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Resumo
Palavras-chave
Correspondência:
Heloisa Helena T. de Souza Martins
FFLCH / USP
Depto de Sociologia
e-mail: heloisah@usp.br.
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.2, p. 289-300, maio/ago. 2004 289
Qualitative research methodology
Abstract
Keywords
Contact:
Heloisa Helena T. de Souza Martins
FFLCH / USP
Depto de Sociologia
e-mail: heloisah@usp.br.
290 Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.2, p. 287-298, maio/ago. 2004
As considerações aqui apresentadas par- “determinados procedimentos de obtenção,
tem, em larga medida, de meu lugar de soció- verificação e sistematização do conhecimento e
loga e de minha experiência na docência de uma concepção do mundo e da posição do
Métodos e Técnicas de Pesquisa, disciplina homem dentro dele” (Fernandes, 1977, p. 50).
obrigatória do curso de Ciências Sociais, volta- Tratava-se, fundamentalmente, da ne-
da, sobretudo, à metodologia qualitativa de cessidade de “fazer ciência”, segundo procedi-
pesquisa. Inicio, portanto, tratando de alguns mentos do método científico. Reconhecendo
conceitos que estarão presentes na minha argu- que o “método é o mesmo em todos os ramos
mentação. do saber” (Fernandes, 1959, p. 54-55), os so-
Antes de mais nada é preciso esclarecer ciólogos tinham como tarefa realizar a transfe-
que metodologia é entendida aqui como o co- rência desse método para a investigação dos
nhecimento crítico dos caminhos do processo fenômenos sociais. O objetivo era o de definir
científico, indagando e questionando acerca de um método essencialmente sociológico que pu-
seus limites e possibilidades (Demo, 1989). Não desse dar conta do seu objeto. Isto porque a so-
se trata, portanto, de uma discussão sobre téc- ciologia foi sempre apresentada como tendo
nicas qualitativas de pesquisa, mas sobre ma- uma base científica frágil, em decorrência das di-
neiras de se fazer ciência. A metodologia é, pois, ficuldades de tratamento de um objeto como o
uma disciplina instrumental a serviço da pes- ser humano, tão sujeito a modificações, comple-
quisa; nela, toda questão técnica implica uma xo e que, principalmente, reage a qualquer ten-
discussão teórica. tativa de caracterização e previsão. Além do que,
Outra distinção importante, extraída do a análise do comportamento humano é feita por
estudo Fundamentos empíricos da explicação um observador humano falível e tendendo a
sociológica, de Florestan Fernandes (1959), é a distorcer os fatos.
que se deve estabelecer entre, de um lado, Roberto Da Matta apresenta uma análi-
métodos técnicos ou métodos de investigação — se, na perspectiva da hermenêutica, da relação
ou seja, processos pelos quais a realidade é sujeito/objeto que considero interessante apre-
investigada, ou ainda, “as manipulações analíti- sentar aqui. Segundo esse antropólogo, temos
cas através das quais o investigador procura que considerar a “interação complexa entre o
assegurar para si condições vantajosas de obser- investigador e o sujeito investigado” que com-
vação dos fenômenos” (Fernandes, 1959, p. 13) partilham, mesmo que muitas vezes não se co-
— e, de outro, métodos lógicos, isto é, os pro- muniquem, “de um mesmo universo de expe-
cessos de formação das inferências e de expli- riências humanas” (1991, p. 23). O que permi-
cação da realidade, que Florestan chama de te superar nossos preconceitos em relação ao
métodos de interpretação. “outro”, ao diferente, é a possibilidade de dia-
Um rápido olhar pela história da socio- logar com o nativo. É nessa possibilidade de
logia permite perceber que essa área do conhe- diálogo que reside a principal diferença com as
cimento foi sempre marcada pela necessidade ciências naturais e o seu objeto: o objeto das
de definir seu objeto com clareza e precisão, ciências sociais “é transparente e opaco” (p. 27),
bem como de compreender como se aplicam os tem o seu ponto de vista, as suas interpretações,
fundamentos da ciência e os princípios do que muitas vezes colocam as nossas em xeque.
