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Educação Matemática com as Escolas da Educação Básica: interfaces entre pesquisas e salas de aula

O PROCESSO DE DEVOLUÇÃO E O CARÁTER ADIDÁTICO EM


SITUAÇÕES ENVOLVENDO O JOGO MANKALA COLHE TRÊS

Tarcisio Rocha dos Santos1

Resumo
Apoiando-se em elementos da Teoria das Situações Didáticas, de Guy Brousseau, buscou-se
investigar o processo de devolução e a dimensão adidática de situações envolvendo o jogo
Mankala Colhe Três. Para isso, foram realizados dois estudos preliminares que tiveram como base
a realização de partidas com o jogo por estudantes de 6º ano do Ensino Fundamental e que
serviram de subsídio para a elaboração de um dispositivo experimental central. Dentre os
resultados obtidos, percebeu-se a partir da análise dos estudos preliminares e da identificação das
principais dificuldades encontradas nas situações didáticas envolvendo o Mankala Colhe três,
conseguiu-se preparar um dispositivo experimental que fortalecesse o caráter adidático das
situações de jogo como o Mankala Colhe Três devido a um estudo cuidadoso do processo de
devolução das situações, que tinha como momento crucial a passagem das instruções do jogo.

Palavras-chave: Jogo Matemático; Mankala Colhe Três; Teoria das Situações Didáticas.

1. Introdução
Dentre as diversas tendências metodológicas da Educação Matemática, uma que
sempre apresenta importante destaque é o uso de jogos matemáticos. Muitas são as
vantagens de trabalhar adequadamente com jogos nas aulas de matemática, tanto em se
tratando da mobilização de conhecimentos matemáticos quanto em relação ao
desenvolvimento de atitudes importantes para a formação do estudante, em que se
destacam: o desenvolvimento do raciocínio lógico; o caráter lúdico que esses materiais
propiciam às aulas de matemática; a construção de uma atitude positiva perante os erros;
a forte interação entre os alunos provocada pelas atividades com jogos matemáticos,
favorecendo também o trabalho em grupo; a formação de cidadãos autônomos; a
motivação, entre outros (GRANDO, 2000; RICCETTI, 2001; SMOLE, DINIZ, MILANI,
2007; KOLODZIEISKI, 2010; MUNIZ, 2010; BARROS, 2012).

1
Universidade Federal de Pernambuco
tarcisio.rds@gmail.com

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Entre os anos de 2010 e 2011 foi desenvolvido um projeto na UFPE intitulado
“formação docente: interdisciplinaridade e ação docente – Projeto Rede”, por meio da
Rede Nacional de Formação Continuada de Professores na Educação Básica
(RENAFOR). Um dos subprojetos do projeto Rede, chamado “Jogos no ensino de
matemática a partir de sucata” teve como objetivo a promoção de formação continuada
para professores na área de matemática e elaborar materiais didáticos (jogos e materiais
concretos). Como resultado desse subprojeto, foram desenvolvidos oito jogos
matemáticos e um livro (GITIRANA, et al. 2013), contendo a apresentação de cada um
desses jogos, suas possibilidades de construção com materiais de sucata ou baixo custo e
suas finalidades educacionais. Um dos jogos produzidos foi o Mankala Colhe Três
(ANDRADE, et al. 2013), que foi inspirado no jogo Mankala Ouri, que, por sua vez,
representa um dos vários jogos denominados Mankala2. Existem algumas pesquisas que
investigam o uso dos jogos do tipo Mankala não apenas como recurso didático para o
ensino de matemática mas também como instrumento de resgate da cultura africana às
escolas do Brasil, tendo em vista os fortes aspectos filosóficos e culturais que esse tipo
de jogo traz consigo (SANTOS, 2008a, SANTOS, 2008b, SOMARIVA, 2011).
O Mankala Colhe Três foi objeto de estudo de uma pesquisa de mestrado
(SANTOS, 2014), fundamentada da Teoria das Situações Didáticas (BROUSSEAU,
1996), que investigou o seu potencial didático em situações didáticas. O presente artigo
busca apresentar alguns dos principais resultados obtidos nessa ampla pesquisa de
mestrado, em que o foco será dado à análise do processo de devolução e do caráter
adidático em situações envolvendo o Mankala Colhe Três.

