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Educação Matemática com as Escolas da Educação Básica: interfaces entre pesquisas e salas de aula

NARRANDO A PRODUÇÃO DE GRÁFICOS DE SETORES DAS


CRIANÇAS: O PENSAMENTO ESTATÍSTICO EM QUESTÃO

Roberta Schnorr Buehring1


Regina Célia Grando2

Resumo
O artigo narra a experiência de uma professora de primeiro ano do Ensino Fundamental
ao ensinar gráficos de setores para as crianças e sua própria aprendizagem docente
baseada na pesquisa da própria prática (COCHRAN-SMITH E LYTTLE, 1999)
Fundamentado na teoria da experiência de Dewey (1979) e atento aos contextos de
aprendizagem na infância, o texto costura teoria e prática, reflexão e ação tendo como
pauta principal a educação estatística. O formato narrativo da pesquisa fundamenta-se em
Clandini e Clonelly (2015) que consideram a continuidade, a interação e a situação como
dimensões simultâneas da investigação e, portanto, tem o seu foco na vida das pessoas
que acontece no ambiente escolar. Buscamos embasamento em Lopes (2012) para
entender o pensamento estatístico das crianças e concluímos que as crianças são capazes
de pensar e raciocinar estatisticamente, apesar do conceito de gráfico de setores estar em
construção.

Palavras-chave: Pensamento estatístico; Experiência; Infância; Narrativa.

1. Introdução

O ensino da estatística, conforme documentos oficiais, deve estar presente desde


os primeiros anos do Ensino Fundamental e esta é uma afirmação que vem sendo tratada
e ampliada no Brasil, especialmente desde 1997, a partir da publicação dos PCN
(Parâmetros Curriculares Nacionais). A Estatística, inserida nos currículos de
matemática, requer um tipo especial de pensamento porque lida com “dados” e não
“números” por si só. Os dados carregam consigo um significado, uma intenção de
responder a questionamentos ou tomar decisões, mas sem a exigência da certeza, sem

1
UFSC, Prefeitura Municipal de Florianópolis; robertaschb@gmail.com
2
UFSC; regrando@yahoo.com.br
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trazer apenas uma resposta certa ou errada, mas diferentes formas de ver a realidade. Este
artigo busca evidenciar a importância de entender sobre “como” se dá o pensamento
estatístico infantil e para isso, narra de forma reflexiva uma experiência de representação
de dados em tabelas e gráficos de setores em uma sala de aula do primeiro ano do Ensino
Fundamental. A narrativa (CLANDININ; CLONELLY, 2015) traz as reflexões de uma
pesquisa da própria prática (COCHRAM-SMITH; LYTTLE, 1999) que promove
experiências educativas (DEWEY, 1979) que visam desenvolver o pensamento estatístico
das crianças (LOPES, 2012), bem como o papel do professor na tarefa de compreender
como ele se dá e de fomentar esse tipo de pensamento. Trata-se de parte da pesquisa de
doutorado em andamento da primeira autora desta comunicação.

2. Experiência, pensamento e conhecimento da prática

A filosofia da experiência de Dewey embasa-se na ideia de que cada indivíduo


tem suas próprias experiências de vida influenciadas pelo meio e as relações que tem com
esse meio. A experiência é uma força viva e em marcha (contínua) controlada e
desenvolvida pela inteligência humana. O pensamento é instrumento que se usa para
resolver problemas da experiência e conhecimento é a sabedoria gerada pelas busca de
resolução desses problemas. O ser humano se educa por intermédio de experiências
vividas de forma refletida e inteligente. Portanto, para educar é preciso promover
experiências contínuas e interativas nas quais os estudantes possam questionar a própria
condição de vida e ampliar sua visão de mundo. A continuidade e a interação são
características longitudinais e relacionais da própria experiência. A continuidade se dá na
capacidade de relacionar uma experiência a outra, de partir para uma próxima experiência
tendo em vista a anterior e assim por diante, como numa espiral: uma experiência anterior
influenciando uma experiência futura. A característica relacional se dá pela condição
histórica, cultural, social do indivíduo. Por isso, “as condições encontradas na experiência
atual do aluno são utilizadas como fonte de problemas” (DEWEY, 1979, p. 81). Para o
autor, o professor não precisa preocupar-se com o “futuro” do estudante, mas com o
presente, porque o presente e as experiências educativas presentes trazem e criam
condições para as futuras experiências.

