaio sobre economia e
teologia. São Paulo: Vozes, 1989, p. 11.
12

O grito de dor como o „tenho fome‟, diante de um contexto de opressão, de


injustiça, solicita uma resposta ética – responsabilidade. No dizer de Dussel, “nessa
responsabilidade se fundamenta a religião autêntica e o culto, e o traumatismo que sofre
aquele que se arrisca pelo Outro que clama é no sistema a glória do infinito”. 51 Donde o
sentido do “ouvi o clamor do meu povo” (Ex 3.7), que solicita uma teologia sensível à
realidade humana que clama e deseja saciar sua fome. “Este desejo carnal, corporal,
material é já o desejo do Reino dos Céus em sua significação mais real: a insatisfação
que exige ser saciada.”52
Como palavra que quebra a pretensão ideológica, a fome da pobreza de um
povo “é o carnalismo ou adequado materialismo que Jesus coloca como critério
supremo do Juízo: „tive fome e me destes de comer‟ (Mt 25.35)”.53 Então, o „tenho
fome‟ não consiste apenas numa percepção conceitual. Mais do que isso, trata-se de
uma realidade que faz referência a uma condição humana que é compartilhada. No dizer
de Hinkelammert, isso significa “o mútuo reconhecimento entre os seres humanos como
seres naturais e necessitados”, pois, “cada ser humano depende do outro, sustenta o
outro, participa do desenvolvimento do outro, comungando de uma mesma origem, de
uma mesma aventura e de um mesmo destino comum.” 54 Essa condição do humano “é
uma afirmação sobre a realidade na qual vivemos como seres humanos, é um juízo
empírico, um postulado da razão prática”.55
Em última instância, esse reconhecimento do outro, como postulado
hinkelammertiano da razão prática, condiz com a razão ética, a sabedoria do amor dos
profetas.56 A sensibilidade e a abertura ao outro, à outra, denota o significado da razão
ética “que deve pautar as relações inter-humanas e possibilitar a formação de uma
cultura da justiça, da paz, da esperança, enfim, da humanização libertadora”.57
“Deus quer a vida daqueles que ama”. 58 Esta é a expressão do significado de
uma experiência de fé inspirada na história hebraica. De fato, a espiritualidade vivida
pelo povo israelita tem seu significado no Deus da vida. E esse fundamento se foi

51
DUSSEL, 1999, p. 10.
52
DUSSEL, 1999, p. 10.
53
DUSSEL, 1999, p. 10.
54
HINKELAMMERT, Franz; JIMÉNEZ, Henry Mora. Hacia una economía para la vida: preludio a una
reconstrucción de la economía. San José: DEI, 2005, p. 29.
55
HINKELAMMERT; JIMÉNEZ, 2005, p. 29.
56
Cf. LÉVINAS, Emmanuel. De otro modo que ser: o más allá de la esencia. Salamanca: Sígueme, 2003,
p 243.
57
DALLA ROSA, 2012, p. 109.
58
GUTIÉRREZ, Gustavo. Beber no próprio poço. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1984, p. 41.
13

constituindo ao longo da caminhada de um povo que buscou assumir o mandato de


Deus, assim como expressou o livro do Êxodo, “escolha [...] a vida para que você e seus
descendentes possam viver” (Ex 30.19). Deus oferece a vida. Porém, a escolha é
humana. Essa possibilidade de escolha, antes de indicar fragilidade, expressa o sentido
do humano como sujeito de sua história.
No testemunho de Casaldáliga, “ser amável com todos é mais fácil, mais
cômodo, que ser honestamente profético com todos. Amar é também incomodar”. 59 Ou
seja, à medida que o Deus da Vida é assumido como ponto de partida teológico, desde
uma teologia comprometida com a realidade, torna-se gritante que há condições sociais
e históricas de obliteração da vida. Como escreveram os jovens estudantes, no Marco
referencial da Pastoral da Juventude Estudantil,

A vida humana, com suas tristezas e alegrias, suas dificuldades e esperanças,


suas ações simples e complexas, é imagem de Deus na história. Encontrar-se
com Ele, reconhecer sua presença e seu chamado, responder-lhe e
comprometer-se na construção do Seu projeto é celebrar a vida.60

Celebrar a vida, então, significa também se comprometer com a causa da


própria vida, entendendo que há muitas situações e projetos orientados para a morte e
que, muitas vezes, possuem aromas teológicos ou são endossados pela própria teologia
quando esta se distancia do Deus da vida que, no sentido bíblico, revela-se em Jesus à
humanidade, sobretudo às vítimas de todos os sistemas do mundo que produzem
sofrimento e morte. Com efeito, no dizer de Gutiérrez, “nas Escrituras, a rejeição a Deus
é apresentada não como ateísmo, mas como idolatria, isto é, como a afirmação de um
deus falso”.61
De acordo com Trigo, certamente, “o enraizamento da teologia nas
universidades tem tido grandes vantagens, sobretudo a exigência de rigor
metodológico”.62 Porém, o que sustenta uma teologia viva não consiste, por si só, na
busca pela excelência acadêmica simplesmente baseada no cumprimento de
formalidades. Do mesmo modo, teologias fundamentalistas e doutrinárias que “se
enclaustram em uma parcela da realidade, como se o cristianismo pudesse se confirmar
nela e não tivesse que ser exercido em todos os níveis da história”, em geral, perdem “a
referência básica ao povo de Deus e, principalmente, aos pobres com espírito, que são a

59
CASALDÁLIGA, 2007, p. 81.
60
PASTORAL DA JUVENTUDE ESTUDANTIL (PJE): Marco referencial da Pastoral da Juventude
Estudantil: nossa vida, nossos sonhos. [S.I.: s.n.], 2005, p. 185.
61
GUTIÉRREZ, Gustavo. O Deus da vida. 3. ed. São Paulo: Loyola, 2004, p. 75.
62
TRIGO, 2012, p. 41.
14

principal fonte da práxis e da consciência cristãs”.63 Daí que uma teologia, que não se
enclausura na mera erudição acadêmica, mas procura articular um discurso relevante e
pertinente, para responder aos desafios hodiernos,os quais implicam também as
comunidades eclesiais, tem a possibilidade de reivindicar a fé no interior da economia.
Em Hinkelammert, com efeito, a vida também “é um problema espiritual
ligado a organização material do nexo corporal entre os homens” 64 e, de modo especial,
ligado à realidade ambiental. Entende-se, assim, “que qualquer imagem de Deus
incompatível com a vida real, será um fetiche, e o Deus verdadeiro não pode ser senão
aquele que é compatível com a vida humana real”. 65 Como diz Gutiérrez, trata-se de
uma idolatria que exige vítimas humanas, pois “o deus da idolatria é um deus assassino.
Muito é o sangue que se derrama no afã do lucro”.66
A vida é a essência da criação de Deus. Deus doa a vida ao ser humano e a
todas as criaturas. O evangelho de João ensina que Jesus veio “para que todos tenham
vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10). Para que haja a vida, vida em abundância, é
imprescindível que tenha comida, bebida, vestuário, moradia, saúde, liberdade e
acolhimento. Aliás, esse conjunto de coisas que possibilita a vida, como nos lembra
Jung Mo Sung, a partir do evangelho de Mateus 25, 31-45, constitui “o ponto chave no
nosso juízo perante Deus”.67 Isso não quer dizer que a salvação de Jesus se reduza a
uma questão meramente material, pois até mesmo os glutões se preocupam com isso.
Antes,

A salvação vem pela busca da comida, bebida, roupa, casa, saúde, liberdade
dos pequenos, daqueles que a sociedade excluiu, daqueles que não podem
pagar ou retribuir. Pois só os que são movidos pelo Espírito de Deus são
capazes desse tipo de gratuidade. Os que dedicam sua vida a defender a vida
e a dignidade humana dos „pequenos‟ têm experiência de Deus que é amor,
mesmo que não tenham consciência disso.68

Cuidar para que os „pequenos‟ tenham acesso à vida digna, pressupõe a


produção, distribuição e o consumo de bens materiais. Esse é, pois, o campo da
economia. Por isso, para Hinkelammert e também Assmann, a “reprodução da vida
humana e real e concreta é a fonte de critérios com o qual opera a teologia que

63
TRIGO, 2012, p. 41.
64
RICHARD, Pablo; VIDALES, Raúl. Introdução. In: HINKELAMMERT, Franz. As armas
ideológicas da morte. São Paulo: Paulinas, 1983, p. 08.
65
HINKELAMMERT, 1983, p. 337.
66
GUTIÉRREZ, 2004, p. 80.
67
SUNG, Jung Mo. Desejo, Mercado e religião. 4. ed. São Paulo: Fonte Editorial, 2010, p. 25.
68
SUNG, 2010, p. 26.
15

defendemos. Julgamos que ela é mais coerente com o cristianismo”. 69 Para os autores de
A idolatria do mercado, “a luta em favor da vida humana real e concreta”,70 como uma
razão eminentemente econômica, e a assunção de uma reflexão comprometida com a
realidade social dos homens, como uma motivação explicitamente teológica, devem
ensejar o encontro entre a economia e a teologia.
Certo, há pressupostos teológicos presentes no tecido econômico, como a
transformação do mercado “em sujeito divino, em Divina Providência”, 71 que põe por
terra “a severa austeridade da economia, que muitos afirmam ser a mais avançada das
Ciências Sociais”.72 Desse modo, a reflexão sobre o tema da economia remete para
“uma tomada de posição, teórica e prática, acerca das formas viáveis e dos caminhos
possíveis para fazer o bem a seus semelhantes.”73 Se a economia tem a ver com a vida,
entende-se que “a articulação dos critérios econômicos não é um assunto da exclusiva
competência profissional dos economistas. Por isso, se os teólogos se preocupam com
este assunto não é porque desejam retornar ao imperialismo teológico da Idade
Média”.74
Se a reflexão teológica deve ser reivindica também no interior da economia,
por outro lado, a realidade teologal não se basta por ela mesma. Com efeito, na
perspectiva de Hinkelammert, “também são necessários técnicas, procedimentos,
políticas econômicas adequadas. É necessário colar em prática a fé, para que seja viável.
É necessário organizar a economia para que cumpra com seus fins elementares”. 75
Trata-se, pois, de “assegurar a sobrevivência de todos os seres humanos através de seu
trabalho e uma distribuição adequada dos ingressos, e basear esta solução no respeito à
sobrevivência da própria natureza, sem a qual o próprio homem não pode existir”. 76
A vida clama como uma questão incontornável. Desse modo, “talvez seja esta a
questão mais grávida de implicações concretamente históricas, que se refere ao
entrelaçamento da economia com a teologia.”77 Porque, não permitir ou dificultar que o
sujeito acesse as condições necessárias à vida digna, significa cerceá-lo da condição de
conceber fins e sonhos, de levar adiante seus projetos enquanto sujeito atuante e

69
ASSMANN; HINKELAMMERT, 1989, p. 28.
70
ASSMANN; HINKELAMMERT, 1989, p. 09.
71
ASSMANN; HINKELAMMERT, 1989, p. 242.
72
ASSMANN; HINKELAMMERT, 1989, p. 09.
73
ASSMANN; HINKELAMMERT, 1989, p. 137.
74
ASSMANN; HINKELAMMERT, 1989, p. 422.
75
HINKELAMMERT, 1990, p. 59.
76
HINKELAMMERT, 1990, p. 59.
77
ASSMANN; HINKELAMMERT, 1989, p. 137.
16

participante da própria sociedade. Por isso, mas palavras de Dussel, “o oprimido, o


torturado, o que vê ser destruída a sua carne sofredora, todos eles simplesmente gritam,
clamando por justiça: Tenho fome! Não me mates! Tem compaixão de mim!”78 Porém,
como diz Gutiérrez, “o amor de Deus pode mais que a morte e mantém viva a esperança
de um povo. Deus é vida”. 79

3 A economia e o sentido do teológico

De modo específico, qual a relação entre teologia e economia? O que tem uma
a ver com a outra? À primeira vista, parece ser algo estranho, sobretudo quando se olha
e pensa a realidade a partir de uma óptica conservadora, fragmentária, distante da
realidade. Entretanto, como esclareceu Galilea, a partir da Teologia da Libertação, “a
teologia, como reflexão-da-fé, tem por missão não apenas aprofundar a Revelação em
si, mas também a revelação de Deus nas realidades históricas”. 80
Conforme Hinkelammert, a economia se apresenta como “ciência da produção
da vida.” Por conseguinte, ela “só pode ser teológica”.81A economia para a vida indica a
recuperação da dignidade do sujeito e do sentido da vida, propondo a construção de uma
sociedade onde caibam todos, que inclui a reformulação da economia ora vigente em
função da satisfação das necessidades humanas e da reprodução da vida. Entende-se,
portanto, que “a demanda da recuperação do sujeito, da vida humana concreta, da vida
para todos, nas instituições sociais e nas construções culturais – ciência, filosofia,
teologia, etc. – é a demanda mais urgente no mundo de hoje”. 82
Para a teologia hinkelammertiana, “a presença de Deus é algo atuante; a
relação primordial não é entre ser humano-sujeito e um Deus-sujeito, mas entre seres
humanos-sujeitos que ao se tratarem como tais trabalham a presença de Deus”. 83 Infere-
se, assim, que a teologia surge como um momento segundo em relação à própria
vivência da fé que se fez vida, gesto, atitude concreta. E essa condição primeira não é
apenas um ponto de partida a partir do qual se ergue o edifício da teologia, com toda sua

78
DUSSEL, Enrique. Filosofia da libertação: crítica à ideologia da exclusão. São Paulo: Paulus, 2002, p.
19.
79
GUTIÉRREZ, 2004, p. 93.
80
GALILEA, Segundo. Teologia da libertação: ensaio de síntese. 2. ed. São Paulo: Paulinas, 1978, p.
18.
81
HINKELAMMERT, Franz. Pensar alternativas: capitalismo, socialismo e a possibilidade de outro
mundo. In: PIXLEY, Jorge (coord.) Por um mundo diferente: alternativas para o mercado global.
Petrópolis: Vozes, 2003, p. 09.
82
HINKELAMMERT; JIMÉNEZ, 2005, p. 14.
83
HINKELAMMERT, 2013, p. 377.
17

construção epistemológica e conceitual, mas, como diz Gutiérrez, “é o solo em que a


reflexão teológica mergulha tenaz e permanentemente suas raízes e extrai seu vigor.” 84
Essa fé, na qual se implica o sentido do teológico, não é propriedade de
ninguém, nem exprime dogmas, porque antes de tudo é vida compartilhada como dom
que liberta. No dizer de Hinkelammert,