2. Elementos da Teoria das Situações Didáticas


Como apresentado anteriormente, a Teoria das Situações Didáticas – TSD, de Guy
Brousseau (1996), fundamentou a pesquisa que originou o presente artigo. Alguns
elementos da teoria foram utilizados para dar suporte à metodologia empregada,
principalmente na preparação do dispositivo experimental central, além de serem usados
nas análises da pesquisa. Os principais elementos da TSD utilizados ao longo da pesquisa
serão apresentados e, brevemente, discutidos nesta seção.

2
jogos milenares de provável origem africana e que simulam situações de semeadura e colheita.

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Os conceitos iniciais a serem apresentados da TSD são os de situação e de meio.
Para Brousseau (2008), uma situação é o modelo de interação entre um sujeito e um meio
determinado. O meio, por sua vez, considerado como um subsistema autônomo,
antagônico ao sujeito, é preparado para desafiar o aluno para que este consiga encontrar
respostas a determinada situação-problema. Segue abaixo uma citação de Brousseau
(2008) que explica um pouco mais do significado dos elementos supracitados e do modo
como se relacionam entre si em uma situação:

Consideremos um dispositivo criado por alguém que queira ensinar um


conhecimento ou controlar sua aquisição. Esse dispositivo abrange um
meio material – as peças de um jogo, um desafio, um problema,
inclusive um exercício, fichas etc. – e as regras de interação com esse
dispositivo, ou seja, o jogo propriamente dito. Contudo somente o
funcionamento e o real desenvolvimento do dispositivo, as partidas de
fato jogadas, a resolução do problema etc. podem produzir um efeito de
ensino. Portanto, deve-se incluir o estudo da evolução da situação, visto
pressupormos que a aprendizagem é alcançada pela adaptação do
sujeito, que assimila o meio criado por essa situação,
independentemente de qualquer intervenção do professor ao longo do
processo. (BROUSSEAU, 2008, p. 22).

Na parte final da citação anterior, Brousseau (2008) enfatiza a importância de que


não haja qualquer tipo de intervenção do professor ao longo do processo de evolução da
situação, que, por sua vez, acontece por meio da assimilação do sujeito ao meio criado
pela situação. Esse fato traz à tona mais um importante elemento da TSD, que é o
conceito de adidático. Segundo Brousseau (2008), o caráter adidático das situações se
caracteriza por “considerar o funcionamento normal dos conhecimentos, fora das
condições didáticas (aquelas em que alguém decidiu pelo aluno que saber ele deveria
aprender)” (BROUSSEAU, 2008, p. 89). Podemos concluir, portanto, que, nesse caso, o
sujeito deve agir não para alcançar os objetivos que o professor espera dele, mas para
satisfazer as exigências da própria situação. É importante destacar que adidático não pode
ser compreendido como não-didático, já que há um controle da situação pelo professor,
que preparou o meio para que o aluno pudesse ser desafiado e fosse capaz de explorar a
situação de maneira autônoma e, deste modo, provocar a aprendizagem.
Na TSD, as interações são classificadas, no mínimo, em três categorias: troca de
informações não codificadas ou sem linguagem (ações e decisões); troca de informações

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codificadas em uma linguagem (mensagens); troca de opiniões (sentenças referentes a um
conjunto de enunciados que exercem o papel de teoria) (BROUSSEAU, 2008).
Brousseau (1996) enfatiza que essas interações não são desconectadas entre si:
“Estas categorias são estritamente encaixadas umas nas outras, porque uma troca de juízo
é uma troca de informações particulares, e esta é um tipo particular de ação e de decisão”
(BROUSSEAU, 1996, p. 95). Tomando como base essas categorias de interações,
Brousseau (2008) classifica os tipos de situações didáticas: situação de ação, situação de
formulação, e situação de validação, respectivamente. Esses tipos de situações são
regidos e revelados pelos próprios alunos por meio de suas interações. Brousseau (2008)
caracterizou ainda as situações de institucionalização, tipo de situação em que os alunos
assumem o significado socialmente estabelecido de um saber que foi elaborado por eles
mesmos, em situações de ação, formulação e validação.
Na pesquisa produzida por Santos (2014), um dos blocos de análise dos resultados
se refere às interações e os tipos de situações didáticas identificados nas situações
envolvendo o Mankala Colhe Três. No entanto, a apresentação detalhada dos tipos de
situações didáticas e a análise das interações e dos tipos de situações didáticas
identificadas na pesquisa não serão apresentadas neste artigo, que se concentrará na
análise do processo de devolução e do caráter adidático das situações envolvendo o
Mankala Colhe Três.