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Os problemas da vida cotidiana dos estudantes podem ser particulares como suas
preferências por este ou aquele sabor ou mais abrangentes como a organização das
cidades, os modos de vida ou questões ambientais planetárias, desde que eles
compreendam a sua própria relação com tais problemáticas. Então, cabe ao professor estar
atento que os problemas potencializadores de suas aulas surjam das condições presentes
dos estudantes, que estejam dentro de suas capacidades e que despertem uma busca ativa
por novas informações, novas ideias e novas experiências que gerarão novos problemas.
Para Dewey (1979), a educação leva à compreensão do presente e dos problemas em que
ele se debate, mas tem o seu fim, sobretudo na ciência, que é a herança deixada pela
humanidade.

Sendo o professor aquele que possibilita as experiências educativas na escola,


podemos considerar que o que ele precisa saber para ensinar “bem” é, em parte, produzido
dentro de sua própria sala de aula como lugar de investigação. Cochran-Smith e Lyttle
(1999) defendem uma concepção de aprendizagem docente denominada “conhecimento-
da-prática” que consiste em conhecer as teorias, as produções acadêmicas de outros
profissionais e tomá-las como base de questionamentos que impulsionem uma prática de
investigação e produção de teorias dentro da sala de aula. Para Cochran-Smith e Lyttle
(1999), as teorias construídas pelos professores a partir de atitude investigativa são
conectadas com questões sociais, culturais e políticas mais gerais.

Os autores ainda defendem que professores que pesquisam são teóricos


conectados com a própria prática e colocam-se numa posição diferenciada porque
problematizam o próprio conhecimento. Não se trata de uma simples relação entre
professor, conhecimento e ensino (ou aplicação) porque o próprio professor e o
conhecimento se articulam, se transformam em uma relação com o meio, com as
subjetividades da prática e com questões políticas e sociais mais amplas. Trata-se de
produção de conhecimento local, ou seja, de quem “está dentro” e, portanto, é capaz de
reformular modelos a partir da análise da prática.

Por acreditarmos nessa concepção de aprendizagem docente, produzimos


pesquisa em sala de aula, “pesquisa da própria prática”. Esse tipo de pesquisa nos
motivou a compreender o que é e como se dá o pensamento estatístico. Buscamos essas
questões em Lopes (2012), que à luz de Abbagnano (2000) e Mouton (1969), entende que
pensamento é aquilo que é trazido à existência através da atividade intelectual. A autora
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ainda complementa que o pensamento é um “produto da mente que pode surgir mediante
atividades racionais do intelecto ou por abstrações da imaginação” (LOPES, 2012, p.
161). As operações racionais de análise, síntese, comparação, generalização e abstração
são produtos do pensamento que se refletem na linguagem e também a determinam. O
pensamento pode ser dedutivo (do geral ao particular), indutivo (do particular ao geral),
analítico (separa o todo em partes a serem identificadas ou categorizadas), sistêmico
(revela uma visão complexa de múltiplos elementos com suas diversas inter-relações), ou
crítico (que avalia o conhecimento).

De acordo com Lopes (2012), o raciocínio é uma operação lógica, um processo


do pensamento, discursivo e mental que utiliza mecanismos de comparações e abstrações.
É a partir do raciocínio que se chega ao método e por ele é possível chegar a dados
puramente teóricos. Assim, na estatística “em que não dispomos de premissas exatas para
levar à execução de uma ação” (LOPES, 2012, p.162), o raciocínio encontra-se no âmbito
do “provável”. As formas de raciocínio são explicação, inferência, verificação e
demonstração. Na educação estatística utilizamos o raciocínio dedutivo, que consiste em
uma síntese de juízos que possibilita relacioná-los logicamente (LOPES, 2012). Segundo
Lopes (2012), os juízos são “premissas” (ponto de partida), e aquelas a que se chega são
“conclusão”. Também usamos o raciocínio indutivo, que generaliza uma propriedade ou
uma relação, evidenciada em um número de casos particulares, para todos os casos
semelhantes. E o raciocínio por analogia, que identifica “certas semelhanças entre objetos
ou relações, supõe-se que existam outras características semelhantes entre esses objetos
ou relações” (LOPES, 2012, p. 163).

