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300 ANOS DE ADAM SMITH A MORAL CAPITALISTA

‘Mão invisível’ demonstra um certo otimismo com relação à humanidade. Filósofo


acreditava que liberdade e manifestação do interesse próprio de cada indivíduo
conduziriam ao bem comum.

Filósofo moral. Assim, Adam Smith, que completaria 300 anos no dia 5 de junho de
2023, se definia, apesar de ser considerado o “pai” da economia moderna. Professor de
filosofia moral, das suas aulas resultaram suas duas obras mais famosas, que
praticamente poderiam ser consideradas como os livros didáticos do seu curso: “Teoria
dos sentimentos morais” e “Riqueza das nações”. Para entender a filosofia de Adam
Smith, e especialmente sua contribuição para a construção do capitalismo, parece que o
melhor caminho seja mesmo considerar esses dois livros como um só. O que tornaria
cada texto particular seria a abordagem sobre a convivência social: enquanto o primeiro
trata da conduta moral, isto é, o relacionamento social a partir do indivíduo, o segundo
estuda as relações entre as nações, vale dizer, entre agrupamentos de indivíduos. De um
lado, a moral individual; do outro, a moral coletiva. Nesse sentido, refletir sobre os
ensinamentos políticos e econômicos de Adam Smith, como a origem do capitalismo,
pressupõe inescapavelmente considerar sua visão sobre a moralidade, especificamente
sobre a origem da conduta moral da pessoa humana.

Como o título do seu primeiro livro já indica, existem sentimentos morais. Ao contrário
do que o pensamento ocidental acabou por privilegiar, os princípios morais não
decorrem da razão, não têm origem na razão, em uma visão a priori. Importante, desde
logo, esclarecer que a moralidade, com a conotação de Adam Smith e adotada neste
artigo, é o conjunto de “regras” que, quando seguidas, possibilita a convivência social.
A conduta moral, de um lado, não se identifica exclusivamente com preceitos religiosos
– e Adam Smith deixa isso claro, apesar da sua formação protestante. Conquanto os
mandamentos da religião possam ditar e efetivamente ditam o comportamento dos
indivíduos, e assim serem tidos ou confundidos como “regras morais”, a moralidade não
se restringe à obediência ao sagrado. De outro lado, a moralidade não tem natureza
metafísica, nem abrangência universal, o que acontece quando pensada à luz da razão a
priori. De forma bastante resumida, Adam Smith identifica como origem das normas
morais o sentimento de simpatia: perceber e compartilhar os sentimentos da outra
pessoa. Desse sentimento poderia vir a surgir o raciocínio moral, a razão moral – não o
contrário.

Os sentimentos morais estão relacionados aos interesses pessoais e à experiência do


convívio social (entendimento que seria corroborado cientificamente posteriormente,
inclusive nos séculos 20 e 21, como, por exemplo, nas pesquisas de Jean Piaget e
Jonathan Haidt). Todos nós e cada um temos interesses e guiamos nossas condutas,
ainda que inicialmente, por eles. Ao agirmos, agimos perante outras pessoas,
provocando um encontro desses interesses. Diante do interesse dos outros agentes,
demonstramos simpatia: entendemos suas motivações, as diferenças nos interesses,
compartilhamos similitudes e diferenças e tomamos nova atitude. Adam Smith foi
criticado pelo uso do termo “simpatia”, que teria um caráter sempre positivo, mesmo se
o sentimento da outra pessoa fosse ruim. Ele, então, argumenta que há dois “tipos” de
sentimento: aquele que uma pessoa sente, que pode ser ruim ou bom, e aquele que é
compartilhado pela outra pessoa, este aparentemente sempre será bom, pois é a tentativa
de “sentir” o sentimento alheio, de colocar-se na posição do outro indivíduo.

Naturalmente, portanto, o ser humano buscaria a vida em sociedade; buscaria manter


relações com outras pessoas. O convívio social provoca embates de interesses e
demonstra as variadas ações e reações em determinadas situações de conflito,
construindo certos padrões, a serem incentivados ou rejeitados. Por sua vez, a vivência e
a troca dessas experiências acaba por moldar o sentimento moral dos indivíduos. E no
âmbito da explanação sobre a simpatia, Adam Smith propõe a figura ideal do espectador
imparcial: nas situações em que tivermos dúvidas sobre como agir moralmente,
deveríamos recorrer ao espectador imparcial, um “árbitro ideal” que teria conhecimento
pleno de todas as informações referentes aos interesses envolvidos e às motivações de
cada atuante naquela situação. Podemos considerar o espectador imparcial como a
síntese, como o arranjo ideal dos diversos interesses.

Para Adam Smith, esse arranjo ideal de interesses deveria nortear as relações
econômicas capitalistas (embora ele mesmo não tenha utilizado o termo “capitalismo”).
Em primeiro lugar, as relações comerciais seriam (e são) necessárias do ponto de vista
econômico, como forma de trocar excedentes de produção por produtos escassos ou
inexistentes, mas os ganhos de tais relações não se restringem aos econômicos. As
relações comerciais também seriam (e são) fundamentais para propiciar espaços de
convivência, capazes de aumentar as experiências individuais e, como consequência,
enriquecer os sentimentos morais (estudos antropológicos mais recentes mostram a
importância dessa troca não exclusivamente comercial entre povos originários).
Podemos deduzir das lições de Adam Smith que a moral capitalista orienta ao acordo
dos interesses dos diversos agentes do mercado, tais como proprietários de terras,
artesãos, industriais, comerciantes, prestadores de serviços e também os trabalhadores.

Com isso, a convivência social deveria ser pautada na liberdade individual, para que
cada pessoa busque seus próprios interesses, ou seja, aquilo que lhes dá prazer, inclusive
profissionalmente. O destaque aos interesses individuais e à liberdade correlacionada
implica naturalmente na divisão do trabalho: as atividades desenvolvidas livremente em
decorrência dos diversos interesses individuais proporcionam a complementação do
trabalho, que se desenvolve de maneira dividida e, assim, mais eficiente. No
fundamento das trocas comerciais, a simpatia conduz à valorização de todos os agentes
do mercado. Sobre isso, Adam Smith é categórico em pregar que o salário do
trabalhador deveria garantir sua subsistência e certo conforto e é expresso em combater
o capital improdutivo (meramente especulativo, financeiro) e os lucros extraordinários.
Mas e a famosa “mão invisível”? Desde logo, convém esclarecer que em mais de 1.800
páginas (considerando os livros em edição brasileira) essa expressão é utilizada duas
vezes (uma em cada livro). A “mão invisível” demonstra um certo otimismo de Adam
Smith com relação à humanidade. Ele acreditava que a liberdade e a manifestação do
interesse próprio de cada indivíduo conduziriam, no conjunto da sociedade, ao bem
comum. Por mais egoísta que fossem as atitudes da pessoa individualmente, o livre
embate dos interesses ocorrido no palco das relações sociais e econômicas resultaria
naturalmente no progresso da sociedade.

Há quem diga que a experiência do socialismo real não se identifica com o socialismo
imaginado e teorizado por Karl Marx. Sob essa perspectiva, poderíamos afirmar o
mesmo com relação ao capitalismo e a teoria desenvolvida por Adam Smith, tanto no
viés filosófico quanto no viés econômico.

Edison Carlos Fernandes é doutor em direito pela PUC/SP, professor da Fundação


Getulio Vargas e advogado em São Paulo.

Link para matéria: https://www.nexojornal.com.br/ensaio/2023/06/04/300-anos-de-Adam-


Smith-a-moral-capitalista

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