De acordo com a historiografia da psicanálise, Ferenczi na grande maioria de suas obras
pode ser considerado um autor suplementar à teoria freudiana, não se opondo muitas vezes a este, contudo, em um dos principais textos de Ferenczi (“Confusão de línguas entre adultos e crianças”) ele passa a divergir de Freud na questão da produção do trauma no indivíduo. Para Freud, o trauma é uma instância constituinte, ou seja, todos os indivíduos passam por isso durante o seu desenvolvimento (toda interação/sedução durante a primeira infância é traumática), já Ferenczi entende que essa relação não necessariamente é traumática, se conduzida de maneira adequada e tranquila, porém pode ser, desde que haja uma certa turbulência. Além disso, Freud entende que o trauma uma vez estabelecido é submetido às instâncias do recalque, sendo reprimido e “enclausurado” no inconsciente, já Ferenczi assume que o trauma não produz o recalque, mas sim uma clivagem do aparelho psíquico, ou seja, a divisão dos âmbitos consciente e inconsciente. Para Ferenczi, o trauma ocorre a partir da chamada confusão de línguas, a qual consiste nos diferentes comportamentos entre criança e adulto durante a interação sedutora, de modo que aquela encontra-se no âmbito da ternura, do carinho, já este comporta-se de acordo com o desejo puramente sexual. Assim, essa divergência de motivações atua provocando uma confusão na própria criança, uma vez que ela espera o retorno do carinho e da ternura praticada por ela, entretanto essa sedução vem em uma intensidade desmedida, processo esse que provoca a clivagem do indivíduo. Vale ressaltar ainda que Ferenczi não exclui na situação de abuso a sedução provocada pela própria criança, contudo ele admite que esta seja de caráter ingênuo e sem qualquer tipo de desejo sexual, sendo muito mais ligada ao apego que à própria sedução em si (linguagem pré- sexual x linguagem genital). Dessa maneira, o indivíduo abusado é incapaz de apresentar uma repulsa pelo ato e até mesmo pelo abusador, uma vez que ela encontra- se confusa sobre o que realmente está acontecendo. Partindo da premissa que o trauma em Ferenczi é muito mais significativo do que na teoria freudiana, o aparelho psíquico utiliza-se de mecanismos extremos para tentar apagá-lo da consciência, um desses mecanismos é a clivagem, a qual é refletida em uma recusa da situação traumática, uma distorção dos afetos (“não foi bem assim que ocorreu”), uma banalização dos fatos. Assim, o indivíduo não reprime aquela cena e a tenta ignorar, podendo desenvolver diversos sintomas a partir disso, mas sim, passa a normalizar aquela situação na tentativa de superar a própria angústia. Existe, portanto, uma diferença entre o retorno do recalcado e do clivado, de modo que aquele se estabelece na formação dos sintomas no indivíduo, ou seja, ele está sempre tentando retornar e a cena traumática acaba por ser constantemente repetida, já o clivado, por ser completamente recusado pelo aparelho psíquico, é como se o indivíduo não tivesse vivido aquela situação. Dessa forma, quando ela voltar à consciência (no ambiente da análise) será como se ela estivesse passando pelo trauma pela primeira vez, o que seria muito mais intenso e perigoso para o próprio indivíduo (produção de uma angústia excessiva em um curto período de tempo). É possível entender o indivíduo clivado como fragmentado, como alguém que precisa ser integralizado, a forma para que essa síntese aconteça é a partir da análise e da rememoração do trauma, para que ele entenda que essa situação fez parte de sua vida e a partir disso possa elaborá-la. Uma vez que a cena traumática é revivida pelo indivíduo abusado a partir da integralização da clivagem essa cena passa a ser internalizada pela vítima, produzindo distintas reações, entre elas a identificação com o agressor e a passividade em relação ao trauma. Isso acontece devido à confusão de línguas estabelecedora do trauma em si, de modo que essa distinção produz um estranhamento e até mesmo a incapacidade de entender que aquele ato foi abusivo. Outra forma pela qual o indivíduo pode buscar para se defender da rememoração do trauma pode consistir na progressão traumática, ou seja, o indivíduo, a partir do estabelecimento do trauma, passa a amadurecer antes do tempo (metáfora da fruta que é “machucada” pelo pássaro e amadurece mais rapidamente) e cria como que uma casca protetora, entendendo que aquilo está tudo bem. Contudo, essa casca não deixa de ser um mecanismo de defesa, pelo qual o amadurecimento precoce é responsável pela retirada da ingenuidade infantil o que impediria a confusão de línguas de ocorrer e, dessa forma, o abuso.