3. Narrativas de aula como metodologia

A pesquisa narrativa, para Clandinin e Clonelly (2015), deriva de uma visão


deweyana da experiência e está fundada num espaço tridimensional de investigação. Esse
espaço tridimensional da pesquisa leva em conta, simultaneamente, a temporalidade
(continuidade do presente, passado, futuro), o pessoal e social (interação) e o lugar
(situação).

Uma pesquisa narrativa é uma história em desenvolvimento, que flui, que vai e
vem no tempo, no contexto material e social, e na vida das pessoas. As interpretações dos
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eventos a serem narrados dependem da reflexão daquele que escreve e por isso podem ter
um senso provisório. Experienciar a experiência (CLANDININ; CLONELLY, 2015) é
pesquisar sobre uma experiência, um fragmento de uma história contínua, um ponto, uma
escolha. A narrativa mantém sua dimensão temporal ao deixar claro que a escolha de um
fragmento se dá no meio de uma história, que aconteceram muitas coisas antes, e a história
seguirá seu curso na narrativa. Com essa concepção, a narrativa presente nesta
comunicação é um fragmento de aula, de uma história de uma professora e seus alunos e,
ao mesmo tempo, o fragmento de uma tese.

Assim, a narrativa se dá como “um discurso constituinte e não mera forma de


comunicação de realidades preexistentes. Equivoca-se quem pensa a narrativa como
forma literária específica” (GARNICA, 2015, p. 182). A narrativa como modo de pensar
e organizar uma pesquisa relaciona-se diretamente com os objetivos que o pesquisador
carrega, a sua pauta ou objetivos.

A narrativa que segue é a reconstrução de uma experiência que ganhou significado


a partir do processo reflexivo (GARNICA, 2015) de olhar para as aprendizagens
estatísticas das crianças. Assim, não estaremos apenas lendo sobre estatística, mas sobre
as necessidades infantis dos participantes da pesquisa, das suas capacidades de raciocinar,
de compreender e relacionar as representações estatísticas com o mundo que os cerca, da
realidade espacial e histórica da escola brasileira, das concepções e limitações da
professora envolvida e das vidas das pessoas, que acontecem na escola e fora dela, num
continum. Durante a leitura é possível perceber a articulação das dimensões da narrativa
e a impossibilidade de separar ou dissecar esta ou aquela dimensão da investigação pois
tudo acontece de maneira contínua, simultânea e inter-relacionada.

4. Narrativa da experiência: princípio de educação na prática

Naquele dia fui para a escola cheia de objetivos, certa de que ensinaria gráficos
de setores para as crianças a partir de uma experiência de tomar decisões, de escolher
entre “isto ou aquilo”.

Então, como as crianças nunca haviam trabalhado com este tipo de gráfico, resolvi
primeiro mostrar como ele funcionava logo no início da aula: contei as crianças que

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chegavam na sala uma a uma e então fui colocando fatias de e.v.a. pre-recortadas e
imantadas no quadro de metal, formando um círculo. Muitos que chegavam nem se
sentavam, já ficavam ali me ajudando e percebendo o que eu estava fazendo:
correspondendo uma fatia para cada criança que chegava. O total da turma são 24 crianças
e 3 faltaram naquele dia, o círculo ficou quase completo. Perguntei o que faltava pra ele
ficar completo até que eles perceberam que faltavam os colegas que não vieram na aula.
Então, eles nomearam cada um dos faltantes e fui colocando as fatias laranja
correspondentes aos que estavam faltando. Mostrei que o círculo completo representa
toda a turma, a população da turma. Expliquei que aquilo era um gráfico de setores, e
questionei-os sobre o que aquele gráfico estava mostrando, o que ele “dizia”.

