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A FILOSOFIA SOCIAL DE SMITH

O sistema econômico de Smith, como o dos fisiocratas, está intimamente


vinculado à sua doutrina do direito natural. Na Inglaterra do século XVIII, tal como
na França do mesmo período, a burguesia, como vimos, ainda não conseguira
emancipar plenamente a economia capitalista das amarras de uma legislação
antiquada. É compreensível, portanto, que ela tentasse santificar suas demandas de
classe (que, nesse período, coincidiam com os interesses do desenvolvimento
econômico nacional) com a autoridade de um direito eterno, racional, "natural". Mas
é digno de nota que as visões de Smith sobre o direito natural partem
fundamentalmente daquelas de Quesnay. A ideia de direito natural era central para
o sistema de Quesnay. Em sua visão, qualquer legislação positiva que contrariasse
o direito natural traria a ruína ao país e a degradação de sua economia: o progresso
econômico ou a regressão depende do cumprimento ou da violação dos imperativos
do direito natural.
Smith atribui à legislação um impacto mais modesto sobre a vida econômica.
Escrevia ele:

O sr. Quesnay parece ter [...] imaginado que [o corpo político] prospera
apenas sob um certo regime, o exato regime da perfeita liberdade e perfeita
justiça. Ele parece não ter considerado que, no corpo político, o esforço
natural que todo homem faz continuamente para melhorar sua própria
condição é um princípio da preservação capaz de prevenir e corrigir, em
muitos aspectos, os maus efeitos de uma política econômica que, em certa
medida, é parcial e opressiva. Uma tal política econômica, embora possa
retardá-lo em maior ou menor grau, nem sempre é capaz de bloquear
plenamente o progresso natural de uma nação ruma à riqueza e à
prosperidade, e menos ainda de fazê-la regredir.

