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Mythos (mito) e Logos (razão) no surgimento da Filosofia:

Na Grécia Clássica, a reflexão filosófica, onde as estruturas da língua


possibilitam a abstração dos conceitos e de um tipo de reflexão do Ser por meio das
relações lógicas do discurso (logos), só foi possível com o desenvolvimento das
formas escritas que a Grécia conheceu. A lógica de Aristóteles está bastante ligada
à língua na qual pensa o filósofo; mas o filósofo pensa numa língua que é a do
escrito filosófico.
Dessa forma, na escrita e pela escrita, instaura-se esse tipo de discurso onde
o logos (discurso ou razão) não é mais somente a palavra, onde ele assumiu o valor
de racionalidade demonstrativa e se contrapõe nesse plano, tanto pela forma quanto
pelo conteúdo, ao mythos. Em relação à forma, a escrita racional contrapõe-se ao
mythos através da separação entre a demonstração argumentada e a textura
narrativa da narrativa mítica. Já em relação ao conteúdo, a escrita racional
contrapõe-se ao mythos através da distância entre as entidades abstratas do
filósofo e as potências divinas, cujas aventuras dramáticas são contadas pelos
poetas.

Se considerarmos o ponto de vista do público que toma conhecimento do


texto, as diferenças entre o logos e o mythos. O texto possibilita um retorno crítico,
visando uma análise detida ao que foi escrito, ou seja, a leitura supõe uma outra
atitude de espírito, mais distânciada e ao mesmo tempo mais exigente, que a escuta
dos discursos pronunciados.
Os próprios gregos eram plenamente conscientes dessa diferença: à sedução
que a palavra deve provocar para manter o auditório sob encanto, eles
contrapuseram a seriedade, austera e rigorosa, da palavra escrita. De um lado
colocaram o prazer inerente à palavra falada: incluído na mensagem oral, esse
prazer próprio à palavra falada: incluído na mensagem oral, esse prazer nasce e
morre com o discurso que suscitou; de outro, o lado da escrita, colocaram o útil,
visado por um texto que se pode conservar sob os olhos e que retém em si um
ensinamento cujo valor é durável.
Essa divergência funcional entre a palavra falada e escrita interessa
diretamente ao estatuto do mito. Se o verbo é orientado em direção ao prazer é
porque ele age sobre o ouvinte à maneira de encantação. Por sua forma métrica,
seu ritmo, consonâncias, musicalidade, gestos, às vezes dança que a acompanham,
a narração oral desencadeia no público um processo de comunhão afetiva com as
ações dramáticas que formam a matéria da narrativa. Essa magia da palavra falada
confere aos diferentes gêneros de declamação - poesia, tragédia, retórica, sofística -
um mesmo tipo de eficácia, constitui para os gregos uma das dimensões do mythos
em oposição ao logos.
Por outro lado, renunciando voluntariamente à dramaticidade e ao
maravilhoso, o logos situa sua ação sobre o espírito num nível diferente do da
operação mimética (imitativa) e da participação emocional (sympatheia). O logos se
propõe estabelecer o verdadeiro após investigação escrupulosa e de anunciá-lo
segundo um modo de exposição que só apela para a inteligência crítica do leitor. É
apenas quando revestiu-se, assim, de uma forma escrita que o discurso, despojado
de seu mistério ao mesmo tempo que de sua força de sugestão. Desta forma, o
discurso escrito torna-se ‘coisa comum’ no sentido que os gregos davam a esse
termo no vocabulário político: não é mais o privilégio exclusivo de quem possui o
dom da palavra; pertence igualmente a todos os membros da comunidade. Escrever
um texto é depositar sua mensagem no centro da comunidade, isto é, colocá-lo
abertamente à disposição do conjunto do grupo.
Enquanto algo que foi escrito, o logos (a razão, o discurso) é levado à praça
pública; da mesma forma que os magistrados ao saírem de seus cargos, é
necessário que preste contas ao a todos, justifique-se ele próprio quanto às
objeções e contestações que cada um tem o direito de lhe contrapor. Pode-se dizer
então que as regras do jogo político, tais como funcionam numa cidade democrática
regida pela isêgoria1, o direito à palavra igual a cada um, tornaram-se também a
regra do jogo intelectual.
Em sua organização interna, o discurso escrito se conforma a uma lógica que
implica uma forma de debate onde cada um luta com armas iguais, pela discussão,
pela argumentação contraditória. Não se trata mais de vencer o adversário
enfeitiçando-o ou fascinando-o com a potência superior da palavra falada.
Utilizando-se da lógica de de critérios próprios ao da escrita, no discurso escrito
trata-se de convencer da verdade, que deve coincidir com as razões expostas nos
textos. Deste ponto de vista, tudo o que dava à palavra falada seu poder de
impacto, sua eficácia sobre os ouvintes, se acha dali em diante rebaixado à classe
do mythos, do fabuloso, do maravilhoso, como se o discurso só pudesse ganhar na
ordem do verdadeiro e do inteligível perdendo ao mesmo tempo na ordem do
agradável, do emocionante e do dramático.

(Fonte: VENANT, Jean-Pierre. Razões do mito. In: VERNANT, Jean-Pierre.


Mito e sociedade na Grécia Antiga. Rio de Janeiro: José Olympio, 2010, p. 172-175
- adaptado pelo professor).

1
Isegoria é um conceito próprio da democracia grega. Consiste no princípio de igualdade do
direito de manifestação na assembleia dos cidadãos, onde se discutiam os assuntos da pólis. A
todos os participantes era dado o mesmo tempo para falar sem ser interrompido.

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