método científico no campo sociológico. O Assim, na sociologia, como nas ciências
objetivo dessa busca foi a superação das aná- sociais em geral, diferentemente das ciências
lises impressionistas e extracientíficas acerca naturais, os fenômenos são complexos, não
das sociedades e a valorização da ciência en- sendo fácil separar causas e motivações isola-
quanto forma de saber positivo, um discurso das e exclusivas. Não podem ser reproduzidos
intelectual diante da realidade, que pressupõe em laboratório e submetidos a controle. As re-
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construções são “sempre parciais, dependendo dos métodos qualitativos ela é a flexibilidade,
de documentos, observações, sensibilidades e principalmente quanto às técnicas de coleta de
perspectivas” (Da Matta, 1991, p. 21). Mas, se dados, incorporando aquelas mais adequadas à
por um lado, isso tudo não inviabiliza a obser- observação que está sendo feita.
vação, por outro, é preciso reconhecer que na No final de Brancos e negros em São
pesquisa sociológica não é possível ignorar a Paulo, de Florestan Fernandes e Roger Bastide
influência da posição, da história biográfica, da (1959), há um plano de pesquisa no qual se
educação, interesses e preconceitos do pesqui- registra uma farta quantidade de métodos e téc-
sador (p. 22). Com isso quero deixar claro que nicas utilizadas pelos autores (observação direta,
para mim, como para autores como Thiollent observação participante, entrevistas, biografias,
(1980) e Becker (1977), no trabalho de pesqui- documentação de arquivo, etc.). Foi durante a
sa sociológica, a neutralidade não existe e a ob- realização daquela pesquisa que, pela primeira
jetividade é relativa, diferentemente do que vez, na Universidade de São Paulo, um pesqui-
ocorre no positivismo — do qual, aliás, partem sador trouxe os pesquisados para o interior da
muitas das críticas feitas à metodologia qualita- instituição e criou um grupo de discussão so-
tiva. Tem-se aqui, portanto, uma posição mais bre o tema da pesquisa — iniciativa que fazia
próxima à de Max Weber (1864-1920) do que parte do processo de levantamento de dados.
à de Émile Durkheim (1958-1917). A sociologia Assim, dependendo do problema sociológico
weberiana parte do reconhecimento de que formulado, abria-se um campo extremamente
todo conhecimento sociológico tem, como fun- rico de possibilidades de investigação — obvi-
damento, um compromisso com valores. A amente não isento de problemas, como se verá
objetividade, portanto, provém de critérios que a seguir.
serão definidos pelo pesquisador em relação Outra característica importante da meto-
aos problemas que ele está investigando. dologia qualitativa consiste na heterodoxia no
Assim, diante da diversidade de perspec- momento da análise dos dados. A variedade de
tivas, o “fazer ciência” não segue um único material obtido qualitativamente exige do pes-
modelo ou padrão de trabalho científico. Ao quisador uma capacidade integrativa e analítica
contrário, a sociologia foi sempre marcada pela que, por sua vez, depende do desenvolvimento
diversidade de métodos (e de técnicas) de in- de uma capacidade criadora e intuitiva. A maior
vestigação e de métodos de explicação. Veja- dificuldade da disciplina de métodos e técnicas de
mos de forma bastante simplificada, no nível pesquisa está na dificuldade de ensinar como se
dos métodos e técnicas qualitativos o que sig- analisa os dados — isto é, como se atribui a eles
nifica “fazer ciência”. É preciso esclarecer, antes significados — sendo mais fácil ensinar a coletá-
de mais nada, que as chamadas metodologias los ou a realizar trabalho de campo. A intuição
qualitativas privilegiam, de modo geral, da aná- aqui mencionada não é um dom, mas uma resul-
lise de microprocessos, através do estudo das tante da formação teórica e dos exercícios prá-
ações sociais individuais e grupais. Realizando ticos do pesquisador. Já no desenvolvimento do
um exame intensivo dos dados, tanto em amplitude emprego de metodologias quantitativas, o que se
quanto em profundidade, os métodos qualitativos procura é justamente o contrário, isto é, contro-
tratam as unidades sociais investigadas como to- lar o exercício da intuição e da imaginação,
talidades que desafiam o pesquisador. Neste caso, mediante a adoção de procedimentos bem de-
a preocupação básica do cientista social é a estreita limitados que permitam restringir a ingerência e
aproximação dos dados, de fazê-lo falar da forma a expressão da subjetividade do pesquisador.
mais completa possível, abrindo-se à realidade Obviamente, não se pretende aqui afir-
social para melhor apreendê-la e compreendê-la. mar que uma metodologia é superior à outra.
