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Márcio Bilharinho Naves

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oro Ed d TR EMO

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Evgeni Pachukanis (1891-1937) foi a
grande expressão no campo do direito na
União Soviética, nos anos 1920. Seu livro
A teoria geral do direito e o marxismo,
MARXISMO E DIREITO
publicado em 1924, provocou uma verda- um estudo sobre Pachukanis
deira revolução teórica no campo jurídico.
Ão contrário da concepção marxista do-
minante, que criticava somente o conteú-
do de classe do direito, Pachukanis anali-
sou o vínculo entre a forma jurídica e a
forma da mercadoria demonstrando que
a própria forma do direito possui uma na-
tureza burguesa. Assim, ele revelou o nexo
profundo existente entre a crítica de Marx
à economia política, exposta em O capi-
tal, e a crítica do direito.
Negando a possibilidade de se instituir
um “direito socialista”, e sustentando a tese
da necessidade da extinção da forma jurí-
dica, Pachukanis denuncia o “socialismo
jurídico” em todas as suas diversas moda-
lidades.
As transformações operadas na União
Soviética nos anos 1930, com a progressiva
consolidação do domínio stalinista, acarre-
tam a reprodução de uma forma específica
de capitalismo, o capitalismo de Estado,
exigindo o reforço das relações jurídicas. A
concepção de Pachukanis choca-se, então,
frontalmente com a nova orientação políti-
ca e teórica. Após ser forçado a fazer vári-
as autocríticas, termina executado em ja-
neiro de 1937.

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Copyright O Márcio Bilharinho Naves, 2000

Revisão
Daniela Jinkings
Eloísa da Silva Aragão
Elzira Arantes

Capa
Ivana Jinkings e Antonio Kehl
(sobre desenho de Steinlen reproduzido de capa da coleção
“Critique du droit”, Presses Universitaires de Grenoble / Maspero)

Diagramação e composição eletrônica


Set-up time Artes Gráficas
Produção gráfica
Marcel Iha
Impressão e acabamento
Prol Gráfica

Esta edição contou com o apoio do Programa de Mestrado em Sociologia do Instituto


de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas.
Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida
sem a expressa autorização da editora.

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
N243m
Naves, Márcio Bilharinho, 1952-
Marxismo e direito : um estudo sobre Pachukanis / Márcio Bilharinho Naves. -
São Paulo : Boitempo, 2008.
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-85934-63-7
1. Pachukanis, Evgeni Bronislavovitch, 1891-1938. 2. Direito e socialismo. 3.
Direito - Filosofia. 1. Título.
CDU: 34
08-3401. — = e

1º edição: novembro de 2000


1º reimpressão: agosto de 2008 A Wilson Campos Naves,
Todos os direitos desta edição reservados à: in memoriam
BOITEMPO EDITORIAL
Jinkings Editores Associados Ltda. o
Rua Euclides de Andrade, 27 Perdizes Para Marisa
05030-030 São Paulo SP
Tel./Fax: (11) 3875-7250 / 3872-6869
e-mail: editorQboitempoeditorial.com.br
site: www boitempoeditorial.com.br

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Prefácio sonsiceomesecrienenininasnetosamnaisncis
asia noninnsaisentansnaas 11
Introdução ....cerereenemeneerereerereceerererenarerenererereeas 15
CarfruLo 1
O problema do método em Pachukanis ...........me 39
CaríruLo 2
Circulação e forma jurídica ........cscesemeementermeneraenes 53
CaríruLo 3
Forma da mercadoria e Estado ........eseeemeresss 79
CaríruLO 4
Socialismo e extinção da forma jurídica ......... 87
Caríruto 5
Autocrítica e recuperação do direito burguês .......... 125
Conclusão ..osorcorecocarersrereesroisnoranrosconstenseasoscsasesoneinsi 169
Bibliografia ....crmmeemreeeneearrerreneseseerereneraeenerarerereraos 171

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[lpoõnema otMupauHa npasa asnaerca npobnbiM
KaMHEM, NO KOTOPOMY MbI HCIbITbIBACM
CTeneH: GNH3OCTH K MAPKCH3MY H JICHHHU3MY
TOPO HJIM HHOTO WpHCTA.

E. Namykannc

O problema da extinção do direito


é a pedra de toque pela qual nós
medimos o grau de proximidade de
um jurista do marxismo e do leninismo.

E. Pachukanis

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PREFÁCIO
Oswaldo Giacóia Jr.*

Em Marxismo e direito. Um estudo sobre Pachukanis,


Márcio Bilharinho Naves analisa com rigor científico e
acuidade hermenêutica a concepção geral do fenômeno
jurídico por E. Pachukanis; seu objetivo principal consis-
te em demonstrar que se trata de uma abordagem origi-
nal do direito que, no domínio da teoria marxista, instaura
uma ruptura de profunda significação e relevância, tan-
to teórica quanto sociopolítica.
Para Márcio Bilharinho Naves, são principalmente
duas as razões que exigem uma retomada reflexiva das
teses de Pachukanis em nossos dias: primeiramente por-
que a concepção pachukaniana de direito se fundamen-
ta no método desenvolvido por Marx em O capital, o que
torna possível a ela ultrapassar, recorrendo a bases meto-
dológicas rigorosamente marxianas, as teorias vulgares
que permanecem numa apreensão instrumental do di-
reito, privilegiando seu conteúdo normativo, em detri-
mento da exigência metodológica de Marx, consistente
em indicar as razões pelas quais uma relação social de-
terminada se configura, em determinadas condições, na
forma específica do direito.

* Professor do Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências


Humanas da Universidade Estadual de Campinas.

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Marxismo e direito Prefácio

A outra razão é sobretudo de ordem crítica: um re- Será, pois, essa nova classe burguesa que tomará em
torno a Pachukanis contribui imensamente para a tarefa suas mãos as decisões sobre a produção e sua destina-
de refletir acerca das possibilidades de resistência a for- ção, apropriando-se da mais-valia resultante e contro-
mas de dominação de classe levadas a efeito por meio de lando a ulterior direção do processo produtivo.
instituições jurídicas, em especial por intermédio de uma
Formulado em estilo sóbrio, claro e elegante, este estu-
representação jurisdicista do Estado.
do sobre Pachukanis representa uma contribuição de pri-
Amparado por uma formação acadêmica de raro per- meira grandeza para a reflexão jusfilosófica brasileira.
fil e que o capacita para combinar, com profundidade e
consistência, elementos teóricos provenientes de perspec-
tivas multidisciplinares, o trabalho de Márcio Bilharinho
Naves será, certamente, de grande interesse para filóso-
fos, sociólogos, juristas, economistas e politicólogos, bem
como para todos os interessados num estudo sério e cien-
tificamente qualificado da filosofia marxista do direito.
Trata-se, além disso, de uma valiosa oportunidade de
travar contato com um período de grande efervescência
revolucionária da história jurídica da União Soviética,
infelizmente ainda pouco conhecida do leitor brasileiro.
Levando em consideração as condições históricas que
carcterizaram esse contexto, Márcio Bilharinho Naves
mais uma vez faz justiça ao intransigente espírito crítico
de Pachukanis, desfazendo-se de qualquer traço de ade-
são ingênua à teoria do pensador soviético, que obliterasse
o exercício da crítica pelo pesquisador. Para Márcio Bi-
lharinho Naves, a despeito dos méritos de sua concepção
original da forma direito, Pachukanis teria permanecido
impedido de vislumbrar a emergência, já em seu tempo,
de uma “nova classe burguesa, [constituída] a partir das
funções exercidas pelos responsáveis indicados pelo parti-
do no processo de produção”. Essa burocracia institucio-
nalizada se constituiria como “funcionários do capital”,
uma vez que, na ausência das condições sociopolíticas para
o domínio da classe la, as reformas jurídicas empreen-
didas pelo Estado soviético não puseram fim às relações
de natureza capitalista.

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INTRODUÇÃO

“Lúcido intervalo”. Assim, nos faz recordar um juris-


ta, denominou-se o período da história judicial soviéti-
ca que se abre imediatamente após a tomada do poder
pelos bolcheviques. Um período marcado pelo esforço de
reorganização legislativa e judiciária, visando banir a le-
gislação burguesa hostil ao poder proletário, e destruir o
aparelho judiciário do antigo regime. E no qual, na au-
sência de uma “teoria marxista do direito”, toda a ativi-
dade no campo jurídico era orientada pela “consciência
jurídica revolucionária”.
O que pensar desse “intervalo” que parece pleno de
conteúdo, preenchido por uma normatividade “revolu-
cionária” e por uma magistratura “proletária”?
O que pensar dessa “lucidez” que parece, em nome
da classe operária, reconstituir o aparelho judicial sob a
orientação de um princípio — a “consciência jurídica” —
inexistente no marxismo, e provinda do repertório ideo-
lógico burguês?
Enganaram-se, na verdade, os que acreditaram ver
a crítica teórica e prática do direito ali onde o tecido
jurídico se recompunha e se expandia, sob os signos e
os emblemas da revolução. Nas leis e nos códigos, nos

Cf. Luis Jimenez de Asúa, Derecho penal soviético, Buenos Aires,


Tipográfica Editora Argentina, 1947, p. 53.

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Marxismo e direito Introdução

saberes dos jurisconsultos, nos poderes dos magistra- pensamento de Pachukanis se abre para limites teóricos
dos, em todos os poros, nos interstícios, nos silêncios, e que deixam exposta a inserção de seu marxismo na tra-
na solene eloqiência das sentenças, o direito prosseguia dição da Terceira Internacional. Mas em Pachukanis
o seu trabalho. encontramos também os sinais de outra problemática,
Teria sido preciso aguardar mais, teria sido preciso que rompe tendencialmente com as teses centrais daque-
esperar o brilho opaco de um pequeno livro para que a la concepção e permite que se esboce uma crítica, em
lucidez pudesse abrir o seu caminho, e revelar as imen- particular, à concepção teórica do socialismo como modo
sas promessas de um mundo desprovido das figuras do de produção, com todas as implicações teóricas — explí-
direito? citas e implícitas - que tal crítica acarreta. Do mesmo
A teoria geral do direito e o marxismo teve o efeito de modo, a crítica do aparelho de Estado “operário”, na
uma pequena revolução teórica na jurisprudência. medida em que este conserva a separação entre as mas-
Pachukanis, rigorosamente, retorna a Marx, isto é, não sas e o Estado, a apreensão das formas sociais em sua
apenas às referências ao direito encontradas em O capi- específica determinação material, e a defesa do
tal - e não seria exagero dizer que ele é o primeiro que princípio marxista da extinção do direito, são tantos ou-
verdadeiramente as lê - mas, principalmente, ele retorna tros indícios das possibilidades que a sua reflexão
à inspiração original de Marx, ao recuperar o método abre. A sua incapacidade de pensar as consequências
marxiano. teóricas dessas posições, e as suas “recaídas” na pro-
É isso que vai emprestar à sua obra toda a radicalidade blemática teórica do marxismo da Terceira Internacio-
teórica e política, consagrada no princípio que ele começa nal, talvez sejam ilustrativas da dificuldade de se
a desvendar — não obstante os seus limites — da extinção ultrapassar os limites impostos pelas condições mate-
da forma jurídica. riais e ideológicas de seu tempo. Seria preciso esperar a
experiência concreta da revolução cultural proletária
“Lucidez”, dissemos, mas a lucidez de Pachukanis
chinesa, e a elaboração teórica por ela autorizada, para
em tecer o fio de uma trama perdida nos meandros de
que o esforço de Pachukanis pudesse ter, afinal, os seus
O capital, esse esforço notável, no entanto, parece cega-
títulos reconhecidos.
do pelo brilho de sua própria luz, para retomar uma
imagem recorrente na história da filosofia. Porque no
fundo, nós o sabemos, não se tratava afinal de uma ilu-
minação repentina que à razão acedesse, mas se trata- que, nº 99, 1976. Sobre o problema da relação entre a luta de
va de uma questão de luta de classes? É assim que o classes e a filosofia, pode-se ver: Louis Althusser, Réponse à John
Lewis, Paris, Maspero, 1973; “La transformation de la
philosophie”, in Sur la philosophie. (Entretiens et correspondence
avec Fernanda Navarro, suivis de “La transformation de la
Sobre o problema da relação entre o racionalismo e o marxismo,
philosophie”), Paris, Galimard, 1994; e Pierre Macheray,
pode-se ver o artigo de Étienne Balibar, “Au nom de la raison? “L'histoire de la philosophie considérée comme une lutte de
(marxisme, rationalisme, irrationalisme)”, in La Nouvelle Criti-
tendances”, in La Pensée, nº 185, 1976.

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Marxismo e direito Introdução

A tragédia pessoal e política de Pachukanis — de que Ilusão trágica que está no coração do stalinismo e do “Es-
não nos ocuparemos — ilustra, com a dimensão humana, tado de todo o povo””.
a derrota política inevitável de uma teoria que, elabora-
da para pensar as condições de ultrapassagem do “es- e e e e
treito horizonte do direito burguês”, se vê impedida de
pensar as condições de perpetuação desse mesmo direi-
Este trabalho vai se concentrar no estudo de alguns
to. Ao percorrermos os sinuosos caminhos de sua
aspectos do pensamento jurídico de Evgeni Pachukanis.
abjuração, procuraremos ver que a “desmontagem” do
Ele não pretende dar conta da totalidade de sua obra,
aparelho conceitual pachukaniano remete para a consti-
nem de particularidades nela contidas. Assim, muitos de
tuição de uma ideologia que reconstrói todas as figuras
seus escritos não serão objeto de análise, tais como os re-
do direito, e estabelece o princípio “democrático” do im-
ferentes à sua concepção do direito internacional” e da
pério da lei como princípio supremo da sociedade “sem
política colonial e do imperialismo,* bem como os seus
classes”. Que a ideologia jurídica possa ter tomado o lu-
textos sobre a questão do fascismo,” entre outros. O nos-
gar do marxismo, não nos deve surpreender. Pois, como
so interesse se limitará ao estudo de sua concepção geral
lembra Bernard Edelman, tal como é o sonho da burgue- do direito, particularmente em sua expressão mais “aça-
sia que o capitalismo seja uma vez por todas garantido bada”, tal como se apresenta em seu livro A teoria geral
pelo direito, assim também este “socialismo” sonha ter
no direito a sua eterna garantia. “Ilusão trágica de tomar
o socialismo de juristas pela teoria marxista-leninista.
* Bernard Edelman, La légalisation de la classe ouvritre, t. 1:
“L'entreprise”, Paris, Christian Bourgois Editeur, 1978, p. 71. Cf.
também, B. Edelman, “Diritto come forma borghese della politica”,
* Sobreos aspectos biográficos de Pachukanis, pode-se reportar a in L. Althusser et alii, Discutere lo Stato (Posizione a confronto su
L. Ratnerom, “Jiznennyi put' Evgeniia Bronislavovitcha una tesi de Louis Althusser), Bari, De Donato Editore, 1976.
Pachukanisa (1891-1937)”, in Evgeni Pachukanis, Izbrannye * Cf E. Pachukanis, “K voprosu o zadatchakh sovetskoi nauki
proizvedeniia po obschei teorii prava i gosudarstva, Moscou, mejdunarodnogo prava”, in Mejdunarodnoe Pravo, nº 1, 1928, além
Izdatel'stvo “Nauka”, 1980; Eugene Kamenka e Alice Erh Soon- de numerosos verbetes sobre temas de direito internacional redi-
Tay, “The Life and After-Life of a Bolchevique Jurist”, in Problems gidos para a Entsiklopediia Gosudarstva i Prava, 1925-1927.
of Communism, nº 1, 1970; E. Kamenka e A. Tay, “Beyond the French “Cf. E. Pachukanis, Imperializm i kolonial'naia politika, Moscou,
Revolution: Communist Socialism and the Concept of Law”, in Izdatelstvo Kommunistitcheskoi Akademii, 1928; “Kolonial'naia
University of Toronto Law Journal, nº 21, 1971; Robert Sharlet, politika i ee noveichie apologety”, in Vestnik Kommunisticheskoi
Pashukanis and the Commodity Exchange Theory of Law, tese de dou- Akademii, nº 34, 1929.
torado, Universidade de Indiana, 1968; Norbert Reich, 7 Cf. E. Pachukanis, “K kharakteristike fachistskoi diktatury”, in
“Marxistische Rechtstheorie zwiches Revolution und Stalinismus. Vestnik Kommunisticheskoi Akademii, nº 19, 1927; “Fachizm”, in
Das Beispiel Pasukanis”, in Kritische Justiz, v. 5, 1972: Bjorne Entsiklopediia Gosudarstva i Prava, t. 3, 1925-1927; “Krizis
Melkevik, Pasukanis et la théorie marxiste du droit, tese de doutora- kapitalizma i fachistskie teorii gosudarstva”, in Sovetskoe
do, Universidade de Paris II, 1987, t. 1. Gosudarstvo i Revoliutsiia Prava, nº 10-12, 1931.

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Marxismo e direito Introdução

do direito e o marxismo, e em alguns outros de seus traba- ções profundas, os seus nexos nem sempre explicitados —
lhos que complementam, desenvolvem ou retificam as mas inteiramente presentes —- com a análise de Marx em
teses nela expostas. Analisaremos, ademais, alguns tex- O capital. Significa evitar as leituras reducionistas que se
tos de sua fase autocrítica, na qual a sua concepção ori- comprazem, ao rejeitar o “economicismo” de Pachukanis,
ginal é abandonada. Em A teoria geral do direito e o em abrir o caminho para o normativismo.
marxismo, Pachukanis formula, como já começamos a
ver, uma concepção original do direito no campo teórico A nossa leitura procura dar conta, particularmente,
marxista, operando um rompimento no interior desse de três aspectos do pensamento pachukaniano que têm
campo. Qual o interesse em se retomar essas teses e em sido objeto de profunda incompreensão teórica.”
examinar o contexto teórico no qual surgiram? Por um O primeiro desses aspectos diz respeito à natureza
lado, porque a crítica pachukaniana do direito, ao se fun- da determinação que o direito suporta. A leitura consa-
dar no método que Marx desenvolve em O capital, per- grada supõe que Pachukanis estabeleça uma relação de
mite superar —no interior do marxismo — as representações determinação simples entre o direito e a circulação mer-
vulgares que apresentam o direito como um “instrumen- cantil, encerrando-se nisso o essencial da contribuição”
to” de classe, privilegiando o conteúdo normativo em vez
de atender à exigência metodológica de Marx e dar con-
ta das razões porque uma certa relação social adquire, Sobre o pensamento de Pachukanis, pode-se ver: Ronnie
sob determinadas condições — e não outras -, precisamente Warrington, “Pashukanis and the Commodity Form Theory”,
uma forma jurídica. Essa crítica do direito permite apreen- in International Journal of the Sociology of Law, nº 9, 1981; Alan
Norrie, “Pashukanis and the “Commodity Form Theory”: a reply
der a natureza real do fenômeno jurídico na circulação to Warrington”, in International Journal of the Sociology of Law,
mercantil,” evitando reduzir o direito, de qualquer modo, nº 10, 1982; Peter Binns, “Law and Marxism”, in Capital and Class,
a um conjunto de normas e, ao mesmo tempo, permitin- nº 10, 1980; Steve Redhead, “The Discrete Charm of Bourgeois
do compreender o momento normativo do direito como Law: a Note on Pashukanis”, in Critique, nº 9, 1978; S. Redhead,
“Marxist Theory, the Rule of Law and Socialism”, in P. Beirne e
uma expressão desse mesmo processo de trocas de mer- Richard Quinney (orgs.), Marxism and Law, Nova York, John
cadorias. Por outro lado, voltar a Pachukanis significa Wiley & Sons, 1982; Giorgio Marramao, “Diritto e Stato in
também explorar as possibilidades de uma crítica às for- a Note sul giusmarxismo sovietico degli anni venti”,
mas de dominação de classe que se realizam por meio do in Democrazia e Diritto, nº 2, 1977; Roger Cotterrell, “Commodity
Form and Legal Form. Pashukanis' Materialist Theory of Law”,
direito, particularmente, a crítica a certa representação in Ideology and Consciousness, nº 6, 1979; Richard Kinsey, “E. B.
jurídica do Estado. Pashukanis” Law and Marxism: Notes for a Critique”, in Head and
Hand, spring, 1979; Chris Arthur, “Towards a Materialist Theory
Mas voltar a Pachukanis significa ainda fazer um es- of Law”, in Critique, nº 7, 1977; Nigel Simmonds, “Pashukanis
forço de leitura que permita superar uma interpretação and Liberal Jurisprudence”, in Journal of Law and Society, 12 (2),
de seu pensamento que não respeita as suas determina- 1985; Bob Jessop, “On Recent Marxist Theories of Law, the State,
and Juridico-Political Ideology”, in Journal of the Sociology of Law,
nº 8, 1980; Susan von Arx, “An Examination of E. B. Pashukanis's
General Theory of Law and Marxism”, tese de doutorado, Uni-
E, em última instância, das relações de produção, como veremos. versidade Estadual de Nova York (Buffalo), 1997, além das teses
de Sharlet e Melkevik referidos na nota 3.