3. O Mankala Colhe Três


O Mankala Colhe Três , assim como os demais jogos produzidos no Projeto Rede,
pode ser construído com materiais de sucata e baixo custo, permitindo que o jogo possa
ser confeccionado e explorado pelos próprios estudantes, dentro ou fora dos espaços
escolares (GITIRANA, et al. 2013). O Mankala Colhe Três é constituído por um tabuleiro
contendo cinco regiões denominadas “covas”, dispostas circularmente, e por 25 sementes
(ou objetos que representem sementes), como pode ser visto na figura a seguir:

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Figura 1: Imagens de tabuleiros de Mankala Colhe Três confeccionados a partir de sucata e materiais de
baixo custo
Fonte: Andrade et al. 2013.

Podem participar do jogo de dois a quatro jogadores. O objetivo do jogo é colher


sementes. Sendo assim, o jogador vitorioso é aquele que colhe o maior número de
sementes na partida. Seguem as demais instruções do jogo (ANDRADE et al. 2013):
• O jogo inicia com cinco sementes em cada cova, totalizando 25 sementes.
• Fica a cargo dos jogadores decidirem quem deverá iniciar o jogo e a sequência dos
demais jogadores.
• Cada jogador, em sua vez, escolhe uma das covas, retira todas as sementes da cova,
divide a quantidade de sementes em partes iguais, e redistribui as partes entre as
covas seguintes (consecutivas), em sentido horário até esgotar as sementes retiradas.
A redistribuição inicia na cova seguinte (sentido horário). Dessa forma, é permitido,
por exemplo, passar todas as sementes para a próxima cova, considerando o número
de partes um. Se o número de partes for maior que 5, pelo menos uma das covas irá
receber as sementes mais de uma vez.
• O jogador recolhe as sementes da última cova em que ele colocou sementes, quando
nessa última ficarem exatamente três sementes.
• O jogo termina quando ocorrerem cinco rodadas sem ninguém recolher sementes ou
quando restarem apenas quatro sementes no tabuleiro.
Ao produzir o Mankala Colhe Três, os pesquisadores elencaram algumas
finalidades educacionais do jogo, que seguem: desenvolver estratégias de quantificar
mentalmente; resolver problemas com situações mistas: aditivas e multiplicativas; dividir

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por cálculo mental; mapear as possibilidades; explorar as possibilidades de distribuição
em partes iguais, a partir das quantias existentes nas covas; reconhecer divisores de um
determinado número; identificar múltiplos de um número; reconhecer números primos e
compostos (ANDRADE, et al. 2013).
Para que o potencial do Mankala Colhe Três possa ser explorado ao máximo, é
preciso que ele seja bem compreendido pelos sujeitos que o jogam e que suas escolhas no
jogo não dependam da avaliação que o professor pode fazer delas, mas que motivadas
pela própria situação de jogo. Deste modo, este artigo tem o objetivo de apresentar a
necessidade de uma condução adequada do processo de devolução para que o caráter
adidático das situações de jogo com o Mankala Colhe Três possa ser permitido e, deste
modo, que os conhecimentos matemáticos suscetíveis de serem explorados por meio do
jogo possam ser mobilizados da melhor forma.

4. Aspectos Metodológicos
De modo geral, os procedimentos metodológicos da pesquisa, que tiveram como
base a vivência de momentos práticos de alunos dos anos iniciais do Ensino Fundamental
com o Mankala Colhe Três, foram compostos por dois estudos preliminares, um
mapeamento parcial do Mankala Colhe Três e um dispositivo experimental central. Os
estudos preliminares foram filmados, transcritos e analisados e os resultados obtidos
serviram de subsídio para a elaboração do dispositivo experimental central.
No início do primeiro estudo preliminar, em que participaram três alunos do 6º e
7º anos do Ensino Fundamental, as regras do Mankala Colhe Três foram apresentadas,
juntamente com alguns exemplos de jogadas. Durante as partidas o pesquisador reforçava
as regras do jogo quando percebia alguma dificuldade dos estudantes. As partidas foram
filmadas. Do segundo estudo preliminar participou apenas um aluno de 6º ano, que jogou
duas partidas contra o pesquisador. A ideia desse tipo de confronto era a de permitir que
o pesquisador pudesse, durante as partidas, provocar o confronto do aluno com situações
diversificadas do jogo. Dessa forma, a cada momento, o pesquisador tinha tanto o papel
de fazer uma jogada que colocasse o aluno a perceber e refletir as diferentes
possibilidades do jogo quanto o de fazer alguns comentários sobre as jogadas feitas por
ambos os jogadores (SANTOS, 2013a).