Se na parábola do samaritano o pobre que caiu nas mãos do ladrão e o


samaritano são ateus, em seu reconhecimento operam a presença de Deus.
Ainda que tenham todas as ilusões transcendentais do mundo juntas, em seu
reconhecimento como sujeitos operam a presença de Deus. Naturalmente,
existem problemas para a tomada de consciência disto, mas o fato
fundamental da presença de Deus foi realizado.85

Entretanto, prosseguindo com Hinkelammert, mesmo que nesse


reconhecimento inter-humano haja libertação concomitante à presença de Deus, “a
transformação da sociedade é consequência necessária da libertação”.86 Por isso, para o
autor, “a teologia da libertação insiste na satisfação das necessidades básicas como um
apoio objetivo ao processo de libertação e à presença de Deus nas relações subjetivas”.
Nessa insistência, há uma “orientação socialista, à medida que a possibilidade do
planejamento global do processo produtivo que permita a satisfação das necessidades
vitais”. 87 A recuperação do direito de viver por parte do ser humano real implica uma
recuperação do Deus bíblico, o Deus da vida. Então, no dizer de Hinkelammert, em sua
crítica à religião, “Marx destruiu o deus dos filósofos, mas não chegou a encontrar o
Deus bíblico. Todavia, a crítica do deus dos filósofos é condição necessária para a
recuperação de uma fé na função da vida humana”. 88
Sob o ponto de vista metodológico, a Teologia da Libertação, que é o chão
teológico hinkelammertiano, é uma forma de fazer “teologia a partir dos pobres,
teologia da preferência pelos pobres, teologia a partir de uma praxeologia”. Em última
instância, “à medida que a libertação aspira a transformação social, universalizando-se,
também é evidentemente uma teologia política.”89 Daí o sentido de uma teologia que
proclama Deus presente na história, como caminhante ao lado de seu povo. “Ainda que
a presença de Deus seja uma obra que resulte do reconhecimento entre sujeitos, por

84
GUTIÉRREZ, 1975, p. 15.
85
HINKELAMMERT, 2013, p. 377.
86
HINKELAMMERT, 2013, p. 378.
87
HINKELAMMERT, 2013, p. 378.
88
HINKELAMMERT, 1983, p. 328.
89
HINKELAMMERT, 2013, p. 378.
18

analogia, é preciso falar do Deus-sujeito”.90 Deus, então, não é uma ideia, uma
ideologia, mas experiência vivida em comunidade, em caminhada de um povo-
comunidade. Como diz Boff, “experimentar Deus não é pensar sobre Deus, mas sentir
Deus com a totalidade de nosso ser. Experimentar Deus não é falar de Deus aos outros,
mas falar de Deus junto com os outros”.91
A experiência de Deus está no âmbito da vivência. Em termos
hinkelammertianos, “embora Deus seja o âmbito no interior do qual os sujeitos
humanos se reconhecem, só se pode falar sobre Deus em termos que o apresentem como
sujeito”. Consequentemente, “o âmbito do reconhecimento entre sujeitos constitui o
reino de Deus na história. Ou seja, a presença histórica de Deus só pode ser concebida
em termos de um Deus-sujeito.”92 Por essa razão, há a vivência de uma comunidade que
compartilha uma aspiração escatológica como perspectiva de ressurreição, porque Deus
é o Deus da vida, um Deus que não quer a morte. “A fé não significa deixar de viver,
mas viver mais”.93
Por isso, “a esperança vai considerar o Deus-sujeito como aquele que,
contrariando as possibilidades humanas, a levará à sua plenitude”. Embora, há aqui uma
ponte com uma “teologia objetiva”, em que Deus é concebido como aquele que
ressuscitará os seres humanos dentre os mortos, para Hinkelammert, esse sentido não é
derivado de um pensar teológico que parte “de um Deus acima dos seres humanos que
se dirige a eles através de seu amor”.
A aspiração transcendental da ressurreição como sentido do teológico,
“segundo o qual o humanamente impossível, apesar de tudo é possível”, é vivida e
refletida “a partir de um amor entre sujeitos humanos, que é o amor de Deus. O amor de
Deus não vem de fora, torna-se efetivo à medida que há amor entre os seres humanos”.
E, nesse amor, “é exatamente igual dizer que o Reino de Deus é obra de Deus ou obra
dos seres humanos, ainda que o Deus-sujeito seja considerado como aquele que pode
realizá-lo em sua plenitude”.94 A experiência de um amor que é vida, é perpassada pelo
Logos que se fez carne, porque Deus é Deus da vida.
Nesse sentido, Gutiérrez nos lembra: “Deus é amor. Jesus o manifesta ao
dirigir-se a Ele como o seu Pai. Deus está onde o dom do Reino e suas exigências são

90
HINKELAMMERT, 2013, p. 378.
91
BOFF, Leonardo. Experimentar Deus: a transparência de todas as coisas. 4. ed. Campinas: Verus,
2002, p. 10.
92
HINKELAMMERT, 2013, p. 378.
93
HINKELAMMERT, 1983, p. 195.
94
HINKELAMMERT, 2013, p. 379.
19

acolhidas em nossas vidas e obras”.95 Essa é a experiência e a imagem de um Deus que,


desde a condição humana, mas para além desta, abre-se para um inaudito Mistério.
Assim sendo, nas palavras de Hinkelammert,

Ao falar teologicamente, o ser humano cria um espaço teológico e o preenche


pensando em Deus a partir das impossibilidades humanas e, portanto,
pensando em conceitos de possibilidades humanas, ainda que levados a seus
limites transcendentais.96

Enquanto logos da fé, a teologia discerne seu conteúdo a partir do


humanamente impossível, porém, revelado possível. Ou seja, “a teologia da vida afirma
Deus como a garantia da possibilidade de realizar a utopia humana além dos limites da
factibilidade do homem”. 97 Daí o sentido da fé concebida como comunidade alimentada
pela experiência no Deus da vida, o Deus que liberta. “A vontade de Deus é que o
homem seja livre como sujeito em comunidade; e a comunidade é, em última instância,
a humanidade”. 98 Portanto, não há como coadunar o Deus da vida com estruturas que
geram escravidão, sacrifício e morte.
A orientação teológica para a vida é o sentido de uma teologia que resgata o
humano e possibilita a libertação e, como defende Hinkelammert, tem a ver com a
dimensão econômica na medida em que, nesta, implicam-se as condições reais do viver.
Daí o sentido da intersecção entre economia e teologia: a vida que clama!

4 A razão utópica: uma necessária categoria crítica

De acordo com Higginz, “o contato com a reflexão teológica permitiu a


Hinkelammert focar sua atenção na relação intrateórica entre ideologia e economia.” Ou
seja, o “teológico está presente no conhecimento humano não como uma afirmação
doutrinal que se impõe de fora e sim como um horizonte último de toda a ação
humana.”99 A busca da plenitude de sentido, em que o “humanamente impossível,
apesar de tudo, é possível”, 100 dignifica o humano. Esta é busca de uma espiritualidade
que liberta e que é prenhe do totalmente Outro que se faz humano, que se revela na
Palavra de vida e grita na boca do faminto, do torturado, do injustiçado. Acolher esse

95
GUTIÉRREZ, 2004, p. 187.
96
HINKELAMMERT, 2013, p. 379.
97
HINKELAMMERT, 1983, p. 290.
98
HINKELAMMERT, 1983, p. 294.
99
HIGGINS, Sílvio Salej. Prefácio da edição brasileira. In: HINKELAMMERT, 2013, p. 12.
100
HINKELAMMERT, 2013, p. 381.
20

sentido do teológico, como experiência de uma comunidade que proclama sua fé em


Jesus de Nazaré, como diz Gutiérrez, “implica rejeitar uma situação desumana que, por
sua vez, dá conteúdo e urgência à proclamação do Deus da vida”. 101
Para Hinkelammert “os princípios de impossibilidade das ciências empíricas
descrevem impossibilidades para a ação humana, que não são logicamente
contraditórias”. 102 Com efeito, “este conjunto de mundo pensáveis, mas humanamente
impossíveis, desdobra-se em dois”, a saber: o primeiro, “a partir dos princípios de
impossibilidade, o mundo do possível imaginário – que é humanamente impossível”; o
segundo, “a partir do reconhecimento intersubjetivo, dentro de um conjunto material e
sensual compartilhado com fluidez, a imaginação transcendental”. 103
Nesse marco que, no fundo, é o desejo da humana busca por um sentido de
plenitude, desdobram-se também “ilusões humanas que, apesar da impossibilidade,
sustentam a possibilidade humana de ocupar o espaço do impossível”. 104 Daí as
ideologias que proclamam a morte de Deus e do próprio sentido do humano, bem como
aquelas que prometem um „admirável mundo novo‟, uma „terra nova‟, que, no entanto,
muitas vezes acabam produzindo realidades infernais. Ou seja,

Segundo o desdobramento indicado, surge a ilusão transcendental que


pretende realizar o possível imaginário por desdobramentos infinitos, ou a
mitificação transcendental que pretende realizar o objeto da imaginação
transcendental pela ação direta. Trata-se, em ambos os casos, de formas
ilusórias de ocupar o impossível em nome das possibilidades humanas,
formas que sempre desembocam na destrutividade frente à vida humana ao
impossibilitar uma sociedade humanamente insustentável.105

Nesse marco de busca, ou de rejeição, da plenitude de sentido, portanto, criam-


se mecanismos que legitimam e mitificam estruturas que, em última instância,
escravizam e exigem sacrifícios. São teologias ideológicas que fabricam ou proclamam
um Deus à sua imagem, o Moloc que solicita sacrifícios de inocentes. Por isso, “a
busca, ou a rejeição, de mundos impossíveis torna-se o mecanismo de legitimação de
diferentes formas de ordem social”. 106 Isso quer dizer que, por exemplo, “existem
entrelaçamentos entre a economia e a teologia, que têm consequências bastante sérias
para a maneira de encarar e enfrentar muitos problemas humanos”. 107 Por todos os

101
GUTIÉRREZ, 2004, p. 11.
102
HINKELAMMERT, 2013, p. 373.
103
HINKELAMMERT, 2013, p. 373.
104
HINKELAMMERT, 2013, p. 373.
105
HINKELAMMERT, 2013, p. 373.
106
HIGGINS, 2013, p. 12.
107
ASSMANN; HINKELAMMERT, 1989, p. 09.
21

lados, a vida é ameaçada por estruturas sociais que pedem sacrifícios e produzem morte,
embora se apresentem racionalmente fornecedoras da sociedade perfeita. Sejam de
esquerda, sejam de direita, as ideologias totalitárias “querem fazer o céu na terra”, mas
acabam “produzindo somente o inferno”.108
A busca e, até mesmo, a rejeição de mundos impossíveis, nas palavras de
Higgins, “torna-se o mecanismo de legitimação de diferentes formas de ordem social”.
Então, “o ideológico, entendido como legitimação social, é um denominador comum
tanto do positivismo cientifico, e sua fé no progresso, como das doutrinas políticas
libertárias ou conservadoras.”109 Com efeito, esta foi a suspeita de Hinkelammert em
relação as principais correntes das sociedades modernas e que ele explicitou nos
primeiros seis capítulos de a Crítica da razão utópica.110
Referindo-se à primeira edição dessa obra (1984), Dussel lembra que
Hinkelammert a publicou um ano antes da Perestróica (1985), evento que demarcou o
início do desmantelamento da antiga União Soviética e da queda do socialismo. A
Crítica da razão utópica “antecipava as causas da queda do socialismo”, fazendo “uma
crítica, em nível estritamente teórico, da planificação burocrática de tipo estalinista,” e,
ao mesmo tempo, criticando “os fundamentos da proposta neoliberal, mostrando sua
inconsistência, que hoje vem sendo aceita por muitos.”111
Hinkelammert demonstra que tanto a proposta da economia de mercado livre
como a planificação burocrática socialista, assomando-se nesse mesmo horizonte
também as perspectivas do conservadorismo e do anarquismo, em última instância,
assentam-se num dominador comum, a razão utópica. Trata-se, esta racionalidade, de
“uma espécie de ingenuidade utópica, que cobre como véu a percepção da realidade
social”.112 Cada uma ao seu modo, essas teorias sociais se apresentam como portadoras
empíricas dos maiores sonhos da humanidade, porém, invariavelmente redundaram em
fracasso e mesmo em potencialidade destrutiva. Inclusive, o pensamento antiutópico da
tradição neoliberal, capitaneado pela ideia de mercado livre, à medida que “seu lema é

108
HINKELAMMERT, 2013, p. 274.
109
HIGGINS, 2013, p. 12.
110
Como se pode notar, o título do livro faz alusão à Crítica da razão pura de Kant. De fato,
HINKELAMMERT, 2013, p. 26, procura seguir, em sua crítica, “os elementos centrais das críticas
kantianas, convencido de que uma crítica da razão utópica, em última instância, consiste em uma
transformação dos conteúdos utópicos dos pensamentos modernos em conceitos e reflexões
transcendentais. Como as críticas kantianas à razão são críticas que as transcendem, procuro demonstrar
que também a crítica da razão utópica não pode ser senão uma crítica transcendental.”
111
DUSSEL, 2002, p. 260.
112
HINKELAMMERT, 2013, p. 19.
22

destruir a utopia para que não exista mais utopia”, seu extremismo utopista reverbera
uma “antiutopia como utopia verdadeira”. 113 Revela-se, então, um conteúdo teológico,
porque “são seguidores do „In god we trust‟, com a condição de que se trate daquele que
está impresso no dólar”.114
Para essa visão de mundo, em que não há alternativas, a ideia de justiça social
é rechaçada. De modo efetivo, Hayek, que foi um dos principais pensadores neoliberais
do século XX, entendeu que a dedicação à causa da justiça social é uma ameaça à
sociedade livre - “só podemos proteger-nos dessa ameaça submetendo até nossos mais
caros sonhos de um mundo melhor a uma implacável dissecação racional”. Diz ele
ainda, “acredito que a „justiça social‟ será, finalmente, identificada como uma miragem
que induziu os homens a abandonarem muitos dos valores que inspiraram, no passado, o
desenvolvimento da civilização [...]”.115
Ora, para a visão neoliberal, o mercado é a sua religião. Daí o sentido de
“cativeiro da utopia”, referido por Hinkelammert, em que a vida é desprezada. Desse
modo,