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Marxismo e direito
Introdução

do autor. A partir daí, a crítica se concentra inteiramente A leitura que propomos pretende, portanto, proce-
na denúncia do reducionismo economicista, isto é, no der a uma verdadeira inversão no modo de apreender a
privilegiamento da esfera das trocas, quando esta, por sua concepção jurídica de Pachukanis.
vez, depende do modo específico de articulação da esfera
da produção. O que vamos procurar demonstrar é o equí-
É, assim, o pensamento pachukaniano exposto em 4
voco dessa leitura, incapaz de perceber que a determina- teoria geral do direito e o marxismo o nosso objeto prin-
cipal de análise, juntamente com um seleto corpo de tex-
ção, em Pachukanis, é uma determinação complexa, uma
tos que remanesce no interior da mesma problemática
sobredeterminação, que compreende a determinação do
que aquele trabalho abre. Em um segundo momento, se
direito pelas relações de produção como um de seus
momentos constitutivos. Só assim será possível entender as examinará o sentido das autocríticas de Pachukanis, seja
em relação às teses defendidas em seu trabalho princi-
menções explícitas que Pachukanis faz precisamente a essa
pal, seja como elementos de reconstituição do tecido jurí-
determinação pelas relações de produção, que foram, sim-
dico “socialista”.!'º
plesmente, ignoradas pelos críticos do “circulacionismo
pachukaniano”.
de e e
O segundo desses aspectos diz respeito à natureza do
direito no socialismo. A leitura consagrada supõe que
Pachukanis negue, tão somente, a possibilidade de exis-
tência de qualquer forma jurídica na transição, podendo, 'º A reformulação que Pachukanis opera em suas concepções se dá
de modo gradual, em um esforço de ajustamento às diretrizes ofi-
assim, a crítica se voltar contra o “niilismo” pachukaniano. ciais, a partir do final de 1929, justamente quando ocorre a grande
O que vamos procurar demonstrar é que, desde a sua “virada” na orientação política e econômica soviética. As exigências
obra principal — A teoria geral do direito e o marxismo -, de natureza política se sobrepõem à lógica da elaboração intelec-
Pachukanis pensa a forma específica de que se reveste o tual, e se abre um período de revisão em todos os domínios teóricos.
As razões que levam Pachukanis a abandonar o fundamental de
direito em uma sociedade de transição socialista, ao mes- suas posições também são de natureza política, como não deixaram
mo tempo em que nega a possibilidade de que esse direito de assinalar os comentadores. Alguns desses, no entanto, procuram
possa adquirir uma natureza “proletária” ou “socialista”. localizar já no período anterior à “mudança de linha” do Partido os
sinais de um abandono das suas posições originais. Tentarei de-
O último desses aspectos diz respeito ao momento monstrar que tal procedimento carece de fundamento, e só se sus-
autocrítico de Pachukanis, que é encarado como sim- tenta na base de uma compreensão deformada do pensamento do
ples renúncia de seus postulados originários, com a ime- autor. Mesmo nos seus últimos textos, nos quais a sua capitulação
teórica fica evidente, é possível descobrir a presença de dosvinioa
diata adesão às diretrizes provindas da direção contraditórios, o que torna o quadro ao menos mais complexo do
stalinista. Aqui também, procuraremos demonstrar que, que se poderia supor em um exame superficial. Evitaremos, no
se é verdade que Pachukanis abandona as suas posi- entanto, reconstituir do ponto de vista histórico e sociológico as
condições em que se verificam as mudanças na posição teórica de
ções pregressas, não é menos verdade que o itinerário Pachukanis, atendo-nos tão somente aos aspectos teóricos, propria-
de sua abjuração é complexo, envolvendo a recupera- mente, do problema. De qualquer modo, esses textos não deixam
ção, muitas vezes, de suas antigas posições reprimidas, de ser reveladores do completo domínio de uma concepção estra-
no interior de seus textos autocríticos. nha ao marxismo no campo jurídico após a condenação da concep-
ção exposta em À teoria geral do direito e o marxismo.

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Marxismo e direito Introdução

Antes, porém, de iniciarmos o exame da concepção xista, uma concepção sistemática do direito. Não é de
jurídica de Pachukanis, teceremos algumas considerações surpreender, portanto, que a grande influência no período
sobre as principais tendências que cortam o campo do pós-revolucionário seja proveniente de um jurista bur-
direito no período, justamente para que possamos medir guês — Petrajitski —, mesmo que lido na versão “marxis-
a distância que as separam da elaboração teórica ta” de Mikhail Reisner. Mas a influência do pensamento
pachukaniana. Estaremos, então, em condições de jurídico burguês não se limita apenas a ele. Autores como
apreciar melhor em que consiste a ruptura que Pachukanis Menger — o célebre representante do “socialismo jurídi-
introduz.” co”, combatido pelo próprio Engels —-,” Karl Renner, o
As primeiras tentativas de elaboração de uma con- funcionalista social-democrata austríaco, e mesmo o “so-
cepção marxista do direito no período imediatamente lidarista” francês Leon Duguit, são influências fortes em
seguinte à Revolução Russa de 1917, decorrem da neces- muitos dos que se esforçam para apresentar uma leitura
sidade imperiosa de se criar uma nova organização judi- marxista do fenômeno jurídico.
ciária e legislativa, de modo que a formulação de uma Duas são, portanto, as dificuldades iniciais: a influên-
teoria marxista do direito esteve inicialmente na depen- cia do pensamento jurídico burguês, e a necessidade polí-
dência da resolução de tarefas eminentemente políticas, tica de colocar em funcionamento o novo aparelho judiciário.
e no interior de um quadro amplamente desfavorável ao Uma vez subordinado o objetivo de elaboração teóri-
trabalho teórico marxista, posto que inexistia tanto nas ca à tarefa de reorganização do aparelho judiciário, restou
obras de Marx e Engels, como também no campo mar- somente o trabalho de definir uma orientação geral pa-
ra a elaboração legislativa e a aplicação das leis pelos
tribunais.
! Naturalmente, não nos referiremos a todas as tendências do perío-
do, já que isso excederia o nosso propósito. Para uma ampla apre- Em que consistiu o essencial desse esforço? A carac-
ciação de todo esse contexto teórico, pode-se consultar: Rene terística principal das alterações no campo da estrutura
Beermann, “Prerevolucionary Russian Peasant Laws”, in William judiciária dizia respeito à possibilidade de se abrir à par-
Butler, Russian Law; Historical and Political Perspectives, Leiden, A. ticipação das massas populares a administração da justi-
W. Sijthoff, 1977; Susan Eva Heuman, “Perspectives on Legal ça. Tal participação se daria por meio da constituição de
Culture in Prerevolucionary Russia”, in P. Beirne (org.), Revolution
in Law. Contributions to the Development of Soviet Legal Theory, tribunais populares nos quais os juízes seriam eleitos en-
1917-1938, Armonk, M. E. Sharpe, 1990; John Hazard, “Soviet tre operários e soldados, mas exercendo a judicatura com
Law: the Bridge Years, 1919-1920”, in W. Butler, op. cit.; U. Cerroni, competência limitada. É preciso notar que, além dessa
O pensamento jurídico soviético, Póvoa de Varzim, Publicações Eu- limitação, a própria existência desses tribunais decorria,
ropa-América, 1976; U. Cerroni (org.), Teorie sovietiche del diritto,
em.parte —- como acentua P. Stutchka -, do boicote que os
Milão, Giuffrê Editore; Michael Jaworskyj (org.), Soviet Political
Thought. (An Anthology), Baltimore, John Hopkins Press, 1967;
Rudolf Schlesinger, Soviet Legal Theory: its Social Background and
Development, Routledge & Kegan, 1951; J. Hazard (org.), Soviet !2 Cf. Friedrich Engels e Karl Kautsky, O socialismo jurídico, São
Legal Philosophy, Cambridge, Harvard University Press, 1951. Paulo, 2º ed., Ensaio, 1995.

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Marxismo e direito Introdução

juristas burgueses promoviam contra o poder soviético. É a partir dessas experiências iniciais que Stutchka
Desse modo, o caráter de classe da composição desses pode formular a primeira concepção sistemática do di-
tribunais perde grande parte de seu significado, ademais reito no campo do marxismo. Procedamos a algumas bre-
que o mesmo Stutchka prevê a participação de “técni- ves considerações sobre tal concepção. Em Stutchka
cos”, de “pessoal competente” ao lado desses juízes “po- encontramos um esforço de construção de uma teoria do
pulares”, auxiliando-os nas causas “complexas”." direito que se quer rigorosamente em conformidade com
Não obstante, a estrutura do aparelho judiciário cria- a concepção de Marx e Engels. É Stutchka mesmo quem
da pela Revolução é identificada como “popular” e “jus- considera que a sua formulação teórica teve o mérito de
ta”, capaz de realizar uma “justiça proletária”, capaz de apresentar “pela primeira vez” a questão do direito em
dizer o direito conforme os interesses revolucionários. geral em uma base científica, “renunciando a um ponto de
Stutchka simplesmente ignora por completo as con- vista puramente formal e vendo no direito não uma cate-
tradições que resultam desse modo de organização do goria eterna, mas um fenômeno social que se modifica
aparelho judiciário. Para ele, a rigor, não há contradição com a luta de classes”.”
alguma entre esse nível de existência do Estado e as mas- Não obstante, Stutchka, nos primeiros anos do seu
sas populares, mas, ao contrário, ele identifica os tribu- trabalho jurídico, utiliza a noção de consciência jurídi-
nais “proletários” com o direito proletário, e sua mera ca revolucionária, noção que provém do jurista pré-re-
existência supõe que eles defendam os interesses do povo. volucionário Petrajitskii - e de M. Reisner, que “recebe”
Ignora-se, assim, que a constituição desses tribunais essa teoria psicológica do direito “adaptando-a” ao mar-
significa o reforço das instâncias formais, com a institui- xismo. Stutchka mesmo, ao analisar as fases por que
ção de um corpo de julgadores separado das massas — passou a elaboração de uma concepção marxista do direi-
mesmo que oriundo delas e julgando “em seu nome” -, e to relembra esta influência: “Mas se os decretos [Stutchka
que exerce a jurisdição com o apoio de um saber especia- se refere aos primeiros decretos do governo bolchevique,
lizado. Assim, os “tribunais populares” são atravessados MBN] ofereciam diretivas efetivamente revolucionárias,
pela contradição de, por um lado, reproduzirem, mesmo sob a consciência jurídica revolucionária ou socialis-
que de maneira modificada, o funcionamento do apare- ta, ocultava-se em notável medida a mesma consciência
lho judiciário burguês, e, por outro lado, permitirem ten- jurídica burguesa, porque não havia uma outra consciên-
dencialmente a participação das massas na administração cia nem “na natureza”, nem na imaginação humana. O
da justiça. conceito mesmo de consciência jurídica provém do pro-
fessor Petrajitskii (“direito intuitivo”) e a nossa concep-

'3 PêtrStucka, “Tribunale vecchio e nuovo”, in P. Stucka, La funzione


rivoluzionaria del diritto e dello Stato e altri scritti, org. por U. 15 Cf. P. Stutchka, “Revoliutsionnaia rol” prava i gosudarstva”, in
Cerroni, Turim, Giulio Einaudi Editore, 1967, p. 363. Traduzido do
P. Stutchka, Izbrannye proizvedeniia po marksistsko-leninskoi teorii
a original: “Staryi i novyi sud”, in Pravda, 3-4-5 de janeiro de 1918.
prava, Riga, Latviiskoi Gosudarstvennoe Izdatel'stvo, 1964,
Id., ibid. p. 58-59.

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ção marxista do direito não foi além, então, do chamado das leis burguesas, todo o direito burguês, como sistema
socialismo jurídico do professor Menger e do social-de- de normas (regras jurídicas), jogaram o mesmo papel,
mocrata Renner”. Ele esclarece ainda que esta noção isto é, fazer pender pela força organizada a balança dos
de consciência jurídica, incorporada ao campo teórico interesses das várias classes sociais, em favor das clas-
jurídico marxista pela mediação de Lunacharskii,” te- ses dominantes [...]. O proletariado [...] não podia utili-
ria sido “corrigida” pela composição operária dos tribu- zar para os seus fins os códigos burgueses das épocas
nais revolucionários.” Stutchka vai então formular um passadas [...] A experiência da luta [do proletariado con-
conceito do direito que decorre da necessidade de for- tra os seus inimigos, MBN] deu vida a um novo direito.
necer ao Estado uma orientação básica no campo pe- Quase dois anos desta luta ofereceram a oportunidade
nal. Essa definição do direito é formulada quando da de apresentar os resultados como uma concreta mani-
redação dos princípios fundamentais do direito penal festação de direito proletário [...] o proletariado deve pro-
da Rússia pelo Colégio do Comissariado do Povo para a duzir normas para subjugar os seus inimigos e deve ele
Justiça, em 1919, sob a assinatura do próprio Stutchka, próprio aprender com as regras. [...] Direito: sistema (ou
nos seguintes termos: “O proletariado, tendo conquis- ordenamento) de relações sociais que corresponde aos
tado o poder na Revolução de Outubro, abateu o aparato interesses da classe dominante e é tutelado pela força
burguês, que serviu para oprimir a massa trabalhadora organizada de tal classe. O direito penal é composto de
com todos os seus instrumentos — o exército, a polícia, os normas e outras medidas jurídicas pelas quais o sistema
tribunais e a Igreja. É auto-evidente que todos os códigos de relações sociais de uma dada sociedade de classe pro-
tege a si mesmo das violações (delitos) com meios de
repressão (penas). O direito penal soviético visa à pro-
16 Cf. P. Stucka, “Tre fasi del diritto sovietico”, in P. Stucka, La teção, mediante instrumentos de repressão, do sistema
funzione rivoluzionaria del diritto e dello Stato e altri scritti, op. cit., de relações sociais conforme os interesses das massas
p. 451. Traduzido do original: “Tri etapa sovetsk “A trabalhadoras, organizadas em classe dominante no
Revoliutsiia Prava, nº 4, 7 , ii
17
Cf. Anatoly Lunacharskii, “The revolution, law and courts”, ex-
período de ditadura do proletariado, que é a fase de
trato de “Revoliutsiia i sud”, in M. Jaworskyj, Soviet political transição entre o capitalismo e o comunismo”.”
thought. An anthology, op. cit. (traduzido do original: “Revoliutsiia Essa definição de direito é retomada por P. Stutchka
i sud”, in Pravda, 1º de dezembro de 1917); mas, como já foi dito, em sua principal obra, A função revolucionária do direi-
é de Mikhail Reisner o trabalho de “adaptação” para o marxismo
dessa concepção. to e do Estado, na qual o direito surge como um sistema
18
Cf. P. Stucka, “Note dulla teoria classista del diritto (relazione ou ordem de relações sociais correspondente aos interes-
alla sessione del 10 ottobre 1922 della sezione di teoria generale
del diritto dell'Istituto del diritto sovietico), in P. Stucka, La
funzione rivoluzionaria del diritto e dello Stato e altri scritti, op. cit.,
19 Cf. “Decree of december 12, 1919”, apud J. Hazard, “Editor's
p. 418. Traduzido do original: “Zametki o klassovoi teorii
introduction”, in J. Hazard (org.), Soviet legal theory, op. cit.,
prava”, in Sovetskoe pravo, nº 3, 1922. p.ocvii-xvii.

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ses da classe dominante e tutelada pela força organizada produção e de troca, mas por um sistema acabado de
dessa classe.” Em uma observação acrescentada à se- relações, por um sistema de relações caracterizado por
gunda edição desse livro, Stutchka afirma que nessa um Interesse de classe e defendido pela classe dominante.”
definição poderia ter sido ressaltada a participação cons- I'rocurando situar o direito na estrutura social global,
ciente dos indivíduos na instauração desse “sistema ou “tutchka inclui na base “o sistema de relações sociais”,
ordem de relações”, assim como afirmado que o “inte- entendendo-o como “expressão jurídica das relações de
resse da classe dominante” é o aspecto essencial do direi- produção”, ao passo que na superestrutura se situaria a
to e que este é um sistema ou ordenamento de normas forma jurídica abstrata. “A essência do debate, no en-
que protegem as relações sociais de sua violação. tanto,” diz Stutchka, “não consiste na discussão sobre a
O conceito formulado em 1919, portanto, perdura na relação entre a base e a superestrutura, mas na discussão
definição de 1921, e dela pode-se concluir de imediato nobre onde procurar o conceito fundamental de direito: no
que toda a construção teórica de Stutchka repousa no uistema das relações concretas ou em uma esfera abstra-
caráter classista que ele empresta ao direito. ta, isto é, na forma escrita ou na idéia do direito não es-
A característica fundamental do fenômeno jurídico é crito, na idéia de justiça, ou seja, na ideologia. Eu
que ele, como um sistema de relações sociais, correspon- respondo: no sistema das relações concretas. Com uma res-
de ao interesse da classe dominante, e esse sistema é nalva: se falamos do sistema e do ordenamento das rela-
garantido pelo Estado que o tutela. Podemos, assim, iden- ções, assim como da sua tutela por parte do poder
tificar os elementos que compõem a definição de direito organizado, então é claro que levamos em conta as for-
proposta por P. Stutchka: por um lado, o direito é com- mas abstratas e a sua influência sobre a forma concreta”?.
preendido como uma relação social, mais propriamente Respondendo a uma possível objeção, a de que essa aná-
como um sistema de relações sociais. Ora, se por relações lise se contraporia às formulações de Marx, Stutchka ar-
sociais Stutchka entende o conjunto das relações de pro- gumenta que a contradição é somente aparente, derivada
dução e de troca, como distinguir o direito da instância da complexidade do sistema jurídico constituído por três
econômica? Um primeiro esforço de distinção é operado formas, das quais duas são abstratas e a outra, concreta
por Stutchka ao considerar as relações de produção e de (é interessante notar que Stutchka se refere indistinta-
troca como relações primárias, enquanto as relações jurí- mente a essas três formas como formas tanto do sistema
dicas, na qualidade de relações de apropriação, seriam jurídico como das relações econômicas). A forma jurídi-
relações derivadas. Em outro passo, Stutchka prefere ca concreta (forma 1) é a expressão jurídica das relações
ar-
gumentar que o direito não é constituído propriamente econômicas, a sua realização formal, a qual “coincide com
por relações sociais em geral, ou mesmo pelas relações de a relação econômica”. A primeira forma jurídica abstra-

20 CFP. Stutchka, Revoliutsionnaia rol" prava i gosudarstva, op.


cit.,
td, ibid., p. 110-111.
p. 60. *º Id. ibid, p. 120.

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ta (forma II) é o direito expresso-nas normas jurídicas, minante organizada”,* identificando aí a essência classista
nas leis, a qual não apenas pode não coincidir com a re- do direito.” Prossegue Stutchka: “Mas porque uma classe
lação econômica, mas pode mesmo diferir dela, enquan- sustenta e defende precisamente este ordenamento de rela-
to a segunda forma jurídica abstrata (forma III) é a ções? Por que nessas relações está o interesse da classe”,* in-
ideologia jurídica.” teresse o qual é o objetivo do Estado e do direito. É o
Com bases nessas breves considerações, podemos interesse de classe, ainda, que fundamenta o Estado, ins-
constatar que a concepção jurídica de Stutchka padece trumento cuja existência só se justifica na medida em que
de total incapacidade de operar a distinção entre as rela- ele funciona para tutelar esse interesse.
ções sociais — entendidas como relações econômicas — e O Stutchka parece, portanto, independentemente de
direito. Ao contrário, ao identificar expressamente as re- sua intenção original de desenvolver uma concepção não
lações econômicas com a forma jurídica concreta, normativista do direito, ter de recorrer ao Estado e à
Stutchka incorre em uma séria dificuldade: se o direito é vontade da classe dominante para fundar a sua teoria
a própria relação econômica, qual a especificidade da jurídica.”
forma jurídica? Essa dificuldade é sentida por Stutchka, A outra tendência, à qual já nos referimos anterior-
que imediatamente depois de ter afirmado o caráter jurí- mente, que deve merecer algumas considerações, é a de
dico da forma I, retira dela esse mesmo atributo jurídico, Mikhail Reisner. Reisner recupera a “teoria psicológica
considerando-a como um fato que depende, para adqui- do direito” de Petrajitskii - um dos mais influentes juris-
rir caráter jurídico, das outras formas.” Além disso, de- tas do período pré-revolucionário —, a qual sustenta que
pois de ter afirmado — em analogia com a metáfora da a natureza do fenômeno jurídico reside não nas normas
base /superestrutura — o primado da forma 1, afirma que objetivas editadas por uma autoridade, mas na esfera
a influência das outras formas pode ser decisiva,” emocional, de modo que o cumprimento das obrigações
desautorizando assim uma possível inserção material do jurídicas e a observância das leis decorrem de uma “cons-
direito e admitindo que o direito possa ser determinado
seja pela vontade da classe dominante por meio da lei
(forma II), seja pela consciência jurídica (forma HI).
Para Stutchka, as relações sociais se transformam em 26 CE P. Stucka, “Introduzione alla teoria del direito civile”, in P.
Cit.,
relações jurídicas só quando se revestem de outras carac- Stucka, La funzione rivoluzionaria de diritto e dello Stato, Op.
terísticas, tais como “o elemento de defesa ou garantia p. 180.

de ordenamento por parte do Estado, isto é, da classe do- 27 Cf.id, ibid.


28 Id. ibid., p. 180.
tini,
29 Para um amplo comentário destes pontos, ver Riccardo Guas
giuridica
“La “teoria generale del diritto” in URSS. Dalla coscienza
23 Cf.id. ibid. p. 122-123. rivolucionaria alla legalitã socialista”, in Giovanni Tarello (org.),
Bolonha,
24 Cf.id. ibid. p. 123. Materiali per una storia della cultura giurídica, volume 1,
25 Cf.id., ibid. p. 122. Società Editrice Il Mulino, 1971.