Imagem 1: Gráfico de setores produzido coletivamente


Fonte: registro de aula de Roberta S. Buehring

Eles logo responderam que ele dizia quantos vieram e quantos que não vieram na
aula hoje. A partir das falas, escrevi o título do gráfico. As crianças ainda comentaram
que o gráfico parecia uma pizza, uma roda de carro, roda de bicicleta. Confirmei então,
que aquele gráfico também era muito conhecido como gráfico de pizza.

Depois, escrevemos juntos a legenda, escrevemos a fonte e a população e então


fiz alguns outros questionamentos para as crianças a respeito de “maioria, minoria,
população e total”. Eles ainda queriam mover as peças e ver como ficaria se todos viessem
à aula ou se só um faltasse e fomos experimentando outras situações.

Logo depois, li o poema “Ou isto ou aquilo” de Cecília Meireles. Perguntei por
que o poema tinha esse título e pedi que alguns explicassem o que haviam entendido.
Depois, pedi que eles contassem situações das suas vidas em que tinham que escolher
entre uma coisa ou outra, ou isto ou aquilo. E todos eles tiveram sua vez para contar
histórias de vida. Em muitas falas, percebi que as crianças diziam “eu escolhi um gato”,
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mas não diziam “entre um ter um gato ou um cachorro, eu escolhi um gato” ou “havia
uma ninhada de três gatinhos e eu escolhi o gatinho com tais características”. Então, em
suas falas, no momento em que organizavam seu pensamento eu os questionava “escolheu
um gato, mas quais eram suas opções de escolha? Gato ou....?”.

Com a leitura do poema e as histórias de vida, nós refletimos sobre o efeito causa
e consequência, em que implicam as escolhas que realizamos na vida. Dewey (1979)
explica que a relação causal se manifesta de forma concreta para as crianças, que seus
cotidianos estão repletos de relações de meios e consequências. Dessa forma, é papel da
escola criar situações para que a criança passe a perceber esta relação e então se torne
mais capaz de selecionar, organizar categorias, avaliar e tomar decisões.

Tendo em vista tal necessidade, convidei as crianças para brincar de “Ou isto ou
aquilo”? Seria uma atividade simples de apenas escolher esta ou aquela opção e colorir
sua escolha na folha.

Imagem 2: Atividade “Ou isto ou aquilo”


Fonte: atividade de aula produzida por Roberta S. Buehring

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Quando planejei a atividade, pensei que as crianças escolheriam rapidamente suas
preferências. A representação em tabelas coletivas seria uma das fases do ciclo
investigativo (EVANGELISTA; GUIMARÃES, 2019) sobre suas preferências e viria
apenas para sistematizar as informações que mais tarde seriam representadas no gráfico.
No entanto, levamos muito tempo nessa etapa de sistematizar. Apesar de eu tê-la
denominado “uma brincadeira”, as crianças levaram suas escolhas à sério, demoraram
para tomar suas decisões e informa-las a fim de completar as tabelas coletivas das
escolhas.

Alguns escolhiam e depois mudavam de ideia, apagavam e coloriam novamente.


Eles conversavam entre si para avaliar suas possibilidades de escolha e isso prova que foi
uma “atividade inteligente” (DEWEY, 1979) em que as crianças relacionaram meios e
fins e tornaram explícita a relação causa-efeito.

Imagem 3: Tabulação coletiva das escolhas das crianças sobre suas preferências
Fonte: registro de aula feito por Roberta S. Buehring

Apesar de as opções presentes na folha de tarefas estarem descontextualizadas, as


crianças trataram de verbalizar os contextos imaginados. Os seus comentários mostraram
que dentro de um contexto, as decisões as quais precisamos tomar nem sempre se
resumem a “isto ou aquilo”, podendo sofrer influência de diversos fatores. Por exemplo,
escolher entre brincar de bola ou videogame vai depender das condições climáticas do
dia, do lugar em que tenho para jogar bola ou videogame, dos amigos que tenho para
jogar ou se estou sozinho, das minhas condições físicas do momento e muitas outras
questões.

As crianças surpreenderam pelo fato de terem tomado a tarefa de forma crítica e


reflexiva e não como um preenchimento simples e mecânico de uma “folha de tarefas”
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como eu pensei que seria. Eu às subestimei em suas capacidades de pensar na sua própria
realidade. Acredito que o momento da leitura do poema, da conversa sobre o que seria
tomar decisões às fez olhar para sua própria vida e suas situações de escolha. As crianças
me mostraram que a escola serve ao tempo presente (DEWEY, 1979) e me fizeram frear
meus muitos anseios e objetivos previstos para este dia de aula.