O progresso econômico abre uma via para si mesmo, independentemente da


influência retardadora da má legislação que viola os princípios do direito natural.
A explicação dessa nítida divergência entre as visões de Quesnay e Smith
reside nas diferentes condições econômicas da França e da Inglaterra no século
XVIII. Na França, a agricultura capitalista era menos um fenômeno econômico
efetivamente existente do que um slogan fisiocrata que ainda estava para ser posto
em prática. Dados os resquícios feudais e a monarquia absoluta na França, o
desenvolvimento extensivo do capitalismo era genuinamente impossível sem uma
revolução social e política e a implementação da lei natural da sociedade burguesa.
Isso demonstra a extrema importância do direito natural no sistema de Quesnay. No
século XVIII, a Inglaterra encontrava-se numa situação diferente. Apesar da
contínua dominação política da oligarquia rural, as precondições sociais básicas
para o desenvolvimento do capitalismo já estavam presentes. A economia
capitalista se desenvolvia rapidamente, seja rompendo, seja burlando as restrições
das guildas ou do sistema mercantilista, que, mesmo desacelerando seu
crescimento, não eram capazes de detê-lo - daí a visão de Smith de que o
progresso econômico é contínuo mesmo onde a legislação é má e contradiz os
princípios do direito natural.
Desse modo, para Smith, as forças econômicas se mostram mais fortes do que
os obstáculos legais e políticos. Disso se segue um importante princípio
metodológico: é possível estudar a ação das forças econômicas independentemente
do ambiente legal e político no qual essa ação se dá. Smith, nesse sentido, corta
cuidadosamente o cordão umbilical que liga a economia política ao direito natural -
cordão que, para Quesnay, constituía um elo irrompível. A economia política se
torna uma ciência independente, e esta é uma das grandes realizações da escola
clássica. De outro lado, o terreno é preparado para a atribuição de leis econômicas
eternas e imutáveis a condições sociopolíticas historicamente transitórias e
alteráveis, e este é um dos defeitos da escola clássica. Em sua visão, a natureza
das forças econômicas não é alterada, mesmo que sejam compelidas a operar em
diferentes meios sociais. Aos olhos de Smith, a vida econômica é uma combinação
de forças econômicas cuja natureza não se altera e de condições históricas cuja
natureza é alterada; as últimas aceleram ou desaceleram o movimento das
primeiras, porém não modificam sua natureza. Embora um interesse nas mudanças
das condições históricas não seja estranho a Smith, ele considera como principal
tarefa do economista estudar a atividade das forças econômicas que são, por
natureza, imutáveis.
Em que consistem essas forças econômicas? Como fica claro na passagem
acima citada, Smith tem em mente "o esforço natural que todo homem faz
continuamente para melhorar sua própria condição". Esses esforços naturais de
cada indivíduo são um estímulo perpétuo ao progresso económico. A constância e a
imutabilidade de sua ação brotam da constância da natureza humana. O homem,
que, por sua natureza é egoísta, age sempre para melhorar sua própria condição,
tem "muito mais interesse naquilo que lhe concerne diretamente do que naquilo que
concerne a outros". Na teia complexa e mutável dos fenômenos econômicos,
encontraremos uma força constantemente atuante: "o esforço uniforme, constante e
ininterrupto de cada homem para a melhoria de sua condição, princípio do qual
derivam originalmente a opulência pública e nacional, bem como a opulência
privada". Para Quesnay, a condição necessária para o progresso econômico era a
implementação de um sistema imutável de direito natural; para Smith, tal condição é
a atividade da natureza imutável do "homem econômico". Ocupando o núcleo da
escola clássica, o tipo do "homem econômico", que age de modo independente na
busca de seus próprios interesses pessoais por meio da livre concorrência com
outros, é nada mais do que uma idealização do produtor independente de
mercadorias vinculado a outros membros da sociedade por relações de troca e de
concorrência. Os economistas clássicos tomavam a natureza socialmente
condicionada e historicamente mutável do produtor de mercadorias e a elevavam à
condição de essência naturalmente condicionada e imutável do homem.
Como a aspiração do indivíduo à melhoria de sua situação é derivada da
constância da natureza humana, é óbvio que ela estará presente em todas as
épocas históricas e sob quaisquer condições sociais. Smith desafia a visão (que ele
atribui a Quesnay) de que o indivíduo exibe esse esforço apenas sob condições de
plena liberdade. Para Smith, isso já se manifestava muitos séculos antes de a
liberdade plena (isto é, a ordem burguesa) estar realizada, impondo-se contra a má
administração e legislação. Condições sociais desfavoráveis são certamente
capazes de nistração e legislação. Condições sociais desfavoráveis são certamente
capazes de retardar a atividade dessas forças econômicas. Sob a escravidão, por
exemplo, os trabalhadores não tinham qualquer interesse pessoal no progresso da
produção, ao passo que, "ao contrário, quando lhes é assegurado o usufruto dos
Produros de sua indústria, eles se esforçam naturalmente para melhorar sua
condição". A natureza humana invariável se manifesta de modo mais premente sob
condições sociais definidas, especialmente aquelas da ordem burguesa baseada na
propriedade privada e na concorrência irrestrita. No entanto, em vez de explicar a
natureza do homem-como-produtor-de-mercadorias a partir das condições de seu
sistema social. Smith vê este último apenas como uma condição adicional para a
plena exteriorização das forças individuais localizadas no interior da natureza
permanente do homem. A vitória de um sistema social sobre outro (o burguês sobre
o feudal) aparece para Smith (assim como para outros membros do Iluminismo do
século XVIII) como uma vitória da natureza humana "natural" e "imutável" sobre as
instituições sociais "'artificiais" do passado. E como as novas instituições sociais
burguesas são uma condição necessária para a manifestação completa da natureza
invariável do indivíduo, elas assumem o caráter de formas eternas, "naturais" da
economia.
Assim, o ponto de partida da investigação de Smith, seu abstrato homem
econômico, é estudado, por assim dizer, no interior de um ambiente burguês, isto é,
da economia capitalista de mercadorias. Essa abstração de fatores sociais, mesmo
com todos os erros que ela produziu na avaliação de tais fatores sob o prisma da
“natureza” humana, provou ser a salvação da teoria clássica, pois permitiu que ela
se tornasse uma teoria da economia capitalista de mercadorias.
Como Smith transpõe o hiato de que separa indivíduo abstrato da sociedade
capitalista de mercadorias? Fiel aos seus princípios individualistas originais, Smith
se move a partir do indivíduo em direção à sociedade. Ela é composta de indivíduos
separados, independentes: o fenômeno social é o resultado desses diferentes
indivíduos em interação uns com os outros; a unidade social (na medida em que
estamos falando do lado econômico da sociedade) é produzida a partir desses
interesses individuais, e sua coesão é mantida por meio deles. No que diz respeito a
seus contatos econômicos, cada indivíduo se relaciona com outros apenas na
medida em que isso é ditado pelos seus próprios interesses pessoais e enquanto
ele obtém com isso alguma forma de rendimento. A forma desse intercurso é a
troca. “A propensão a negociar, permutar e trocar uma coisa por outra” é um
princípio essencial da natureza humana. Essa característica permanente permite
que os indivíduos entrem juntos numa sociedade de troca.
A sociedade, vista como uma unidade econômica, é uma sociedade de troca na
qual indivíduos entram movidos por seus interesses pessoais. Já na obra inicial de
Smith, Teoria dos sentimentos morais, encontramos esta passagem extremamente
reveladora:

A sociedade pode consistir de diferentes homens, como de diferentes


mercadores, a partir de um sentido de sua utilidade, sem que precise haver
qualquer amor ou afeição mútuos; e embora nenhum homem na sociedade
carregue qualquer obrigação ou esteja vinculado a um outro por gratidão, ela
ainda pode se manter coesa por uma troca mercenária de bons ofícios de
acordo com um valor consentido.

Smith concebe o intercurso econômico entre as pessoas como uma forma de


troca, em outras palavras, como intercurso econômico entre possuidores de
mercadorias. Ele desenvolve essa ideia no segundo capítulo do livro I da Riqueza
das nações:

Mas o homem tem quase sempre necessidade da ajuda de seus irmãos, e


seria em vão ele esperar essa ajuda apenas de sua benevolência. É mais
provável que ele a obtenha se conseguir mover a seu favor o amor-próprio
dessas pessoas, mostrando-lhes que é para sua própria vantagem que elas
fazem por ele aquilo que lhes pede. Quem quer que ofereça a outrem uma
barganha de qualquer tipo escara fazendo uma tal proposta. Dê-me aquilo
que quero e você terá aquilo que quer é o significado de qualquer oferta
desse tipo; e é desse modo que obtemos uns dos outros a maior parte
daqueles bons ofícios de que necessitamos. Não é da benevolência do
açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que obtemos nosso jantar, mas de
sua preocupação com seus próprios interesses.

Um interesse pessoal individual o torna apto a estabelecer trocas com outras


pessoas; e a aspiração à troca, como veremos, produz, por sua vez, a divisão do
trabalho entre as pessoas.
O argumento acima apresentado caracteriza de modo nítido o método
individualista e racionalista de Smith. Ele explica a origem das mais importantes
instituições sociais (nesse caso, a troca e a divisão do trabalho) a partir da natureza
imutável do indivíduo abstrato - seu interesse pessoal e sua busca consciente do
maior rendimento possível. Por isso ele atribui ao homem abstrato motivos e
aspirações (aqui, a inclinação à permuta ou à troca) que são, na verdade, o
resultado da influência exercida sobre o indivíduo por essas mesmas instituições
sociais (a divisão do trabalho e a troca) por longos períodos de tempo - influências
que ele apresenta, então, como meios de explicação dessas instituições. Smith
deduz da natureza do homem as instituições socioeconômicas básicas que
caracterizam a economia capitalista de mercadorias; o que ele toma como natureza
humana, no entanto, é a natureza determinada do homem tal como ela ganha forma
sob a influência da economia capitalista de mercadorias.
Smith aplica esse mesmo método de mover-se do indivíduo para a sociedade
quando explica outras instituições socioeconômicas. Ele explica o aparecimento do
dinheiro pelo simples fato de que, em razão da inconveniência da troca in natura,