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ciência jurídica intuitiva”, de que todos os homens se- intuitivo de classe, o qual deve ser conservado quando
riam providos. vlas passam a exercer o poder.”
M. Reisner se esforça por conciliar esta concepção Recusando, assim, o normativismo jurídico, Reisner
com o marxismo. O seu objetivo é, partindo da teoria procura dar fundamento distinto ao direito, encontran-
intuitiva do direito de Petrajitskii, estendê-la do campo do-o no conceito de justo:o direito é um fenômeno ideo-
da psicologia individual para o da psicologia do coleti- lúgico na medida em que a consciência retém as noções
vo. Como explica Reisner, ele vai procurar introduzir de justiça, verdade e igualdade “na distribuição e
na teoria de Petrajitskii o que nela está ausente: “um igualização dos homens e das coisas”.”
franco e aberto ponto de vista de classe”,” de tal modo A justiça é entendida por Reisner como provida de
que o direito intuitivo desenvolvido por aquele autor não caráter universal e apriorístico, cuja essência reside em
é recebido em sua forma de direito intuitivo em geral, mas nua capacidade de distribuir igualdade e em recompen-
na condição de um direito de classe que é trabalhado na sar, dando às pessoas iguais o que é igual, e às pessoas
forma de direito intuitivo das massas populares, desiguais o que é desigual. A essa generalização da no-
um direito que existe fora de qualquer estrutura oficial. ção de justiça, Reisner opera uma primeira delimitação
A concepção de um direito intuitivo revolucionário ao considerar que “o que é justo de um ponto de vista,
do proletariado leva Reisner a se exprimir em termos pode ser injusto de outro”,* o que o leva a atribuir a
que parecem reduzir o processo revolucionário a um cada classe social determinado tipo de justiça, admitin-
combate de natureza jurídica.” do, assim, a existência de diversos tipos de direito, em
É justamente essa necessidade de fundar um direito conformidade com as diversas classes sociais. O direito
intuitivo do proletariado que conduz Reisner a refutar o aparece, então, relacionado aos diversos sistemas ideoló-
positivismo jurídico, com a sua identificação entre o Es- gicos de classe que se foram constituindo no curso da
tado e o direito, pois tal identificação, na medida em que história.” Com o advento da revolução social a classe
é o Estado da classe dominante que edita e garante as trabalhadora vê o seu direito socialista realizar-se nos
leis, só permite pensar o direito como direito das clas- diversos estatutos jurídicos editados pelo novo poder.
ses possuidoras. Reisner, ao contrário, julga as mas- Pois bem, tendo identificado os diversos tipos de di-
sas revolucionárias detentoras de seu próprio direito reito correspondentes às diversas classes sociais, Reisner
procura identificar então o conceito geral do direito, e

30 Mikhail Reisner, “Law, our law, foreign law, general law”, in J.


Hazard (org.), Soviet legal philosophy, op. cit., p. 85, traduzido 32 Cf.id., ibid., p. 89.
do original Pravo, nache pravo, tchujoe pravo, obs chee pravo, 33 Id, ibid,, p. 89.
Moscou, 1925. 33 Id. ibid., p. 90.
31 Cf.id., ibid., p. 86. 95 Cf.id, ibid. p. 95.

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Marxismo e direito Introdução

vai encontrá-lo ao estabelecer a relação entre o direito e a do pela determinação econômica, mas “somente nos de-
economia: “onde não há economia, não há direito”.* A monstra a direção da distorção e da refração do reflexo
base do direito é a economia na medida em que as classes jurídico”. Prosseguindo nessa analogia com a ótica,
sociais criam o seu direito a partir de sua posição no pro- pode concluir Reisner: “Isso, na linguagem da ciência
cesso de produção e troca, e a ordem jurídica reflete as ótica, é o mesmo que estudar os ângulos de refração des-
características das diversas “formas de produção”, de te ou daquele objeto em espelhos de formas diferentes. O
modo que Reisner afirma que “o direito é o resultado direito, deste ponto de vista, não é mais do que um des-
de relações econômicas — e em particular das relações de ses espelhos, nos quais, entretanto, a refração é realizada
produção”.” [...] do ponto de vista da direta igualdade [...]"*
Reisner envolve-se aqui em uma dificuldade séria: ten- Como comenta de modo apropriado Umberto Cerroni
do procurado dar um fundamento “ideológico” ao direi- em seu já citado trabalho, persiste em Reisner uma con-
to, em um primeiro momento, agora descobre esse tradição não-resolvida entre a sua concepção psicologista
fundamento na economia.” A solução dada por Reisner do direito, de claro matiz idealista, e o seu esforço em dar
consiste em, tendo identificado o fundamento do direito fundamento econômico ao direito: ou o direito é um fe-
na economia, caracterizar a natureza específica do direi- nômeno puramente ideológico e não exige ulterior fun-
to como uma forma ideológica. As formas ideológicas, damento econômico, ou o direito se funda na economia,
em geral, são entendidas por Reisner como reflexos na e se torna necessário encontrar a “genealogia” da forma
consciência das relações econômicas, ao passo que o que jurídica nas relações econômicas. A solução aventada por
distingue essas formas ideológicas, da forma ideológica Reisner acaba por reforçar a sua concepção idealista do
do direito em particular é o conceito de justiça, “associado direito, pois, ao fundar o direito sobre a noção de justiça,
aos conceitos de igualdade e de desigualdade como eles ele torna ociosa a determinação econômica.”
são construídos na base da divisão e distribuição das coi- Essas são algumas das tendências com que Pachukanis
sas e do relacionamento na sociedade humana”.” O di- depara ao formular e desenvolver a sua crítica do direito.
reito aparece, assim, como uma forma ideológica que Veremos que ele as ultrapassa, não apenas oferecendo
reflete as relações sociais de modo distorcido. O caráter outras respostas para uma mesma questão, mas formu-
ideológico do direito, diz Reisner, não é afetado ou nega- lando uma nova questão, do mesmo modo que Marx e

38 Id. ibid, p. 97.


*0 Id, ibid., p. 103.
37 Id, ibid, p. 97.
*1 Id, ibid., p. 103-104.
*8 | Ver, a propósito, o comentário de U. Cerroni em O pensamento
jurídico soviético, op. cit., capítulo II, “Principais orientações teó- *2 Cf. também o comentário de Gabriele Crespi Reghizzi, em “So-
ricas”, item 3, “O sociologismo classista de Reisner”. cialismo e diritto civile nell'esperienza sovietica”, in Quaderni
Fiorentini per la storia del pensiero giuridico moderno, nº 3/4,
39 Id, ibid, p. 103. 1974/1975.

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Marxismo e direito

Engels ao criticar a “ideologia alemã” diziam que “não


apenas em suas respostas, mas já nas próprias questões,
havia uma mistificação”.º
Passemos ao exame da concepção jurídica de Pachukanis. l
(O PROBLEMA DO MÉTODO
EM PACHUKANIS

Pachukanis inicia o seu trabalho crítico em À teoria


geral do direito e o marxismo! procurando definir a tare-
fa da teoria geral do direito como a explicação dos con-
ceitos jurídicos fundamentais, dos conceitos jurídicos mais
abstratos, que mantêm o seu significado independente-
mente do conteúdo das normas jurídicas, conservando,
portanto, “o seu significado qualquer que seja a altera-
ção em seu conteúdo material concreto”? Esses conceitos
são o resultado de um esforço de elaboração lógica que
parte das relações e normas jurídicas, e representa o pro-
duto “superior e mais recente de uma criação conscien-
te”? Pode, no entanto, o corpo de conceitos jurídicos
fundamentais nos fornecer um conhecimento científico
do direito, ou ele, como quer a dogmática, não passa de
expediente técnico extraídos da prática imediata apenas
para fins de comodidade? Pachukanis indaga se, da mes-

E. Pachukanis, “Obschaia teoriia prava i marksizm”, in E.


Pachukanis, Izbrannye proizvedenniia po obschei teorii prava i
gosudarstva, op. cit.
2 Id. ibid, p. 42.
43
Karl Marx e F. Engels, A ideologia alemã (Feuerbach), São Paulo,
Boitempo, 2007, p. 83. * Id, ibid, p. 42.

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Marxismo e direito O problema do método em Pachukanis

ma forma que a economia política partiu das questões de o que vai do simples ao complexo. Segundo Pachukanis, pa-
natureza prática para formular uma disciplina teórica, a ra Marx poderia parecer “natural” que a economia polí-
jurisprudência não poderia formular uma teoria geral do tica partisse da análise de uma totalidade concreta, a
direito sem se confundir com a psicologia e a sociologia, população, mas esta é uma abstração vazia se não forem
ou seja, se não seria possível analisar a forma jurídica do levadas em consideração as classes sociais que a compõe,
mesmo modo que se analisa no campo da economia política a e as classes, por sua vez, exigem para serem compreendi-
forma do valor. “ Eis as questões”, diz Pachukanis, “de das o exame dos elementos de que sua existência depende,
cuja solução depende a possibilidade ou a impossibilidade o salário, o lucro, etc. E o estudo dessas categorias, por
de uma doutrina geral do direito como disciplina teórica fim, depende da apreensão das categorias mais simples: pre-
autônoma”. ço, valor, mercadoria, de modo que, somente partindo
O critério que orienta a démarche de Pachukanis é a dessas categorias mais simples, é que se torna possível
possibilidade de a teoria ser capaz de analisar a forma recompor a totalidade concreta em uma unidade plena
jurídica como forma histórica, permitindo compreender de determinações.” “Essas observações”, diz Pachukanis,
O direito como fenômeno real.” Pachukanis introduz, por “são inteiramente aplicáveis à teoria geral do direito. Tam-
esta via, no campo da análise do direito, o princí bém neste caso, a totalidade concreta — sociedade, popu-
pio lação, Estado — deve ser o resultado e o último estágio de
metodológico desenvolvido por Karl Marx na Introdu-
ção à crítica da economia política, que se exprime nossa pesquisa, não o ponto de partida. Indo do mais
em simples para o mais complexo, do processo em sua for-
dois “movimentos”: o que vai do abstrato ao concre
to, e ma pura para as suas formas mais concretas, seguimos
uma via metodológica mais precisa e, por isso, mais cor-
reta do que quando se avança às apalpadelas, nada mais
Id., ibid., p. 44. Pachukanis recorda que Marx
“não inicia
tendo à frente do que a representação vaga e indivisível
a sua
pesquisa refletindo sobre a economia em ger
al, mas por uma
do concreto como um todo”.”* Para Pachukanis os con-
análise da mercadoria e do valor. Isto porque a ceitos nas ciências sociais não possuem apenas caráter
economia, como
especial esfera de relações, só se diferencia qua
Enquanto não existirem relações de valor, a ati
ndo surge a troca. histórico, mas paralelamente a essa “história conceitual”
dificilmente poderá se separar das demais
vidade econômica se desenvolve uma história real, que é justamente esse
funções vitais com as substrato material que progressivamente empresta rea-
quais forma um todo sintético. Uma economia
puramente natural
não pode constituir o objeto da economia pol
ítica enquanto ciên-
lidade ao conceito.” Assim, o trabalho, como a “relação
cia independente. Somente as relações
da economia mercantil-
capitalista constituem, pela primeira vez
, o objeto da economia
política como disciplina teórica particular
que opera com os seus * Cf, a propósito, Mimmo Porcaro, | difficili inizi di Karl Marx. Contro
conceitos específicos”. E citando Engels,
conclui: “A economia po- chi e per che cosa leggere “Ti Capitale” oggi, Bari, Edizioni Dedalo,
lítica tem origem na mercadoria, no mo
mento em que os produ- 1986.
tos são trocados uns pelos outros, seja
por indivíduos isolados, 7 CLfid, ibid.
seja por comunidades primitivas”, ibid
,, p. 49-50. "Id, ibid, p. 60.
Cf. id., ibid, p. 44.
* Id, ibid, p. 60-61.

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Marxismo e direito O problema do método em Pachukanis

mais simples do homem com a natureza”, pode ser en- É a partir dessa orientação geral que Pachukanis es-
contrado em todos os períodos históricos, mas só no modo tabelece uma linha de demarcação com o normativismo,
de produção capitalista é que pode surgir o trabalho como o psicologismo e o sociologismo. Para os normativistas,
simples dispêndio de trabalho humano indiferenciado, como Hans Kelsen, por exemplo, a jurisprudência deve
como trabalho abstrato, portanto. “Do mesmo modo, o se manter “dentro dos limites do sentido lógico-formal
direito, considerado em suas determinações gerais, o di- da categoria do dever ser”,2 que encerra o direito em
reito como forma, não existe somente no pensamento e
uma hierarquia de normas “em cujo topo está a autori-
nas teorias dos juristas eruditos. Ele tem uma história real pa-
dade suprema e total que elabora as normas — um con-
ralela, que se desenvolve não como um sistema de idéias,
ceito limite do qual a jurisprudência parte como um
mas como um sistema específico de relações no qual os
homens entram em consegiiência não de uma escolha dado”. Para Kelsen, no direito, cuja expressão mais ele-
consciente, mas porque a isso lhes obrigam as condições vada é para ele a lei estatal, “[...] o princípio do dever ser
da produção. O homem transforma-se em sujeito jurídi- aparece sob uma forma indubitavelmente heterônoma,
co por força daquela mesma necessidade pela qual o pro- definitivamente rompido com o factual, com aquilo que
duto natural se transforma em uma mercadoria dotada existe. Basta transferir a própria função legislativa para
da enigmática qualidade do valor”.'º Assim, a relação o domínio metajurídico — e é o que Kelsen faz — para que
jurídica pode ser entendida como “uma relação abstra- reste à jurisprudência apenas a pura esfera da norma-
ta, unilateral”, mas cujo caráter unilateral não é o pro- tividade, consistindo a sua tarefa exclusivamente em pôr
duto de uma elaboração conceitual, mas sim o resultado do em ordem lógica os diferentes conteúdos normativos.
desenvolvimento social.” Indubitavelmente deve-se reconhecer um grande mérito
a Kelsen. Com sua corajosa coerência, ele levou ao ab-
surdo a metodologia do neo-kantismo, com as suas duas
categorias. De fato, verifica-se que a “pura” categoria do
'9 Id, ibid., p. 61. Cf. também R. Guastini, op. cit., p. 381: “À mais dever ser, liberta de todo contato com o existente, com o
abstrata das determinações, à mais geral, o pensamento acede só factual, de todas as “escórias” psicológicas e sociológicas,
quando essa abstração é de algum modo concretizada na realida-
de; o pensamento apenas 'reflete' esta existência real material”.
nm
Id., ibid., p. 63. Como diz Karl Marx na Introdução à crítica da econo-
mia política, “Assim como em toda ciência histórica e social em aplicável também às categorias jurídicas. Em sua aparente uni-
geral, também no que se refere ao desenvolvimento das categorias versalidade elas exprimem, na realidade, um aspecto isolado da
econômicas, é necessário levar sempre em consideração que, tanto existência de um sujeito histórico determinado: a sociedade bur-
na realidade como na mente, o sujeito — neste caso a sociedade guesa produtora de mercadorias”, ibid., p. 63-64.
burguesa moderna — já é dado, e que as categorias exprimem, 12 E. Pachukanis, “Obschaia teoriia prava i marksizm”, op. cit, p. 45.
portanto, formas de ser, condições de existência, muitas vezes so- Cf. também E. Pachukanis, “K obzoru literatury po obschei
mente um aspecto isolado desta determinada sociedade, deste su- teorii prava i gosudarstva”, in E. Pachukanis, Izbrannye
jeito”, apud E. Pachukanis, op. cit., p. 63-64. Conclui Pachukanis: proizvedeniia po obschei teorii prava i gosudarstva, op. cit.
“O que Marx diz aqui das categorias econômicas, é totalmente
13 E. Pachukanis, “Obschaia teoriia prava i marksizm”, op. cit. p. 46.

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Marxismo e direito O problema do método em Pachukanis

não tem e nem pode ter, de modo algum, uma definição cos”: ao ser considerado o resultado dos conflitos sociais,
racional.” Para o dever ser puramente jurídico, isto é, ou como expressão da autoridade material do Estado, ou,
incondicionalmente heterônomo, o fim mesmo é algo es- ainda, como um fenômeno que se desenvolve na psique
tranho e indiferente. O “tu deves a fim de que [...], não é humana, e não, ao contrário, a expressão de uma idéia
mais, na opinião de Kelsen, o “tu deves' jurídico”.! eterna, ou como um a priori que tornaria possível a expe-
Essa teoria não é capaz de fornecer uma explicação riência jurídica, parece que o direito é apreendido cienti-
do direito como realidade material, não é capaz de dar ficamente. Essa aparência de cientificidade levou muitos
conta da genealogia da forma jurídica e, por força de marxistas a adotar tais concepções, adicionando a elas o
suas incongruências, acaba por se enredar em contradi- “momento crítico” ausente. A eles, como lembra
ções insolúveis.!é Pachukanis, “[...] pareceu suficiente introduzir nas refe-
Já as concepções de natureza psicológica ou socioló- ridas teorias o momento da luta de classes para que se
gica pretendem aproximar-se do direito como fenômeno obtivesse uma teoria do direito genuinamente materialis-
real, e podem assim apresentar os seus títulos “científi- ta e marxista. Entretanto, o resultado que se obtém é uma
história das formas econômicas com um colorido jurídi-
co, mais ou menos fraco, ou uma história das institui-
ções, mas, de modo algum, uma teoria geral do direito”.”
'! "A concepção metodológica de Kelsen é, essencialmente, o de-
senvolvimento daquelas idéias que já estão em Laband e Jellinek.
Tais concepções, no entanto, não consideram a espe-
Neste último, em especial, encontramos quase todas as reflexões cificidade da forma jurídica, e terminam por trabalhar com
fundamentais de que parte Kelsen. Seu mérito consiste somente um conceito extrajurídico. É esse exatamente o caso de
na excepcional coerência e firmeza com que ele desenvolve um P. Stutchka, que privilegia o conteúdo de classe do direito
princípio, uma vez aceito, não se detendo nem mesmo diante das em seu desenvolvimento histórico, negligenciando o “de-
mais paradoxais conclusões. O ponto de partida é a contraposição
entre o método normativo do jurista e o método explicativo do
senvolvimento lógico e dialético da forma mesma”
sociólogo, do historiador e do cientista natural. Estes lidam com (logitcheskim i dialektitcheskim razvitiem samoi formy).º
fenômenos naturais necessários, em virtude da relação de causa- O resultado disso é que se obtém apenas uma teoria
lidade, ao passo que o jurista lida somente com um tipo especial do direito que o vincula aos interesses e às necessidades
de dever ser. Apoiando-se em Windelband e, em parte, em Simmel,
Kelsen abre um verdadeiro abismo lógico entre o ser e o Dever-
materiais das diversas classes sociais, mas não dá conta
ser, e fecha ao jurista qualquer passagem do mundo das normas de explicar a própria regulamentação jurídica como tal,
ao mundo real. Tendo submetido os conceitos jurídicos funda- ou seja, não é capaz de explicar por que determinado
mentais a uma análise minuciosa, cuidadosamente ele elimina de interesse de classe é tutelado precisamente sob a forma do
lá todos os elementos psicológicos e sociológicos, qualquer matiz
do real”, E. Pachukanis, “K obzoru literatury po obschei teorii
prava i gosudarstva”, op. cit., p. 231.
!3 E. Pachukanis, “Obschaia teoriia prava i marksizm”, op. cit. p. 43-44,
'8 Cf. E. Pachukanis, “K obzoru literatury po obschei teorii prava i 17 E. Pachukanis, “Obschaia teoriia prava i marksizm”, op. cit. p. 47.
gosudarstva”, op. cit. !8 Id. ibid, p. 57.

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direito, e não sob outra forma qualquer, de sorte que é complexidade até à concretização histórica. Não deve-
impossível distinguir a esfera jurídica das outras esferas mos nos esquecer, além disso, que a evolução dialética
sociacaiois. 19 dos conceitos corresponde à evolução dialética do pró-
A principal dificuldade desse tipo de teoria está em prio processo histórico. A evolução histórica acarreta não
formular um conceito de direito como regulamentação apenas uma modificação no conteúdo das normas jurídicas e
autoritária externa, que pode ser aplicada a todas as épo- uma modificação das instituições jurídicas, mas também 0 de-
cas da história e a todos os modos de organização da senvolvimento da forma jurídica como tal [Istoritcheskaia
sociedade, ao invés de procurar identificar os conceitos evoliutsiia neset s soboi ne tolko smenu soderjanita norm e
mais “acabados” do direito e de relacioná-los a determi- smenu institutov prava, no i razvitie pravovoi formy kak
nada época histórica.” takovoi]. Esta última surge em determinada etapa da ci-
Uma questão metodológica essencial formulada por vilização e permanece, por muito tempo, em estado em-
Marx é então recuperada por Pachukanis: a relação en- brionário, internamente pouco se diferenciando e não se
tre as categorias do presente e as categorias do passado separando das esferas contíguas (costume, religião). De-
histórico, sendo aquelas a “chave” para a compreensão senvolvendo-se gradualmente ela alcança, depois, o seu
destas. Para Marx, é a sociedade burguesa, a mais evo- máximo florescimento e a sua máxima diferenciação e
luída forma de sociedade, que permite a apreensão da determinação. Esta etapa superior de desenvolvimento
estrutura das sociedades passadas. É a anatomia do ho- corresponde a relações econômicas e sociais determina-
mem que permite conhecer a anatomia do macaco, ao das [Eta vyschaia stadiia razvitia sootvetstuuet opredelennym
passo que nos animais inferiores todos os sinais que anun- ekonomitcheskim i sotsial'nym otnocheniiam). Ao mesmo
ciam uma forma superior só podem ser compreendidos tempo, essa etapa caracteriza-se pelo surgimento de um
quando já se conhece essa mesma forma superior.” Com sistema de conceitos gerais que reflete teoricamente O sis-
base nessas considerações de Marx, Pachukanis elabora tema jurídico como um todo completo”.Z Pachukanis es-
o eixo de sua teoria jurídica, expressa nesta im portante tabelece aqui alguns pontos que merecem atenta
passagem: “Aplicando as considerações metodológicas consideração: em primeiro lugar, é a partir da forma ju-
acima referidas à teoria do direito, devemos começar pela rídica burguesa, a forma mais evoluída do direito, que é
análise da forma jurídica na sua figura mais abstrata e possível a compreensão das formas jurídicas das socie-
pura, para passar depois pelo caminho de uma gradual dades pré-capitalistas, particularmente, a compreensão
das razões de, nessas sociedades, o direito permanecer
“contido” e amalgamado a outras formas sociais; em se-
9 Cf.id. ibid, p. 47-48.
20 Cf.id, ibid, p. 49.
21 Id. ibid, p. 35. Cf. K. Marx, Einleitung zu den “Grundrissen der
Kritik der politischen Okonomie”, in K. Marx e F. Engels,
Gesamtausgabe, I1/1.1, Berlim, Dietz Verlag, 1976, p. 40. 22 Id, ibid., p. 64-65, grifos meus, MBN.