Se há uma característica que constitui a marca Um cientista social não se forma enquanto tal
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conhecimento, pesquisador e pesquisado. Há um daquele nativo.1 Como era de se esperar, alguns
método, principalmente usado pela antropologia, críticos fizeram sérias objeções ao trabalho,
mas também pela sociologia, denominado obser- uma das quais, justamente, por se tratar de um
vação participante, que dentre todos é o que relato mediado pela amizade. Supunha-se que,
mais levanta questões sobre aquela aproxima- ao fazer um relato da própria vida a Mintz,
ção. Em qualquer tipo de pesquisa, seja em que aquele nativo teria exposto ao amigo norte-
modalidade ocorrer, é sempre necessário que o americano apenas informações que preservassem
pesquisador seja aceito pelo outro, por um gru- junto a ele uma imagem positiva acerca de si
po, pela comunidade, para que se coloque na mesmo, e teria omitido aquelas que, de alguma
condição ora de partícipe, ora de observador. E forma, pudessem abalar a amizade. Mintz publi-
é preciso que esse outro se disponha a falar da cou então um artigo para refutar essas objeções,
sua vida. Trata-se do que Bronislaw Malinowski afirmando que foi justamente por serem amigos
(1978) chamava de “a necessidade de mergulhar que foi possível realizar a história de vida: “Foi
na vida do outro”, para que essa vida possa, em por causa de sua inteligência, sua amabilidade e
alguma medida, ser reconstituída. seu desejo de ajudar que ele me tornou seu
Esse mergulho na vida do grupo e em amigo. Foi porque éramos amigos que me atrevi
culturas às quais o pesquisador não pertence a propor que, uma vez mais, trabalhasse comi-
depende de que ele convença o outro da ne- go. Porque éramos amigos, acredito, ele concor-
cessidade de sua presença e da importância de dou” (Mintz, 1984, p. 52).
sua pesquisa. Para que a pesquisa se realize é Abro aqui um parêntese nessas conside-
necessário que o pesquisado aceite o pesquisa- rações sobre o método da história de vida para
dor, disponha-se a falar sobre a sua vida, intro- chamar a atenção para o fato de que em nos-
duza o pesquisador no seu grupo e dê-lhe li- sos dias ganhou grande expressão o movimento
berdade de observação. Esse mergulho na vida da história oral, por meio de associações, con-
de grupos e culturas aos quais o pesquisador gressos e publicações relacionados a ela, com
não pertence, exige uma aproximação baseada a participação de sociólogos, antropólogos e
na simpatia, confiança, afeto, amizade, empatia, historiadores. Há uma voga recente na qual
etc. Para os positivistas, essa referência a sen- inúmeros cientistas sociais se vêem como rea-
timentos é motivo para dúvidas a respeito do lizadores de história oral. Deve-se, porém, fri-
caráter científico do conhecimento produzido. sar que quem faz história oral são os historia-
Como é possível — dizem eles — fazer uma dores. Cabe aos cientistas sociais obter os re-
pesquisa, garantir a objetividade e a neutralida- latos orais por meio de entrevistas, construir
de, partindo-se de um relacionamento marca- histórias de vida, como sempre o fizeram. His-
do, por exemplo, pela amizade? Esse mal-estar tória oral é um movimento voltado não à co-
positivista gera uma constante acusação de leta de documentos já produzidos, mas à ela-
falta de confiabilidade em relação a dados boração de novos documentos a partir de re-
obtidos a partir da relação entre pesquisador e latos e entrevistas de informantes que não ne-
pesquisado marcada por sentimentos. cessariamente têm uma projeção na vida públi-
O antropólogo Sidney Mintz realizou ca ou alguma notoriedade, mas que se encon-
uma pesquisa em Porto Rico com o objetivo de tram em condições de relatar algo sobre sua
estudar as relações de trabalho na agroindústria participação na história. O recurso ao depoi-
do açúcar. Durante a pesquisa, Mintz manteve mento oral, como forma de construção do
intenso relacionamento de amizade com um documento, tem levantado várias questões (e
nativo, Taso, que se tornou seu principal infor-
mante. Posteriormente, o antropólogo decidiu 1. Publicada com o título Worker in the cane. New Haven: Yale University
voltar àquele país e fazer uma história de vida Press, 1960.