Os neoliberais [...] totalizam o mercado e o vêm como societas perfecta sem


restrições. Eles reduzem toda a política a uma aplicação das técnicas do
mercado e renunciam à busca de compromisso. Deixam de negociar para
impor. A sua consigna pode ser resumida assim: se há falhas no mercado, é
preciso introduzir mais mercado. [...] se há falhas na tecnologia, é preciso
introduzir mais tecnologia; se há falhas na guerra, é necessário introduzir
mais armamentos.116

A razão utópica é a razão formatada a partir do ideal da sociedade industrial,


em que um de seus fundamentos é a fé no progresso infinito da ciência e da técnica. A
análise hinkelammertiana lembra a Dialética do esclarecimento de Horkheimer e
Adorno, em que os autores justamente questionam essa contradição da razão iluminista:
“por que a humanidade, em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano, está
se afundando em uma nova espécie de barbárie?”117 Se, por um lado, a racionalidade
moderna ofereceu à humanidade a possibilidade de emancipação, por outro lado, ela

113
HINKELAMMERT, 2013, p. 20.
114
HINKELAMMERT, 2013, p. 376.
115
HAYEK, Friedrich. Direito, legislação e liberdade: a miragem da justiça social. São Paulo: Visão,
1985, p. 85. Ainda HAYEK, 1985, p. 86; “aquilo com que nos defrontamos no caso da „justiça social‟ é
simplesmente uma superstição quase religiosa, do gênero que deveríamos respeitosamente deixar em paz
na medida em que apenas traz felicidade aos que nela creem, mas que temos obrigação de combater
quando se torna pretexto para a coerção de outros homens. E a crença reinante na „justiça social‟ é
provavelmente, em nossos dias, a mais grave ameaça à maioria dos valores de uma civilização livre.”
116
HINKELAMMERT, 2013, p. 289.
117
ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio
de Janeiro: Zahar, 1985, p. 11.
23

conduziu a civilização para uma nova barbárie, justamente em sua inabalável confiança
em querer dominar o mundo. Daí o mito do progresso técnico-científico ligado à razão
instrumental, uma razão que se moldou a partir dos ideais da sociedade industrial.
“Doravante, a matéria deve ser dominada sem o recurso ilusório a forças soberanas ou
imanentes, sem a ilusão de qualidades ocultas. O que não se submete ao critério da
calculabilidade e da utilidade torna-se suspeito para o esclarecimento.”118
Retomando Hinkelammert, a razão utópica é a razão técnico-científica que se
entende capaz de levar adiante a promessa de oferecer à humanidade as respostas
últimas de suas aspirações, muitas vezes, perdendo o contato com a própria realidade.
Note-se que “uma sociedade tecnológica também mata o ser humano ao dar-lhe uma
ilusão transcendental do progresso técnico quando ele pede trabalho, pão e teto”.119
Não obstante ao marco da crítica da razão kantiana, que discerniu os limites de
possibilidade da razão cognoscível, dada a própria condição da finitude humana, as
principais correntes de pensamento e modelo da sociedade moderna sucumbiram aos
mecanismos da ilusão transcendental, uma razão utópica. Há uma expectativa
compartilhada de que a humanidade poderá realizar plenamente seus maiores sonhos, a
saber: plena liberdade, imortalidade, mundo social sem dor e sem miséria. Ou seja,
“para qualquer lugar que olharmos, surgem teorias sociais que buscam as raízes
empíricas dos maiores sonhos humanos para descobrir, posteriormente, alguma forma
de realizá-los a partir do tratamento adequado de tal realidade”.120
Trata-se, por conseguinte, a razão utópica, de uma ingenuidade que está
presente tanto no pensamento liberal como no pensamento socialista. Enquanto o
primeiro “atribui à realidade do mercado burguês a tendência ao equilíbrio e à
identidade de interesses originados por alguma mão invisível”, o segundo “atribui a uma
reorganização socialista da sociedade uma perspectiva igualmente total de liberdade do
homem concreto”.121 Tanto pensamento socialista como no liberal, “da terra ao céu
parece existir uma escada e o problema é encontrá-la”. 122
Do mesmo modo, a razão utópica ocorre no pensamento conservador, tal como
aparece na obra O dossel sagrado de Peter Berger.123 Conforme Hinkelammert, em

118
ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 21.
119
HINKELAMMERT, 2013, p. 83.
120
HINKELAMMERT, 2013, p. 19
121
HINKELAMMERT, 2013, p. 19.
122
HINKELAMMERT, 2013, p. 19.
123
HINKELAMMERT, 2013, p. 22, “Berger […] é hoje uma figura política importante na confrontação
ideológica do atual governo dos Estados Unidos [George W. Bush] com os movimentos e libertação na
24

Berger há a sacralização e a hipóstase moral – o nómos – das instituições (família,


religião, Estado...), as quais teriam legitimidade para referenciar e exercer o poder de
coerção, para impor ao sujeito os padrões de pertencimento à sociedade. Numa
perspectiva inversa à conservadora, mas também assumindo ao seu modo a razão
utópica, está o pensamento anarquista, tal como foi formulado pelo ativista mexicano
Ricardo Mágon, para o qual as instituições sociais deveriam ser destituídas, para afirmar
“a liberdade como superação de toda autoridade e da propriedade privada”. 124 Para isso,
não haveria necessidade de mediação, pois o anarquismo, segundo Hinkelammert,
“supõe que há uma grande força espontânea que pode ser mobilizada com facilidade nas
pessoas, força que está acorrentada pelas instituições da propriedade e do Estado, do
capital e da autoridade”. 125
Na linha hinkelammertiana, Higgins nota que a razão utópica “atravessa como
um eixo transversal o pensamento neoliberal [...], o comunismo soviético, a economia
neoclássica e, em particular, a pretensão de uma crítica extrema da utopia para que não
exista mais utopias, tal como é feita por Karl Popper”.126 De fato, como procede em sua
análise, Hinkelammert demonstra que a razão utópica está justamente presente no
modelo de sociedade que se assume anti-utopista e que é, atualmente, a perspectiva
hegemônica, a da sociedade neoliberal.
Interessante notar que, em sua Crítica da razão utópica, Hinkelammert dedica
o primeiro capítulo à análise do pensamento de Popper. Aliás, é a partir do pensamento
popperiano que Hinkelammert constrói, em parte, o seu arcabouço crítico. À primeira
vista parece ser algo estranho. Porém, segundo Hinkelammert, em sua intuição original,
foi Popper quem primeiramente tentou fazer a crítica ao utópico. Basicamente,
Hinkelammert está de acordo com Popper quando este explicita que não é possível, a
partir da realidade humana, “um conhecimento perfeito de todos os fatos de relações
sociais humanas interdependentes. Esta impossibilidade vale tanto para cada um do
seres humanos como para qualquer grupo humano e, em consequência disso, para toda
instituição humana”. 127
Segundo entendimento de Hinkelammert, “esta afirmação da impossibilidade,
em termos categorias, é uma novidade nas ciências sociais atuais e tem uma importância

América Latina, especialmente por sua influencia no “Instituto sobre Religião e Democracia”, um
importante órgão do governo norte-americano que luta contra a Teologia da Libertação”.
124
HINKELAMMERT, 2013, p. 203.
125
HINKELAMMERT, 2013, p. 216.
126
HIGGINS, 2013, p. 15.
127
HINKELAMMERT, 2013, p. 31.
25

inegável.”128 Até é possível tentar esse impossível, porém, isso implica em imposição,
violência, destruição. É o que ocorreu na sociedade socialista soviética, a qual se
embasou na ideia de que era possível adotar um modelo de sociedade firmado no
planejamento perfeito. Hinkelammert está de acordo com Popper quando este diz que “a
tentativa de construir o paraíso na terra invariavelmente resulta no inferno. Leva à
intolerância. Leva às guerras religiosas e à salvação das almas por meio da
inquisição”.129
Até aqui, Hinkelammert assente com o pensamento popperiano. Porém, quando
Popper adota o princípio de que todo utopista é um inimigo a ser reprimido e assume
uma ferrenha postura de combate, em nome de uma sociedade sem utopias, seu
antiutopismo reverberou, no fundo, em um novo utopismo. Agora, em nome da
sociedade aberta e da racionalidade científica, os inimigos devem ser combatidos. Nas
palavras do próprio Popper, referindo-se aos „utopistas‟, “apesar desses líderes da
humanidade saberem como fazer uso da razão para seus propósitos, nunca são homens
da razão. [...] A criatividade é uma faculdade inteiramente irracional, mística”. 130
Portanto, “a utopia leva o utopista à violência e, portanto, é preciso reprimi-lo, inclusive
violentamente”.131 Para resumir, com Hinkelammert,

Popper não soube dimensionar o alcance do seu ponto de partida, e terminou


novamente, apesar de todas as suas intenções críticas, em uma ingenuidade
utópica que subjaz todo o pensamento liberal, embora este pensamento que
definitivamente está além de todas as utopias.132

Esse antiutopismo de Popper coincide com o ponto de vista presente


pensamento neoliberal, para o qual não há alternativa, a não ser o mercado livre.
“Quando alguém, em nome do mercado, tenta o impossível, isso é bom. Quando
alguém, em nome do planejamento, tenta o impossível, isso é mau”. 133 Desse modo,
“mercado mundial, Juízo Final! Como sempre na tradição ocidental, deste juízo final se
infere a necessidade de uma última batalha contra aqueles que se atrevem a criticar o
mercado a partir dos seus resultados”.134 Sob o mito do progresso técnico-científico, em

128
HINKELAMMERT, 2013, p. 31.
129
POPPER, Karl. A sociedade aberta e seus inimigos. In: Popper: vida e obra. 2. ed. São Paulo: Abril
Cultural, 1980, p. 193.
130
POPPER, 1980, p. 182.
131
HINKELAMMERT, 2013, p. 33.
132
HINKELAMMERT, 2013, p. 25.
133
HINKELAMMERT, 2013, p. 47.
134
HINKELAMMERT, 2013, p. 277.
26

que se sustenta agora o mercado livre, impõe-se a sociedade para a qual não há
alternativa.

O mito do fim da história (Francis Fukuyama) e a „chantagem da única


alternativa possível‟ (Kolakowski, 1960) somente colocam um ponto final a
esse tipo de desenvolvimento. A ideologia neoliberal, ainda que seja dito o
contrário, desenvolveu uma réplica burlesca do extermínio da ideologia
estalinista.135

Em nome da eficiência formal, que é a eficiência do mercado, e da negação das


utopias, qualquer alternativa é tida como utópica. Impõe-se a lei e a justiça do mercado,
porque, para Hayek, “a justiça não é naturalmente, questão dos objetivos de uma ação,
mas obediência às regras as quais está sujeita”. 136 Ou seja, segundo Hinkelammert, “as
regras às quais se refere Hayek são as leis do mercado. Portanto, ele sustenta que o
mercado é justo à medida que suas leis são respeitadas”.137
De fato, em Hayek, observa-se que o entendimento de justiça é reduzido à
possibilidade “de todos terem suas vontades satisfeitas”, 138 como recompensa da
aceitação da lei do mercado, isto é, a eficiência da concorrência. Para o economista
austríaco, a ideia de justiça não se aplica aos “processos impessoais do mercado [que]
alocam o controle de bens e serviços a pessoas específicas”.139 Nesse sentido, fora da
ordem de mercado não é possível estabelecer uma sociedade justa. Ainda segundo
Hayek, “numa sociedade de homens livres (em contraposição a qualquer organização
compulsória) o conceito de „justiça social‟ é vazio e sem significado”.140
A eficiência da ordem de mercado aparece, em Hayek, como critério para o
funcionamento dos mecanismos dentro e fora do âmbito econômico. Nessa condição,
concordando com crítica de Hinkelammert, “a eficiência formal do mercado
desenfreado conduz à destruição das fontes da riqueza: o ser humano e a natureza”. Em
outras palavras, “a eficiência se transforma na concorrência de indivíduos que cortam o
galho sobre o qual estão sentados, que se incitam de forma mútua e, ao final, celebram
como eficiente aquele que termina em primeiro e cai”.141
Importante referir que Hinkelammert, ao criticar o conceito de eficiência
presente na sociedade de mercado, uma eficiência fragmentária e suicida, o autor não

135
HINKELAMMERT, 2013, p. 394.
136
HAYEK apud HINKELAMMERT, 2013, p. 275.
137
HINKELAMMERT, 2013, p. 275.
138
HAYEK, 1985, p. 89.
139
HAYEK, 1985, p. 89.
140
HAYEK, 1985, p. 85.
141
HINKELAMMERT, 2013, p. 279.
27

exclui a ideia de eficiência em si. Para ele, o resgate da vida real e do sujeito humano, a
partir de uma economia para a vida, deve introduzir necessariamente o “conceito de
eficiência reprodutiva”, isto é, “a produção de riqueza deve ser feita de tal forma que as
suas fontes – o ser humano e a natureza – sejam conservadas, reproduzidas e
desenvolvidas junto com a riqueza produzida”.142
Certamente, a vida e tudo o que nela implica transcende à técnica, ao cálculo,
embora estes possam ser necessários e úteis, apenas isso. O cálculo e a técnica não
determinam valores. “Os valores da convivência não podem surgir em nome da
eficiência. Mas o reconhecimento desses valores é o ponto de partida da possibilidade
de assegurar a eficiência reprodutiva, e com ela tornar possível a vida no futuro”. 143 A
eficiência reprodutiva é o elemento qualitativo que surge como critério nas análises
quantitativas.
Esse aspecto apontado por Hinkelammert, de modo geral, está ausente na ideia
de eficiência na ordem de mercado. Para Hayek, de fato, a economia de mercado livre
ocorre sob os critérios da eficiência e calculabilidade. Fora destes critérios, o
conhecimento científico seria uma pretensão. Note-se a gratidão de Hayek aos
“filósofos modernos da ciência, como Sir Karl Popper, por fornecer-nos um teste pelo
qual podemos distinguir o que devemos aceitar, ou não, como científico – teste este que
não aprovaria [...] algumas doutrinas amplamente aceitas agora como científicas.” 144
Em nome das relações capitalista de produção, de acordo com Hinkelammert,
“o critério formal da eficiência do mercado se transforma no critério supremo de valores
e, por conseguinte, também de todos os direitos humanos. O próprio critério não é um
valor, ele dirige o mundo dos valores”. 145 Entende-se, desse modo, a recusa de Hayek
pela viabilidade de organizar a sociedade a partir de outros pontos de vista, exceto pela
via do “sistema de economia livre”. 146 Para esse economista, tal como um
supercomputador, a economia de mercado é “capaz, por si mesma, adaptar-se a uma
infinidade de variáveis imprevisíveis”. Assim, na crença de Hayek, a economia de
mercado pode empregar à produtividade, por vias automáticas, “um enorme volume de
informações extremamente dispersas entre milhões e milhões de pessoas (toda a