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gundo lugar, Pachukanis enfatiza a necessidade de “chave” para compreender as formas sociais do passa-
apreender a especificidade da forma jurídica, que do. De fato, segundo Marx, a compreensão das socieda-
corresponde a uma forma particular de organização des pré-capitalistas só é possível porque a sociedade
da sociedade; finalmente, Pachukanis mostra — retoman-
burguesa é capaz de se autocriticar, o que remete, como
do indicações já fornecidas por ele em outras passa-
ressalta Aldo Schiavone, à “qualidade específica do pre-
gens — que não é suficiente examinar apenas o conteúdo
material do direito em cada época histórica, mas é neces- sente” que admite “o mais elevado nível de domínio da
sário examinar o modo
abstração”, e permite, assim, que as categorias da econo-
mesmo como tais conteúdos
exprimem.
se mia política clássica se constituam plenamente.” Desse
modo, os processos sociais ganham cognoscibilidade ape-
Podemos dizer que a concepção de Pachukanis cor-
nas por meio do “efeito de conhecimento que nasce da
responde inteiramente às reflexões que Marx desenvol-
ve, sobretudo nos Grundrisse e em O capital, a propósito reprodução no pensamento do movimento especificamen-
do lugar central que ocupa a análise da forma para com- te moderno das formas que articulam [...] relações so-
preender as relações sociais capitalistas. Distinguindo-se ciais e forças produtivas. [...] Esta ciência social crítica [...] é
dos economistas burgueses que “vêem como se produz a única em grau de revelar o segredo do domínio for-
no interior da relação capitalista”, mas são incapazes de mal — e portanto da subordinação do concreto e dos con-
perceber como essa relação é produzida, e nem como são teúdos —”, que é próprio da sociedade capitalista?
produzidas nela as condições de sua superação, “o que Em O capital, Marx, em numerosas passagens, de-
suprime a sua justificação histórica como forma necessá- monstra a especificidade de as categorias ecônomicas
ria do desenvolvimento econômico, da produção da ri- dependerem da forma social de que se revestem. Assim,
queza material”, Marx funda a distinção entre a con- ao analisar a forma valor, ele mostra que toda produção
cepção materialista da história e a concepção burguesa necessita medir o tempo de trabalho, mas, o que distin-
da história, em uma teoria das formas ou dos modos de gue uma época histórica de outra é justamente a forma
produção.? Ora, essa teoria das formas está intimamen- pela qual essa medida é realizada. Do mesmo modo, ao
te ligada ao privilegiamento do presente histórico como analisar a categoria de trabalho, Marx também constata
que essa categoria é comum a todos os modos de produ-
ção, mas que o trabalho sob a forma de trabalho abstrato
** K. Marx, Ókonomische Manuskripte, 1863-1867 (“Sechtes Kapitel. só surge na economia mercantil-capitalista. Criticando a
Resultate des unmittelbaren Productionsprocesses”), in K. Marx economia política clássica, Marx diz: “É uma das falhas
e F. Engels, Gesamtausgabe, 11/4.1, Berlim, Dietz Verlag, 1988,
p- 129. Cf. também para o que segue Aldo Schiavone, “Per una básicas da economia política clássica não ter jamais con-
rilettura delle 'Formen': teoria della storia, dominio del valore
d'uso e funzione dell'ideologia”, in Luigi Capograssi, Andrea
Giardina e Aldo Schiavone (orgs.), Analise marxista e societã antiche, 24 Cf. A. Schiavone, op. cit., p. 79.
Roma, Rinuiti, 1978.
25 Id. ibid, p. 79.

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seguido descobrir, a partir da análise da mercadoria, e o momento jurídico alcance a sua plena determinação
mais especialmente, do valor das mercadorias, a forma nas relações sociais”?
valor, que justamente o torna valor de troca. Precisamente, Nas sociedades pré-capitalistas, a forma jurídica não
os seus melhores representantes, como A. Smith e apenas encontra-se fracamente desenvolvida, como tam-
Ricardo, tratam a forma valor como algo totalmente in- bém é difícil distingui-la de outras formas sociais. Pachukanis
diferente ou como algo externo à própria natureza da insiste em que o direito não é uma invenção arbitrária,
mercadoria. A razão não é apenas que a análise da muito embora parte das construções jurídicas — sobretu-
grandeza de valor absorve totalmente a sua atenção. É do as categorias do direito público — contenha certo grau
mais profunda. A forma valor do produto de trabalho é de arbitrariedade. Como se pode explicar isso? Sabemos
a forma mais abstrata, contudo também a forma mais que a forma do valor — que só se torna universal em uma
geral do modo burguês de produção, que por meio disso economia capitalista na qual as relações mercantis este-
se caracteriza como uma espécie particular de produção jam plenamente desenvolvidas — assume, além das for-
social. Se, no entanto, for vista de maneira errônea como mas primárias, formas derivadas e artificiais. É
a forma natural eterna de produção social, deixa-se tam- precisamente o caso quando ela surge sob o aspecto de
bém necessariamente de ver o específico da forma valor, objetos que não são produtos do trabalho — o que não
portanto, da forma mercadoria, de modo mais desenvol- impede que o valor só possa ser conhecido sob a ótica do
vido da forma dinheiro, da forma capital, etc.”.% dispêndio de trabalho socialmente necessário. Igualmen-
A partir dessas considerações podemos estabelecer te, a forma jurídica em seu universalismo reveste outras
uma relação entre as formas do direito e o modo de pro- relações sociais, o que não deve impedir o exame das re-
dução capitalista, precisamente porque só na sociedade lações que constituem o seu fundamento real, as quais
burguesa a forma jurídica alcança o seu mais alto grau
não se encontram na esfera do direito público.”
de abstração, o que permite que ela torne-se realmente
verdadeira apenas no interior desse modo de produção,
da mesma maneira que o trabalho só se torna trabalho
28 E. Pachukanis, “Obschaia teoriia prava i marksizm”, op. cit. p. 51.
realmente abstrato na sociedade capitalista.” Pachukanis Prossegue Pachukanis: “[...] o desenvolvimento dialético dos con-
pode então concluir que “somente a sociedade burgue- ceitos jurídicos fundamentais não nos oferece apenas a forma
sa-capitalista cria todas as condições necessárias para que jurídica no seu máximo desvendamento e em suas articulações,
mas reflete igualmente o processo de desenvolvimento históri-
co real, que outro não é senão o processo de desenvolvimento da
sociedade burguesa” [...] dialektitcheskoe razvitie osnovnykh
26
iuriditcheskikh poniatii ne tol'ko daet nam formu prava v ee naibolee
n K. Marx, O capital, São Paulo, Abril Cultural, 1983, v. 1,t.1, p. 76. raskrytom i rastchlenennom vide, no i otobrajaet real"nyi istoritcheskii
Cf. a propósito, as observações de R. Guastini, op. cit., p. 394-395. protsess razvitiia, kotoryi est'ne chto inoe, kak protsess razvitiia
Cf. também, Gianfranco La Grassa, Valore e formazione sociale, burjuaznogo obschestva], id., ibid., p. 51.
Roma, Riuniti, 1976. 9 Cf. id, ibid. p. 52-53.

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CIRCULAÇÃO E FORMA JURÍDICA

Relacionar a forma da mercadoria com a forma jurídi-


ca resume, para Pachukanis, o essencial de seu esforço teó-
rico.! De fato, a elaboração teórica de Pachukanis se diri-
ge no sentido de estabelecer uma relação de determinação
das formas do direito pelas formas da economia mercan-
til. Em várias passagens tal determinação é claramente
enunciada: a “gênese” (genezis)? da forma do direito se
encontra na relação de troca; a forma jurídica é o “reflexo
inevitável” (neizbejnym otprajeniem)? da relação dos pro-
prietários de mercadorias entre si; o princípio da subjeti-
vidade jurídica “decorre com absoluta inevitabilida-
de” (vytekaiut s absoliutnoi neizbejnost'iu)* das condições
da economia mercantil-monetária; esta economia
mercantil é a “condição prévia fundamental” (osnovnoi

No Prefácio à 2º edição de A teoria geral do direito e o marxismo,


Pachukanis diz que “o camarada P. 1. Stutchka definiu, correta-
mente, a minha abordagem da teoria geral do direito, como uma
“tentativa para aproximar a forma do direito da forma da merca-
doria"”. E. Pachukanis, “Obschaia teoriia prava i marksizm”,
op. cit., p. 34.
? Id. ibid, p. 39, grifo meu, MBN.
* Id, ibid, p. 74, grifos meus, MBN.
* Id, ibid, p. 38, grifos meus, MBN.

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Marxismo e direito
Circulação e forma jurídica

predposylkoi),* o “momento fundamental e determinante”


nados mercadorias” (tol'ko drugaia storona otnochenia mejdu
(osnovnym opredeliaschim momentom)* do direito; a forma produktami truda, stavchimi tovarami)" e, da mesma for-
jurídica é “gerada” (porojdaet) pela forma mercantil? a re- ma que a sociedade capitalista se apresenta como uma
lação econômica de troca “deve existir” (doljno byt”) para “imensa acumulação de mercadorias”,” ela também se
que “surja” (vozniklo) a relação jurídica; a relação econô- constitui em uma “cadeia ininterrupta de relações jurídi-
mica é a “fonte” (istotchnikom)º da relação jurídica. Todas cas” (beskonetchnoi tsep“iu iuriditcheskikh otnochenii).* Desse
essas expressões denotam evidente afirmação do caráter modo, a relação jurídica apresenta-se como “a célula cen-
derivado do direito, e de sua específica determinação pelo tral do tecido jurídico e é unicamente nela que o direito
processo de trocas mercantis. É, portanto, a esfera da cir- realiza o seu movimento real” (Iuriditcheskoi otnochenie —
culação das mercadorias que “produz” as diversas figu- eto pervitchnaiav Kletotchka pravovoi tkani, 1 tolko v nei pravo
ras do direito, como uma decorrência necessária de seu soverchaet svoe real"noe dvijenie).!
próprio movimento. Essa determinação do direito pela es- Assim, Pachukanis pode dizer que Stutchka tem ra-
fera da circulação é claramente sustentada por Karl Marx zão ao considerar o problema do direito uma questão
em seus comentários sobre o Tratado de economia política de atinente às relações sociais, porém, objeta Pachukanis,
Wagner, como lembra Pachukanis: “Wagner, refletindo
sobre um conjunto de elementos fundamentais do direito
burguês, considera-os pressupostos da troca. Marx objeta A citação completa de Marx sobre essa questão, referindo-se a
dizendo que isso é um erro; a troca vem antes, surgindo depois Wagner, é a seguinte: “Para ele, o direito precede a circulação; na
o direito correspondente [Marks vozrajaet emu i gorovit, chto realidade, ocorre o contrário: a circulação é que vem antes, e é a
eto neberno; ran'che byl obmen, a potom poiavilos' partir dela que se desenvolve em seguida uma ordem jurídica. Ao
analisar a circulação das mercadorias eu demonstrei que, no comér-
sootbetsbuiuschee pravo]. [...] [Marx] diz que [tais elemen- cio de trocas desenvolvido, os indivíduos que trocam se reconhe-
tos] nascem da troca (vytekaiut iz obmena)”.º Assim, cem tacitamente como pessoas e proprietários iguais dos respecti-
Pachukanis pode apresentar a relação jurídica como “o vos bens que eles possuem para trocar; isso ocorre já no momento
outro lado da relação entre os produtos do trabalho tor- em que eles oferecem seus bens uns para os outros e se põem de
acordo para negociar. É essa relação de fato que surge primeiro,
como resultado da troca enquanto tal, recebendo depois uma for-
ma jurídica no contrato, etc.; porém, esta forma não produz nem o
Id., ibid., p. 85, seu conteúdo, a troca, nem a recíproca relação entre as pessoas nela
grifos meus, MBN.
compreendida, mas vice-versa”, K. Marx, “Randglossen zu Adolph
a

Id., ibid., p. 86, grifos meus, MBN. Wagners 'Lehrbuch der politischen Okonomie'”, in K. Marx e
Lia

Id., ibid., p. 78, grifo meu, MBN. F. Engels, Werke, v. 19, Berlim, Dietz Verlag, 1962, p. 377. Cf. tam-
Id., ibid., p. 85, grifos meus, MBN. bém o comentário de B. Melkevik, op. cit., p. 176.
Id., ibid., p. 85, grifo meu, MBN. HE. Pachukanis, “Obschaia teoriia prava i marksizm”, op. cit., p. 78.
E. Pachukanis, “Polojenie na teoretitcheskom pravovom fronte 2 Id. ibid., p. 78.
(K nekotorym itogam diskussii)”, in Sovetskoe Gosudarstvo i 3 Id, ibid. p. 78.
Revoliutsiia Prava, nº 10-11, 1930, p. 32-33, grifos meus, MBN. 4 Id, ibid., p. 78.

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não é suficiente aproximar o fenômeno jurídico das rela- a forma jurídica é o “reflexo” é, assim, a relação dos pro-
ções sociais em geral, pois isso impede o conhecimento prietários de mercadorias entre si.”
da natureza específica da forma jurídica. Como diz
Pachukanis, segundo Stutchka, “[...] o direito já não fi-
A forma jurídica pode aparecer, então, como o cen-
gura como uma relação social específica, mas como to- tro da démarche pachukaniana, como bem salienta
das as relações sociais em geral, como um sistema de re- Riccardo Guastini."º
lações sociais que corresponde aos interesses da classe A forma jurídica nasce somente em uma sociedade
dominante e é garantido por sua força organizada. Por- na qual impera o princípio da divisão do trabalho, ou
tanto, dentro destes limites de classe, o direito enquanto seja, em uma sociedade na qual os trabalhos privados só
relação não pode ser separado das relações sociais em se tornam trabalho social mediante a intervenção de um
geral”, de modo que Stutchka não pode responder à equivalente geral. Em tal sociedade mercantil, o circui-
questão de como as relações sociais se transformam em to das trocas exige a mediação jurídica, pois o valor de
relações jurídicas.” Essa definição exprime o conteúdo troca das mercadorias só se realiza se uma operação
de classe de todo o direito, mas não é capaz de explicar jurídica — o acordo de vontades equivalentes — for intro-
justamente por que esse conteúdo deve revestir uma de- duzida. Ao estabelecer um vínculo entre a forma do di-
terminada forma, precisamente, a forma jurídica. No reito e a forma da mercadoria, Pachukanis mostra que
limite, tal concepção se confunde com a jurisprudência o direito é uma forma que reproduz a equivalência, essa
burguesa que dota o direito de validade universal e o “primeira idéia puramente jurídica” a que ele se refe-
faz pairar acima da história.'é re.'” A mercadoria é a forma social que necessariamen-
Ao contrário deste procedimento,
te deve tomar o produto quando realizado por traba-
Pachukanis pro-
cura identificar a relação social específica que se exprime lhos privados independentes entre si, e que só por meio
na forma jurídica. Como já observamos, essa relação so- da troca realizam o seu caráter social. O processo do
cial deve ser encontrada na esfera da circulação mercan- valor de troca, assim, demanda para que se efetive um
til, ali onde os sujeitos-proprietários estabelecem relações circuito de trocas mercantis, um equivalente geral, um
mútuas de troca de equivalentes. A relação social da qual padrão que permita “medir” o quantum de trabalho abs-

7 Id. ibid, p. 45.


!8 CE, além das considerações feitas no capítulo 1, R. Guastini, “La
'3 Id. ibid, p. 75. teoria generale del diritto in U.R.S.S. Dalla coscienza giuridica
16 “Para a filosofia burguesa do direito, que considera a relação jurídi- rivoluzionaria alla legalitã socialista”, op. cit. Sobre o mesmo
ca como uma forma natural e eterna de qualquer relação humana, tal problema da forma jurídica e, em especial, sobre a diferença en-
ques não
tã chega
o sequera ser colocada. Para a teoria marxista, que tre a concepção de Pachukanis e de Stutchka sobre tal tema, pode-
se esforça por penetrar nos mistérios das formas sociais e por se ver Wolf Rosembaum, “Zum Rechtbegriff bei Stucka und
reconduzir todas as relações humanas ao próprio homem, esta tarefa Pasukanis”, in Kritische Justiz, nº 5, 1972.
deve ser colocada em primeiro plano”, E. Pachukanis, op. cit, p. 46.
|» Id, ibid., p. 160.

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Marxismo e direito Circulação e forma jurídica

trato que está contido na mercadoria. Portanto, o direi- equivalência surge, portanto, a partir da forma da mer-
to está indissociavelmente ligado à existência de uma cadoria, e permite que se considere o delito “como uma
sociedade que exige a mediação de um equivalente ge- variante particular da circulação na qual a relação de
ral para que os diversos trabalhos privados independen- troca, ou seja, a relação contratual, é estabelecida post
tes se tornem trabalho social. É a idéia de equivalência fuctum, isto é, depois de uma ação arbitrária de uma das
decorrente do processo de trocas mercantis que funda a partes. A proporção entre o delito e a reparação se re-
idéia de equivalência jurídica. “Uma vez dada a forma duz a uma proporção de troca” (kak osobuiu raznovidnost”
da relação de equivalentes, então está dada igualmente aborota, v kotoroi menovoe, t. e. dogovornoe, otnochenie
a forma do direito [...]” (Raz dana forma ekvivalentnogo ustanavlivaetsia post factum, t. e., posle svoevol"nogo deistuiia
otnocheniia, znatchit, dana forma prava), lembra Pachukanis odnoi iz stopon. Proportsiia mejdu prestupleniem 1 vozmezdiem
e prossegue partindo da leitura do trabalho de Karl Marx, wwoditsia k toi je menovoi proportsii).”? A forma jurídica,
Crítica do programa de Gotha: “Marx mostra ao mesmo portanto, só se constitui quando o princípio da equiva-
tempo a condição fundamental, enraizada na própria lência se torna dominante, tornando possível distinguir
economia, da existência da forma jurídica, qual seja, a
igualação dos dispêndios de trabalho segundo o princí-
pio da troca de equivalentes, isto é, ele descobre o profun-
1 Id, ibid., p. 160-161. Pachukanis prossegue ainda: “Por isso
do vínculo interno que existe entre a forma jurídica e a for- Aristóteles, ao falar da igualação na troca como uma espécie de
ma da mercadoria” (on vskryvaet glubokuiu vnutrenniuiu justiça, distingue duas subespécies: a igualação nas ações voluntá-
sviaz formy prava i formy tovara)? A relação de equi- rias e a igualação nas ações involuntárias, sendo que nas ações
valência permite que se compreenda a especificidade voluntárias ele compreende as relações econômicas, tais como a
compra e venda, o empréstimo, etc., e nas ações involuntárias os
do próprio direito, a sua natureza intrinsecamente bur-
vários tipos de delitos que exigem uma pena equivalente. Perten-
guesa. Esse aspecto pode ser percebido claramente se ce-lhe também a definição do delito como contrato concluído con-
nos voltarmos para o exame das figuras do direito pe- tra a vontade. A pena surge, então, como um equivalente que
nal. Como lembra Pachukanis, o direito penal, nos seus compensa o dano sofrido pela vítima”, ibid., p. 160. Também em
primórdios, vincula-se à prática da vingança, que se Hegel pode-se observar essa mesma aproximação entre pena €
apresenta como uma sucessão de atos de violência le- equivalência: “O valor, como igualação interna das coisas que, em
sua existência específica, são completamente distintas, é uma de-
vando a novos motivos ensejadores de novos atos de terminação que já se apresenta nos contratos e também na ação
violência e assim por diante. É somente quando surge civil contra o delito, e cuja representação é elevada à universalida-
um sistema de compensação da ofensa em dinheiro que de, superando assim a natureza imediata da coisa”, G. Hegel, Prin-
a vingança passa a se transformar: ela surge então como cípios de filosofia do direito, apud Dario Melossi e Massimo
Pavarini, Carcere y fábrica. Los orígenes del sistema penitenciario
reparação disciplinada pela “lei de talião”. A idéia de
(siglos XVI-XIX), México, DF, Siglo Veintiuno Editores, 1980,
p. 82. Cf. além deste trabalho, D. Melossi, “The Penal Question
in Capital”, in Crime and Social Justice, nº 8, 1976; e Georg Rusche
e Otto Kirchheimer, Pena e struttura sociale, Bolonha, Societã
20 Id, ibid., p. 55, grifos meus, MBN. Editrice Il Mulino, 1978, p. 175-176.