qualquer homem prudente em qualquer período da sociedade, após o


primeiro estabelecimento da divisão do trabalho, tem naturalmente de ter
procurado administrar seus negócios de maneira a ter sempre consigo, além
dos produtos peculiares de sua própria indústria, também certa quantidade
de uma ou outra mercadoria, visto que ele imagina ser provável que algumas
poucas pessoas recusem efetuar a troca por produtos de sua indústria.

As palavras que destacamos são aquelas que caracterizam de modo especial o


método de Smith. A explicação das instituições sociais deve ser buscada na
natureza de “cada homem”, isto é, nos interesses pessoais de cada indivíduo; por
isso chamamos o método de Smith de individualista. Também o chamamos de
racionalista porque, ao falar sobre o homem “prudente”, que pesa
conscienciosamente suas vantagens, Smith toma o cálculo racional dos benefícios e
perdas inerentes a distintas atividades econômicas - cálculo que só se desenvolve
no seio da altamente desenvolvida economia capitalista e de mercadorias - como
uma propriedade da natureza humana em geral. Além disso, essas ações do
indivíduo ocorrem “em qualquer período da sociedade” (uma vez que a divisão do
trabalho tenha sido estabelecida); essa asserção revela a natureza anti-histórica do
método de Smith. Finalmente, Smith considera essas atividades do indivíduo como
“naturais”; aqui, Smith baseia-se na teoria do direito natural, ao mesmo tempo que
introduz melhorias importantes sobre as quais nos deteremos mais adiante.
De acordo com a concepção sociológica básica de Smith, os fenômenos
socioeconômicos resultam das ações de indivíduos tais como ditadas pelo interesse
pessoal; disso se segue - e essa conclusão é extremamente importante que os
fenômenos econômicos têm um caráter "natural”. O conceito de "natural" é usado,
aqui, em dois sentidos diferentes, um teórico e outro prático. A proposição básica do
sistema teórico de Smith afirma que os fenômenos econômicos possuem uma
regularidade inerente, "natural" e determinada por leis, que existe
independentemente da vontade do Estado e é baseada nas inclinações "naturais"
imutáveis do indivíduo. A proposição básica da política econômica de Smith afirma
que apenas quando os fenômenos econômicos se dão "naturalmente", sem
constrangimentos do Estado, eles trazem o máximo benefício, tanto para o indivíduo
como para a sociedade como um todo. A primeira dessas proposições fez de Smith
um dos fundadores dos economistas teóricos; a segunda fez dele o arauto do
liberalismo econômico.
Comecemos com a segunda proposição. Uma vez que o interesse pessoal do
indivíduo é visto como o estímulo do progresso econômico e como fonte de todas as
instituições econômicas, é preciso que seja dada ao indivíduo a possibilidade de
desenvolver livremente seus poderes econômicos sem nenhum tipo de obstáculo. O
principal preceito da política econômica é a liberdade da atividade econômica
individual e a eliminação da interferência estatal. Não há nenhum perigo de que, na
luta por seu próprio interesse pessoal, o indivíduo venha a violar os interesses da
sociedade; os interesses do indivíduo e da sociedade estão em completa harmonia.
De sua interação mútua como indivíduos - cada um dos quais perseguindo apenas
seus interesses pessoais corretamente entendidos - surge a mais valiosa das
instituições sociais, que, por sua vez, alimenta um enorme crescimento na
produtividade do trabalho: a divisão do trabalho, a troca, o dinheiro, a acumulação
de capitais e sua distribuição adequada entre os diferentes ramos da produção. O
indivíduo, "ao buscar seu próprio interesse [ ... ], promove frequentemente o
interesse da sociedade de modo mais efetivo do que o conseguiria, caso quisesse
promovê-lo realmente. Assim,