142
HINKELAMMERT, 2013, p. 280.
143
HINKELAMMERT, 2013, p. 281.
144
HAYEK, Friedrich A. Von. Conferência Nobel: A pretensão do conhecimento. Revista Brasileira de
Economia, Rio de Janeiro, v. 37, n. 04, out./ dez. 1983, p. 520.
145
HINKELAMMERT, 2013, p. 274.
146
HAYEK, Friedrich apud RANGEL, Carlos. Capitalismo y socialismo: entrevista a Friedrich August
von Hayek. El Universal, Caracas, 17.mayo. 1981, p. 01.
28

sociedade) [...]”.147 Então, como nota Hinkelammert, a justiça é transformada em


instrumento de batalha, porque, para Hayek, “a justiça não é, naturalmente, questão dos
objetivos de uma ação, mas obediência às regras às quais está sujeita”. 148
Sob a economia neoliberal, na medida em que há o discurso de que não há
alternativas, a não ser o mercado livre, instaura-se o que Hinkelammert chama de
“ideologia do heroísmo do suicídio coletivo”. 149 Pois, estamos diante de uma concepção
de mundo que produz uma „cultura de morte‟, constituindo-se em ameaça à existência
da própria humanidade. São “ameaças que surgem por todos os lados: bomba atômica,
explosão demográfica, exclusão de uma parte sempre maior do povo do
desenvolvimento econômico, degradação do meio ambiente, autocontradição do
progresso.”150
Eis a tônica de uma economia que compreende o desenvolvimento como mera
obtenção de riqueza, em que o progresso é reduzido ao avanço científico-tecnológico e
exige o sacrifício de quem não tem propriedade nem contrato. E não ter propriedade ou
contrato é a realidade vivida nos „quartos de despejo‟ da sociedade contemporânea. É a
realidade das pessoas que têm suas vidas ameaçadas porque não correspondem aos
critérios da eficiência e da calculabilidade exigidos pela sociedade de mercado livre.

5 A reprodução da vida real e o sujeito humano, desde os quartos de despejo.

Santo Padre, temos fome. [...] Sofremos miséria, falta-nos trabalho, estamos
doentes. Com o coração partido de dor, vemos que nossas esposas passam a
gestação tuberculosas, que as nossas crianças morrem, que nossos filhos
crescem frágeis e sem futuro. [...] Mas apesar de tudo isso, cremos no Deus
da vida.151

Seja numa perspectiva crítica, como a denúncia das armas ideológicas da


morte, seja numa perspectiva propositiva, para viabilizar uma economia para a vida, o
sujeito humano e a reprodução da vida real são princípios incontornáveis, que indicam o
sentido para uma ética da libertação. Para Hinkelammert, a vida humana se apresenta
como critério de verdade. De fato, “a vida humana em comunidade é o modo de

147
HAYEK apud RANGEL, 1981, p. 01.
148
HINKELAMMERT, 2013, p. 276.
149
HINKELAMMERT, 2013, p. 276.
150
HINKELAMMERT, Franz. O cativeiro da utopia: as utopias conservadoras do capitalismo atual, o
neoliberalismo e o espaço para alternativas. Revista eclesiástica brasileira, Petrópolis, p.807.
151
GUTIÉRREZ, 2004, p. 11. Palavras de saudação proferidas por Víctor e Isabel Cheno, em nome das
comunidades pobres de Lima, ao papa João Paulo II, quando este visitou o Peru, em 1985.
29

existência do ser humano e, por ele, ao mesmo tempo, é o critério da verdade prática e
teórica. Todo enunciado ou juízo tem por última referência a vida humana”. 152
A formação de uma visão de mundo não se dá por acaso ou de forma isolada,
mas é fruto de um mundo vivido e compartilhado por sujeitos históricos, que vivem
suas conquistas e também dilemas. O ser humano se faz humano na relação com o outro
e a outra. Como escreveu Marx, em sua crítica à visão burguesa, “o caçador e o
pescador, singulares e isolados, pelos quais começam Smith e Ricardo, pertencem às
ilusões desprovidas de fantasia das robinsonadas [Robinson Crusoé] do século
XVIII.”153 Desse modo, concordando com Holanda, “toda sociedade produz uma
imaginação política que legitima tanto a ordem estabelecida quanto as ações contrárias a
ela. [...] A vida em sociedade supõe, de modo permanente, a produção de
significados”.154
A realidade social, na perspectiva de Hinkelammert, “não é uma realidade sem
mais, mas uma realidade percebida sob determinado ponto de vista. Só podemos
perceber aquela realidade percebida que nos aparece mediante as categorias teóricas
usadas”.155 Isso é válido para todos os fenômenos sociais e, portanto, implica o universo
econômico. Dessa maneira, “o marco categorial, dentro do qual interpretamos o mundo
e dentro do qual percebemos as possíveis metas da ação humana, está presente nos
próprios fenômenos sociais e pode ser derivado deles”. 156
Em outras palavras, a afirmação e acolhida da vida, numa atitude de
hospitalidade e cuidado, indica um caminho de dignificação da vida real, isto é, dos
sujeitos vivos que comungam da mesma esperança – o pão da Vida é posto em comum
(cf. At 5,1-12). “Indistintamente, poderíamos afirmar as teses, derivadas tanto para os
sujeitos isolados como Robinson quanto para sujeitos em sociedade. Mas o sujeito
humano sempre existe em sociedade”. Ou seja, “não há um sujeito humano, mas um
conjunto de sujeitos humanos que formam a sociedade através de suas inter-
relações”.157

152
HINKELAMMERT; JIMÉNEZ, 2005, p. 08.
153
MARX, 2011, p. 39.
154
HOLANDA, Francisco U. X. de. Do neoliberalismo ao neoliberalismo: o itinerário de uma
cosmovisão impenitente. 2. ed. Porto Alegre: Edipucrs, 2001, p. 13.
155
HINKELAMMERT, 1983, p. 19.
156
HINKELAMMERT, 1983, p. 19.
157
HINKELAMMERT, 2013, p. 336.
30

Entende-se que “a vida real é a vida material, o intercâmbio do homem com a


natureza e com os outros homens”.158 Para viver, o ser humano, enquanto participante
da condição natural, precisa poder viver. E o poder viver implica necessariamente a
satisfação das necessidades (alimentação, abrigo, saúde, afeto...). Esta é uma condição
sine qua non da vida. Assim, no sentido humano, “qualquer que seja o projeto de vida,
ele não pode ser realizado se não garante roupa, casa, alimento etc. para viver. Pode
haver variações em relação a estes elementos, mas eles não podem faltar”. 159
A vida real não é um mero conceito. Seu sentido se realiza a partir de um
sujeito reflexivo e atuante, que continuamente transforma a própria realidade, isto é, a
vida. Porém, há o pressuposto: “é preciso viver para poder conceber fins e a eles
encaminhar, mas não se vive automaticamente nem por simples inércia. Viver é também
um projeto que tem condições materiais de possibilidade e que fracassa no caso de não
atingi-las.”160A reprodução material da vida humana é um a priori da vida do sujeito e,
por conseguinte, de sua liberdade. Assim, por exemplo, “para ser muçulmano, budista,
cristão, liberal ou comunista é preciso viver materialmente porque só pode sê-lo se
viver”.161Anterior a afirmação de si, do sujeito atuante, há o sujeito que vive.

Este projeto de vida, porém, não é um projeto específico. Nenhum fim


determinado pode ser deduzido do projeto de viver, mas este se realiza
através de muitos projetos encaminhados na direção de fins específicos. São
precisamente os fins específicos que formam e possibilitam as condições
materiais da possibilidade do projeto de viver.162

E tudo isso tem a ver com o universo econômico, que deve ter como sentido
primordial possibilitar que o sujeito viva. E viva dignamente. O estar vivo, isto é, a
possibilidade do viver, concretiza-se enquanto vida material, concreta, corpórea. A vida
não se dá no vazio. Há o pressuposto sem o qual a vida não seria possível: “a
possibilidade da vida pressupõe o acesso aos meios para poder viver”. 163 Do mesmo
modo, “da própria necessidade de reproduzir a vida humana material se segue a
necessidade de garantir a reprodução da natureza ou, em termos atuais, do meio
ambiente”.164

158
HINKELAMMERT, 1983, p. 337.
159
HINKELAMMERT, 2013, p. 335.
160
HINKELAMMERT, 2013, p. 333.
161
ASSMANN; HINKELAMMERT, 1989, p. 92.
162
HINKELAMMERT, 2013, p. 333.
163
HINKELAMMERT; JIMÉNEZ, 2005, p. 17.
164
ASSMANN; HINKELAMMERT, 1989, p. 92.
31

O meio para viver é um produto social e, como tal, “aparece a possibilidade da


apropriação dos meios de produção por alguns poucos ou por um grupo social mais
amplo, e a consequente redução dos outros à simples subsistência, à pauperização, à
morte”.165 Por isso, a defesa da teologia e da economia para a vida é também
discernimento e denúncia das ideologias da morte, com seus mitos, que impedem o
florescimento da vida em sua dignidade.
A vida é uma condição ética incontornável, no sentido de que é o ponto de
partida do quefazer humano intermitentemente interpelado pela voz que vem da outra
margem. Palavra que é sagrada, pois manifesta, de forma articulada ou não, a vida como
realidade que me toca. No dizer de Sobrino, “se a realidade fala e Deus pode falar nela,
principalmente quando é na forma de clamor, então certamente temos que escutá-la; é
ali que se manifesta a essência do humano: ser ouvinte da palavra.”166
O rosto que clama por uma economia da vida é uma palavra que fissura a
consciência do sujeito e clama pela condição do outro humano. Trata-se do clamor que
brota como nas palavras de Carolina Maria de Jesus (1914-1977), neta de escravos e
moradora de uma comunidade pobre da cidade de São Paulo, que registrou em seu
diário, o Quarto de despejo, o dia a dia da miséria e da vida infausta de quem vive em
favela – “o quarto de despejo de uma cidade”.167 Pois, transcendendo ao período
histórico retratado (1955-1960), o diário é um testemunho atual do escândalo das
injustiças que geram exclusão e morte de inocentes, sobretudo de crianças e jovens.
A narrativa de Carolina de Jesus é a mesma de quem cotidianamente, diante da
miséria, perde a motivação de viver: “eu estou começando a perder o interesse pela
existencia [sic]”. 168 Entretanto, nesse grito de desesperança, como eco de Jesus na cruz–
“Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?” (Mt 27, 46), Deus estabelece morada
solicitando a presença de quem é próximo. Nas palavras dos bispos reunidos em Puebla,
“esta situação de extrema pobreza generalizada adquire, na vida real, feições
concretíssimas, nas quais deveríamos reconhecer as feições sofredoras do Cristo, o

165
HINKELAMMERT, 2013, p. 337.
166
SOBRINO, Jon. Onde está Deus? São Leopoldo: Sinodal, 2007, p. 78.
167
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 1993,
p.171. A autora, que nasceu no interior de Minas Gerais, foi catadora de papel e viveu na comunidade do
Canindé, às margens do rio Tietê, em São Paulo, onde hoje fica o estádio da Portuguesa de Desportos.
168
JESUS, 1993, p. 30. Observo que os erros de português, contidos nos originais da autora, foram
conservados pelo editor para sinalizar o realismo da obra que retrata a vida de um povo alijado, inclusive,
da educação formal.
32

Senhor (que nos questiona e interpela)”.169 Por isso, em cada grito, em cada angústia, há
uma “revolta [que] é justa”.170 E, neste desejo de justiça, como um sopro de esperança –
ressurreição – que restitui a vida, há o apelo de Deus: “Eu vi, eu vi a miséria do meu
povo” (Ex 3, 7).
Como escreveu Mandela, “a esperança é uma arma poderosa, mesmo quando
tudo o mais parece perder a força”.171 De fato, no humano, Deus se faz morada quando
a própria esperança não é mais permitida. Daí o sentido de uma Palavra que solicita a
incontornável resposta ética, uma resposta de firme denúncia das condições injustas que
geram sofrimento e morte. Ao mesmo tempo, uma firme resposta de solidariedade
transformadora que tem como critério a sabedoria do amor, isto é, o amor a serviço do
próximo. No sentido de Moltmann, trata-se do amor expresso pela sabedoria dos
profetas, em que a causa do pobre e do indigente (cf. Jr 22,16) demanda a “ética da paz
justa”. Isso porque “justiça é, segundo o Antigo Testamento, um nome de Deus (Jr
23,6) e, segundo o Novo Testamento (2Pd 3,13), a materialização da presença da paz na
nova terra”.172
A justiça não é a justiça legalista que pede sacrifícios, nem a justiça dos
tribunais, mas é a justiça que liberta e restaura o humano. Trata-se da justiça que
“abrange todos os aspectos do salvar e do compadecer-se, do auxiliar e do curar, do
justificar e restaurar”, que implica tanto o humano como de maneira especial a terra.173
Desse modo, “o clamor por justiça é, para os impotentes e humilhados, o clamor por
Deus. Inclusive o silêncio do povo fatigado e sobrecarregado expressa o clamor por
Deus e pela sua justiça.”174
Com efeito, esse é o conteúdo da „justa revolta‟ de Carolina de Jesus, um
clamor carregado de sonhos, mesmo que frustrados, quando expressou em seu diário:
“[hoje, é] aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu pretendi comprar um par de
sapatos para ela. Mas o custo dos generos alimenticios nos impede a realização dos
nossos desejos. [...] Eu achei um par de sapatos no lixo, lavei e remendei para ela calçar
[sic]”. 175

169
CELAM – Conselho Episcopal Latino-Americano. Conclusões da Conferência de Puebla. 13.
Ed.São Paulo: Paulinas, 2004, p. 94.
170
JESUS, 1993, p. 30.
171
MANDELA, Nelson. Conversas que eu tive comigo. Rio de Janeiro: Rocco, 2010, p. 176.
172
MOLTMANN, Jürgen. Ética da esperança. Petrópolis: Vozes, 2012, p. 195.
173
MOLTMANN, 2012, p. 211.
174
MOLTMANN, 2012, p. 212.
175
JESUS, 1993, p. 171.
33