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Marxismo e direito Circulação e forma jurídica

Já estamos de posse de elementos suficientes para troca, particularmente porque o direito, como veremos a
começarmos a compreender a assertiva pachukaniana seguir, opera a mediação entre uma troca decisiva para
sobre a natureza burguesa do direito. Este é um dos as- a constituição e reprodução das relações de produção ca-
pectos de sua obra mais suscetíveis de uma interpreta- pitalistas: a troca de força de trabalho por salário. E é
ção unilateral. Pachukanis de modo algum interdita a exatamente por só se realizar plenamente na sociedade
compreensão da forma jurídica nas formações sociais pré- burguesa, que se pode apreender o modo de funciona-
burguesas. Ao contrário, como já mencionamos ante- mento do direito nas sociedades pré-capitalistas, nas quais
riormente, é justamente a natureza capitalista do direito não predomina o valor de troca e as formas da abstração
que permite que se compreenda as suas formas “ante- permanecem “contidas” em limites estreitos.”
diluvianas”, para retomar uma expressão de Marx refe- Passemos à análise da forma sujeito, categoria que
rindo-se ao capital. Também aqui Pachukanis acompanha ocupa um lugar central, como já salientamos, no apara-
o método com que Marx analisa as figuras da economia. to conceitual pachukaniano.
Assim, Marx pode dizer que a mercadoria é um fenômeno
tipicamente capitalista, muito embora a mercadoria exista
muito antes do surgimento desse modo de produção. É 24 Pachukanis retifica algumas das suas formulações sobre essa
que, não obstante nas sociedades pré-capitalistas o produ- questão, desenvolvidas em A teoria geral do direito e o marxismo,
to do trabalho possa se revestir da forma da mercadoria, em seu trabalho de 1930, “Polojenie na teoretitcheskom
só na sociedade burguesa ocorre essa “mercantilização” pravovom fronte (K nekotorym itogam diskussii)”, op. cit.,
universal, em virtude não só de que praticamente todos p. 33: “O defeito fundamental de meu primeiro trabalho, de-
feito que eu já reconheci em meu artigo em Revoliutsiia Prava,
os produtos são mercadoria, mas também em virtude de nº 2, de 1927, foi não ter desenvolvido ali, concreta e historica-
que a própria força de trabalho se constitui como merca- mente, a questão da transição de uma formação econômico-
doria. Isto está evidentemente relacionado com a emer- social para outra e, particularmente, a transição do feudalis-
gência do trabalho abstrato como trabalho realmente mo para o capitalismo, questão que está relacionada com a
transição de um sistema de direito para outro”, op. cit., p. 33.
abstrato, como simples dispêndio de força de trabalho, Para um exame do direito pré-capitalista e, particularmente,
indiferente em relação à “qualidade” do trabalho, isto é, do direito romano, podem-se ver, notadamente, os trabalhos
a fatores como a habilidade, destreza, etc., do trabalha- de Aldo Schiavone: Nãâscita della giurisprudenza. Cultura
dor. O domínio do valor de troca só se dá, portanto, em aristocratica e pensiero giuridico nella Roma tardo-repubblicana,
uma sociedade cuja organização do processo de traba- Roma/Bari, Laterza, 1977; Giuristi e nobili nella Roma
repubblicana. Il secolo della rivoluzione scientifica nel pensiero
lho está estruturada de modo a tornar o operário simples giuridico antico, Roma / Bari, Editori Laterza, 1987; H istoriografia
“apêndice” da máquina, simples fornecedor de trabalho y critica del derecho, Madri, Editoriales de Derecho Reunidas,
vivo “indiferenciado”. 1982; “Il caso e la natura. Un'indagine sul mondo di Servio”,
in Andrea Giardina e Aldo Schiavone (orgs.), Societã romana e
Igualmente, o direito como forma do processo de tro-
produzione schiavistica, v. Il: “Modelli etici, diritto e trasfor-
ca mercantil só desenvolve todas as suas determinações mazioni sociali”, Roma/Bari, Laterza, 1981. Ver, ainda, Jacques
na sociedade em que predomina o processo do valor de Michel, Marx et la société juridique, Paris, Publisud, 1983.

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Marxismo e direito Circulação e forma jurídica

Se o direito pode aparecer para Pachukanis como uma A concepção teórica de Pachukanis se organiza, por-
relação entre sujeitos, isso implica uma posição teórica tanto, em torno da noção de sujeito de direito: “Toda re-
antinormativista que recusa a prevalência da norma so- lação jurídica é uma relação entre sujeitos. O sujeito é o
bre a relação, isto é, que recusa a premissa de que é a átomo da teoria jurídica, o elemento mais simples, que
norma que gera a relação jurídica. A relação jurídica per- não pode mais ser decomposto” (Vsiakoe iuriditcheskoe
mite a conexão dos sujeitos privados por meio do contra- otnochenie est" otnochenie mejdu sub'ektami. Sub'ekt — eto
to, revelando-se, assim, como “o outro lado da relação atom iuriditcheskoi teorii, prosteichii, nerazlojimyi dalee
entre os produtos de trabalho transformados em merca- element)” O procedimento de Pachukanis ao procurar
dorias”.? Ao contrário, o direito entendido apenas como identificar o elemento mais abstrato e mais “puro” do teci-
um conjunto normativo só adquire “significação real” se do jurídico é similar ao de Marx quando este inicia a sua
a ele corresponde determinada relação. A norma, ou pro- análise de O capital pelo exame da mercadoria. Em am-
vém de uma relação já existente, ou prevê o surgimento bos os casos, trata-se de identificar o elemento que concen-
posterior dessa relação. Como diz Pachukanis, “O méto- tra em si a especificidade de relações sociais determinadas,
do jurídico-formal que concerne apenas às normas e a e cuja forma permite revelar tal especificidade.
isto que é “supostamente conforme ao direito” só pode
manter a sua autonomia dentro de estreitos limites e exa- Assim, Pachukanis pode afirmar que só no modo de
tamente apenas enquanto a tensão entre o fato e a nor- produção capitalista é que os indivíduos adquirem o es-
ma não ultrapassa um determinado grau máximo. Na tatuto universal de sujeitos. A forma-sujeito de que se re-
realidade material a relação prevalece sobre a norma. Se veste o homem surge como a condição de existência da
nenhum devedor pagasse as suas dívidas a regra corres- liberdade e da igualdade que se faz necessária para que se
pondente deveria então ser considerada realmente constitua uma esfera geral de trocas mercantis e, conse-
inexistente”.? quentemente, para que se constitua a figura do proprietá-
rio privado desses bens, objetos da circulação. E na esfera
da circulação das mercadorias, como um elemento dela
25 e mm e ae . A
derivado que opera para tornar possível a troca mercantil,
:
E. Pachukanis, “Obschaia Teoriia prava i marksizm”, op.cit., que nasce a forma jurídica do sujeito: “[...] a realização do
p. 78. E ainda: “Do mesmo modo que a riqueza da sociedade
capitalista assume a forma de uma imensa acumulação de
valor no processo de troca pressupõe um ato voluntário
mercadorias, assim também a sociedade como um todo apre- consciente da parte do possuidor de mercadorias [...]”
senta-se como uma cadeia infinita de relações jurídicas (Podobno (to realizatsiia stoimosti v protsesse obmena predpolagaet
tomu kak bogatstvo kapitalistitcheskogo obschestva prinimaet formu soznatel'nyi volevoi akt so storony vladel'tsa tovara)* É a
gromadnogo skopleniia tovarov, samo obschestvo predstavliaetsia esse ato de vontade, constitutivo da categoria de sujeito
beskonetchnoi tsep'iu iuriditcheskikh otnochenii). A troca de merca-
dorias pressupõe uma economia atomizada. A conexão entre
as unidades econômicas privadas e isoladas é feita, caso a caso,
por meio de contratos”. 27 Id, ibid., p. 102.
26 Id, ibid, p. 79. * Id. ibid, p. 105.

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Marxismo e direito
Circulação e forma jurídica

de direito, que Marx empresta importância decisiva, pois de equivalência material, isto é, à troca das mercadoria
é ele que, ao possibilitar as trocas mercantis, estabelece
na base da lei do valor. Como Marx enfatiza, sem a pre-
as premissas do modo de produção capitalista, ao mes- sença dessa condição de subjetividade jurídica que per-
mo tempo em que permite revelar todo o segredo da forma mite a circulação de vontades livres e iguais, não se daria
jurídica. Diz Marx, em O capital: “As mercadorias não a troca das mercadorias. Ora, se a liberdade, esse atribu-
podem por si mesmas ir ao mercado e se trocar. Deve- to da personalidade, existe por e para a troca, isto é, para
mos, portanto, voltar a vista para seus guardiões, os pos- que se constitua um circuito de transações mercantis,
suidores de mercadorias. As mercadorias são coisas e, então o homem só é livre uma vez inserido na esfera da
consequentemente, não opõem resistência ao homem. Se circulação. Se, portanto, é a troca que constitui a liberdade
elas não se submetem a ele de boa vontade, ele pode usar do homem, podemos dizer que quanto mais se alarga a
de violência, em outras palavras, tomá-las. Para que es- sua esfera de comercialização, mais livre então pode ele
sas coisas se refiram umas às outras como mercadorias, é ser, de tal modo que a expressão a mais “acabada”, a
necessário que os seus guardiões se relacionem entre si mais completa, a mais absoluta de sua liberdade, é a li-
como pessoas, cuja vontade reside nessas coisas, de tal berdade de disposição de si mesmo como mercadoria.
modo que um, somente de acordo com a vontade do ou- Aqui podemos encontrar o homem reduzido à sua “es-
tro, portando cada um apenas mediante um ato de von- sência”: no ato de troca de si mesmo o homem realiza a
tade comum a ambos, se aproprie da mercadoria alheia sua liberdade, portanto, a liberdade do homem aparece
enquanto aliena a própria. Eles devem, portanto, reco- no ato de disposição de si como mercadoria, no qual o
nhecer-se reciprocamente como proprietários privados. homem se torna um proprietário que carrega em si, em
Essa relação jurídica, cuja forma é o contrato, desenvol- sua “alma”, o objeto de seu comércio, um proprietário
vida legalmente ou não, é uma relação de vontade, em que realiza em si mesmo a qualidade de sujeito e de obje-
que se reflete a relação econômica. O conteúdo dessa re- to de direito: “O direito subjetivo sendo direito da pessoa
lação jurídica ou de vontade é dada por meio da relação e não encontrando a sua eficácia a não ser no consenti-
econômica mesma. As pessoas aqui só existem, recipro- mento, põe a relação vontade-liberdade do seguinte
camente, como representantes de mercadorias e, por isso, modo: a liberdade do homem é o seu livre consentimen-
como possuidores de mercadorias”.”? O homem trans- to. A liberdade sendo feita vontade — de divulgar ou não
forma-se em sujeito por meio de um ato volitivo: é a minha vida privada, que é minha liberdade — e esta liber-
expressão do seu “querer” que permite a ele estabelecer dade não sendo outra coisa que aquela de contratar — e,
com outros homens, portadores de uma vontade igual a notadamente, sobre mim mesmo -, eu devo, em minhas
sua, uma relação consensual de reciprocidade. Esse ele- relações com o outro, aparecer como proprietário de mim
mento de “equivalência subjetiva” corresponde ao elemento mesmo, porque eu sou livre de mim mesmo. Com efeito,
se eu não fosse proprietário de mim mesmo, eu seria para
o outro escravo, isto é, incapaz de me vender (res), e se o
outro não fosse também livre, ele não poderia se vender.
22 K. Marx, O capital, v. Lt. 1, op. cit, p. 79-80. Em outras palavras, a livre troca da propriedade de si

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implica uma livre produção e uma consumação dessa direito, por meio das categorias jurídicas — sujeito de di-
produção. O direito, para respeitar e tornar real a
fa- reito, contrato, etc. —, enfim, sob a forma de uma subjeti-
culdade de alienação de si mesmo, que é reconhecida vidade jurídica. É assim que o indivíduo oferece no mer-
a toda a pessoa física, deve pôr a pessoa em termos de cado os atributos de sua personalidade: ele é livre — pois
propriedade. A estrutura mesma do sujeito de direito não é constrangido a vender-se (isto é, vender a merca-
na dialética da vontade — produção — propriedade, não
doria que ele possui, a sua força de trabalho); ao contrá-
é, definitivamente, mais que a expressão jurídica da co-
rio, a decisão de se vender é fruto de um ato de sua inteira
mercialização do homem”.3 vontade -, ele se vende em condição de plena igualdade
Na condição de sujeito-proprietário, o homem faz cir- ante o comprador — ambos se relacionam na condição
cular a si mesmo como objeto de troca, pois em sua exis- de proprietários que trocam equivalentes: a força de tra-
tência, como lembra Bernard Edelman, ele só aparec balho por um salário; e, finalmente, ele aparece no mer-
e
como representante dessa mercadoria que ele possui: a si cado como um proprietário que dispõe do que é seu. A
mesmo, de modo que se pode dizer que o homem como relação de exploração capitalista, como lembra
sujeito de direito é constituído para a troca, e é justamen- Pachukanis, é mediada por uma específica operação ju-
te essa condição que realiza a sua liberdade. rídica, a forma de um contrato, ao contrário da socieda-
A constituição da forma sujeito de direito está, por- de feudal, em que a completa sujeição do servo ao se-
tanto, ligada ao surgimento de determinadas relações nhor feudal, exercida pela coerção direta, não exigia
sociais de produção no âmbito das quais a relação de “uma formulação jurídica particular”.”
troca de mercadorias se generaliza a tal ponto que passa A análise da forma sujeito de direito em Pachukanis
a abarcar também a força de trabalho humana. Para permite ver a dependência das formas jurídicas em rela-
que as relações de produção capitalistas se configurem ção com as formas mercantis. Se o objetivo da mediação
é necessária a existência, no mercado, dessa mercado- jurídica, como lembra Pachukanis, é o de assegurar o fun-
ria especial, que permite a valorização do capital, a força cionamento de um circuito de trocas mercantis e, conse-
de trabalho. Ora, a força de trabalho só pode ser ofereci- quentemente, o de assegurar, em última instância, a
da no mercado e, assim, penetrar na esfera da circulação, própria produção mercantil, as formas jurídicas surgem
transfigurada em elemento jurídico, isto é, sob a forma do como elementos necessários para a realização dessa esfe-
ra da circulação.

30 B. Edelman, ae “Esquisse d'une


,
théorie du sujet: homme et son
a image”, in Communications, nº 26, 1977, p- 195-196. 2 Cf E. Pachukanis, op. cit. p. 104; e também, R. Guastini, op. cit.
Cf.B. Edelman, Le droit saisi par la photographie (Eléments pour une "Como diz Pachukanis, para Marx “a análise da forma do sujeito
théorie marxiste du droit), 2º ed., Paris, Christian Bourgois, 1980; decorre imediatamente da análise da forma da mercadoria” (Analiz
e Márcio Bilharinho Naves, Aproximações à crítica marxista do
direi- formy sub'ekta vytekaet u Marksa neposredstvenno iz analiza formy
to, dissertação
São Paulo, 1983,de mestrado, Pontífica Universi
niversidade Católica de tovara), ibid., p. 105.

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A análise da forma sujeito nos tinha permitido per- meio do equivalente, como tendo igual valor [...]”.% A essa
ceber a importância da noção de equivalência, pois o qualificação de sujeitos iguais, isto é, de sujeitos que tro-
sujeito de direito é, por definição, um sujeito-equivalen- cam, vem se acrescentar, diz Marx, a determinação da
te. Pois bem, Marx desenvolve, nos Grundrisse, essa mes- liberdade. De fato, a necessidade de obter a mercadoria
ma relação entre a equivalência mercantil e a equiva- de outro não leva o sujeito da troca a utilizar a violên-
lência jurídica, ao revelar a gênese da igualdade e da cia, mas, ao contrário, ele reconhece o outro — e este a
liberdade a partir das trocas de mercadorias: “De fato”, ele - como proprietário cuja vontade reside na merca-
diz Marx, “tão logo a mercadoria ou o trabalho são de- doria: “Surge então daí o momento jurídico da pessoa e
terminados como valores de troca e a relação por meio da liberdade, na medida em que esta está contida na
da qual as diferentes mercadorias se referem mutuamen- primeira”.” Para Marx, é a troca que põe a igualdade,
te como troca desses valores de troca uns com os outros, ao passo que aquilo que leva à troca põe a liberdade,
sua igualação são os indivíduos, os sujeitos entre os quais podendo então concluir que a igualdade e a liberdade
este processo ocorre, simplesmente determinados como “não são apenas respeitadas na troca que se baseia em
valores de troca, mas
sujeitos que trocam”. Entre esses sujeitos, diz Marx, a troca de valores de troca é a
não há nenhuma diferença, pois cada qual tem com o base real, produtiva, de toda igualdade e liberdade”
outro a mesma relação social. Esses sujeitos são sujeitos Pois bem, após termos afirmado e enfatizado a relação
que trocam, e, portanto, na condição de sujeito da troca que Pachukanis estabelece entre a forma jurídica e as for-
“sua relação é a da igualdade”. Da relação de equiva- mas mercantis, podemos admitir que a concepção
lência econômica decorrem as seguintes determinações: pachukaniana se encerra nessa relação? Ao contrário do
os sujeitos que trocam, os objetos da troca (diz Marx: “va- que sustentam os seus comentadores, a concepção de
lores de troca”, “equivalentes”), e a própria troca, o ato Pachukanis é mais complexa, não se limitando a estabele-
que põe os sujeitos como sujeitos iguais que trocam e OS cer uma determinação simples entre o direito e a circula-
objetos como equivalentes. “Os equivalentes são a obje-
tivação de um sujeito para o outro; isto é, eles próprios são
de igual valor e se afirmam no ato da troca como sujeitos de 36 Id, ibid, p. 4.
igual valor e ao mesmo tempo como mutuamente indiferen- 37 Id. ibid., p.5. E Marx prossegue: “Nenhum se apodera da proprie-
tes. Os sujeitos são na troca um para o outro apenas por
dade do outro com violência. Cada um desfaz-se da mesma vo-
luntariamente. Mas isto não é tudo: o indivíduo A serve à necessi-
dade do indivíduo B por meio da mercadoria a, apenas na medida
em que e porque o indivíduo B serve à necessidade do indivíduo
A por meio da mercadoria b, e vice-versa. Cada um serve ao
outro a fim de servir-se a si próprio; cada um serve-se do outro
34 K. Marx, “Troca, igualdade, liberdade”, in Temas de Ciências Hu- reciprocamente como seu meio”, ibid., p. 5.
der
manas, nº 3, 1978, p. 3. (Tradução de um extrato dos Grundrisse 38
Id., ibid., p. 6. Marx utiliza termos quase idênticos na primeira
Kritik der politischen Okonomie). versão de Para a crítica da economia política. Cf. nota 130.
35 Id, ibid. p.3.

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ção. Já tivemos a oportunidade de ver que só com a cons- modo imediato. Nisto reside um ponto capital para a
tituição de relações de produção de natureza capitalista devida compreensão do pensamento de Pachukanis, pois
é que o valor de troca se torna dominante e a mercadoria — é preciso dar conta de uma problemática que se encontra
generalizando-se e universalizando-se, em virtude de a “latente” em sua obra, embora inteiramente presente, e
própria força de trabalho ter-se constituído em mercado- que por vezes “emerge” na superfície do texto, introdu-
ria sob um específico modo de organização do processo zindo os enigmáticos “sintomas” que toda uma tradição
de trabalho — se torna uma forma social típica. Em decor- de leitura não soube ver. De fato, como explicar as refe-
rência, o processo do valor de troca não apenas não é rências de Pachukanis sobre a relação de determinação
“indiferente” a uma dada estruturação das relações de entre as relações de produção e o direito? Significativa-
produção, mas, ao contrário, as condições da circulação mente, estas referências passaram despercebidas pelos
dependem da constituição de um processo de produção de- comentadores, que não foram capazes de situá-las no
terminado. É verdade que há, para Pachukanis, uma re- dispositivo teórico pachukaniano. Encontrar em um tex-
lação de determinação imediata entre forma jurídica e to que toda uma tradição de leituras generalizadamente
forma da mercadoria, como vimos, mas a determinação considera prisioneiro de uma problemática “circula-
em Pachukanis é, a rigor, uma sobredeterminação.*” A cionista”, uma expressa vinculação do direito às relações
esfera da circulação, que determina diretamente as for- de produção, introduzia um elemento perturbador, que
mas do direito, é por sua vez determinada pela esfera da parecia ameaçar a quietude da interpretação consagra-
produção, no sentido preciso de que só o específico pro- da. E, no entanto, lá estavam tais referências a apontar
cesso de organização capitalista do trabalho permite a para um discurso pressuposto, cuja “lógica” comandava
produção de mercadorias como tais, isto é, como o resul-
a construção teórica: em várias passagens de A teoria ge-
tado de um trabalho que se limita a ser puro dispêndio
ral do direito e o marxismo, Pachukanis estabelece tal rela-
de energia laborativa indiferenciada. Ora, se a forma do
direito depende da forma da mercadoria, e se esta só se ção, afirmando: “[...] a forma jurídica [...] é um produto da
mediação real das relações de produção” (forma prava
realiza no modo de produção capitalista, então a forma
est" produkt real'nogo oposredstvovaniia proizvodstvennykh
jurídica também depende do modo específico de organi-
zação do processo de trabalho decorrente da instaura- otnochenii)/º “O poder estatal empresta clareza e estabilida-
ção das relações de produção capitalistas. Podemos, en- de à estrutura jurídica, mas ele não cria os seus pressupos-
tão, dizer que, se o direito “acompanha” o movimento tos, Os quais se enraízam nas condições materiais, isto é,
da circulação, uma vez que esse movimento é “coman- nas relações de produção” (Gosudarstvennaia vlast" vnosit
dado” pelas “exigências” da produção, o direito sofre v pravovuiu strukturu tchetkost” 1 ustoitchivost”, no ona ne
também a determinação dessa esfera, ainda que não de sozdaet ee predposylok, kotorye koreniatsia v material"niykh,

39 Esse conceito, deorigem freudiana, foi utilizada por Louis Althusser


em Pour Marx, Paris, Maspero, 1977. *º E. Pachukanis, op. cit., p. 39.