cada homem, na medida em que não viola as leis da justiça, é deixado


perfeitamente livre para buscar seu próprio interesse da forma como
achar melhor e para colocar tanto sua indústria como seu capital em
concorrência com aqueles de um outro homem, ou conjunto de
homens. O soberano é completamente livre de um dever no
cumprimento do qual ele estará sempre exposto a inúmeras ilusões e
que requer algo que nenhuma sabedoria humana jamais poderá
fornecer: o dever de supervisionar a indústria das pessoas privadas e
de direcioná-la aos empregos mais adequados ao interesse da
sociedade.

O governo não interfere na vida econômica e preserva para si apenas as funções


modestas de defender a segurança externa do país, protegendo os indivíduos da
opressão por outros membros da sociedade e dedicando-se a certas realizações
sociais. A vida econômica é totalmente entregue à atuação livre dos interesses
individuais. Smith, como os fisiocratas, esperava que a realização desse "sistema
óbvio e simples da liberdade natural” resultasse no máximo benefício, tanto para a
sociedade como um todo como para as classes singulares da população.
As visões otimistas de Smith - que, com todas as reservas que depôs sobre
elas, fizeram dele o fundador do liberalismo econômico - só podiam aparecer numa
época em que a burguesia industrial ainda desempenhava um papel progressivo e
seu interesse coincidia com as necessidades do desenvolvimento econômico global
da sociedade. O objetivo de Smith nunca foi defender os interesses estreitos de
mercadores e industriais, aos quais ele não nutria qualquer simpatia particular. Ele
falou sobre a condição dos trabalhadores, frequentemente com um sentimento
fervoroso, e queria melhorá-la. Mas ele estava profundamente convencido de que
apenas com a completa liberdade de concorrência e com um poderoso
desenvolvimento da economia capitalista seria possível esperar obter qualquer
melhoria na posição das classes inferiores. Ele acreditava que a classe trabalhadora
compartilhava uma porção cada vez maior da massa crescente de riqueza da
sociedade capitalista. O desenvolvimento futuro do capitalismo provaria que as
expectativas otimistas de Smith eram equivocadas e desvendaria as contradições
inconciliáveis entre os interesses da burguesia, de um lado, e os da classe
trabalhadora e do desenvolvimento econômico da sociedade, de outro. Em sua
primeira época, o liberalismo otimista desempenhou papel positivo como um
instrumento para a libertação das forças produtivas da economia capitalista dos
grilhões do velho regime e do mercantilismo; posteriormente, porém, nas mãos de
Say, e especialmente de Bastiat, ele se converteu num instrumento de defesa do
capitalismo contra os ataques dos socialistas.
Smith, portanto, considerava os fenômenos econômicos da sociedade burguesa
“naturais”, no sentido de que eles haviam sido arranjados da melhor forma possível
e não demandavam nenhuma intervenção consciente de qualquer instituição estatal
ou da sociedade. Nesse sentido, identificar um fenômeno como “natural” é o mesmo
que julgá-lo como algo positivo. Aqui, ser “natural” significa que ele corresponde aos
princípios do direito natural. Adicionalmente ao uso do termo “natural” em sentido
valorativo, Smith também o emprega, no entanto, quando profere juízos puramente
teóricos, em que sua tarefa é investigar um fenômeno tal como ele existe,
independentemente de qualquer valoração positiva ou negativa. Aqui, identificar um
fenômeno como “natural” tem um sentido puramente teórico, indicando, como já
notamos, que os fenômenos econômicos possuem uma regularidade “natural”,
determinada por leis e independente de qualquer interferência do Estado. Quando
Smith diz que o “preço natural” (o valor) de uma mercadoria a substitui seus custos
de produção e obtém um lucro médio, ele quer dizer que, onde houver livre
concorrência e nenhuma intervenção do furado, os preços das mercadorias
seguirão uma tendência a se manterem no nível indicado. Esse nível normal,
estabelecido espontaneamente para o preço da mercadoria em questão, constitui