Fizeram suas escolhas, apesar de individuais, em meio a muita conversa e


discussão com os colegas, depois contamos os votos e anotamos na tabela. Enquanto elas
informavam suas decisões levantando suas mãos para que eu contasse e para que
marcássemos os risquinhos na tabela, ouvi muitas crianças dizendo “prof, eu sou bola,
anotou o meu?”. Elas precisavam se certificar que estavam sendo representadas na tabela
e eu resolvi valorizar esta necessidade expressada por elas contando e recontando os votos
várias vezes para cada escolha, pois não podíamos errar, não podíamos esquecer de
ninguém. As contagens deixaram de ser apenas números, as tabelas não mostraram apenas
quantidades porque os dados passaram a falar sobre as crianças e elas estavam ali,
conferindo tudo, como se fossem guardiãs de sua própria cultura. E experiência de
compreender que o seu voto estava ali representado com um “risquinho” dentro de uma
organização retangular de linha e coluna levou as crianças a compreenderem as
especificidades gráficas desse tipo de representação (EVANGELISTA; GUIMARÃES,
2019).

Quando alguém mudava de ideia, os dados coletivos da tabela precisavam ser


modificados, mostrando que as quantidades eram variáveis e dependiam das crianças. As
contagens registradas nas tabelas coletivas variavam, mostrando que os dados refletem
um certo momento de contagem e que num outro momento os totais poderiam ser outros.
As crianças mostraram que as tabelas não são só uma atividade de “preencher quadros”,
mas de organizar, compreender e interpretar os dados. E nossas aprendizagens foram
acontecendo de acordo com a teoria da experiência de Dewey (1979), a qual “não pode
ter, como ponto de partida, a matéria organizada do ponto de vista do adulto e do
especialista” (p. 87). E eu, uma adulta naquele meio infantil, precisei adequar meus
tempos e minhas preocupações com o conteúdo de estatística, com a minha pesquisa e
deixei que “a aula me levasse”, até que deu o sinal!

O envolvimento meu e das crianças na aula gerou uma experiência educativa.


Percebi ter transcendido meu simplório objetivo de ensinar gráficos de setores porque
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juntos, nós aprendemos a fazer correspondências, registrar opiniões que seriam “votos”
em tabelas, a perceber o que significam variáveis, a analisar as perguntas feitas, avaliar,
ponderar as influências de ordem pessoal e social em relação às nossas escolhas. De
acordo com Lopes (2012), o raciocínio é o meio pelo qual defendemos uma conclusão a
partir de um conjunto de premissas, por isso que fazer escolhas é tarefa que exige
raciocínio e, portanto, as escolhas realizadas nessa aula não foram tarefa fácil. Analisamos
que quando escolhemos uma coisa, talvez precisemos deixar outra e isso gera
consequências. Tudo isso nos coloca no lugar de pessoas em crescimento, em expansão,
e não seria possível aprender estatística sem dar esse primeiro passo de olhar para nossas
próprias escolhas organizadas em tabelas. Creio que saímos desta aula melhores do que
chegamos e estamos prontos para continuar, para o próximo passo em frente e, talvez,
maior do que este.

Tenho consciência de que aprendi com essa experiência e o lugar que ocupo na
sala de aula, de adulto, de pessoa mais experiente me dá condições de retomar, refletir e
avaliar a própria experiência para então, planejar as próximas ações do grupo. O ponto de
partida será, sempre, a experiência atual de vida das crianças, sua realidade (DEWEY,
1979). Mas, o lugar do adulto é daquele que vê o mundo do ponto de vista das crianças
e também com suas próprias lentes de professor capacitado a promover novas
experiências que ampliem o mundo infantil. Então, após muito refletir, no outro dia,
demos continuidade ao trabalho. Mostrei novamente o gráfico com os presentes na aula,
o retomamos lendo o título e a legenda e experimentamos para que eles servem. Vimos
como foi importante ter um título, uma legenda e a fonte no gráfico pois assim, foi
possível compreender que a informação tratava de certo momento (a aula anterior neste
caso).