Do mesmo modo, é uma justiça da palavra compartilhada com o retirante que


está chegando, muitas vezes, cabisbaixo e angustiando, mas que carrega o desejo de
poesia, do verde das árvores, do perfume das flores, do zumbido das abelhas, do
colorido e do canto dos pássaros. No testemunho de Carolina de Jesus, “chegam novas
pessoas para a favela. Estão esfarrapadas, andar curvado e os olhos fitos no solo como
se pensasse na sua despedida por residir num lugar sem atração”. Pois, “um lugar que
não se pode plantar uma flor para aspirar o seu perfume, para ouvir o zumbido das
abelhas ou o colibri acariciando-a com seu frágil biquinho. O unico perfume que exala
na favela é a lama podre, os excrementos e a pinga [sic]”. 176
Daí a narrativa de quem não quer papel apenas para „catar‟ e receber alguns
trocados tão necessários para cuidar de quem tem fome – “quem passa fome aprende a
pensar no próximo, e nas crianças”.177 Mas, também há o desejo de dizer e registrar, em
papel, a palavra de sonho e fantasia, porque, ali, a felicidade é realidade nascendo como
esperança: “enquanto escrevo vou pensando que resido num castelo cor de ouro que
reluz na luz do sol. [...] É preciso criar este ambiente de fantasia, para esquecer que
estou na favela. [...] As horas que sou feliz é quando estou residindo nos castelos
imaginários [sic]”.178
Aos pequeninos, Carolina de Jesus dirige sua palavra de ternura, como uma
justiça de quem cuida: “o meu sorriso, as palavras ternas e suaves, eu reservo para as
crianças”.179 Mas, há também a angústia diante da injusta fome: “como é horrível um
filho comer e perguntar: „tem mais?‟. Esta palavra „tem mais‟ fica oscilando dentro do
cerebro de uma mãe que olha as panela e não tem mais [sic]”.180 Então, há a palavra de
regozijo quando o justo se alimenta: “Fiz a comida. [...] Que espetaculo deslumbrante!
As crianças sorrindo vendo a comida ferver nas panelas. Ainda mais quando é arroz e
feijão, é um dia de festa para eles [sic]”.181 Por isso, como diz Hinkelammert,

O mau da pobreza não é a fome. A fome é algo bom. O mau é a


impossibilidade de satisfazer a fome. A fome é a contrapartida da satisfação
sensual, e o gozo em sua totalidade contém a fome como uma parte. A fome
é parte do gozo. Ter fome é algo bom, se isto termina em uma boa refeição;
sem fome anterior, a melhor refeição não serve. A pobreza, como desespero
pela fome, deriva-se da impossibilidade de satisfazê-la. A maldade da

176
JESUS, 1993, p. 42.
177
JESUS, 1993, p. 26.
178
JESUS, 1993, p. 52.
179
JESUS, 1993, p. 34.
180
JESUS, 1993, p. 34.
181
JESUS, 1993, p. 38.
34

pobreza só surge quando após a fome não vem a refeição, após a sede a
bebida, após o frio o calor agradável e ao calor uma boa brisa refrescante. 182

A alimentação não é uma concessão, uma caridade, uma ação assistencial, mas
um direito básico. Como disse Dom Morelli, em entrevista a Zero Hora, diante da
realidade da fome que atinge sobretudo crianças, “não é porque tenho pena de criança
com fome. Tenho vergonha. A criança privada do alimento fica mirrada, não se
desenvolve, a humanidade dela foi negada e a minha foi atingida.[...] Ela [alimentação]
é um direito inalienável do ser humano”.183 Entende-se, por conseguinte, que o acesso à
alimentação é muito mais uma questão de distribuição, a qual está concentrada, do que
propriamente de produção.184
Diante da abundância de alguns que demanda em miséria de outros, no Quarto
de despejo, há a palavra de quem testemunha o sofrimento do faminto e, ao mesmo
tempo, denuncia o opulento que gera a injustiça. “Quando eu fui catar papel encontrei
um preto. Estava rasgado e sujo que dava pena. [...] Indigno para um ser humano. [...]
Não estava embriagado, mas vacilava no andar. Cambaleava. Estava tonto de
fome”.185Assim como tantos outros, ele era um retirante que, não podendo mais viver
nas fazendas, onde era explorado, foi tentar a vida na cidade grande, mas não encontrou
emprego porque já era idoso. Como diz Hinkelammert, “os pobres sofrem injustiça; a
falta de „pão e teto, de saúde e cultura”, porém, “no momento em que começam a exigir
justiça e a obrigar a respeitá-la, a justiça dos pobres é violência”. 186
No Quarto de despejo, há também a poesia de quem tem lado. É a poesia
política de uma causa que é justa. “Os políticos sabem que sou poetisa. E que o poeta
enfrenta a morte quando vê o seu povo oprimido. [...] Eu estou ao lado do pobre, que é
braço. Braço desnutrido. Precisamos livrar o paiz dos políticos açambarcadores

182
HINKELAMMERT, 2013, p. 358.
183
MORELLI, Mauro. Zero Hora, Porto Alegre, 7 maio. 2014.
184
Cf. ALCÁZAR, José E. Eliminar a fome requerer inteligência e ética. IHU On-Line, São Leopoldo, n.
442, 05 maio. 2014, p. 07-10: “Hoje, segundo dados da Organização das Nações Unidas para
Alimentação e Agricultura – FAO, há alimentos no mundo para alimentar folgadamente a população
mundial. Os alimentos estão no mercado internacional, mas não chegam às mesas nem às bocas dos que
têm fome. Em outras palavras, o problema não é a produção de alimentos, mas o acesso aos mesmos. O
problema é, essencialmente, de índole política. Isto foi reconhecido explicitamente há mais de 50 anos
por um grande presidente dos Estados Unidos. Em 1963, John F. Kennedy, em seu discurso no primeiro
Congresso Mundial de Alimentos, disse: “Em nossa geração temos os meios e a capacidade de eliminar a
fome da face da Terra.Necessitamos, para tanto, apenas de vontade política”. Se há 50 anos já existiam os
meios e a capacidade para acabar com a fome, imagine hoje! No entanto, continua faltando vontade
política para isso.
185
JESUS, 1993, p. 48.
186
HINKELAMMERT, 1983, p. 260.
35

[sic].”187 Essa é uma poesia que admoesta, com firmeza, a política da demagogia, do
discurso ludibriante, da manipulação, do político que, depois do voto, “divorcia-se do
povo. Olha o povo com os olhos semi-cerrados. Com um orgulho que fere a nossa
sensibilidade”. Então, com lucidez, a poetisa alerta: “a democracia está perdendo seus
adeptos. No nosso paiz tudo está enfraquecendo. [...] A democracia é fraca e os políticos
fraquíssimos. E tudo que está fraco, morre um dia [sic].” 188
Como diz Lévinas, o opulento trata o oprimido “como filantropo, como se ele
fosse um mísero, espécie estranha”. 189 O farto que está fechado em sua indiferença e
vive da injustiça não compreende o esfomeado. Donde o sentido da palavra de Carolina
de Jesus que repudia a caridade do desprezo, da especulação comercial: “[...] chegou um
caminhão aqui na favela. O motorista e o seu ajudante jogam umas latas. É linguiça
enlatada. [...] Já está pobre.” Pois, “é assim que fazem os comerciantes insaciáveis.
Ficam esperando os preços [dos produtos] subir na ganancia de ganhar mais. E quando
apodrece jogam fora para os corvos e os infelizes favelados [sic]”. 190
A partir do Quarto de despejo, emerge o justo e incontornável grito que vem da
Outra Margem: “nós somos pobres, viemos para as margens do rio [Tietê]. Gente da
favela é considerado marginais. [...] Os homens desempregados substituíram os corvos
que voavam as margens do rio, perto dos lixos [sic].”191 É a narrativa de quem “[luta]
contra a escravidão atual – a fome!.”192 Por isso, é uma palavra que repudia o político
do discurso demagógico, denuncia a falsa filantropia e admoesta aquele que faz da
miséria um mero cenário para „fita de cinema‟ – “o que se nota é que ninguem gosta da
favela, mas precisa dela. [...] Eles estão filmando as proezas do Promessinha. Mas o
Promessinha não é da nossa favela [sic]”. 193
A palavra que clama em o Quarto de despejo, como palavra que se funde
àquela de Jesus, o nazareno (cf. Mt 8, 20), pede o pão que sacia a fome e, ao mesmo
tempo, o pão da fraternidade e da igualdade. “As aves deve ser mais feliz que nós.
Talvez entre elas reina amizade e igualdade. (...) O mundo das aves deve ser melhor do
que dos favelados, que deitam e não dormem porque deitam-se sem comer.”194 Como

187
JESUS, 1993, p. 35.
188
JESUS, 1993, p. 34-35.
189
LÉVINAS, Emannuel. Totalidade e infinito. Lisboa: Edições70, 2000b, p. 104.
190
JESUS, 1993, p. 29.
191
JESUS, 1993, p. 48.
192
JESUS, 1993, p. 27.
193
JESUS, 1993, p. 27. A autora se refere à filmagem do filme “Cidade Ameaçada” (1960), dirigido por
Roberto Farias, em que Promessinha foi um dos personagens.
194
JESUS, 1993, p. 30.
36

sugere Gutiérrez, entende-se que “a solidariedade com o pobre oferece uma base firme
para que se possa falar de Deus. [...] O Senhor pede a solidariedade com os
marginalizados e o oprimidos. É a ética do Êxodo. Deus está presente neles [...]”. 195 Em
suma, é o Deus que clama no rosto do povo que pede libertação.
A palavra de Carolina de Jesus, registrada em Quarto de despejo, é uma
palavra que clama em outros rostos, como naqueles que são cotidianamente despejados
de sua dignidade, ante uma sociedade que gera e pede sacrifícios, como denunciou
Hinkelammert em Sacrifícios humanos e sociedade ocidental. Ou seja, nos porões dos
poderes totalitários ou ditatoriais, nas dinâmicas sociais que geram pobreza, as
realidades que geram sacrifícios são monstruosidades:

Monstruosidades são o colonialismo, o império escravista na África e na


América, o racismo, a cobrança da dívida externa do Terceiro Mundo, a
guerra do Iraque. Monstruosidades são as câmaras de tortura da América, os
campos de concentração e extermínio, os bairros de miséria do Terceiro
Mundo. Tudo o que cria e reproduz a pobreza, tudo o que produz vítimas é
monstruosidade.196

Na sociedade do sacrifício, o outro não existe mesmo que ele esteja aí, ele é um
estorno, deve ser retirado, excluído, para dar lugar ao império, ao “capitalismo como
religião”.197Assim, por exemplo, no Brasil, mais de 150.000 pessoas foram removidas
de suas casas, para dar lugar aos empreendimentos ligados à Copa do Mundo de 2014 e
às Olimpíadas 2016. 198 Do mesmo modo, sob a lógica sacrifical, minimizam-se crimes
cometidos pelo próprio Estado – “erros de operação” –, como no Morro da Congonha,
Rio de Janeiro, em março de 2014, em que uma ação policial resultou no assassinato de
Cláudia da Silva Ferreira, mãe de quatro filhos, que teve seu corpo exposto e arrastado
pelas ruas de seu bairro como se fosse um objeto.199
Cláudia que foi notícia num dia, no outro, sob a cultura da indiferença, caiu no
esquecimento, tornando-se apenas um número que compõe estatísticas da violência.
Aliás, conforme Maricato, entre 1980 e 2010, a taxa de homicídios no Brasil cresceu
259%. “Em 1980, a média de assassinatos no país era 13,9 mortes para cada 100 mil

195
GUTIÉRREZ, 2004, p. 200.
196
HINKELAMMERT, 1995, p. 231.
197
Conceito referido por BENJAMIN, Walter. O capitalismo como religião. São Paulo: Boitempo,
2013, p. 21, segundo o qual “o capitalismo deve ser visto como uma religião, isto é, o capitalismo está a
serviço da resolução das mesmas preocupações, aflições e inquietações a que outrora as assim chamadas
religiões quiseram oferecer resposta.”
198
PORTAL POPULAR DA COPA. Dossiê: Megaeventos e violações dos direitos humanos no Brasil, p.
14. Disponível em: <http://www.portalpopulardacopa.org.br/>. Acesso em 17 abr. 2014.
199
Cf. Jornal do Brasil. Disponível em: http://www.jb.com.br/rio/noticias/2014/03/17/rio-policiais-que-
arrastaram-mulher-por-rua-em-madureira-sao-presos/. Acesso em: 17 abr. 2014.
37

habitantes. Em 2010, saltou para 49,9. A principal vítima dos homicídios é o jovem
negro e pobre, morador da periferia metropolitana”.200
Essa é uma realidade sacrifical que não se restringe ao contexto brasileiro. Os
quartos de despejo do Terceiro Mundo se tornaram globais. Como lembra Moltmann,
“estar entregue desamparadamente à injustiça e aos atos de violência das pessoas e
instituições é, hoje, uma experiência global da maior parte da humanidade”. 201 Ziegler,
que foi relator da ONU para o direito à alimentação entre 2000 e 2008, em Destruição
em massa: geopolítica da fome, testemunha que “a destruição anual de dezenas de
milhões de homens, mulheres e crianças pela fome constitui o escândalo de nosso
século. A cada cinco segundos, morre uma criança de menos de dez anos”.202 Porém,
essa realidade não é nenhuma fatalidade, sobretudo tendo em conta a quantidade de
alimentos, hoje, produzidos no mundo, que é mais do que o suficiente para alimentar a
atual população mundial (em torno de sete bilhões de pessoas). Por isso, sem
eufemismos, concordando com Ziegler, “uma criança que morre de fome é uma criança
assassinada”.203
A realidade dos quartos de despejo ressoa como condição ética incontornável.
Por isso, celebrar o Deus da vida é também denunciar as armas ideológicas da morte, a
sociedade que pede sacrifícios. “Uma teologia da vida – base de qualquer teologia da
libertação – desemboca nessas exigências”.204 Na perspectiva cristã, somos insuflados
por homens e mulheres que, a partir de múltiplas formas de ser igreja, assumiram e
assumem a condição de serem portadores de uma Boa Nova, em que a vida se apresenta
como critério de transformação dos mecanismos que geram sacrifícios.