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seus interesses e objetivos, introduzindo ten- ses sujeitos a se fortalecerem enquanto sujeitos
sões, provocando rupturas. Segundo Zaluar autônomos, capazes de elaborar o seu projeto
(1986), o cientista social não deve esquecer de classe. Autonomia dos sujeitos pressupõe a
que a relação que se estabelece entre o obser- liberdade no uso da razão. O papel dos cientis-
vador e o observado é uma relação social e tas deve ser, portanto, o de fornecer um conhe-
política. cimento que ajude o outro a se fortalecer
Para o pesquisador, com muita freqüên- como sujeito autônomo capaz de elaborar seu
cia, o mais importante é a pesquisa a ser feita, próprio projeto político. A autonomia dos su-
e os outros são vistos como informantes, ou jeitos pressupõe precisamente a liberdade no
seja, devem estar a serviço dele para lhe forne- uso da razão. Não cabe ao cientista reforçar
cerem os dados que lhe são fundamentais — ideologias existentes, mas fornecer instrumen-
“fundamentais”, na verdade, para a sua carrei- tos para desvendá-las e superá-las.
ra e não para a vida daquele grupo ou para os
indivíduos que dele fazem parte. Ele se coloca Um pouco de história
acima dos outros, da mesma maneira, aliás,
como a própria ciência, enquanto discurso ide- Gostaria de explicitar o ponto de vista
ológico, freqüentemente se coloca em relação com o qual dialogo o tempo todo, isto é, o
a tudo o mais: o saber científico é “o” conhe- lugar de onde partem essas críticas feitas à
cimento a partir do qual todos os outros são metodologia qualitativa. Refiro-me aos cientis-
articulados, entendidos e explicados. Essa prer- tas sociais que, por influência da sociologia
rogativa dá ao pesquisador e a seu trabalho norte-americana, têm uma outra concepção da
uma força que ele nem sempre busca analisar sociologia como ciência e das suas possibilida-
ou controlar. des de compreensão da realidade social. En-
Outro aspecto importante dessa discus- quanto a metodologia qualitativa está muito
são reside no fato de que os cientistas sociais mais voltada a aspectos micro-sociológicos, a
tendem freqüentemente a tomar como objeto orientação norte-americana que tem prevaleci-
de investigação grupos sociais com os quais do volta-se para aspectos macro-estruturais e
têm alguma identificação política. Neste caso, busca um desenho de pesquisa que trabalhe
temos que estar constantemente alertas, espe- com uma multiplicidade de casos. Defendem,
cialmente quando usamos metodologia qualita- assim, um padrão de investigação que recebeu
tiva, para que, em vez de cientistas, não nos o nome de Survey Research .
transformemos em militantes de uma causa ou Esse movimento acentuou-se no perío-
de um movimento, que olham e procuram en- do posterior à Segunda Guerra Mundial e esti-
tender a realidade não como ela é, mas como mulou o predomínio dos métodos quantitativos
gostaríamos que ela fosse. Esse tipo de conhe- de investigação. Duas grandes pesquisas, rea-
cimento é expressão da ideologia e não da lizadas nos Estados Unidos durante aquela
ciência. Seja como cientistas (ou mesmo como deflagração, serviram como matriz desse padrão
assessores), a nossa relação com o outro, que de trabalho: uma, dirigida por Theodor Adorno
também é sujeito portador de um conhecimen- (1903-1969), foi chamada de The Authoritarian
to, não deve ser marcada pela intenção de Personality; outra, dirigida por Samuel Stouffler,
fornecer uma direção, segundo um projeto denominada The American Soldier. Mas a influ-
político que é o nosso. Ou de olhar para o ência mais decisiva foi a do austríaco Paul
“nosso objeto” a partir de uma concepção Lazarsfeld, radicado nos Estados Unidos após ter
política que, antes de permitir uma análise sido convidado pela Fundação Rockefeller, de
objetiva, nos leve a realizar avaliações. Temos quem recebera uma bolsa de pesquisa. Ele idea-
que fornecer um conhecimento que ajude es- lizou a criação do Bureau of Applied Social
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se debatia entre o empirismo abstrato e a gran- riedade e de capacidade de ouvir todos aque-
de teoria. Na realidade, a sociologia passou por les que sofrem. O argumento é de que o dese-
uma crise, em decorrência da própria crise por que jo de objetividade deve ceder lugar ao desejo
passava a sociedade ocidental do após-guerra, de solidariedade.