Lancei o desafio que cada grupo de 4 crianças, com a posse de uma das tabelas de
contagens feitas na aula anterior, transpusesse as informações das mesmas para gráficos
de setores. Entreguei à cada grupo, um prato de papelão para servir de base para o círculo
(100%) e também muitas fatias de e.v.a, cada uma correspondendo a 1/24 do círculo em
conjuntos de 3 cores diferentes. Depois, ainda teriam que colorir e escrever a legenda e
então copiar o gráfico de setores para uma folha que já estava com um círculo desenhado.

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Imagem 4: representação dos dados no gráfico de setores


Fonte: registro de aula produzido por Roberta S. Buehring

No decorrer da atividade, observei que as crianças contavam os risquinhos da


tabela, faziam a correspondência dos risquinhos para as fatias da pizza. Depois,
precisavam lembrar dos colegas que haviam faltado naquele dia para completar o
círculo.... E, ainda, havia a questão espacial de organizar todas as 24 peças dentro da
bandeja. Entreguei aos grupos uma quantidade muito grande de peças, não seria preciso
utilizar todas e eles tiveram que descobrir isso também: quantas usar para preencher a
bandeja? Esperei que os grupos chegassem à suas próprias conclusões, levantando
hipóteses, experimentando e trocando ideias.

“Na educação matemática e estatística utilizamos o raciocínio dedutivo,


que consiste em uma síntese de juízos que permite estabelecer uma relação
de necessidade lógica entre eles. Os juízos que servem de ponto de partida
são designados ‘premissas’, e aqueles a que se chega são designados
‘conclusão’.” (LOPES, 2012, p. 162)

Observando vídeos feitos nos grupos durante a aula, é possível perceber os


caminhos de raciocínio dos grupos e fica notável que partiram de premissas distintas e
chegaram a suas conclusões.

Um grupo preencheu toda a bandeja com 24 fatias de uma cor só, olhando para a
questão espacial, essas crianças partiram da premissa de que primeiro precisariam
encontrar o total e preencher o círculo para depois retirar as peças das “minorias”. Assim,
depois de fazer contagens totais na tabela, preencheram a bandeja com 24 fatias
vermelhas. Depois, retiraram 3 fatias vermelhas para trocar por 3 pretas que
representavam “os que não vieram na aula”. Depois, ainda retiraram mais 3 vermelhas,
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trocando por fatias amarelas que representariam “os que preferem dia de chuva”. As
outras 18 fatias restantes representaram os que preferiam dia de sol. Essas crianças
demonstraram um raciocínio que teve o todo como ponto de partida e, depois, olhou para
as partes menores.

Outro grupo pensou das partes para o todo e foi contanto os totais de cada variável
da tabela e colocando em correspondência um a um na bandeja. Uma criança com o dedo
em cima dos risquinhos da tabela fazia a contagem em voz alta, enquanto as outras
pegavam uma fatia para cada palavra dita (ou número ditado). Depois que a
correspondência da categoria “prefere jogar videogame” estava encerrada, o grupo ainda
conferia o total de risquinhos com o total de fatias no gráfico. E assim, fizeram para a
categoria “prefere jogar bola”. No entanto, houve conflito nesse grupo em relação ao total
de fatias a colocar no gráfico: uns esqueceram que 3 alunos ausentes na aula (ou que não
opinaram) deveriam ser representados e outros queriam simplesmente encher a bandeja
de fatias, umas por cima das outras, para utilizar todas. Nesse ponto, as crianças
discutiram, colocaram e recolocaram as peças até que chegaram a um consenso.

E outro grupo teve um raciocínio diferenciado: usou a premissa de que juntando


as partes teria o todo, no entanto, sem apoiar-se na contagem e sua correspondência um a
um. Olhando apenas para os totais de cada uma das categorias representadas em sua
tabela: “um colega mora em apartamento”, colocaram uma fatia no gráfico, depois
olhando para o total “20 moram em casa”, contaram 20 fatias de outra cor para incluir na
bandeja. Esse grupo também enfrentou certo conflito pois não lembraram, à princípio,
dos 3 colegas faltantes que não haviam sido consultados. Assim, pensando que havia algo
de errado em suas contagens, as refizeram três vezes, até que a professora os questionou
sobre quantos haviam faltado a aula naquele dia.