6 O terceiro mundo globalizado e o desejo de outro mundo possível

A Teologia da Libertação, desde sua origem na formulação de Gutiérrez e no


encontro eclesial com os empobrecidos latino-americanos,205 tem nessa opção pelos

200
MARICATO, Ermínia. É a questão urbana, estúpido. In: VAINER, Carlos (et al.). Cidades rebeldes:
passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo Boitempo; Carta Maior, 2013, p.
21.
201
MOLTMANN, 2012, p. 212.
202
ZIEGLER, Jean. Destruição em massa: geopolítica da fome. São Paulo: Cortez, 2013, p. 21.
203
ZIEGLER, 2013, p. 21.
204
HINKELAMMERT, 1983, p. 329.
205
RIEGER, Joerg: Lembrar-se dos pobres: o desafio da teologia no século XXI. São Paulo: Loyola,
2009, p. 218: “A conferência dos bispos latino-americanos de Medellín, em 1968, em que Gutiérrez atuou
como assessor teológico, marcou o principal retorno ao encontro com os pobres. Aqui, a Igreja latino-
americana passou a ter um contato mais próximo com seu próprio contexto.”
38

pobres sua verdadeira fonte de inspiração, como sinal de uma comunidade de fé que
assume a condição de um Jesus que se faz próximo no rosto do próximo que clama.
Como diz Gutiérrez, “a espiritualidade [libertadora] é uma aventura comunitária. Passo
de um povo que segue o seu próprio caminho em seguimento a Jesus Cristo, através da
solidão e das ameaças do deserto”.206 O encontro com a realidade é o chão da fé vivida
que profetiza a esperança, em que se palmilha, passo a passo, a utopia da sabedoria do
amor. Caminhada esta, muitas vezes, acompanhada de dor, incompreensão, perseguição,
tortura e martírio de companheiros e companheiras. De modo especial, nas palavras de
Sobrino, “o lugar em que convergem como por necessidade profetismo e utopia é o
Terceiro Mundo, onde a injustiça e a morte são intoleráveis, e onde a esperança é como
a quintessência da vida”. 207
Para Gibellini, “o Terceiro Mundo é um conceito complexo, mas tem um
componente socioeconômico, geográfico e político, e também uma dimensão teológica:
é o „fruto amargo da opressão‟.”208 A noção de „Terceiro Mundo‟209 enquanto conteúdo
teológico nasceu no contexto da América Latina, onde o grito massivo dos
empobrecidos se fez ouvir por uma comunidade cristã sensível ao Jesus de Nazaré
sofredor no rosto desses irmãos e irmãs. Como diz Sobrino, de forma apropriada, trata-
se de “um continente não só atrasado ou subdesenvolvido, mas também oprimido e
escravizado pelo primeiro mundo, europeus e norte-americanos. E em Igrejas, se não
oprimidas pelas europeias, fortemente dependentes delas”. 210
Aliás, atualmente, a polarização entre países centrais e entre países periféricos
tem se intensificado. No dizer de Stiglitz, “a distância cada vez maior entre os que têm e
os que não têm vem deixando um número bastante grande de pessoas do Terceiro
Mundo num espaço lamentável de miséria, sobrevivendo com menos de um dólar por
dia.”211 E nessa realidade, segundo o sociólogo Boaventura Santos, “se as assimetrias

206
GUTIÉRREZ, 1984, p. 151.
207
SOBRINO, Jon. Fora dos pobres não há salvação: pequenos ensaios utópico-proféticos. São Paulo:
Paulinas, 2008, p. 56.
208
GIBELLINI, 1998, p. 452:
209
A expressão „Terceiro Mundo‟ é relativamente recente. De acordo com GIBELLINI, 1998, p. 447,
essa expressão “foi usada pela primeira vez pelo demógrafo francês Alfred Sauvy em 1952, [segundo o
qual] „este Terceiro Mundo, ignorado, explorado, desprezado como o Terceiro Estado, quer, também ele,
ser algo‟. A expressão nascia juntamente com o início do processo de descolonização, que, depois da
Segunda Guerra Mundial, levou muitos países da África e da Ásia à independência política.”
210
SOBRINO, Jon. O absoluto é Deus, e o coabsoluto são os pobres. IHU On-Line, São Leopoldo, n.
404, 05 out. 2012, p. 10.
211
STIGLITZ, Joseph. A globalização e seus malefeitos: a promessa não-cumprida de benefícios
globais. 4. ed. São Paulo: Futura, 2003, p. 31.
39

sociais aumentaram no interior de cada país, elas aumentaram ainda mais entre o
conjunto dos países do Norte e o conjunto dos países do Sul”.212
Por isso, o chamado „terceiro mundo‟, hoje, continua sendo o contexto dos
povos da América Latina, África, Ásia e Oceania meridional, em que a exploração
imperial segue se renovando, repercutindo em destruição ambiental, marginalização,
desigualdade social, apartheid, campos de detenção, miséria e violência. No entanto, o
encontro da teologia latino-americana com outras realidades, desde a teologia negra e
feminista, ainda nos de 1970, revelou que os empobrecidos têm muitos rostos. Segundo
Gibellini,

A partir de 1975 (1ª conferência de Detroit, EUA) a teologia latino-americana


da libertação se uniu com a teologia negra e com a teologia feminista, que,
também elas, veem a si próprias como teologias da libertação; a partir de
1976 (conferência de Dar-es-Salaam, Tanzânia), a teologia da libertação
iniciou um processo de união com teologias do Terceiro Mundo e pouco a
pouco se configurou como „expressão teológica do Terceiro Mundo‟.213

Desse modo, entende-se o sentido de uma „teologia do Terceiro Mundo‟ que é


compartilhada para além de suas fronteiras originais, expressando o desejo e a tarefa de
libertação de múltiplas realidades que tocam questões de gênero, raça, geração, religião,
cultura, meio ambiente... É a „sarça ardente‟ de uma teologia que não se aprisiona em
ortodoxias ou normas curiais que asfixiam a esperança, nem se acomoda em suas tendas
porque “os pássaros têm ninhos, porém o Filho do Homem não tem onde reclinar a
cabeça” (Mt 8, 20).
Seja no deserto do Arizona, seja na ilha de Lampedusa, em que milhares de
imigrantes e refugiados latino-americanos e africanos tentam atravessar
clandestinamente as fronteiras, há cenários que parecem repercutir o anúncio dantesco
no Portal do Inferno da Divina Comédia: “deixai toda a esperança, ó vós que entrais”. 214
Nesse sentido, Amartya Sen observa que “nos países mais ricos é demasiado comum
haver pessoas imensamente desfavorecidas, carentes de oportunidades básicas de acesso
a serviços de saúde, educação funcional, emprego remunerado ou segurança econômica
e social”. 215 Em suma, os „condenados da terra‟ também gritam desde a Europa e

212
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 13. ed.
São Paulo: Cortez, 2010, p. 18.
213
GIBELLINI, 1998, p. 357.
214
ALIGHIERI, Dante. A divina comédia. São Paulo: Nova Cultural, 2003, p. 17.
215
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. 8. reimp. São Paulo: Companhia das letras, 2000,
p. 29.
40

Estados Unidos, onde campeiam as “prisões da miséria”, como relata o sociólogo


Wacquant:

De Oslo a Bilbao e de Nápoles, passando por Madri, Marselha e Munique, a


parcela dos toxicômanos e vendedores de droga na população reclusa
conheceu um aumento espetacular, paralelo, sem ser da mesma escala, ao
observado nos Estados Unidos. Por toda a Europa, a política de luta contra a
droga serve de biombo para „uma guerra contra os componentes da
população percebidos como os menos úteis e potencialmente mais perigosos,
„sem-emprego‟, „sem-teto‟, „sem-documento‟, mendigos, vagabundos e
outros marginais. 216

Portanto, nessa realidade, soa o grito dos imigrantes que sofrem um sistema
político discriminatório e opressivo. Sistema este que é comandado por um Estado cada
vez mais policialesco. No testemunho de Jappe,

Nunca vi tantos policiais quanto vejo atualmente na França, principalmente


em Paris. Na Itália e na Alemanha, não há nada que se compare no momento.
E não são quaisquer policiais: têm um ar de brutalidade e de arrogância que
desafia qualquer tentativa de comparação. [...] É até difícil imaginar como
isso se dá quando se trata de alguém de pele mais escura, ou quando não é
possível apresentar os documentos corretos.217

Daí o sentido de um terceiro mundo globalizado. Em 2005, por exemplo,


emergiram as revoltas de jovens nos subúrbios franceses, surpreendendo aqueles que até
então consideravam a França, no dizer de Groppo, “um país bem-sucedido na proteção
aos direitos sociais e na promoção da integração de populações oriundas da
imigração”.218 Do mesmo modo, a partir de 2011, nos Estados Unidos e em diversos
países da Europa (Espanha, Reino Unido, Suécia, Suíça, Portugal, Grécia...), ocorreu
uma onda de protestos sociais, como dos „ocupas‟ – Occupy Wall Street – e dos
„indignados‟.219 Com reivindicações peculiares em cada região e processos
descentralizados, não organizados por partidos, sindicatos..., esses movimentos

216
WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. 2. ed. Zahar, 2011, p. 121.
217
JAPPE, Anselm. Violência, mas para quê? São Paulo: Hedra, 2009, p. 07-09:
218
GROPPO, Luís Antônio. A condição juvenil e as revoltas dos subúrbios na França. Política e
sociedade, Florianópolis, v.05, n. 08, abr. 2006, p. 89.
219
Para um resgate dos principais eventos, cf. ALVES, Giovanni. Ocupar Wall Street... e depois?
In:HARVEY, David (et al.). Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas. São Paulo:
Boitempo; Carta Maior, 2012, p. 31-32,“o M12M, Movimento 12 de Março ou Geração à Rasca, em
Portugal, o M15M, Movimento 15 de Março ou Movimento dos Indignados, na Espanha, e o Occupy
Wall Street, nos Estados Unidos, surge no bojo da aguda crise financeira que atinge o núcleo orgânico do
capitalismo global desde 2008. O Occupy Wall Street foi inspirado nos movimentos sociais europeus
como o M15M, que por sua vez foram influenciados pelas rebeliões de massa que impulsionaram a
Primavera Árabe e derrubaram governos na Tunísia e no Egito. [...] Em todos esses movimentos, o papel
das redes sociais, como Facebook e Twitter, na organização das manifestações foi importante”.
41

tomaram uma dimensão global, repercutindo inclusive no Brasil, como nas „Jornadas de
Junho de 2013‟.
Por ser um fenômeno social recente e ainda em andamento, levando-se em
conta também o papel catalisador das redes sociais da internet para a organização dos
protestos,220 qualquer análise dessa insurreição político-social disseminada pelo mundo,
parece-me que está ainda no âmbito da hipótese, suscitando mais perguntas do que
respostas. O que significam e sinalizam os novos movimentos sociais diante da atual
conjuntura mundial, tendo em conta a crise do sistema capitalista? Qual é o alcance da
exigência de descontinuidade que emana das ruas? Além de expor as misérias e as
barbáries do sistema hegemônico de Wall Street, que alternativas de „outros mundos
possíveis‟ podem ser construídas, no sentido de uma democracia para a cidadania? Qual
é o potencial de libertação dos movimentos de protesto? Enfim, como escreveu
Blanchot, “questões sussurrantes. Qual é o seu valor? O que dizem? São ainda
questões.”221 Não obstante, questões, dentre outras, que suscitam a dimensão da
alteridade, possibilidades inauditas.
Certo, concordando com Alves, “não podemos ser apenas seduzidos pelo
fascínio da contingência indignada nas praças e ruas”,222 sob o risco de não percebermos
que os movimentos de protesto que tomaram as ruas também têm contradições. Na
medida em que esses movimentos não conseguem fazer frente ao modelo hegemônico
de democracia liberal representativa, para articular novas formas de organização social,
de reinventar a própria democracia, enfim, que sejam capazes de traduzir os anseios dos
indignados, gera-se a frustração. No Brasil, por exemplo, mesmo que de forma tímida,
uma nova „Marcha da Família com Deus pela liberdade‟ foi organizada em 2014,
inspirada nos moldes daquela que, em 1964, deu sustento ao Golpe Civil-Militar
brasileiro.
No alerta de Santos, o colapso de expectativas sociais, em que o contrato social
é impugnado, torna-se o combustível do fascismo social. 223 Daí que, lembrando o
conceito hinkelammertiano de razão utópica, discursos ideologicamente constituídos,

220
Para uma análise do conceito de rede social e o papel da internet nesse contexto, como forma de
participação na vida política, destaco CASTELLS, Manuel. Redes de indignação e esperança:
movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
221
BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita: a palavra plural. São Paulo: Escuta, 2010, v.1, p. 41.
222
ALVES, 2012, p. 38.
223
Cf. SANTOS, Boaventura de Sousa. Poderá o direito ser emancipatório? Crítica de ciências sociais,
Lisboa, n. 65, maio 2003, p. 10
42

“para dar uma aparência de normalidade à conjuntura”,224 escondem as faces da surdez


totalitária. O discurso é pela defesa da liberdade, porém, na prática, trata-se da liberdade
de quartel disfarçada de mercado livre. Do mesmo modo, nessa lógica, está a batalha
midiática do enquadramento dos „ocupas‟ e dos „indignados‟ na condição de „vândalos‟,
„arruaceiros‟, „terroristas‟, um discurso que dá vazão ao Estado policialesco,
justificando as ações repressoras.