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t. e. proisvodstvennykh, otnocheniiakh);! “[...] onde quer O capital a propósito da especificidade capitalista das
que se encontre uma camada de superestrutura jurídica, relações mercantis, à qual já tínhamos nos referido ante-
a relação jurídica é diretamente gerada pelas relações riormente. No início do primeiro capítulo dessa obra, em
materiais de produção existentes entre os homens” (gde uma passagem conhecida, Marx refere-se à mercadoria
my imeem pervitchnyi sloi iuriditcheskoi nadstroiki, my como a forma elementar da sociedade capitalista,” como,
nakhodim, chto iuriditcheskoe otnochenie porojdaetsia portanto, um produto específico do capital, como salienta
neposredstvenno nalitchnymi materialilnymi proizvodstvennymi Gianfranco La Grassa.* É verdade que as formas mer-
otnocheniiami liudei).? Do mesmo modo, em um texto pos- cantis existem antes da constituição do modo de produ-
terior, Pachukanis refere-se também a essa determinação ção capitalista, mas, nas sociedades pré-capitalistas, a
ao vincular o direito à específica forma de relação entre o forma de mercadoria não chega a ser dominante, per-
trabalhador direto e os meios de produção, isto é, às rela- manecendo “contida” em limites estreitos, tendo o valor
ções de produção: o capitalismo é, diz Pachukanis, uma es- de troca uma existência “marginal” ou “acessória” na-
pecífica formação social, definida “por uma especial e quelas formações sociais.” Ora, a generalização da tro-
específica forma de união entre o trabalho e os meios de ca mercantil, com a conseguúente dominação do valor de
produção e, consegiientemente, por um especial sistema
de direito”.º
Se quisermos estabelecer um princípio de inteligência pa- 45 “A riqueza das sociedades em que domina o modo de produção
ra essa “contradição” em Pachukanis, devemos começar capitalista aparece como uma “imensa coleção de mercadorias”, e a
por pensar essa determinação das relações de produção mercadoria individual como sua forma elementar. Nossa investi-
sobre o direito como uma relação de determinação “em gação começa, portanto, com a análise da mercadoria”, K. Marx,
O capital, v. 1,t. 1, op. cit. p. 45.
última instância” do direito pela esfera da produção,
46 Cf.G. La Grassa, “La teoria del valore de Marx”, in Edoardo de
determinação essa que se realiza por meio das figuras da Marchi, G. La Grassa, Maria Turchetto, Per una teoria della societá
circulação mercantil. Aqui também, Pachukanis capitalistica. La critica delleconomia politica da Marx al marxis-
acompanha rigorosamente a demonstração de Marx em mo, Roma, La Nuova Italia Scientifica, 1994; e G. La Grassa, Valore
e formazione sociale, Roma, Riuniti, 1975.
47 Em Para a crítica da economia política, Marx, referindo-se a Steuart,
*1 Id, ibid, p. 86. nota que este “sabia naturalmente muito bem que nas épocas pré-
burguesas o produto também assume a forma de mercadoria e a
*2 Id. ibid, p. 88. mercadoria a forma de dinheiro, mas ele demonstra minuciosa-
*º CEE. Pachukanis, “Polojenie na teoretitcheskom pravovom fron- mente que a mercadoria, como forma fundamental e elementar
te (K nekotorym itogam diskussii)”, op. cit. p. 41. da riqueza, e a alienação como forma dominante da apropriação,
44
Pachukanis chega mesmo a dizer que a determinação do direito pertencem apenas ao período de produção burguesa e que o cará-
pelas relações de produção é uma determinação direta, mas ele se ter do trabalho criador de valor de troca é, portanto, especifica-
refere aqui a uma determinação que se verifica já na presença do mente burguês”, K. Marx, “Zur Kritik der politischen Okonomie”,
que ele chama de camada de superestrutura jurídica, o que de- in K. Marx e F. Engels, Gesamtausgabe, Il/2, Berlim, Dietz Verlag,
monstra que esta determinação é de algum modo mediada. 1980, p. 136.
+

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troca, exige que uma determinada estrutura de produção dução capitalistas, o direito também experimenta essa
se constitua, justamente aquela que supõe o produtor di- mesma determinação, mas de modo “mediado”, “em úl-
reto separado das condições objetivas da produção e per- tima instância”. Ou seja, a existência da forma jurídica
mite a sua utilização para a finalidade de valorização do depende do surgimento de uma esfera de circulação que
valor. Assim, a transformação da capacidade de traba- só o modo de produção capitalista pode constituir. Se a
lho do homem em mercadoria só ocorre quando se ins- mercadoria é um produto típico da sociedade burgue-
tauram relações de produção capitalistas, sendo tal trans- sa, isto é, das relações de produção específicas dessa so-
formação condição necessária para a generalização da ciedade, o direito também pode ser entendido como o
produção mercantil. Em O capital, Marx se refere à socie- resultado, em última instância, dessas mesmas relações
dade capitalista aquela na qual — e isto a distingue das de produção.
sociedades pré-capitalistas — a característica prevalente e
determinante do seu produto é aquela de ser mercadoria, o Outra dificuldade na construção teórica de Pachukanis
que implica que o trabalhador se apresente, ele mes- diz respeito à aparente contradição entre a afirmação da
determinação da esfera da circulação sobre o direito, e a
mo, como vendedor da mercadoria força de trabalho,
permitindo a La Grassa, comentanto este texto, concluir: afirmação da necessidade das figuras do direito para que
“[...] para Marx a única sociedade realmente mercantil, se constituam as relações sociais capitalistas.
na qual, portanto, a forma de mercadoria do produto do Esse problema só pode ser resolvido se identificar-
trabalho se torna a forma geral da riqueza produzida, é mos, em Pachukanis, dois níveis ou planos de elabora-
a sociedade capitalista. Nesta última se generaliza a tro- ção conceitual. O primeiro plano é aquele do direito
ca e também a produção de bens enquanto mercadorias. da produção mercantil simples, que é uma esfera indi-
[...] a generalização da forma de mercadoria tem ferente ao estatuto da força de trabalho. Na circulação
como
pressuposto a redução a mercadoria da capacidade simples de mercadorias, o direito não penetra a esfera
de
trabalho humana”.'* Pois bem, a partir dessas conside- da produção, limitando-se a “ser superficial, a aderir
rações, podemos estabelecer mais precisamente a à superfície ou aos lugares mercantis da sociedade”.
rela-
ção de determinação das relações de produção A circulação opera a troca de mercadorias existentes
sobre as
formas da circulação mercantil, o que permite desd pela mediação do direito, mas sem que o elemento ju-
e já
pensar igualmente a relação de determinação rídico possa jogar, aqui, qualquer papel quanto à de-
das rela-
ções de produção sobre as formas do direito. terminação da mercadoria.” Ora, com a emergência
O direito é
imediatamente determinado pelo processo de das relações de produção capitalistas, nós ingressamos
troca mer-
cantil, mas, considerando que a esfera
da circulação é
em outro plano de análise, que analisa o direito como
estruturada segundo as exigências das relações elemento constituinte dessas mesmas relações. De fato,
de pro-

“8 G. La Grassa, Valore e formazione sociale, op. cit. p. 71- “2 J. Michel, Marx et la société juridique, op. cit, p. 195.
72. O Cfid, ibid.

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Marxismo e direito

para que surja no mercado o homem livre, objeto de


comércio, é necessário que ele seja revestido de uma
forma jurídica determinada, a forma sujeito, sem a qual
não é possível a expressão de sua vontade livre. Ocor- 3
re, porém, que só se constituem as formas jurídicas ne-
cessárias ao surgimento das relações de produção ca- FORMA DA MERCADORIA E ESTADO
pitalistas porque as categorias do direito já existem na
esfera da circulação pré-burguesa. É isso que explica a
“recepção” do direito romano pela sociedade burgue-
sa, após um longo trabalho de “retificação” de seus
conceitos.
Assim, a construção categorial pachukaniana permi- A existência de um aparelho situado acima das par-
tes em litígio, do qual emanam, com força obrigatória,
te dar conta do conjunto das manifestações do direito, ao
mesmo tempo em que reafirma a natureza burguesa des- normas gerais e abstratas, depende do surgimento de um
se mesmo direito. circuito de trocas mercantis que cria as condições básicas
para que se opere a distinção entre o público e o privado,
com todas as consequências daí derivadas. É, portanto,
na esfera da circulação das mercadorias que podemos
desvendar o segredo do Estado e das formas políticas
burguesas. Como lembra Pachukanis, “O domínio de fato
adquire um caráter jurídico público preciso quando sur-
gem, ao seu lado e independentemente dele, relações liga-
das a atos de troca, isto é, relações privadas par excellence.
Aparecendo a título de fiador dessas relações, o poder se torna
um poder social, um poder público, um poder que persegue o
interesse impessoal da ordem” [Vystupaia v katchestve ga-
ranta etikh otnochenii, vlast stanovitsia obschestvennoi,
publitchnoi vlast'iu, vlast'iu, presleduiuschei bezlitchnyi
interes poriadka].!
A dominação de classe na sociedade burguesa não se
apresenta de forma direta e imediata — como nas socieda-

E. Pachukanis, “Obschaia teoriia prava i marksizm”, op. cit.


p. 130, grifos meus, MBN.

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Marxismo e direito Forma da mercadoria e Estado

des pré-capitalistas -, exigindo, ao contrário, um apare- contradiz a premissa fundamental da relação entre possui-
lho que se apresenta como poder impessoal que não dores de mercadorias. Por isso, em uma sociedade de pos-
funciona a serviço dos interesses privados de uma classe, suidores de mercadorias, e dentro dos limites do ato de tro-
mas que se põe como autoridade pública, distante e acima ca, a função de coerção não pode aparecer como função
das classes, ou melhor ainda, “estranha” a elas. Ora, social, porque ela não é nem abstrata nem impessoal. A su-
o caráter público do Estado só pode se constituir em uma bordinação de um homem enquanto tal, como um indivíduo
sociedade organizada sob o princípio da troca por equi- concreto, significa para uma sociedade de produção de merca-
valente, que pressupõe como condição necessária da circu- dorias a subordinação ao arbítrio, porque isso significa a subor-
lação a presença de sujeitos proprietários que se relacionam dinação de um possuidor de mercadorias a outro [Podtchinenie
de modo voluntário e livre, sem a presença de uma tcheloveku kak takovomu, kak konkretnomu individu oznatchaet
autoridade coatora externa. O operário não é coagido a dlia tovaroproizvodiaschego obschestva podtchnenie proizvodu,
vender a sua força de trabalho para o capitalista, ele ibo sovpadaet dlia nego s podtchineniem odnogo tovarovladel'tsa
o faz por livre deliberação de sua vontade, por meio drugomu). Por isso, a coerção não pode aparecer aqui em
de um contrato. É o que acentua Pachukanis, ao dizer que sua forma não mascarada, como um simples ato de con-
“O poder político de classe pode assumir a forma de um veniência. Ela deve aparecer como coerção proveniente
poder público na medida em que a relação de exploração se de uma pessoa abstrata e geral, como coerção exercida
realiza formalmente como relação entre dois possuidores não no interesse do indivíduo da qual provém — já que na
de mercadorias “independentes” e “iguais”, um dos quais, o sociedade mercantil todo homem é um homem egoísta —,
proletário, vende a sua força de trabalho, e o outro, o capi- mas no interesse de todos os participantes das relações ju-
talista, a compra” [Poskol'ku otnochenie ekspluatatsii rídicas. O poder de um homem sobre outro homem é exercido
osuschestuliaersia formal'no kak otnochenie dvukh como o poder do próprio direito, isto é, como poder de uma
“nezavisimykh” i “ravnykh” tovarovladeltsev, iz kotorykh odin, norma objetiva e imparcial” [Vlats” tcheloveka nad tchelovekom
proletarii, prodaet rabotchuiu sidu, a drugoi, kapitalist, ee osuschestuliaetsia kak vlast" samogo prava, t. e. kak vlast”
pokupaet, postol'ku polititcheskaia klassovaia vlast" mojet priniat” ob'ektivnoi bespristrastnoi normy]? A partir dessas conside-
formu publitchnoi vlasti].? rações, podemos dizer que a análise pachukaniana fomece
O Estado pode se apresentar, assim, como “vontade os elementos para se pensar as determinações mais gerais
geral” abstrata que se limita a garantir a ordem pública e do que seria uma representação jurídica do Estado. Essa
a velar pela observância das normas jurídicas, o que exclui representação jurídica do Estado é fundada na separação
o exercício da coerção estatal como sujeição de uma parte entre o Estado e a sociedade civil, separação essa que pro-
da sociedade por outra: “A coerção, enquanto prescrição vém da distinção jurídica entre o público e o privado, de
de uma pessoa dirigida a outra, e sustentada pela força, modo que, ao se constituir uma esfera pública — o Estado —,

? Id. ibid, p. 134. 3 Id, ibid. p. 136, grifos meus, MBN.

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Marxismo e direito Forma da mercadoria e Estado

esfera pela qual se exprime a vontade geral, em contrapo- O que é o cidadão senão o indivíduo despojado de
sição a uma esfera privada — a sociedade civil -, esfera pela seus liames de classe, despojado de sua “particularida-
qual se exprimem os interesses particulares
em conflito, a ideo- de”, o indivíduo “universal” que participa do Estado?
logia jurídica pode excluir da órbita estatal toda a repre- Ora, essa determinação corresponde integralmente à re-
sentação de classe — entendida como representação de interes- presentação jurídica do indivíduo, isto é, a sua base, o
ses particulares -, já que, por definição, por ser público, o seu fundamento, é a categoria de sujeito de direito, o in-
Estado não pode ser a expressão de vontades e interesses divíduo ao qual o direito atribui as determinações da li-
privados (de classe).* Pois bem, se o Estado é a esfera de exis- berdade, da igualdade e da propriedade, o sujeito-pro-
tência exclusiva da política — lugar de representação dos prietário que, no mercado, pode oferecer a si mesmo como
interesses gerais -, e se a sociedade civil é o lugar onde habi- mercadoria, pode oferecer, na qualidade de vendedor, a
tam os interesse particulares, o acesso à esfera do Estado só sua força de trabalho em troca de um equivalente.
pode ser franqueado pelos indivíduos despojados de sua Ao só franquear o acesso ao Estado aos indivíduos
condição de classe — posto que a condição de pertencer a uma na condição de cidadãos, a ideologia jurídica permite
classe social não pode ser reconhecida pelo Estado -, e qua- que se constitua o vínculo que possibilita a passagem da
sociedade civil ao Estado, ou melhor, a ideologia jurídi-
lificados por uma determinação jurídica: o acesso ao Esta-
ca vai permitir que se estabeleça o meio de expressão no
do só é permitido aos indivíduos na condição de cidadãos. Estado, sob a forma de interesse geral, dos diversos e
contraditórios interesses particulares que se chocam na
4 | Como diz Étienne Balibar, “A ideologia jurídica burguesa se esforça sociedade civil, e que por força dessa “ultrapassagem”
(com êxito) em fazer crer que o Estado mesmo está acima das classes, negam a sua determinação particular. Tudo se passa, por-
e só tem a ver com os indivíduos. [...] O poder de Estado não pode ser tanto, como se o Estado, anulando as classes, anulasse
o domínio exclusivo de uma classe, pois essa expressão é, efetiva-
mente, sem sentido jurídico. À idéia de domínio de uma classe se
opõe, na ideologia jurídica, a representação do Estado como a esfera, tudo... tudo, menos sobre o que está verdadeiramente em jogo,
a organização dos interesses públicos e do poderio público, por sobre o que para ser “jogado” exige que se elabore, no laboratório
oposição aos interesses privados dos indivíduos, ao seu poderio secreto do direito, as figuras desses atores imaginários que pare-
privado. [...] A distinção jurídica do “público” e do “privado” é o meio cem preencher todos os espaços vazios da política — os cidadãos.
pelo qual o Estado pode subordinar todos os indivíduos aos interesses Mas, se o “povo” pode então aparecer como o verdadeiro “sujeito
da classe que ele representa, dando-lhes a plena liberdade “privada” da história”, qualquer coisa, no entanto, e perturbar a quie-
de vender e de comprar, a plena liberdade de “negociar' ou de vender tude dessa imagem idílica da democracia. É que, enquanto o “povo”
a sua força de trabalho no mercado”, É. Balibar, Sur la dictature du exerce os seus poderes — a “cidadania”-, a burguesia pode, tranqui-
prolétariat, Paris, Maspero, 1976, p. 74-75. Cf. M.B. Naves, Aproxima- lamente, para além dos portões das fábricas, aumentar o ritmo de
ções à crítica marxista do direito, op. cit. suas máquinas, justamente ali, onde a liberdade burguesa se
É assim que o “povo” pode aparecer na ideologia burguesa no transmuta em seu contrário, deixando revelar a sua real determi-
*
exercício de sua “soberania”, e a democracia pode apresentar to- nação. Cf. B. Edelman, Le droit saisi par la photographie (Eléments
dos os seus títulos de legitimidade. É suficiente escutar o discurso pour une théorie marxiste du droit), op. cit. e Nicole-Édith
triunfante da ideologia democrática para nos convencermos da Thévenin, “Idéologie juridique et idéologie bourgeoise (Idéologie
inexcedível confiança burguesa nas massas: o “povo” decide sobre et pratiques artistiques)”, in La Pensée, nº 173, 1974,

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Marxismo e direito
Forma da mercadoria e Estado

com isso a própria contradição, se erigindo em lugar da do valor de troca, que, como diz Karl Marx, é a “base real”
não-contradição, onde se realiza o “bem comum”.
da liberdade e da igualdade.
O liame que permite essa passagem da sociedade civil
para o Estado é a eleição, por meio da qual se produz a
atomização política dos indivíduos, agora cidadãos, pela * “[.] o processo do valor de troca que a circulação desenvolve
superação de sua condição de classe. Pelo ato de votar o não só respeita a liberdade e a igualdade, mas estas são o produ-
to desse processo, o qual é a sua base real”, K. Marx, Zur Kritik der
homem se eleva à categoria de cidadão, ele abandona a politischen Okonomie, op. cit., p. 60. Cf. também K. Marx [Troca,
sua vontade particular, egoísta, para compor a vontade Liberdade, Igualdade], op. cit.
geral. É a isso que se refere Michel Miaille quando diz: A operação que o direito promove, transformando o homem em
“[...] A sociedade burguesa interioriza perfeitamente o corte cidadão, torna os trabalhadores desprovidos de sua condição de
sociedade/Estado na própria pessoa, sob a forma da se- membros de uma classe, impossibilitando-os como classe de per-
paração homem/cidadão. Se o indivíduo pode, votando, ceber e de lutar por seus interesses estratégicos — a destruição do
se elevar ao nível do interesse geral, é porque a dicotomia Estado burguês e a revolucionarização das relações de produção capi-
talistas -, tornando-os prisioneiros da ideologia jurídica e da política de
já opera nele mesmo. [...] Rousseau explica bem como, em classe burguesa, fazendo com que reproduzam as formas políticas de
cada um de nós reside uma vontade individual, egoísta, e sua própria dominação. Essa repres ent
jurídica açã
da política, aoomes-
uma vontade voltada para o bem comum, parte da vonta- mo tempo em que “concentra” a política no Estado, interdita a política
de geral. O modo de escrutínio mais “correto” é portanto à classe operária, isto é, interdita a luta de classes. É por isso que o di-
aquele que faz aparecer esse homem-cidadão virtuoso, reito pode anunci
que a política
ar se interrompe
na porta da fábrica,e
contra os desejos impuros do homem egoísta”. que a greve “política” é uma contradição nos seus próprios termos. É
uma contradição porque, sendo a atividade dos trabalhadores uma
Podemos, então, concluir que, à medida que os cida- “atividade profissional”, ela pertence à esfera da sociedade civil, logo,
dãos “participam” do Estado, constitui-se um processo de a única paralisação coletiva do trabalho admissível é aquela que se
circulação das vontades políticas análogo ao processo de cir- limita a reivindicações de natureza estritamente profissional. Só nes-
sa condição é que a greve acedeà legalidade, transformando-s
culação das mercadorias, posto que a forma de represen- reit
e
em di-
de greve.
o Uma vez legalizada, realizan do-s
como e o de um
exercíci
tação fundada na equivalência entre os sujeitos-cidadãos direito,a greve encontra os seus limites: só é legal a greve que admite
remete ao processo do valor de troca fundado na equiva- e que respeita a ordem jurídica — isto é, a “ordem” da circulação e da
lência mercantil.” Percebemos, assim, que a representação produção de mercadorias e de mais-valia. Uma greve que questiona o
jurídica do Estado funciona sob o modelo da ideologia do poder burguês é uma greve “abusiva ”,
posto que ela ultrapassa a mera
sujeito, isto é, que o seu fundamento repousa no processo reivindicação profissional, e erige os trabalhadores em um poder
contraposto ao poder do Estado. Ora, se a greve é utilizada para fins
de poder, ela se torna política, e à classe operária é interditado ir além
* Michel Miaille, L'État du droit (Introduction à une critique du do que prescrevea legalidade burguesa, que nada mais representa do
droit constitutionnel), Grenoble /Paris, Presses Universitaires de que o poder de classe da burguesia. A greve “política” é vedada,
Grenoble/ Maspero, 1976, p. 210. enfim, porque o terreno da política é reservado à manifestação dos
7 cidadãos na esfera do Estado, ao passo que a classe operária como tal
Cf. Philippe Dujardin, 1946, Le droit, mis en scêne (Propositions
“pertence” à esfera da sociedade civil, e, portanto, não pode intervir poli-
pour une analyse matérialiste du droit), Grenoble, Presses
Universitaires de Grenoble, 1978. tica me
na condiçã o nt e Cf. B. Edelman, La légalisation de la
de classe.
classe ouvriêre, t. 1: “L'entreprise”, op. cit; e MB. Naves, op. cit.
+