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O dispositivo experimental central foi elaborado após a análise dos estudos
preliminares, e foi desenvolvido com quatro estudantes de 6º ano do Ensino Fundamental
de uma escola privada da cidade do Recife-PE, escolhidos aleatoriamente. Essa
experimentação foi desenvolvida em três etapas: realização de partidas individuais
(sujeitos “A” versus “B” e “C” versus “D”); realização de partidas em duplas sorteadas
(dupla “AB” versus dupla “CD”); entrevistas com teste. As etapas 1 e 2 foram filmadas e
transcritas e aconteceram com intervalo de uma semana. A etapa 3 aconteceu após duas
semanas da data da etapa 2 e, como os resultados esperados dessa etapa seriam os
registros nos testes que poderiam complementar as informações das partidas realizadas
nas etapas anteriores, não precisou ser filmada.
As etapas 1 e 2 tiveram uma duração de 50 minutos cada. A etapa 1 iniciou com
os sorteios dos sujeitos que participariam da pesquisa e das duplas de oponentes. Em
seguida, foram apresentadas as instruções do jogo e, após esse momento, foi dado início
as partidas, em dois tabuleiros, simultaneamente. A etapa 2 iniciou com sorteio para
determinação de dois pares de oponentes, seguido de um momento de retomada das regras
do jogo. Após a retomada das regras, os sujeitos jogaram mais algumas partidas
individuais, como na etapa 1, e, em seguida, foi feito um segundo sorteio para a
determinação de duas duplas, que, após o sorteio, começaram a se enfrentar.
Sobre a apresentação inicial do jogo, no início da etapa 1, os estudantes receberam
uma ficha de regras (figura 2) e uma folha com uma figura repleta de imagens de
tabuleiros do Mnakala Colhe Três produzidos com material de baixo custo (figura 1), com
o intuito de estimular a confecção do jogo pelos estudantes e a realização de partidas entre
as etapas 1 e 2.

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Figura 2: Ficha de regras do jogo Mankala Colhe Três


Fonte: SANTOS (2014)

Além dos materiais fornecidos aos alunos no início da etapa 1, foram dadas mais
duas informações sobre o jogo de maneira oral: o jogo pode ser jogado por 2 a 4 pessoas,
mas na experimentação usaremos sempre com dois oponentes (individuais ou em duplas);
os jogadores decidem quem iniciará cada partida.
Devido a esse artigo representar um recorte de uma pesquisa mais ampla
(SANTOS, 2014), não será detalhada a fase das entrevistas com teste, já que esta etapa
foi criada com o objetivo de analisar critérios da pesquisa que não serão apresentados no
presente artigo.

5. Análise dos Estudos Preliminares e implicações no Dispositivo Experimental


Central
O principal resultado encontrado no primeiro estudo preliminar foi perceber que
os alunos encontravam certa resistência em escolher uma jogada que, associada às noções
de divisores, mostrava que o número 1 pode ser considerado como divisor, o que é muito

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curioso, já que o número 1 é divisor de qualquer outro. Uma hipótese levantada para
justificar este fato é a de que, em situações práticas, a ideia de divisor está muito ligada a
um número que reparte outro em partes menores, o que não acontece no caso de o divisor
ser o 1 (SANTOS, 2013b).
Dentre os aspectos identificados na análise do segundo estudo preliminar, o que
trouxe maior destaque foi a identificação de alguns entraves na explanação das instruções
do jogo por parte do pesquisador. Como o Mankala Colhe Três possui muitas regras, a
apresentação do jogo pelo pesquisador acabou sendo muito variada em relação aos
sujeitos participantes dos estudos preliminares e certamente, em alguns casos, deixou os
sujeitos confusos, além do fato de que o caráter adidático das situações se mostrou muito
afetado, devido à postura que o pesquisador tomava ao longo das partidas, o que ocorreu
em ambos os estudos preliminares. Segue um trecho da transcrição de uma partida do
segundo estudo preliminar em que o pesquisador comenta a jogada que vai realizar:

298. (P) Aí o que vai acontecer? Aqui vai ter duas, né?
299. “P” aponta para a cova marrom.
300. (A) Unhum!
301. (P) Eu não vou fazer isso! Porque vai ficar duas aqui... E uma aqui.
302. “P” aponta, respectivamente, para as covas azul e marrom.
303. (P) E aí você gosta muito disso.
304. Risos.
305. (P) Então eu vou pensar mais um pouquinho... O que eu vou fazer? Vou tirar essas
daqui...
306. “P” começa a retirar as oito sementes da cova vermelha.
307. (P) Dois, três, quatro, cinco, seis, sete...
308. (A) Eu nem tinha pensado nisso!
309. (P) Oito. Vou pegar essas oito e vou colocar... Quatro aqui, quatro aqui.
310. “P” remove as sementes da cova vermelha e as redistribui quatro a quatro, resultando
em:

4
6 0

0 0
3

3
Partindo da cova superior e seguindo o sentido horário, as covas desta representação são, respectivamente,
verde, azul, marrom, vermelha e amarela.

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No trecho da transcrição acima, o sujeito se surpreende com a maneira de o


pesquisador analisar sua jogada, baseada em antecipações, afirmando que “não havia
pensado nisso”. Essa nova maneira de pensar sobre as jugadas pareceu ser bastante
diferente do que o sujeito estava acostumado a fazer. Após essa mudança brusca da
maneira de pensar o jogo, o sujeito começou a se confundir no jogo, em que em alguns
momentos ele se preocupou em tentar antecipar jogadas, mas acabava se confundindo nas
jogadas atuais.
Para o dispositivo experimental, propôs-se, portanto, uma estrutura única de
apresentação das regras do jogo, composta por uma parte oral e um material escrito (figura
2). O momento de apresentação das regras do jogo representa o principal momento do
processo de devolução, em que o aluno recebe e aceita a responsabilidade da situação de
aprendizagem. Um processo de devolução bem conduzido favorece a presença de
situações adidáticas. Daí a importância de fornecer um material permanente (ficha de
regras) para o estudante, permitindo que este explore o jogo de maneira mais autônoma
possível.
Para evitar as dificuldades encontradas no primeiro estudo preliminar, decidiu-se
esclarecer um pouco mais as possibilidades de jogadas no Mankala Colhe Três:

Figura 3: tipos de jogadas do Mankala Colhe Três


Fonte: SANTOS (2014)

Essa maneira de apresentar os tipos de jogadas evita que o aluno pense que a
jogada de remover todas as sementes de uma das covas e colocá-las na cova seguinte não
faz parte do jogo.
A escolha de iniciar a experimentação com partidas individuais e, em seguida,
partidas em duplas se deu de modo a favorecer o surgimento dos tipos de situações
didáticas (ação, formulação e validação).

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Com a intenção de permitir uma apropriação maior do jogo pelos sujeitos, as
etapas 1 e 2 do dispositivo experimental central foi realizado em dias distintos, pois os
alunos poderiam jogar o Mankala Colhe Três no intervalo entre as etapas. Ainda com o
objetivo de permitir com que os sujeitos se apropriassem bastante das regras do jogo, elas
foram retomadas no início da etapa 2, até porque alguns sujeitos poderiam ter praticado
o jogo no intervalo das duas etapas e outros não.