bem como da tensão entre os sociólogos e a Ou dito de outra maneira, se no momen-
influência predominante do estrutural-funciona- to do nascimento das ciências sociais no sécu-
lismo, como aponta Martin Shaw (1982, p. 38). lo XIX a maior preocupação era, conforme o
A própria retomada da metodologia qua- modelo das ciências naturais, neutralizar o mais
litativa nos anos recentes, especialmente a possível os interesses políticos e éticos do ana-
redescoberta da história de vida, a meu ver, lista, para atingir mais facilmente a realidade
resultou, por um lado, do predomínio de cor- objetiva ou a verdade, o que esses autores pre-
rentes teóricas voltadas para a problemática do conizam é que hoje o mais importante é pro-
sujeito e da interpretação que ele faz de sua duzir um conhecimento além de útil, explicita-
situação social e, de outro, pela crise do mar- mente orientado por um projeto ético visando
xismo, pelo menos do questionamento do a solidariedade, a harmonia e a criatividade
determinismo economicista e da afirmação de (Pires, 1997).
interpretações dentro do materialismo histórico A antropóloga francesa Yolande Cohen 2
que buscam recuperar a problemática do indi- (1993) fala da importância dos movimentos
víduo, da pessoa singular, vendo-a como um sociais para essa retomada de sentido, na me-
singular universal, como uma particularização dida em que os movimentos sociais passaram a
da história humana (Sartre, 1966). exigir das ciências sociais uma outra postura
Ou ainda, a tentativa de ver o indivíduo diante deles. A aproximação do pesquisador em
não mais como objeto, mas como sujeito do co- relação a seu objeto de pesquisa atende, antes
nhecimento e da história. E o sociólogo, então, de tudo, à necessidade de ele se colocar ao
deixa de ser o intelectual preocupado com a lado dos movimentos sociais, realizando pesqui-
sua trajetória profissional e reaparece como sas que lhes sejam úteis. Tal compromisso, en-
aquele comprometido com o destino da huma- tretanto, não significa que o pesquisador não
nidade, realizando a promessa da sociologia tenha que zelar pelo caráter científico de sua
(Mills, 1959). produção intelectual.
Podemos dizer hoje, tanto no que se re- Observo, por fim, que a principal inspi-
fere às ciências sociais quanto às ciências na- ração para uma retomada de sentido do traba-
turais, que a concepção clássica de ciência tem lho sociológico talvez venha do próprio Wright
sido posta em discussão, visando uma recons- Mills, cuja obra foi recuperada pelos críticos do
trução e desdogmatização. No plano episte- formalismo metodológico, sobretudo a impor-
mológico, por exemplo, alguns filósofos con- tância que esse autor tem para a reafirmação
testam se, de fato, pode-se atribuir à ciência a da imaginação sociológica — que ele tomava
finalidade de descobrir a verdade sobre o mun- como uma qualidade do espírito e como uma
do empírico. Para um certo ponto de vista, a expressão do conhecimento sociológico que
questão não é a de discutir o que fazer a res- deve ser transmitido para aqueles aos quais esse
peito de nossas opiniões, idéias ou juízos de conhecimento interessa.
valor sobre a sociedade, mas, sim, de procurar Por esse ponto de vista, todo conheci-
fazer com que imagem que temos dela seja útil mento deve ser dirigido a alguém ou a um gru-
para ela, ou seja, se somos capazes de desen-
volver hábitos de ação permitindo confrontar a 2. Professora de História da Universidade de Quebéc, especialista em
história das mulheres. Suas pesquisas se voltam principalmente para a
realidade, de maneira a garantir ganhos no sen- história dos movimentos sociais e identitários na França e no Canadá du-
tido intersubjetivo, em criatividade, em solida- rante o século XX.
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Recebido em 27.06.04
Aprovado em 04.08.04
Heloisa Helena T. de Souza Martins é professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da USP. Publicou os livros O Estado e a burocratização do sindicato no Brasil (1989) e Igreja e
movimento operário no ABC: 1954 -1975 (1994). Atualmente estuda o tema Juventude e Trabalho.