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SOCIALISMO E EXTINÇÃO DA
FORMA JURÍDICA

O problema da relação entre o direito e o socialismo é


o “centro nervoso” da teoria pachukaniana. Poderíamos
mesmo dizer que é com base nela, isto é, no modo como
Pachukanis apresenta esta questão e a resolve, que a sua
análise da relação entre a forma jurídica e a forma mer-
cantil se ilumina e ganha pleno significado — a um tem-
po, teórico e político. De fato, se Pachukanis admitisse a
possibilidade de um direito “socialista”, toda a sua cons-
trução teórica estaria comprometida. Se o socialismo im-
plica a gradativa superação das formas mercantis, um
direito que se qualificasse como “socialista” seria tanto
uma impossibilidade teórica como um objeto a ser com-
batido politicamente. Se o socialismo implica a gradativa
reapropriação pelas massas das condições materiais da
produção, com a superação da separação entre os meios
de produção e a classe operária e a extinção das formas
mercantis, isso significa que o fundamento último da exis-
tência do direito é negado na fase de transição, e a per-
sistência do direito só pode aparecer como um obstáculo
ao socialismo — mesmo que o direito possa, durante certo
tempo, cumprir determinado papel “revolucionário”.
Estabelecer essa impossibilidade teórica e política,
sustentar a existência desse antagonismo, exige pensar O

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Marxismo e direito Socialismo e extinção da forma jurídica

direito em sua especificidade histórica e social, exige indagando se o mesmo método utilizado para analisar o
pensá-lo como irremediavelmente preso às determinações direito burguês pode ser empregado para analisar o “di-
do capital. E exige também pensar as conseqiiências po- reito proletário”, ou seja, Pachukanis pergunta se não
líticas que tal concepção acarreta: se é impossível susten- seria necessário constituir um método próprio para se
tar um “programa” para o estabelecimento de um apreender o direito de uma sociedade de transição: “Ou-
“direito socialista”, então a tarefa passa a ser a de des- tra objeção contra a concepção que apresentamos das
truição da forma e dos aparelhos jurídicos. A posição de tarefas da teoria geral do direito é a de as abstrações que
Pachukanis permite reapresentar a questão da extinção fundamentam a análise serem somente adequadas ao
do direito e do Estado, questão que ocupa lugar central direito burguês. O direito proletário, dizem, deve encon-
na concepção de Marx e Engels. trar outros conceitos gerais, e a sua procura deve ser a
A radicalidade dessa posição — que é a mesma tarefa da teoria marxista do direito”.! O equívoco de tal
radicalidade da posição de Marx — pode, no entanto, dar posição é o de que ela “etemniza a forma jurídica” ao descon-
lugar a interpretações unilaterais do pensamento de siderar as condições históricas que permitiram o seu apa-
Pachukanis, não apenas ao não apreenderem a comple- recimento e o seu pleno desenvolvimento na sociedade
xidade com que ele pensa a relação entre o direito e o burguesa, e a apresenta como capaz de se “renovar
socialismo, mas também ao se revelarem incapazes de permanentemente”. Ora, do mesmo modo que a extin-
perceber as reais limitações da formulação pachukaniana. ção, na fase de transição, das categorias econômicas — va-
Ademais, enfrentamos aqui uma dificuldade adicional, lor, capital, etc. — não implica a constituição de novas
referente ao “corte” que se opera na obra de Pachukanis categorias “proletárias” do valor, do capital, etc., assim
a partir dos anos 30, e que o leva a reelaborar a sua con- também a extinção das categorias jurídicas burguesas não
cepção acerca desse problema. Levando em conta essas leva à constituição de novas categorias jurídicas “prole-
observações, trataremos neste capítulo da posição de tárias” ou “socialistas”. Se o direito está relacionado às
Pachukanis exposta em A teoria geral do direito e o marxis- formas da economia mercantil, e se a transição socialista
mo e em um conjunto de artigos dos anos de 1925 a 1930. significa justamente o progressivo aniquilamento dessas
O capítulo subsequente será dedicado ao exame de alguns formas, a idéia mesma de um “direito socialista” se reve-
aspectos da reformulação teórica operada por Pachukanis, la desprovida de qualquer sentido. Como diz Pachukanis:
a qual, como veremos, está fundamentalmente relacio- “Nestas condições, a extinção das categorias do direito
nada à questão do socialismo, de tal modo que podemos burguês significará a extinção do direito em geral, isto é,
dizer que a “virada” que se opera no pensamento de o gradual desaparecimento do momento jurídico nas re-
Pachukanis é “comandada” pela mudança de orientação lações humanas”.? Somente de um ponto de vista
relativamente à questão do direito na transição.
Em A teoria geral do direito e o marxismo, Pachukanis, 1 E. Pachukanis, “Obschaia teoriia prava i marksizm”, op. cit. p. 53.
inicialmente, trata do problema sob o ângulo metodológico, ? Id. ibid. p.53.

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Marxismo e direito Socialismo e extinção da forma jurídica

burguês”.“ Citando o exemplo de uma empresa A luta contra o burocratismo tem, para Pachukanis,
perdido uma demanda de um grupo de ondas E um caráter de classe na medida em que o aparelho de
clamava uma compensação financeira, ao invés de estender Estado soviético abriga membros das antigas classes do-
o benefício aos demais operários aos quais igualmente minantes, que o utilizam, a partir das posições que nele
era ele devido, simplesmente opta por contestar na justiça ocupam, para os seus próprios fins privados,” o que evi-
em todas as suasinstâncias, o pleito dos trabalhadores, Pachulkaris dencia que a questão não reside em um aperfeiçoamento
com enta que isso não se reduz a um mero caso de utiliza- técnico do aparelho e sim na depuração dos elementos
ção da morosidade judiciária, mas evidencia a recusa da buro- antioperários. Essa situação é ainda agravada pela pre-
cracia em se colocar na situação de classe dos trabalhado- sença quase nula de operários não vinculados ao partido
res. À propósito, Pachukanis considera absolutamente correta comunista no aparelho de Estado. De modo que o traba-
a seguinte passagem retirada de um jornal de província: lho de depuração deve necessariamente vir acompanhado
O funcionário pretende ter uma posição especial na socieda- da promoção de trabalhadores aos postos administrativos
de. A atitude do funcionário para com as massas é desde- do Estado,“ o que, significativamente, encontra resistên-
nhosa, chegando até ao escárnio. Sob o burocratismo, a cia de dentro do Estado soviético: “Mas quando se trata
causa viva, os interesses das amplas massas são sacrificados a de uma tarefa de combate de classe, de depuração [...] nos
uma minoria que dirige o Estado. Não é segredo que em nos- deparamos no melhor dos casos com a incompreensão, à
so aparelho de Estado há comerciantes, dirigentes, funcio- indiferença [...] a intenção de afastar-se desse assunto, de
nários que trouxeram consigo seu formalismo, sua arrogân- esquivar-se, guardar silêncio”. O processo de promoção
cia e seu desprezo em relação às massas”.! Na consciência de elementos operários não deve ser limitado aos mais
do burocrata soviético está presente uma clara distinção entre avançados, aos mais capazes, mas deve implicar a partici-
os que, como ele, realizam o trabalho intelectual, pação de toda a massa, sobretudo os setores mais atrasa-
e as
massas às quais está destinado o trabalho manual, como fica dos dela. Além disso, a crítica das massas ao Estado deve
evidenciado em outro exemplo citado por Pachukanis, no qual ser encorajada.*
o dirigente se referia aos trabalhadores como pessoas sujas e Por outro lado, nota-se certo incremento da ativida-
doentes, ao mesmo tempo em que fazia questão de dizer que de das massas, de tal sorte que já existem as condições
tinha todas as suas necessidades materiais satisfeitas.“

cação a colocar-se de joelhos frente a ele, dizendo a seguir: “agora


eu vejo que você realmente passa necessidades”. Id,, ibid., p. 13.
*0 Id. ibid, p. 11. 43 Cf. também E. Pachukanis, “Lenin i bor'ba s biurokratizmom”,
41 .
Citado por Pachukanis,. Sovetskii gosudarstvennyi apparat v bor'be s op. cit.
biirocratismom, op. cit., p. 12. 44º Cf.id. ibid.
42
Id., ibid., y p. 11-12. O comportamento do funcioná
onárriio 45 E. Pachukanis, Sovetskii gosudarstvennyi apparat v bor'be 5
pode ar
extremos, como em outro caso citado por Pacha no qu biurokratizmom, op. cit. p. 22.
a
dirigente obrigava um camponês que fora levar-lhe uma reivindi- 46 Cf. E. Pachukanis, “Lenin i bor'ba s biurokratismom”, op. cit.

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Marxismo e direito Socialismo e extinção da forma jurídica

todo”.* Pachukanis parece querer dizer com isso que tais é, não-fetichizado (a persistência de elementos da socieda-
relações são apenas formais, isto é, que, nas condições da de burguesa no período de transição implica que as “pres-
sociedade de transição, elas perdem o seu conteúdo originá- crições técnicas e racionais assumam a forma de uma po-
rio. Essas relações no interior da economia de Estado são con- tência alienada do homem e sobreposta a ele”).” Os efeitos
sideradas “quase-privadas”. Notemos que Pachukanis e consequências da regulação da economia pelo Estado são
considera a economia do período de transição como um desenvolvidos de modo mais amplo por Pachukanis em seu
sistema de “capitalismo de Estado proletário”, muito em- trabalho “A economia e a regulação jurídica”, de 1929.1
bora, na terceira edição de A teoria geral do direito e do Neste artigo, Pachukanis diferencia a regulação soviética,
marxismo ele vá operar, em relação a esse ponto especifi- socialista, que ele denomina de “verdadeira” ou “autênti-
camente, uma retificação.” Assim, a progressão para o so- ca” regulação (podlinnoe regulirovanie), da experiência de
cialismo significa para ele uma resolução dessa contradi- intervenção e controle da economia observada na Alema-
ção — plano contra mercado — com a progressiva extensão nha e na Inglaterra durante a Primeira Guerra Mundial.
do planejamento a toda a economia. Às formas de cone- Ressalta que a regulação pode ser considerada “verdadei-
xão mercantis Pachukanis contrapõe a “direção técnico-
ra” quando a intervenção estatal substitui o interesse na
administrativa”, o “método das diretivas imediatas ou con-
obtenção de lucro individual, “o interesse egoísta do sujei-
cretas”, que são “determinações técnicas” que surgem sob
to econômico isolado” [egoistitcheskogo interesa obosoblennogo
a forma de “programas” e “planos de produção e distri-
khoziaistuniuschego sub'ekta], caracterizando-se pelo pre-
buição”,” de modo que a conexão entre as unidades pro-
domínio dos “elementos técnicos e organizacionais do con-
dutivas passa a ter caráter racional, “não-mascarado”, isto
teúdo sobre os elementos formais” (perevesom tekhnitcheski-
organizatsionykh momentov suchestva nad momentami
Unymi).»
yu Os atos de natureza legislativa
egis e administra-
* Id, ibid, p. 124. tiva, uma vez fundidos, não só permitem que a regulação
“Da formulação original desta tese eu retifico a definição impensa- seja efetiva,! mas, do ponto de vista operacional, quase
da e errada da economia soviética em seu conjunto como “capita-
lismo de Estado proletário'. Em 1923, quando eu trabalhava na
primeira edição, este lapso poderia ainda ter passado desperce-
bido tanto pelo autor como pelos leitores. Porém, depois da dis-
cussão no XIV Congresso, ela deveria provocar - e provocou — a H Id. ibid. p. 123.
apropriada censura dos críticos. Em virtude dessa correção, a
!2 E. Pachukanis, “Ekonomika i pravovoe regulirovanie”, in
idéia básica só ganhou em clareza, porque quando eu empreguei
Revoliutsiia Prava, nº 4, 1929.
o termo “capitalismo de Estado” — naquele caso de modo comple-
tamente inadequado - eu tinha em vista apenas um lado do pro- 13 Id. ibid. p.34.
blema: a conservação da troca de mercadorias e da forma do !4 Diz Pachukanis: “Que modificações no campo do direito decorrem
valor”, id., ibid., p. 127. do fato da regulação da economia nacional? A primeira e mais
'9 Id, ibid, p. 122. importante é a fusão da legislação com a administração. Nós pro-
clamamos a unidade dos poderes legislativo e executivo como
+

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Marxismo e direito Socialismo e extinção da forma jurídica

já não conservam a sua natureza formal, isto é, legal. A imuschestva predstavliaetsia nam [...] ne kak pravovoi, a kak
responsabilidade jurídica dos administradores adquire im- tekhnitcheski organizatsionnyi akt].'º Tal tendência deverá
portância secundária em comparação com a conveniên- levar à extinção do direito, e não a seu desenvolvimento
cia e oportunidade administrativas, e a empresa se despe no socialismo.” A persistência da forma jurídica está,
de sua máscara jurídica, de seus direitos e obrigações, portanto, ligada à existência da forma-valor no período
encerrando-se em um domínio exclusivamente adminis- de transição, mas, já aqui, a forma jurídica conhece de-
trativo.” Se uma empresa realiza uma transação mer- terminadas limitações, não conservando a autonomia de
cantil, fazendo um determinado pedido, ela atua como que é dotada na sociedade burguesa. Para Pachukanis,
um “sujeito de direito”, dotado de capacidade jurídica, assim, o direito do período de transição não é exatamente
sob a base do consentimento mútuo. Já um pedido feito sob o mesmo direito burguês, pois ele é “afetado” pela emer-
“a ordem direta dos aparelhos de regulação e planeja- gência de formas sociais não mercantis no interior da
mento, é dirigido não à personalidade jurídica da empresa, economia. Muito embora o direito na fase de transição
mas a seus administradores por meio da subordinação admi- não possa adquirir um conteúdo “socialista”, o proleta-
nistrativa [adresovano ne k iuridtcheskoi litchnosti tresta, a k riado deve utilizar as formas do direito de acordo com os
ego rukovoliteliam v poriadke administrativnogo seus interesses de classe, esgotando-as completamente.
podtchnennia]. Nesse caso, nenhum papel é jogado por Pachukanis afasta assim qualquer possibilidade de que
esta ou aquela empresa [...] nenhum acordo prévio entre se possa desenvolver um direito “socialista” apenas alte-
essas empresas jamais é exigido, e não há nenhuma tran- rando o conteúdo desse direito, como aparece na tentati-
sação. À própria transferência do bem parece-nos não um ato va de Goikhbarg.'” Em seu ensaio “A teoria marxista do
legal, mas um ato técnico-organizacional” [Samaia perebroska direito e a construção do socialismo”, Pachukanis desen-

!6 Id. ibid., p. 34, grifos meus, MBN.


o princípio básico de nossa estrutura estatal, mas este princípio 7 “O processo de redução da forma jurídica passa por uma série de
penetra de modo particularmente profundo na prática tão logo etapas, que corresponde em geral ao desaparecimento das rela-
passamos para uma atividade regulada e planificada”. “[...]a cria- ções mercantis, das relações de troca”, id., ibid., p. 34; “Esta pers-
ção de uma norma geral está inseparavelmente fundida com atos pectiva de desenvolvimento dos atos e relações técnico-
individuais concretos da administração. Em todos esses casos não organizativos em detrimento dos atos e relações jurídico-formais
se pode pensar que existam dois órgãos, um dos quais apenas é a mesma perspectiva do desaparecimento do direito (otmirantia
legisle, enquanto o outro somente aplique as leis. Regulação so- prava)”, id., ibid., p. 35, grifos meus, MBN; “[...] quem não admite
mente com a ajuda de leis, regulação que somente fixe as formas que o princípio do plano substitui o princípio jurídico-formal
gerais por meio das quais transcorre a atividade econômica de está, propriamente falando, convencido de que as relações da
unidades autônomas inteiras — e este é o princípio básico sob o economia mercantil-capitalista são eternas”, id., ibid., p. 35.
qual todo código civil é elaborado — não é, propriamente falan- 18" Identificando o socialismo com uma “sociedade organizada”,
do, regulação”, ibid., p. 33-34. Goikhbarg defende a idéia de um “direito social coletivo” que
3 Id. ibid, p. 34. deveria substituir o direito civil individualista burguês. O funda-

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Marxismo e direito
Socialismo e extinção da forma jurídica

volve mais amplamente a sua concepção sobre o caráter cara por entender que ele teria sustentado que a extinção
do direito do período de transição. Neste trabalho, Pachukanis do direito significaria a passagem do direito burguês para
responde a uma objeção de Piótr Stutchka, o qual o criti- o não-direito.” Pachukanis esclarece que para ele não se
dá, no período de transição, uma passagem direta do direi-
to burguês para nenhum direito, mas ele considera que tal
mento que preside a elaboração desse novo direito é a interven-
ção do Estado no domínio do direito, o que já ocorre mesmo na período conhece uma espécie de direito distinta do direito
sociedade capitalista, sendo intensificada e levada às últimas con-
sequências no socialismo. Diz Goikhbarg: “Nós vimos que as rela-
ções que originariamente estavam isentas de interferência da auto- org., Op. cit., p. 69. Extraído de “Proletarskaia revoliutsiia i
ridade estatal burguesa [...] se tornam os objetos de uma crescente ugolovne pravo”, in Proletarskaia Revoliutsiia, nº 1, 1918).
interferência do Estado, mesmo antes da revolução proletária” (A. Kozlovskii entende o direito como uma relação social que nasce
Goikhbarg, “The Goals and Methods of the Proletarian Revolution”, das relações de produção e guarda uma estreita correspondência
in M. Jaworskyj, org., Soviet Political Thought. (An Anthology), op. cit. com elas. Identificando os diversos “sistemas” jurídicos com os
p- 65. Extrato de “Proletarskaya revoliutisiia i grazhdanskoe vários tipos de relações de produção dominantes nos diversos
pravo”, in Proletarskaya Revoliutsiia i pravo, nº 1, 1918). O “direito períodos históricos, Kozlovskii pode então vincular o direito
social” de Goikhbarg aparece, assim, ligado à passagem de uma “proletário” a determinadas relações de produção, de natureza
sociedade não-organizada a uma sociedade organizada. A sociedade “socialista”. Ocorre que a identificação das relações de produção
não-organizada seria uma sociedade fundada na separação dos em uma sociedade de transição oferece tais dificuldades, que
indivíduos, à qual se contraporia uma sociedade na qual os indiví- Kozlovskii se vê obrigado a pensar o direito “proletário” sim-
duos seriam parte orgânica de uma totalidade orgânica, “parte plesmente como um “meio de supressão da resistência da mino-
harmoniosa de um simples organismo natural” (ibid,, p. 66). Não por ria pela classe operária”, e como uma espécie de proteção externa
acaso Goikhbarg exalta como virtude do socialismo a discipli- das relações de produção, terminando por identificar o direito à
nada incorporação das massas na organização, identificada por desigualdade econômica, e, consequentemente, por supor que a sua
ele, de modo sintomático e esclarecedor, com a vontade geral. extinção na sociedade comunista se daria como decorrência da
Às normas jurídicas de natureza privada (civil) seriam, então, superação dessa desigualdade (cf. ibid., p. 71). O direito seria
substituídas por normas que Goikhbarg chama de tipo social- então substituído por regras organizativas da vida econômica, e
organizacional, mas que seriam, tão-somente, normas de direito os órgãos judiciais transformados em órgãos econômico-admi-
administrativo, o que ele mesmo revela, ao dizer que a esfera do nistrativos (cf. ibid.). Incapaz de sustentar a sua concepção origi-
direito civil é, já na sociedade capitalista, penetrada pela ação do nal, que fazia do direito uma relação social de algum modo vin-
Estado, o qual simplesmente intensifica essa interferência no socia- culada à produção, Kozlovskii acaba por pensar o direito como
lismo. Para Goikhbarg o fundamental é que o direito se transfor- uma ordem que regula a esfera da distribuição, e que, no comu-
me de individual em coletivo, o que em nada altera a sua natureza nismo, permite “normatizar” a ordem social e econômica. As-
normativa: as normas individualistas do direito burguês seriam sim, de relação social, o direito passa a ser identificado simples-
substituídas por normas “coletivas”, “sociais”, do direito “socia- mente com uma ordem normativa.
lista”. Também encontramos em Kozlovskii um esforço para pen-
!9 Finalmente, também discordo (de Pachukanis, MBN) sobre a ava-
sar o direito no socialismo como um novo direito Para ele, a época de
liação do processo de extinção do direito. O camarada Pachukanis
transição assiste à emergência de um direito “nunca antes conheci-
descreve este processo como uma passagem direta do direito bur-
do”: o direito proletário (cf. M. Kozlovskii, “Law and Crime: Their
guês ao não-direito. Da minha parte, eu creio que, como escreve
Origin and the Condition of Their Elimination”, in M. Jaworskyj,
Lenin, citando Marx, há um “Estado burguês sem burguesia” e,