Os exemplos dos três grupos mostram que as crianças precisaram coordenar várias
informações para produzir o gráfico: localizaram informações no gráfico de setores que
mostrava os presentes e ausentes no dia da pesquisa, consultaram a legenda e ainda leram
as tabelas que mostravam as escolhas feitas na última aula em colunas e linhas.
Precisaram também, mobilizar seus conhecimentos sobre contagem, correspondência um
a um e perceber o número como quantidade total de uma contagem. Desse modo,
estabeleceram relações lógicas entre informações e produziram no gráfico uma síntese de
juízo, demonstrando sua capacidade de raciocínio dedutivo (LOPES, 2012).
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Ao final do trabalho, quando os gráficos estavam prontos, passei pelos grupos
fazendo questionamentos do tipo “então nessa sala a maioria das crianças mora em casa
ou apartamento”, ou “vocês acham que se eu quisesse agradar a maioria das crianças da
turma, deveria trazer uma bola ou um videogame”. As crianças proferiam respostas
imediatas e me deixavam claro que eu estava fazendo perguntas muito fáceis ou óbvias.
Um dos grupos respondeu “a maioria mora no Morro, professora!” e ainda quis fazer uma
contagem para me provar isso. As suas reações me mostraram que meu objetivo para
aquela aula havia sido alcançado, que muitas daquelas crianças já estavam raciocinando
para além do que aqueles dados diziam. Seria necessário dar outro passo adiante, seria
necessário ampliar questionamentos, estabelecer outras relações e então outras
conclusões poderiam surgir a partir daqueles dados.

5. Considerações Finais

Na introdução deste trabalho destacamos a intenção de entender “como” se dá o


pensamento estatístico infantil e podemos afirmar, ao final desse fragmento de narrativa
de experiência que, antes de entender o pensamento infantil é preciso respeitar a infância.
Não podemos dissecar o raciocínio infantil até porque cada criança é única, a partir de
suas experiências de vida e por isso é preciso primeiro respeitá-la como pessoa no tempo
presente e não como um “futuro adulto”.

Relacionando a narrativa com o referencial teórico, foi possível “ver” e até mesmo
provar que as crianças pensam e resolvem problemas usando a estatística como meio de
organizar dados e compreendê-los. Elas são capazes de raciocinar de forma dedutiva para
tirar conclusões por meio da estatística. Da mesma forma, foi possível observar que há
um caminho repleto de conexões a ser percorrido para chegar a tal raciocínio.

Assim, o ensino de estatística para as crianças deve acontecer em consonância


com a linguagem, pois é por meio da linguagem que o pensamento se organiza e articula,
além de ser mais uma forma de comunicação e de trocas de conhecimento para tomar
decisões. Também é por meio da linguagem que nós, adultos podemos compreender o
pensamento das crianças. A partir da compreensão do pensamento infantil poderemos
estar preparados para os próximos passos, as próximas questões a serem resolvidas por
meio da estatística. Precisamos ter ciência de que aprender estatística é importante para
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que as crianças compreendam melhor a sua condição de vida no tempo presente, para que
possam resolver seus problemas hoje e ampliar seus conhecimentos que influenciarão as
experiências futuras.

Vimos que a estatística na escola deve ser uma experiência de vida e, portanto,
imersa em contextos culturais e sociais para resolver questões e tomar decisões que façam
sentido na atualidade. As crianças, quando procuram respostas à questões significativas
por meio da estatística, se colocam em busca ativa de novas questões e novas relações de
raciocínio se estabelecem. Podemos entender que o ensino de estatística para as crianças
é muito mais do que o ensino de números ou técnicas, mas está centrado na
democratização da sala de aula pois a educação não prepara para a vida porque ela é vida
(DEWEY, 1979)

6. Referências

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DEWEY, John. Experiência e Educação. 3ed. São Paulo: Ed. Nacional, 1979.

EVANGELISTA, Betânia; GUIMARÃES, Gilda. Análise de atividades sobre tabelas em


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