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Ferenczi – Aula 3

De acordo com a historiografia da psicanálise, Ferenczi na grande maioria de suas obras


pode ser considerado um autor suplementar à teoria freudiana, não se opondo muitas
vezes a este, contudo, em um dos principais textos de Ferenczi (“Confusão de línguas
entre adultos e crianças”) ele passa a divergir de Freud na questão da produção do
trauma no indivíduo. Para Freud, o trauma é uma instância constituinte, ou seja, todos
os indivíduos passam por isso durante o seu desenvolvimento (toda interação/sedução
durante a primeira infância é traumática), já Ferenczi entende que essa relação não
necessariamente é traumática, se conduzida de maneira adequada e tranquila, porém
pode ser, desde que haja uma certa turbulência. Além disso, Freud entende que o trauma
uma vez estabelecido é submetido às instâncias do recalque, sendo reprimido e
“enclausurado” no inconsciente, já Ferenczi assume que o trauma não produz o
recalque, mas sim uma clivagem do aparelho psíquico, ou seja, a divisão dos âmbitos
consciente e inconsciente.
Para Ferenczi, o trauma ocorre a partir da chamada confusão de línguas, a qual consiste
nos diferentes comportamentos entre criança e adulto durante a interação sedutora, de
modo que aquela encontra-se no âmbito da ternura, do carinho, já este comporta-se de
acordo com o desejo puramente sexual. Assim, essa divergência de motivações atua
provocando uma confusão na própria criança, uma vez que ela espera o retorno do
carinho e da ternura praticada por ela, entretanto essa sedução vem em uma intensidade
desmedida, processo esse que provoca a clivagem do indivíduo. Vale ressaltar ainda que
Ferenczi não exclui na situação de abuso a sedução provocada pela própria criança,
contudo ele admite que esta seja de caráter ingênuo e sem qualquer tipo de desejo
sexual, sendo muito mais ligada ao apego que à própria sedução em si (linguagem pré-
sexual x linguagem genital). Dessa maneira, o indivíduo abusado é incapaz de
apresentar uma repulsa pelo ato e até mesmo pelo abusador, uma vez que ela encontra-
se confusa sobre o que realmente está acontecendo.
Partindo da premissa que o trauma em Ferenczi é muito mais significativo do que na
teoria freudiana, o aparelho psíquico utiliza-se de mecanismos extremos para tentar
apagá-lo da consciência, um desses mecanismos é a clivagem, a qual é refletida em uma
recusa da situação traumática, uma distorção dos afetos (“não foi bem assim que
ocorreu”), uma banalização dos fatos. Assim, o indivíduo não reprime aquela cena e a
tenta ignorar, podendo desenvolver diversos sintomas a partir disso, mas sim, passa a
normalizar aquela situação na tentativa de superar a própria angústia.
Existe, portanto, uma diferença entre o retorno do recalcado e do clivado, de modo que
aquele se estabelece na formação dos sintomas no indivíduo, ou seja, ele está sempre
tentando retornar e a cena traumática acaba por ser constantemente repetida, já o
clivado, por ser completamente recusado pelo aparelho psíquico, é como se o indivíduo
não tivesse vivido aquela situação. Dessa forma, quando ela voltar à consciência (no
ambiente da análise) será como se ela estivesse passando pelo trauma pela primeira vez,
o que seria muito mais intenso e perigoso para o próprio indivíduo (produção de uma
angústia excessiva em um curto período de tempo). É possível entender o indivíduo
clivado como fragmentado, como alguém que precisa ser integralizado, a forma para
que essa síntese aconteça é a partir da análise e da rememoração do trauma, para que ele
entenda que essa situação fez parte de sua vida e a partir disso possa elaborá-la.
Uma vez que a cena traumática é revivida pelo indivíduo abusado a partir da
integralização da clivagem essa cena passa a ser internalizada pela vítima, produzindo
distintas reações, entre elas a identificação com o agressor e a passividade em relação ao
trauma. Isso acontece devido à confusão de línguas estabelecedora do trauma em si, de
modo que essa distinção produz um estranhamento e até mesmo a incapacidade de
entender que aquele ato foi abusivo. Outra forma pela qual o indivíduo pode buscar para
se defender da rememoração do trauma pode consistir na progressão traumática, ou seja,
o indivíduo, a partir do estabelecimento do trauma, passa a amadurecer antes do tempo
(metáfora da fruta que é “machucada” pelo pássaro e amadurece mais rapidamente) e
cria como que uma casca protetora, entendendo que aquilo está tudo bem. Contudo, essa
casca não deixa de ser um mecanismo de defesa, pelo qual o amadurecimento precoce é
responsável pela retirada da ingenuidade infantil o que impediria a confusão de línguas
de ocorrer e, dessa forma, o abuso.

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