Basta lembrar que a Grã-Bretanha, pátria de democracia burguesa,


praticamente aboliu o Habeas corpus que prevê que uma pessoa detida deve
ser apresentada em três dias diante do juiz e cuja introdução, em 1679,
costuma ser considerada como início do Estado de direito e da liberdade do
indivíduo em face da arbitrariedade do Estado [...]. A tendência ao Estado
policial parece, entretanto, mais desenvolvida na França [...]. O país foi muito
longe no apagamento das fronteiras entre terrorismo, violência coletiva,
sabotagem e ilegalidade.225

Como se pode ver, o movimento dos „ocupas‟ e „indignados‟ descortina o


processo de interiorização do „terceiro mundo‟ nos países centrais, ao mesmo tempo em
que há o agravamento das disparidades entre Norte e Sul. Processos esses que tornam
ainda mais questionável a universalização do modelo de globalização financeira, uma
economia para o lucro capitaneada pelo “partido de Wall Street”, na definição de
Harvey. 226 Como se fosse “um Estado supranacional, dispondo de seus aparatos, redes
de influência e meios de ação próprios”, no dizer de Ramonet, a globalização financeira
“é um poder sem sociedade, sendo esse papel desempenhado pelos mercados
financeiros e pelas empresas gigantes, das quais ele é o mandatário, tendo como
consequência que as sociedades realmente existentes são sociedades sem poder”. 227
No relato de Moltmann, “as leis econômicas do mercado tornam inúmeras as
pessoas pobres e perdedoras na luta por ganhos; as estruturas sociais não permitem que
as pessoas ascendam, mas as mantêm abaixo da linha da pobreza”. 228 De fato, para os
patrocinadores da economia de mercado, como reconhece Stiglitz, um Prêmio Nobel de
economia, que foi presidente do Conselho de Assessores Econômicos do governo Bill
224
COSTA, Edmilson. A terceira onda da crise: o capitalismo no olho do furacão. Disponível em:
<http://resistir.info/crise/crise_no_coracao_do_sistema.html#asterisco>; Acesso em: 15.03.2014.
225
JAPPE, 2009, p. 12.
226
HARVEY, 2012, p, 58. Cf. <http://pt.wikipedia.org/wiki/Wall_Street>. Acesso em 19.mar.2014:
“A Wall Street é uma rua que corre na Manhattan Inferior, e é considerada o coração histórico do
atual Distrito Financeiro da cidade de Nova Iorque, onde se localiza a bolsa de valores de Nova Iorque, a
mais importante do mundo. [...] Wall Street compreende atualmente o mais importante centro comercial e
financeiro do mundo. Em suas famosas calçadas circulam diariamente representantes de grandes
empresas no mundo inteiro.”
227
RAMONET, Ignacio. Guerras do século XXI: novos temores e novas ameaças. Petrópolis: Vozes,
2003, p. 102.
228
MOLTMANN, 2012, p. 213.
43

Clinton (1995-97) e vice-presidente e economista-chefe do Banco Mundial (1997-


2000),

A globalização (que costuma estar associada à aceitação do capitalismo


triunfante ao estilo norte-americano) significa progresso; os países em
desenvolvimento devem aceitá-la se quiserem crescer e combater a miséria
de maneira eficaz. Entretanto, para muitos no mundo em desenvolvimento, a
229
globalização não trouxe benefícios econômicos prometidos.

Não obstante às promessas de instituições globais, como Banco Mundial (BC),


Fundo Monetário Internacional (FMI) e Organização Mundial do Comércio (OMC), que
impuseram a economia de mercado às nações, como receita de progresso e
desenvolvimento, o resultado não foi o esperado. Segundo Stiglitz, “apesar das
repetidas promessas de redução dos índices de pobreza feitas durante a última década do
século XX, o número dos que vivem na miséria efetivamente aumentou, e muito”. Em
contrapartida, “isso ocorreu ao mesmo tempo em que a renda total do mundo elevou-se,
em média, 2,5 por cento ao ano”.230
Ou seja, constata-se um aumento da distância entre a minoria enriquecida e a
maioria empobrecida, sendo que a conta de todos recai para esta. Conta esta que se
traduz, por exemplo, na realidade da dívida externa que assola os países empobrecidos.
Trata-se, com efeito, como alertou Hinkelammert, de uma dívida destrutiva e que
extrapola o âmbito do econômico.

A possibilidade de desenvolvimentos dos países subdesenvolvidos, a


produção interna, o nível de vida das populações, o emprego. Os orçamentos
nacionais se restringem cada vez mais aos gastos militares e policiais e aos
gastos provocados pelo pagamento da dívida. São destruídos os sistemas de
saúde e de educação, as cidades se deterioram e a miséria fere. Até a própria
natureza entra neste processo progressivo de destruição. O pagamento da
dívida não permite que se cuide de nada, nem da dívida humana nem das suas
condições naturais.231

No sentido hinkelammertiano, “dado que o sistema econômico capitalista é


determinado pelo automatismo do mercado, o sistema é destrutor tanto do ser humano

229
STIGLITZ, 2003, p. 31.
230
STIGLITZ, 2003, p. 31-32
231
HINKELAMMERT, Franz. A dívida externa da América Latina: o automatismo da dívida.
Petrópolis: Vozes, 1989, p. 07. Do mesmo modo, STIGLITZ, Joseph. Globalização: como dar certo. São
Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 335: “Em todo o mundo, da Argentina à Moldávia, da África à
Indonésia, a dívida representa um problema opressivo para os países em desenvolvimento. Às vezes, as
consequências da dívida são dramáticas, como nas crises, mas mais comumente, o ônus da dívida mostra
sua face quando os países lutam para evitar a moratória. Pagá-las exige muitas vezes que os países
sacrifiquem programas de educação e saúde, o crescimento econômico e o bem-estar de seus cidadãos.”
44

como da natureza”,232 a categoria „terceiro mundo‟ ressoa, hoje, a partir de um mundo


globalizado, em que o grito do empobrecido e do excluído é uma realidade
compartilhada. No Occupy Wall Street, no dizer de Tariq Ali, “pode ser que os jovens
atingidos por gás de pimenta da polícia de Nova York não tenha definido bem o que
desejam, mas eles seguramente sabem contra quem estão e isso já é um importante
começo”.233
A rejeição da resignação e do “hábito do desespero”, hábito que é loucura e
suicídio, no sentido de Camus, 234 certamente, já é um passo para que novos ventos
possam soprar como possibilidade de um mundo diferente. A rejeição do mundo
proposto pelo „partido de Wall Street‟ não é loucura nem vandalismo. E o primeiro
passo, para vislumbrar alternativas ao mercado global vigente, como diz Hinkelammert,
“é rejeitar tornar-se louco em uma sociedade que declara a loucura como sendo o
racional. É preciso rejeitar a racionalidade da morte; é a condição de todas as
alternativas possíveis”. 235
À rejeição segue a resistência, como condição de uma racionalidade ética,
porque sob o totalitarismo do mercado de concorrência impera a injustiça que oprime,
exclui, destrói, mata. Com efeito, sob o capitalismo radical de As engrenagens da
liberdade – The machinery of freedom (1973) – de David Friedman, como analisa
Hinkelammert, “acredita-se que o mercado, como simples automatismo, produza
liberdade, do mesmo modo que uma fábrica produz salsichas. Trata-se do totalitarismo
do mercado. A máquina da liberdade se transforma em uma máquina de horror”. 236 O
ser humano e a natureza são vistos como peças da engrenagem da máquina da liberdade.
“Aquilo que não funciona como parte da máquina pode ser descartado. Eis o destino do
Terceiro Mundo”.237
Por essa razão, os gritos e protestos de resistência devem provocar alternativas,
como possibilidade de um mundo diferente. A resistência deve tornar as alternativas
inevitáveis, como diz Hinkelammert, “para que possam ter um lugar no sistema
estabelecido que está baseado na legalidade. Dever intervir constantemente na lógica

232
HINKELAMMERT, 2013, p. 339.
233
ALI, Tariq. O Espírito da época. In: HARVEY, 2012, p. 66
234
CAMUS, Albert. A peste. 3. ed. Rio de Janeiro: Bestbolso, 2013, p. 173: “Os nossos cidadãos tinham-
se adaptado, como se costuma dizer, porque não havia outro modo de proceder. Tinham ainda,
naturalmente a atitude da desgraça e do sofrimento, mas já não os sentiam. [...] essa era justamente a
desgraça e que o hábito do desespero é pior que o próprio desespero”.
235
HINKELAMMERT, 2013, p. 318.
236
HINKELAMMERT, 2013, p. 321.
237
HINKELAMMERT, 2013, p. 321.
45

inerte do sistema, para submetê-la a uma lógica diferente”. Porém, essa resistência não
pode ser cega, porque quando “a humanidade fica embriagada com o heroísmo do
suicídio coletivo, ela tem o poder de realizá-lo e ninguém pode impedi-lo”. 238 Donde o
sentido da crítica da razão utópica:

Com a modernidade, a própria razão se tornou utópica. Toda a razão moderna


gira em torno do problema do possível e do impossível. Por isso o problema
da utopia se encontra em todos os pensamentos que apareceram na
modernidade, inclusive na pós-modernidade, a qual, por outra parte, é preciso
interpretar como uma variação da modernidade, e nada mais.239

A crítica à razão utópica não significa, no entanto, rejeição da utopia em si.


Isso significaria justamente endossar o discurso ideológico da sociedade para a qual não
hã alternativa. Ora, o desejo de uma civilização planetária, como alternativa para um
mundo diferente, é uma perspectiva de sociedade em construção. Daí o sentido do
“realismo em política como arte do possível”, como propõe Hinkelammert. Em outras
palavras, “a política, como arte do possível, entra na consciência atual a partir do
momento em que o ser humano começa a modelar a sociedade segundo projetos de uma
sociedade que está para ser feita”.240
Para tanto, é preciso abrir espaço para que a vida para todos, assegurando a
satisfação das necessidades, seja viável. Não há política do possível se não são
atendidas as condições básicas do viver. Lembrando Marx, “parece ser correto
começarmos pelo real e concreto, pelo pressuposto efetivo, e, portanto, no caso da
economia, começarmos pela população, que é o fundamento e o sujeito do ato social de
produção como um todo.”241 Por conseguinte, de acordo com Hinkelammert, “diante de
necessidades, aparece como uma exigência da possibilidade de viver e como raiz da
legitimidade de todas as legitimidades”.242
O confronto e a transformação das realidades que produzem morte, sofrimento,
que impedem o florescer da vida, impõem-se como um imperativo ético. “Uma
sociedade que não garanta a vida para todos, assegurando a satisfação das necessidades,
é impossível no sentido de ser sustentável”. 243 Isso significa testemunhar a justiça, para
além de qualquer estrutura social ou dos rigores da dura Lex. É um sentido ético que
brota do rosto do outro, como morada da palavra de Deus. Porque, no dizer de
238
HINKELAMMERT, 2013, p. 321.
239
HINKELAMMERT, 2013, p. 321.
240
HINKELAMMERT, 2013, p. 383.
241
MARX, Karl. Grundrisse: esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 55
242
HINKELAMMERT, 2013, p. 338.
243
HINKELAMMERT, 2013, p. 386.
46

Casaldáliga, “Deus é só amor. Nós somos amor, egoísmo e medo... mas também
esperança”.244
Concluindo esta parte, com as palavras de Lévinas, “[...] é em nome da
responsabilidade por outrem, da misericórdia, da bondade às quais apela o rosto do
outro homem que todo discurso da justiça se põe em movimento [...]. Justiça sempre a
ser aperfeiçoada contra suas próprias durezas”.245 Daí o sentido de uma economia para a
vida, como um ponto de partida para a construção de uma sociedade ética e uma
necessária utopia do outro mundo possível que a Teologia da Libertação, desde uma
realidade de „terceiro mundo‟, compartilha o salutar e justo desejo de uma civilização
planetária, como tarefa e esperança que se faz caminho.

7 A necessária utopia do outro mundo possível

De qualquer forma, permaneço cosmopolita em minha visão; em meus


pensamentos, sou livre como um falcão. A âncora de todos os meus sonhos é
a sabedoria coletiva da espécie humana como um todo. Sou mais do que
nunca influenciado pela convicção de que a igualdade social é a única base da
felicidade humana.246

A tarefa principal deste trabalho não é discutir processos educativos. Porém,


como demarcação política e epistemológica, está a responsabilidade implicada na
educabilidade do humano que, não obstante às constantes frustrações, sou interpelado
pela fé e esperança porque continuamente uma „criança nasce‟ – Boa Nova!. Nas
palavras de Arendt, entendo que “a educação é o ponto em que decidimos se amamos o
mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo
da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens”.247
A palavra „cultura‟, como nos lembra Arendt, do latim colere, significa
“cultivar, habitar, tomar conta, criar e preservar – e relaciona-se essencialmente com o
trato do homem com a natureza, no sentido do amanho [cultivo] e preservação da
natureza até que ela se torne adequada à habitação humana”. 248 Ou seja, o conceito de
cultura “indica uma atitude de carinhoso cuidado e se coloca em aguda oposição a todo
esforço de sujeitar a natureza à dominação do homem”. 249 O ser humano cria a cultura

244
CASALDÁLIGA, 2007, p. 286.
245
LÉVINAS, Emmanuel. Entre nós: ensaios sobre a alteridade. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 294.
246
MANDELA, 2010, p. 181.
247
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 247.
248
ARENDT, 2009, p. 265.
249
ARENDT, 2009, p. 265.
47

e, desse modo, no dizer de Ruiz, “o mundo se transforma num imenso caleidoscópio de


valorações, práxis, funções, crenças, filosofias, tecnologias, instituições, estruturas e
relações”.250 Por isso que se pode referir, por exemplo, em culturas de paz ou de
violência enquanto processos educativos.
Somos herdeiros e participantes de um processo civilizatório que revela, ao
mesmo tempo, grandeza e horror, sublimidades e atrocidades, esplendores e misérias.
Não se pode subestimar a capacidade humana para realizar tanto o bem como o mal. O
homo vivens é ao mesmo tempo sapiens e demens, como bem lembra Morin.251 Porém,
essa condição paradoxal, que revela a complexidade humana, não implica derivar uma
compreensão maniqueísta da realidade, no sentido de que o homo vivens seria
essencialmente „lobo ou cordeiro‟, bom ou mau, puro ou impuro, corruptível ou
benevolente.
Aliás, o maniqueísmo 252 que se constituiu num dos ingredientes da mistificação
ideológica de sistemas e regimes, tanto religiosos como políticos, que escravizam,
torturam, destroem, assassinam. É o mesmo maniqueísmo incrustado na “teologia
neoliberal”253 que, em nome do „deus mercado‟, sataniza os movimentos sociais que
reivindicam trabalho, pão, saúde, teto, educação, cultura, em suma, vida digna. No dizer
do economista Dowbor,

Frequentemente vemos atos violentos justificados com fins altamente morais.