6. Análise do processo de devolução e do caráter adidático em situações envolvendo


o jogo Mankala Colhe Três
O principal momento que caracteriza o processo de devolução na experimentação
é quando o pesquisador traz as instruções do jogo. Mas para que isso fosse conseguido,
era preciso que os sujeitos fossem capazes de, a partir desse momento, “desenvolver
estratégias e mobilizar os conhecimentos matemáticos subjacentes a estas estratégias da
maneira mais autônoma possível, ou seja, inseridos em um meio adidático, lugar onde a
intenção didática do pesquisador não parecesse presente” (SANTOS, 2014).
Algo que aconteceu nas partidas do dispositivo central foi o fato de que os sujeitos
buscavam esclarecer algum tipo de dúvida sobre as regras do jogo durante o início das
partidas, o que nos mostra que o processo de devolução esteve em curso também durante
a realização das partidas, devido às necessidades dos sujeitos. Isso foi confirmado pelo
pesquisador quando este percebeu que havia alguns tipos de jogadas que não tinham sido
realizados na primeira etapa do experimento, pois os alunos tendiam a distribuir as
sementes removidas de uma em uma ou colocar todas as sementes na cova seguinte. Para
evitar que o caráter adidático das situações fosse comprometido, o pesquisador decidiu
não interferir nas partidas e deixou para reforçar as regras do jogo ao final da etapa 1.
Essas instruções no final da etapa 1 se mostraram muito importantes, já que os alunos
foram estimulados a praticar o jogo no intervalo das etapas 1 e 2.
Analisando a etapa 1, percebeu-se que o pesquisador, de fato, quase não interferiu
nas situações de jogo, de modo que a fala do pesquisador ficou mais concentrada nas
instruções iniciais. Inclusive ao término das partidas, os próprios sujeitos já decidiam
quem iria iniciar a próxima, demonstrando muita autonomia.
No início da etapa 2 foi perguntado aos sujeitos se eles haviam jogado o Mankala
Colhe Três no intervalo das etapas 1 e 2. Dois dos sujeitos confirmaram que haviam

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jogado. De todo modo, como previsto, o pesquisador relembrou as regras do jogo e, desta
vez, apresentou mais alguns exemplos de jogadas possíveis. Algo importante a se destacar
é que, de fato, os sujeitos demonstraram um considerável nível de apropriação das regras
do jogo no início da etapa 2, sendo quase que inexistente o momento de retirada de
dúvidas após início das partidas iniciais, se resumindo a apenas uma pergunta da aluna
“C” após uma “colheita”, que poderá ser acompanhada a seguir no recorte da transcrição
da partida:

0 0
5 0 5 0

8 3 8 0
4

16. (C) Pode fazer assim?


17. “C” pergunta sobre a jogada que acabou de fazer.
18. (P) Pode sim! Só uma dúvida... Vocês duas também podem... Podem tirar...
19. “P” se refere às alunas “A” e “B”, que estão competindo em outro tabuleiro.
20. (P) Ela perguntou mais uma vez... É um tipo de regra que a gente também viu no final da
aula. Tinham três sementes nessa cova vermelha. Ela tirou as três e colocou na próxima.
É uma jogada possível. Como restou três na última, ela pode colher. Ok?
21. As alunas “A” e “B” sorriem.

É importante destacar que, mesmo em seu questionamento, a aluna “C” demonstra


entendimento do funcionamento do jogo, em que sua pergunta apresenta muito mais um
caráter de certificação (item 16).
Com a preocupação de evitar as dificuldades de compreensão das regras do jogo
presentes na etapa 1, o pesquisador busca enfatizar os principais pontos de dúvidas em
sua retomada das instruções do jogo. Mas pode ser percebido abaixo, no recorte da
transcrição, que os sujeitos já haviam se apropriado das regras do jogo:

6. (P) Vocês se lembram quando é que o jogo se encerra?


7. (C) Quando fica com quatro!
8. (B) Quando fica quatro.
9. (P) Ah, ok. Muito bem.

4
Partindo da cova superior e seguindo o sentido horário, as covas de todas as representações desta página
são, respectivamente, amarela, vermelha, branca, roxa e verde.

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10. “D” remove as sementes da cova branca e as redistribui de uma em uma, resultando em:

14
1 0

4 0
5

11. (P) Ou quando, se por acaso demorar muito o jogo, mais de cinco rodadas no final sem
ninguém colher, não é. Aí a gente também encerra.