seu preço "natural". O que é "natural", nesse caso, é o resultado, alcançado de
modo regular e espontâneo sem que o Estado coloque qualquer constrangimento à
livre concorrência dos indivíduos. Por isso, o conceito “natural” abarca duas
características: 1) espontaneidade e 2) regularidade determinada por leis. Quanto à
primeira, um preço só é reconhecido como "natural" quando é o resultado
espontâneo da livre concorrência e do conflito dos interesses individuais; nesse
sentido, o preço "natural" (livre) tem de ser contraposto tanto ao preço "posto
legalmente"' o preço fixo estabelecido pelo Estado ou pelas guildas, quanto ao
preço "monopolista". Quanto ao segundo atributo, nem todo preço de mercado é
identificado como "natural", mas apenas "o preço centra em torno do qual os preços
de todas as mercadorias gravitam continuamente", em outras palavras, aquele nível
de preços que tem de ser estabelecido sob condições de equilíbrio de mercado,
onde há um equilíbrio entre oferta e demanda. Nesse sentido, Smith diferencia
preço “natural” (valor) - que expressa a regularidade determinada por leis dos
fenômenos do mercado - dos preços de “mercado”, que flutuam constantemente,
dependendo das flutuações na oferta e na demanda.
Esse segundo conceito de “natural” exerce uma função extremamente
importante no sistema teórico de Smith: ele fala de preço natural, de nível natural
dos salários, do lucro e da renda. Aqui, o conceito “natural” não significa que os
preceitos do direito natural são absorvidos, mas um reconhecimento da regularidade
espontânea e determinada por leis dos fenômenos do mercado. Embora Smith use
periodicamente o termo em seu primeiro sentido valorativo, ele o emprega com mais
frequência em seu segundo significado, puramente teórico; de todo modo, ele não
confunde os sentidos prático e teórico do termo. A transição smithiana de uma
compreensão valorativa para uma compreensão teórica do termo "natural"
representou um grande avanço para o estudo puramente teórico, científico-causal
dos fenômenos econômicos.
As investigações econômicas dos mercantilistas tinham um caráter prático;
suas obras eram preponderantemente uma coleção de prescrições práticas a serem
implementadas pelo Estado. O embrião de uma análise teórica que encontramos
com Petty teve pouco impacto sobre o rumo do pensamento mercantilista. Também
com os fisiocratas, a atenção não era focada tanto na investigação daquilo que
existe (isto é, dos fenômenos reais da economia capitalista) quanto na elaboração
daquilo que deveria existir (isto é, as condições que tinham de ser implementadas
para o florescimento da economia da nação). Eles consideravam suas leis e
proposições econômicas como prescrições do direito natural. É apenas porque
tomavam o capitalismo como a ordem natural ideal que a análise dos fisiocratas
contém valiosos elementos teóricos para a compreensão da economia capitalista.
Se o sistema mercantilista era por natureza prático, e se o dos fisiocratas era
teológico. Smith põe a si mesmo conscientemente a tarefa de estudar a economia
capitalista teoricamente. É verdade que questões de política econômica são, para
Smith, extremamente importantes e estão frequentemente entrelaçadas com suas
análises teóricas no curso de sua exposição; porém, no principal, esta é mantida
como metodologicamente distinta e isolada de suas considerações sobre questões
práticas· É verdade que alguns dos mais sérios erros de Smith podem ser
explicados por sua confusão enue problemas teóricos e práticos, mas não há nisso
nenhuma razão para surpresa: por ter se originado a partir de necessidades práticas
e ter se dissolvido em política econômica em seus estágios primitivos, a teoria
econômica não era imediatamente capaz de obter uma consciência clara de si
mesma como um método de análise teórica pura· De todo modo, a análise de Smith
representou um grande e decisivo avanço metodológico: ele pôs a economia política
no caminho do estudo teórico dos fenômenos reais da economia capitalista. Nisso
reside a reputação de Smith como fundador da economia política.

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