Não há barbárie que não se proteja com argumentos de elevada nobreza.
Sentimento que permite soltar as rédeas do ódio, aquele sentimento
agradável de odiar com boas razões. A Marcha da Família com Deus pela
Liberdade representou um marco histórico da hipocrisia na defesa de
privilégios. [...] As invasões de países se dão em geral para proteger as
populações indefesas, as ditaduras para salvar a democracia [...].254

A rejeição da visão maniqueísta, mesmo em situações difíceis, em que o


sentido do humano parece estar carcomido pela barbárie, permite lembrar, nas palavras
de Ítalo Calvino, “que o inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já

250
RUIZ, Castor. As encruzilhadas do humanismo: a subjetividade ante os dilemas do poder ético.
Petrópolis: Vozes, 2006, p. 32.
251
Cf. MORIN, Edgar. Amor, poesia, sabedoria. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001, p. 07.
252
Cf. COSTA, Marcos Roberto Nunes. O problema da moral no sistema cosmológico, soteriológico,
necessitarista maniqueísta. Anales del seminario de historia de la filosofía, Madrid, vol. 21, 2004, p.
25-42: “Os maniqueus acreditavam que no homem há uma alma ontologicamente boa, um „eu original‟,
consubstancial com Deus ou o Bem, mas que na sua fusão com o corpo, se vê envenenada por tendências
perversas, passando a ser uma alma má, um „eu demoníaco‟, uma „consciência sombria‟ ou uma
„inteligência obscura‟ [...].”
253
HINKELAMMERT, 2013, p. 194.
254
DOWBOR, Ladislau. Esquerda e direita frente à ética. Disponível em: < http://dowbor.org/ladislau-
dowbor>. Acesso em: 06. maio.2014
48

está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos.
Existem duas maneiras de não sofrer”. E quais são elas? Diz o autor: “a primeira é fácil
para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar
de percebê-lo”. Ou seja, este é o estado da indiferença, do „estou nem aí‟, do narcisismo,
é a sementeira do fascismo. Por seu turno, “a segunda [maneira] é arriscada e exige
atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do
inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço”.255 Significa, então, abrir espaço à
esperança, mesmo que esta não seja permitida.
Por isso, a rejeição da visão maniqueísta permite recepcionar o viver do
humano que se abre a novas possibilidades, numa relação dialógica, de aprendência,
porque o aprender é um contínuo abrir-se ao outro.256 O humano que se abre ao outro
humano dignifica a própria vida, numa relação que é de humanização, isto é, de
libertação. Por conseguinte, o homo vivens transcende ao mundo natural, criando um
horizonte que lhe é todo peculiar, que é o mundo da cultura.
A realidade cultural não se opõe ao processo biológico que compõe também a
vida humana. Ambas as dimensões, cultural e biológica, indicam que a vida humana
não é apenas um conceito, uma ideia, mas uma realidade concreta a partir da qual o
homo vivens estabelece inter-relações e cria suas próprias possibilidades de realização
do viver, possibilitando a superação, pelo menos em parte, de suas incongruências. E
isso não é diferente quando se pensa a dimensão da economia.

O conteúdo da universalidade ética se revela a partir da vida que pulsa na


concretude do humano e da natureza. Em outras palavras, a vida concreta se apresenta
como sentido ético que oferece uma orientação, que expressa o desejo de uma
“sociedade na qual caibam todos os seres humanos, mas igualmente a natureza externa
ao ser humano. Trata-se ao mesmo tempo da concepção de um mundo no qual cabem
muitos mundos e diferentes culturas”. 257
A expressão do desejo que seja possível um outro mundo, para o qual é preciso
caminhar, “é o mundo que o sistema dominante torna impossível. É o mundo que o
sistema chamado globalização exclui”. 258 Entretanto, desde a perspectiva ética,
“podemos efetuar a crítica ao sistema vigente a partir do qual o imaginário do mundo no

255
CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo:Companhia das letras, 1990, p. 150.
256
DALLA ROSA, 2012, p. 185.
257
HINKELAMMERT, 2003, p. 19.
258
HINKELAMMERT, 2003, p. 20.
49

qual todos caibam”. 259 Ou seja, ao lado da dimensão crítica, implica-se a perspectiva
orientativa que diz: “o mundo no qual caibam todos os seres humanos – e natureza
igualmente – é uma exigência. De fato, expressa uma ética que hoje se impõe, se a
humanidade quiser sobreviver. É a ética do mundo sustentável”. 260
Em si, a ética não é “um projeto de sociedade, pois não tem um projeto de um
sistema de instituições – sistema de propriedade, sistema político, sistema social – para
implantar em função de uma sociedade em que todos caibam”. 261 Em outras palavras, o
sentido do ético não pode ser reduzido a qualquer esquema, tanto em nível de reflexão
como de prática. Entretanto, no dizer de Hinkelammert, a ética “dá o critério para a
constituição de instituições e um critério para criticá-las sob sua luz, mas é antes a
exigência de constituir tal sistema de instituições, que permita que todos caibam”. 262
A partir do sentido ético, as instituições devem estar orientadas em função da
vida como uma condição sine qua non. Trata-se de pensar a ética da economia, da
política, da educação, assim por diante, como uma condição inerente, em que a vida é a
razão incontornável. “A condição da necessária reprodução da vida humana é o critério
para julgar sobre qualquer ética e qualquer estrutura possível”. 263 É a vida que deve
orientar as instituições e não o inverso, como ocorreu na sociedade industrial socialista,
sistema de propriedade estatal, e capitalista, sistema de propriedade privada. Para o
autor, “a discussão sobre o planejamento econômico torna-se difícil à medida que é feita
a partir de uma polarização excludente e maniqueísta que conduz, então, à alternativa:
ou mercado ou planejamento”.264 De fato, ambos os sistemas “não deixam liberdade
diante da constituição das instituições. Elas são deduzidas de princípios abstratos, dando
lugar a um humanismo abstrato que, em última análise, destrói a própria
humanidade”.265 E, do mesmo modo, destrói a natureza.
A utopia é a expressão de um imaginário de sociedade desejada pela
humanidade. Trata-se de um horizonte que, como perspectiva de realização, encontra-se
sempre adiante da condição humana. O imaginário – a utopia – de uma sociedade na
qual caibam todos e todas é o horizonte necessário e salutar à humanidade. A partir
desse imaginário, desponta o princípio que orienta os passos de uma sociedade que

259
HINKELAMMERT, 2003, p. 20.
260
HINKELAMMERT, 2003, p. 20.
261
HINKELAMMERT, 2003, p. 20.
262
HINKELAMMERT, 2003, p. 20.
263
HINKELAMMERT, 2013, p. 387.
264
HINKELAMMERT, 2013, p. 341.
265
HINKELAMMERT, 2003, p. 20.
50

busca construir projetos – que inclui as instituições – de um mundo sustentável e


inclusivo. A utopia está sempre adiante, sinalizando um caminho sempre inconcluso.
Certo, conforme frisa Hinkelammert,

[...] cada realismo político tem que se defrontar sempre com o perigo que
surge do utópico. Ninguém pode saber a priori quais fins políticos se
revelam, no final das contas, como utópicos e quais não. Não há certeza que
poderia substituir a necessária sabedoria política. Não há critérios técnicos,
válidos em última instância, que estejam à disposição. Onde quiserem
substituir a sabedoria política por critérios técnicos é preciso suspeitar que se
quer fazer política em nome de alguma societas perfecta que, novamente, e
sempre, reivindica o fim da história.266

Por mais que se oriente a partir da utopia desejada, um projeto político é sempre
algo parcial, um passo no caminho que se constrói, dia a dia, sem a imposição que
desencadeia a violência e a instrumentalização. Desse modo, “um projeto
correspondente ao imaginário de uma sociedade na qual caibam todos não pode ser
nunca um projeto definitivo de instituições definitivas”.267 Um projeto de sociedade, em
que todos e todas caibam, não é um programa de governo, mas constitui-se em “projeto
em função do qual se devem e se podem exercer pressões para se chegar a negociar
programas de governo que assumam o projeto em geral ou parcialmente”.268
Encontramo-nos diante de um contexto em que as relações de poder estão muito
distantes de se orientarem pela perspectiva ética. As relações de poder que se baseiam
em princípios do mercado capitalista tornam “totalmente impossível garantir um
desenvolvimento sustentável para a humanidade”. 269 Entretanto, essa impossibilidade
não impede e não muda a responsabilidade ética de se lutar por projetos alternativos. De
certa forma, abrir mão da busca por projetos correspondentes à utopia de uma sociedade
inclusiva, significaria colaborar com o atual processo de destruição que se impõe sobre
a natureza e a própria humanidade. Dito de outra forma, no dizer de Hinkelammert,
seria aceitar “as relações de poder [que] programam [...] o suicídio coletivo da
humanidade e declaram a impossibilidade de se opor à paranoia”. 270
O processo mais visível de globalização, que tem suas raízes no século XVI,
“reside na crescente interdependência de todas as economias e na integração de todos os
mercados, formando o mercado total”.271 Ao redor do mercado total, “desencadeia-se a

266
HINKELAMMERT, 2013, p. 401.
267
HINKELAMMERT, 2003, p. 20.
268
HINKELAMMERT, 2003, p. 20.
269
HINKELAMMERT, 2003, p. 20.
270
HINKELAMMERT, 2003, p. 20.
271
BOFF, 2003, p. 37.
51

globalização da economia, da ciência e da tecnologia, da comunicação, da


informatização e das tendências dominantes da cultura central”. 272 Não se trata ser
simplesmente contra ao mercado ou à globalização. A questão problemática está no
modelo de mercado que se fortaleceu sob o prisma capitalista neoliberal. “Neste
mercado só se entra pela competitividade, que, por sua vez, possui uma lógica
excludente. Só são competitivas as empresas e nações que utilizam as tecnologias mais
avançadas, raramente passadas aos demais.” 273
A solidariedade e a cooperação internacional não se sobressaem na perspectiva
neoliberal. As nações excluídas, para que possam obter um lugar ao sol na lógica da
globalização, devem se submeter às políticas econômicas e sociais impostas pelo
mercado. Nesse contexto, as consequências sobre as populações são bem mais perversas
do que no tempo da colonização, observa Boff. As individualidades, as diferenças
culturais são destruídas. De fato, “a globalização transforma tudo num imenso Big Mac,
o mesmo estilo de hotéis, de vestuário, de filmes, de vídeos, de música, de programas de
TV”.274 No fim das contas, universaliza-se a ideia de que é esse o único modelo de
democracia que deve imperar. E em nome dessa democracia neoliberal, fazem-se até
guerras.
Se esse é o processo de globalização que tem se apresentado como hegemônico,
não significa que não há outras possibilidades de se pensar e concretizar o caminho para
uma civilização planetária. Porém, assim como Hinkelammert, Boff entende que os
esforços para buscar uma civilização planetária, em que a vida humana e da natureza
sejam acolhidas e respeitas em sua dignidade – condição ética – não passam nem pelo
individualismo capitalista nem pelo coletivismo socialista, mas sim mediante uma
“democracia social e participativa”.275 De fato, como conteúdo da democracia desejada,
“precisamos fazer uma autocorreção com referência à concepção do ser humano, à
integração do feminino e à aliança com a natureza. Daí podem nascer a nova
espiritualidade e o fio que tudo re-liga”.276
Ainda nas palavras de Boff, “para superarmos a crise precisamos elaborar um
novo sonho e articular um novo sentido de vida”. 277 Na verdade, trata-se de resgatar a
compreensão de que o ser humano “é um nó de relações, voltado para todas as direções.

272
BOFF, 2003, p. 80.
273
BOFF, 2003, p. 82.
274
BOFF, 2003, p. 82.
275
BOFF, 2003, p. 92.
276
BOFF, 2003, p. 92.
277
BOFF, 2003, p. 91.
52

Isso significa que ele é pessoa, quer dizer um ser aberto (ex-istência) a dar e a receber, à
participação, à solidariedade e à comunhão”.278 É nesse sentido que podemos compor “o
nosso sonho uma humanidade comunitária, participativa, solidária e espiritual”. 279 Esse
é o significado de uma democracia social e participativa, que “se abre à dimensão
cósmica, pois não podemos existir sem a comunidade de vida (meio ambiente) da qual
dependemos em nossa existência”.280
Que seja possível a plena realização de uma civilização planetária, enquanto
sentido de utopia, trata-se de um horizonte que está além da condição humana. Porém,
como escreve Hinkelammert, é necessário “conceber utopias, pois sem elas não seria
possível conhecer os limites da condição humana”. 281 A utopia provoca a realização de
passos rumo a um caminho de dignificação da vida. Concretamente, nas palavras de
Harvey,

Na medida em que todos os mercados de trabalho são locais, e mais ainda


para os trabalhadores do que para os capitalistas, as solidariedades sociais e
políticas, se quiserem significar alguma coisa, têm na primeira instância de
ser construídas sobre uma base geográfica local, antes que qualquer
movimento nacional ou internacional possa tornar possível. 282

Na linha do que escreve Boff, “o horizonte de esperança que está surgindo


radica num patamar de consciência que, por sua vez, se assenta sobre uma nova
experiência: a experiência de que um outro mundo é possível”. 283 Para a formação dessa
nova consciência, a luta por um mundo novo, certamente, iniciativas como a do Fórum
Social Mundial são importantes, na medida em que se propõem serem espaços para o
surgimento e fortalecimento, em cada país ou em nível mundial, de um novo ator
político, a sociedade civil. 284 Os passos que a humanidade realiza, rumo ao horizonte de
esperança – utopia –, não são utópicos, mas sinalizam a construção de um caminho,
como resgate do sentido da própria vida. Afinal, como diz Galeano, “a verdade está na

278
BOFF, 2003, p. 91.
279
BOFF, 2003, p. 93.
280
BOFF, 2003, p. 94.
281
HINKELAMMERT, 2003, p. 21.
282
HARVEY, David. O enigma do capital e as crises do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2011, p.
58.
283
BOFF, 2003, p. 111.
284
Sobre o Fórum Social Mundial (FSM), cf. WHITAKER, Chico. O desafio do Fórum social Mundial:
um modo de ver. São Paulo: Loyola; Perseu Abramo, 2005, p. 21, trata-se de um processo que “torna
evidente que não será por meio dele que construiremos o „outro mundo possível‟. Ele não mudará o
mundo; quem o mudará é a sociedade. o Fórum cumpre, na luta pela mudança, um papel unicamente
intermediário. Para que possamos atingir esse objetivo, ele dá uma contribuição específica, diferente
daquela que devem dar os demais instrumentos de ação política. E essa diferença o caracteriza como um
meio a serviço desses instrumentos.”
53

viagem, não no porto”.285 Esse é o conteúdo ético que perpassa também o âmbito da
economia, assunto este que será desdobrado no capítulo que segue.

285
GALEANO, Eduardo. De pernas para o ar: a escola do mundo avesso. Porto Alegre: L&PM, 1999,
p. 336.

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