Vale a pena enfatizar que a informação levantada pelo pesquisador não interferiu
nas situações em que os sujeitos estavam inseridos naquele momento. Ou seja, a
intervenção do pesquisador não teve o impacto de influenciar a tomada de decisões dos
sujeitos participantes.
A partir da análise do processo de devolução e da dimensão adidática das
situações envolvendo partidas de Mankala Colhe Três nos estudos preliminares e nas
etapas 1 e 2 do dispositivo experimental central, é possível concluir que, por meio de uma
análise cuidadosa das principais dificuldades encontradas nas situações dos estudos
preliminares, conseguiu-se preparar um dispositivo experimental que fortalecesse o
caráter adidático das situações de jogo como o Mankala Colhe Três.

7. Considerações Finais
Este artigo representa parte de uma pesquisa mais ampla sobre o potencial didático
do jogo Mankala Colhe Três. Buscando aprofundar o estudo feito pelos produtores do
jogo por meio do Projeto Rede, a pesquisa de Santos (2014) busca apresentar um trabalho
mais profundo e com um vasto repertório de possibilidades de análise.
A Teoria das Situações Didáticas fundamenta o trabalho não apenas nas análises
dos resultados, mas dando auxílio à elaboração do dispositivo experimental central,
quando busca desenvolver um experimento que propicie a passagem dos sujeitos por
situações de ação, formulação e validação, e quando pensa cuidadosamente o processo de
devolução e o caráter adidático das situações envolvendo o Mankala Colhe Três.

5
Partindo da cova superior e seguindo o sentido horário, as covas desta representação são, respectivamente,
amarela, vermelha, branca, roxa e verde.

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O presente artigo buscou apresentar um dos blocos de análise da pesquisa de
Santos (2014), que trata justamente do processo de devolução e do caráter adidático das
situações com o Mankala Colhe Três e, dentre os principais resultados, foi possível
perceber que, a partir da análise dos estudos preliminares e da identificação das principais
dificuldades encontradas nas situações didáticas envolvendo o Mankala Colhe três,
conseguiu-se preparar um dispositivo experimental que fortalecesse o caráter adidático
das situações de jogo como o Mankala Colhe Três devido a um estudo cuidadoso do
processo de devolução das situações, que tinha como momento crucial a passagem das
instruções do jogo.

8. Referências

ANDRADE, Juliana ; LEAL, Yara. ; MONTEIRO, Andréa ; ANDRE, Regina;


MACLYNE, Diógenes; TELES, Rosinalda; GITIRANA, Verônica. Mankala Colhe Três.
In: GITIRANA, Verônica; TELES, Rosinalda; BELLEMAIN, Paula Moreira Baltar;
CASTRO, Airton Temistocles de; CAMPOS, I; LIMA, Paulo Figueiredo; BELLEMAIN,
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BARROS, Lílian Débora de Oliveira. Análise de um jogo como recurso didático para
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Matemática e Tecnológica, Recife, Universidade Federal de Pernambuco, 2012.

BROUSSEAU. Guy. Fundamentos e Métodos da Didáctica da Matemática. In:. BRUN,


Jean (Org.). Didática das Matemáticas. Lisboa, Instituto Piaget. 1996, p. 35- 113.

________. Introdução ao Estudo das Situações Didáticas: conteúdos e métodos de


ensino. Tradução de Camila Bogéa. São Paulo, Ática, 2008.

GITIRANA, Verônica; TELES, Rosinalda; BELLEMAIN, Paula Moreira Baltar;


CASTRO, Airton Temistocles; CAMPOS, Iolanda ; LIMA, Paulo Figueredo;
BELLEMAIN, Franck. Jogos com Sucata na Educação Matemática. 1ª ed. Recife,
Editora Universitária da UFPE, 2013.

GRANDO, Regina Célia. O conhecimento matemático e o uso de jogos na sala de


aula. Tese de Doutorado. Campinas, Faculdade de Educação, Universidade Estadual de
Campinas, 2000.

KOLODZIEISKI, Josiane de Fátima. Jogos e atividades lúdicas: uma contribuição no


processo ensino-aprendizagem. Anais do II Simpósio Nacional de Ensino de Ciência e
Tecnologia. Artigo nº 25, 2010.

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Educação Matemática com as Escolas da Educação Básica: interfaces entre pesquisas e salas de aula
MUNIZ, Cristiano Alberto. Brincar e jogar: enlaces teóricos e metodológicos no
campo da educação matemática. Belo Horizonte, Autêntica Editora. (Coleção
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XIII Encontro Nacional de Educação Matemática ISSN 2178-034X

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