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burguês — uma forma de direito aproximada daquele “di- Estado soviético é um Estado operário, que aplica e garan-
reito burguês sem burguesia” ao qual Marx se refere na te o direito visando a defesa dos interesses dos trabalhado-
Crítica ao programa de Gotha. O direito soviético seria um res e o aprofundamento do socialismo. Mas esse direito
direito correspondente a uma fase de desenvolvimento in- burguês não-genuíno não configura, em absoluto, um sis-
ferior àquele, mas a sua “funcionalidade” de classe seria tema completo de “direito proletário”, como poderia fa-
da mesma maneira “em princípio distinta, oposta ao ge- zer crer uma concepção aparentemente coerente que rela-
nuíno direito burguês”, e somente este direito burguês cionasse o feudalismo com o direito feudal, o capitalismo
não-genuíno, o “direito burguês” entre aspas é que pode com o direito burguês e o período de transição com o direi-
ser extinto, ao passo que “o direito do Estado burguês, pro- to proletário. O defeito básico de tal concepção é o de
tegido pela força deste último, só pode ser destruído pela que ela desconsidera que o feudalismo e o capitalismo confi-
revolução do proletariado”? Assim, Pachukanis distingue guram sistemas particulares de relações entre os meios
o direito burguês tout court, ou genuíno, do direito burguês de produção e os produtores diretos, dos quais decorrem
não-genuíno, o direito que vigora no período de transição determinadas formas de existência do direito, ao passo
socialista. Mas qual o fundamento dessa distinção? O que que o período de transição não conhece relações de pro-
distingue os dois direitos burgueses é que o direito burguês dução específicas —- muito embora existam elementos so-
genuíno é um “elemento mediatizador do processo de cialistas na economia soviética, ela é formada, fundamen-
exploração”, ao passo que o direito burguês não-genuíno talmente, pela pequena propriedade camponesa. Como
possui origem revolucionária. São essas as razões que per- diz Pachukanis: “A essência do problema é que o período
mitem emprestar ao direito soviético uma “natureza espe- de transição, quando a ditadura do proletariado realiza
cífica e singular”. Desse modo, pode-se dizer que a a transição revolucionária do capitalismo para o
distinção operada por Pachukanis se funda em dois pres- comunismo, não pode ser considerado como uma for-
supostos: o de que a sociedade soviética não é uma socie- mação socioeconômica especial e completa, e por isso
dade fundada na exploração da força de trabalho, por- não se pode criar para ela um sistema de direito especial
tanto não é uma sociedade capitalista, e o de que o e completo, ou procurar por alguma forma especial de
direito, acompanhando a simetria: direito-feudal, direi-
to-burguês e direito-proletário. Isso encerra uma tendên-
cia perigosa de retardar o avanço para o socialismo que
assim como esse Estado se constitui na ditadura proletária ou está ocorrendo agora. [...] Nós não temos um sistema aca-
poder soviético, assim também se constitui inevitavelmente um bado de relações de produção porque estamos transfor-
direito soviético temporário do período de transição”, P. Stutchka,
“Gosudarstvo i pravo v period sotsialisticheskogo stroitel'stva”, mando-o a cada dia e a cada hora”.2 Pachukanis consi-
in Revoliutsia Prava, nº 2, 1927, p. 14-15. dera, por um lado, que a defesa de um sistema de direito
*0 E. Pachukanis, “Marksistskaia teoriia prava i stroitel'stvo
sotsialisma”, in Izbrannye proizvedeniia po obschei teorii prava
1 gosudarstva, op. cit. p. 180. 22 E. Pachukanis, “Polojenie na teoretitcheskom pravovom fronte.
21 Id, ibid. p. 180. (K nekotorym itogam diskussii)”, op. cit., p. 42.

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proletário possui uma natureza conservadora; por outro como função social que é o efetivo oposto da propriedade,
lado, ele acrescenta que a superação do direito não se dá mas a economia socialista planificada, isto é, a destrui-
por uma substituição imediata das formas jurídicas por ção da propriedade”.? Interpretar o direito civil soviético
novas formas técnicas, mas que é preciso que determina- sob essa categoria de “função social da propriedade”, isto
das condições sejam superadas para que o direito seja é, considerar que o código civil só admite a utilização da
extinto. Tais condições referem-se em parte à natureza propriedade privada quando ela passa a cumprir a sua
das relações de produção: o direito deve desaparecer função social, é uma “dissimulação dos fatos”, é uma ilu-
quando desaparecerem “o poder da divisão do trabalho”, “a são. Se o Estado proletário pudesse obrigar cada proprie-
antítese entre o trabalho intelectual e o trabalho manual”, tário a cumprir a função social destinada à sua propriedade,
assim como “a antítese entre os interesses individuais e o
interesse comum” e a “coerção estatal”?
Podemos dizer, então, que o direito da fase de tran- de natureza individualista, o qual privilegia o sujeito isolado da
sição, o direito soviético, é um direito burguês no sen- sociedade que procura realizar os seus interesses particulares re-
tido de que ele conserva a forma do direito burguês presentando-se a si mesmo como um fim independente. O princí-
“genuíno”, que esse direito é utilizado pelo Estado ope- pio da função social, ao contrário, permite pensar o indivíduo tão
somente como integrado à sociedade. Uspenskii supõe que o pró-
rário na construção do socialismo, e que a extensão prio Código Civil russo acolhe essa teoria da “função social”: “ Até
dos “elementos socialistas” implica a gradativa supe- um certo ponto, nosso Código Civil adotou a idéia do direito
ração desse direito - e não a sua metamorfose em di- como uma função social. Assim, o artigo 1º estabelece: “os direitos civis
reito socialista — pela vigência de relações e normas de são protegidos pela lei, exceto quando eles são utilizados em con-
natureza técnica e racional. flito com o seu objetivo socioeconômico”” (L. Uspenskii, “Economic
Rights under Socialism”, extraído de “Pravo i sotsializm”, in Vestinik
Tal posição implica a recusa em compreender o direito Iustitsii Uzbekistana, nº 2/3, 1925, in M. Jaworskyj, op. cit., p. 232).
do período de transição como a realização de determina- Tudo se passa para Uspenskii como se a alteração no campo jurí-
das tendências já atuantes no direito burguês do período dico fosse comandada por determinadas alterações no modo de
produção capitalista, de sorte que a uma fase inicial em que vigo-
do capitalismo monopolista, visão que se manifesta no- raria a produção por múltiplos produtores sucederia uma fase de
tadamente no privilegiamento da “função social” que a domínio do capital financeiro, de monopolização da produção e
propriedade passaria a ter na sociedade burguesa. de intervenção do Estado na economia. A essa primeira fase
Pachukanis critica essa visão, defendida por Goikhbarg,* correponderia o sistema de direitos subjetivos, ao passo que à
mostrando que “de fato, não é a propriedade concebida segunda fase corresponderia o princípio do direito objetivo. O
“direito socialista” pode então constituir um “sistema de direi-
to” que “implica a substituição da regulação jurídica, baseada no
princípio dos direitos subjetivos, pela regulação fundada no prin-
cípio do direito objetivo”. A adoção deste princípio acarretará,
23 Id, ibid, p. 43. segundo Uspenskii, “a completa vitória do direito sobre a vida”,
24 Já examinamos a posição de Goikhbarg, mas também em L. (ibid., p. 232-234).
Uspenskii encontramos a concepção do direito como “função 25 E. Pachukanis, Obschaia teoriia prava i marksizm, op. cit. p. 101.
social” se contrapondo ao sistema (burguês) dos direitos subjetivos, Prossegue Pachukanis: “Os aspectos anti-sociais da propriedade

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Socialismo e extinção da forma jurídica

teria de imediato simplesmente expropriado esse mesmo das forças produtivas como tal, mas a perspectiva da vitória
proprietário, e assim realizado plenamente essa função dos elementos socialistas de nossa economia sobre os elementos
social da propriedade. Pachukanis adverte para o risco
capitalistas”.
de uma dissimulação das categorias do direito burguês
atuantes na sociedade de transição — não obstante o seu Igualmente, no campo do direito penal, observa-se
caráter limitado. Como ele diz, “nenhuma fórmula [...) uma superação apenas verbal do direito burguês, cujas
pode tornar socialmente úteis os contratos firmados com categorias continuam, dissimuladamente, a produzir os
base em nosso Código Civil, nem transformar cada pro- seus efeitos na ordem jurídica soviética. A legislação pe-
prietário em uma pessoa que exerce uma função social. nal e processual penal, não obstante a proclamação sole-
Esta superação verbal da economia privada e do direito ne do princípio da “defesa social”, estão informadas pelo
privado pode apenas obscurecer a perspectiva de sua su- princípio da “reparação equivalente”, o que é atestado
peração real”. pela presença de uma parte geral no Código Penal que
Do mesmo modo, o entendimento de que os direitos alberga os conceitos de cumplicidade, co-responsabili-
civis, como reza o Código Civil, são apenas protegidos dade, etc., enfim, pela presença do conceito de culpabi-
enquanto não forem exercidos em contradição com os lidade. Uma aplicação consegiiente do princípio da defe-
seus objetivos socioeconômicos, isto é, em contradição sa social deveria implicar tão somente uma “descrição
com a meta do desenvolvimento das forças produtivas, precisa dos sintomas que caracterizam um estado social-
padece de graves dificuldades. Inicialmente, porque há mente perigoso e a elaboração dos métodos que devem
uma série de exigências legais cujo atendimento não ser necessariamente empregados em cada caso particu-
pode ter como critério o desenvolvimento das forças pro- lar para proteger a sociedade”, de modo que a medida
dutivas, mas sim o critério da equivalência e, ademais, de defesa social não acarretaria uma precisa tipicidade,
porque esse critério acabou por ser entendido como do- ao contrário da pena que implica, necessariamente, a
tado de caráter de classe neutro, como a realização de fixação de um tipo legal determinado, pois é apenas “a
determinadas tendências da jurisprudência burguesa. estrutura concreta do crime que provê algo semelhante
Para Pachukanis, ao contrário, já teria chegado o mo- a uma grandeza mensurável e, portanto, algo semelhante
mento de os juristas estabelecerem “como critério su- à equivalência”.*
premo em sua orientação, seja no campo da dogmática, A superação dos conceitos da jurisprudência burguesa
seja no campo político-jurídico, não o desenvolvimento no campo penal e, particularmente, a superação dos con-
ceitos de delito e de pena exigem a destruição da supe-

privada só podem ser paralisados de fato, isto é, com o desenvol-


vimento da economia socialista planificada às custas da econo-
27 E. Pachukanis, “Marksistskaia teoriia prava i stroitel'stvo
mia de mercado”, ibid, p. 101. sotsialisma”, op. cit., p. 186.
26 Id. ibid, p. 101. 28 E. Pachukanis, “Obschaia teoriia prava i marksizm”, op. cit, p. 178.

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restrutura jurídica e a ultrapassagem da forma jurídica fins. A seguir, ele constata que o antigo Código de 1922,
como tal. O direito da sociedade de transição deve ser, ainda em vigor, não se libertou da forma jurídica her-
assim, um direito que, não obstante limitado pela deter- dada da burguesia, o que se exprime na manutenção
minação mais geral da forma jurídica, procura “tensionar” “do princípio da repressão aplicada ao fato segundo a
ao máximo essa mesma forma, para transformá-la em dosimetria proporcional à medida sancionadora, O prin-
seu contrário, ou seja, no sentido de extinguindo-se a si cípio dos precisos “elementos constitutivos do crime”,
mesmo como direito pela sua substituição por normas de como uma certa garantia de legalidade, e, enfim, a pri-
natureza técnica. Um esforço nesse sentido é aquele que vação da liberdade como medida fundamental de
Pachukanis e Krylenko? levam a cabo quando da refor- repressão, adequada aos “elementos” do crime, segundo
ma da legislação penal (e processual penal) vigente, ex- o mesmo princípio da dosimetria”.” O novo código, ao
pressa sobretudo no Projeto de Código Penal de 1930.% contrário, permite ao “juiz-proletário” ampla liberdade
Na Introdução a este Projeto, Krylenko, inicialmente, para encontrar em cada caso em particular a medida
situa a tarefa de revisão do direito penal como parte mais oportuna, e lhe oferece um “elenco orientativo dos
integrante do esforço de destruição da máquina estatal crimes mais perigosos” para os quais se faz necessária a
burguesa e de constituição dos órgãos do poder operá- exclusão da sociedade, e “um elenco das medidas de
rio, ressaltando que os trabalhadores não podem sim- caráter coato-educativas” para os crimes de menos pe-
plesmente adaptar o Estado burguês aos seus próprios riculosidade, diferentemente do precedente “preço cor-
rente” dos crimes e das medidas de repressão, de modo

*2 A propósito de Nocolai Krylenko, ver os ensaios de Donald Berry,


“Nikolai Vasil'evich Krylenko: a Reevaluation”, e de Eugene
Huskey, “Vyshinsky, Krylenko, and Soviet Penal Politics in the
1930s”, ambos publicados em P. Beirne (org.), Revolution in Law: 31 Cf. “Progetto di Codice Penale per la R.S.F.S.R. Introduzione”, in
Contributions to the Development of Soviet Legal Theory, 1917- La Giustizia Penale, v. XXXVIII, 1932, p. 1768. Sobre o Projeto,
1938, op. cit.; e também R. Sharlet, “Stalinism and Soviet Legal pode-se consultar L. de Asúa, Derecho penal soviético, op. cit.; Ama-
Culture”, in Robert Tucker (org.), Stalinism. Essays in Historical dor Cysneiros, Direito penal soviético, São Paulo, Centro de Espansão
Interpretation, Nova York, W.W. Norton, 1977. Uma avaliação do Livro e da Imprensa, 1934; Corrado Perris, “Le nuove teorie
desde uma perspectiva soviética pode ser vista em M. Strogovitch, penali della Russia sovietica (a proposito del Progetto 1930 di
“Sulla impostazione di alcuni problemi del diritto nelle opere codice penale per la RS.F.S.R.)”; in La Scuola Positiva. Rivista di
de P. 1. Stucka, N. V. Krylenko, E.B. Pasukanis”, in U. Cerroni (org.), Diritto e Procedura Penale, nova série, v. XL, 1931; Sebastián Soler,
Teorie sovietiche del diritto, Milão, Giuffrê, 1964. “El proyecto Krylenko de codigo penal”, in Revista de Criminologia,
Psiquiatria y Medicina Legal, ano XX, nº 15, 1933; John Hazard, “The
Extratos da obra de Krylenko, Besedy o prave i gosudarstve, podem
Abortive Codes of the Pashukanis School”, in F. Feldbrugge e
ser lidos em M. Jaworskyj (org.), Soviet Political Thought. An
D. Lasok (orgs.), Codification in the Communist World, Leiden, A. W.
Anthology, op. cit.
Sijthoff International Publishing, 1975; e Robert Sharlet,
*º O chamado “Projeto Krylenko” de 1930 foi redigido por uma “Pashukanis and the Whithering Away of Law in the USSR”, in
comissão da qual participaram, além do próprio Krylenko, Sheila Fitzpatrick (org.), Cultural Revolution in Russia, 1928-1931,
Pachukanis, Klimov, Berman, Bulatov, Klusmin e Estrin. Bloomington, Indiana University Press, 1978.

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Socialismo e extinção da forma jurídica

que é o critério da periculosidade do agente que deve pas-


da questão, de tal sorte que o esforço antiburocrático
sar a nortear toda a política criminal. A “Introdução” é
acaba por se confundir com as iniciativas nesse sentido
concluída com a previsão da extinção do direito penal e adotadas pelos países capitalistas, iniciativas que con-
do direito em geral, que se tornarão “inúteis”, uma vez
duzem a um simples aperfeiçoamento do aparelho es-
que as classes sociais e a sobrevivência da sociedade bur- tatal. Tal orientação pode ser sintetizada nesta fórmula
guesa tenham desaparecido, e as “novas formas de vida amplamente difundida: “uma má organização produz
social” tenham se “transformado em um hábito para a burocratas”.* É necessário, assim, estabelecer uma li-
maioria da população”.2 Observa-se, assim, que o obje- nha de demarcação que permita captar a diferença es-
tivo do “Projeto” é ultrapassar o princípio retributivo, pecífica entre a luta contra o burocratismo em um Estado bur-
isto é, a equivalência penal expressa na “dosagem” guês, e a luta contra o burocratismo em um Estado de
precisa das penas correspondentes aos delitos, e cujo fun- ditadura do proletariado. O que distingue as duas si-
damento é a equivalência mercantil. tuações? Fundamentalmente, a natureza mesma do
Passemos a examinar, agora, como Pachukanis en- Estado em uma formação social capitalista e em uma
frenta as contradições do aparelho de Estado de transi- sociedade de transição, ou seja, a questão não é tanto de
ção. Em uma série de artigos” Pachukanis analisa o pro- natureza técnica, e sim uma questão referente à luta de
cesso de burocratização do Estado operário. Indaga em classes, a fim de que o importante não é o aperfei-
O aparelho de Estado soviético e a luta contra o burocratismo çoamento do Estado, mas, ao contrário, a sua transfor-
qual o sentido do combate contra a burocratização do mação, de modo que ele possa cumprir funções “direta-
Estado, tendo em vista que a tendência dominante nesse mente contrapostas às que cumpre em qualquer sociedade
campo é a de privilegiar os aspectos técnico-organizativos de classes”.* A resistência à implementação de formas de
controle operário nas instituições governamentais
revela essa tendência a desconsiderar a natureza políti-
ca do problema. Este controle por parte dos trabalha-
32 dores passa a ser considerado, então, uma iniciativa que
Id., ibid, op. cit., p. 1769.
33
Cf. E. Pachukanis, Sovetskii gosudarstvennyi apparat v bor'be
introduz um novo elemento burocrático na administra-
biurokrarizmom, Moscou, Izdatel'stvo Kommunistitcheskoi
s ção, o que dificultaria, consequentemente, a luta admi-
Akademii, 1930, também publicado em E. Pachukanis e S, Ignat, nistrativa contra a burocracia. Pachukanis adverte para
Otcherednye zadatchi bor'by s biurokratizmom, Moscou, Izdatel'stvo o sentido mais geral dessa tendência, que se encaminha
Kommunistitcheskoi Akademii, 1929;e E. Pach ukanis, “Leninib
or'ba para considerar o controle da administração pelas massas
s biurokratizmom”, in E. Pachukanis, Iz leninskogo nasledstva. K
leninskoi teorii gosudarstva i proletarskoi revoliutsii, Moscou, Gosizdat
RSFSR, Moskovskii Rabotchii, 1930. Para um exame abrangente
destes textos, ver Dietrich Loeber, “Bureaucracy in a Worker's
34 E. Pachukanis, Sovetskii gosudarstvennyi apparat v bor'be 5
State: E. B. Pashukanis and the Struggle Against Bureaucratism
in biurocratizmom, op. cit, p. 4.
the Soviet Union”, in Soviet Union, nº 6, v. 2, 1979.
35 Id, ibid, p.5.

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como um gasto supérfluo.” Assim, a questão é facilmen- racionalização do aparelho de Estado dá a ele um novo
te deslocada para o campo da educação, da preparação espírito comercial-industrial... Dessa maneira, o apare-
de pessoal, quando se trata justamente do contrário: como lho burocrático criado à época do capitalismo industrial
fazer com que o aparelho estatal deixe, particularmente, passa a ser criticado sob o ângulo da racionalização bur-
de ser um instrumento para que isoladamente trabalha- comercial do
guesa, da eficiência, da organização
dores ascendam às camadas privilegiadas e consolidem
aparelho, etc... Essa burocracia de novíssima formação,
tal posição de privilégio, e venha a ser um instrumento
mercantil, taylorista, estreitamente ligada aos círculos in-
para que toda a classe trabalhadora, em conjunto, possa
ascender à vida político-pública, em especial as camadas dustriais e financeiros é uma burocracia — pois ela represen-
mais atrasadas, erradicando a desigualdade e os privilé- ta a si mesma como um sistema de administração mediante
gios.” Esse modo de entender a questão burocrática de- pessoas separadas e acima das massas”.” Pachukanis
corre de uma insuficiente compreensão da natureza do observa que alguns aspectos do Estado soviético — os
fenômeno burocrático. Para Pachukanis, o burocratismo referentes à participação das massas no poder — seriam
é o resultado do desenvolvimento de uma economia mo- considerados tipicamente burocráticos mesmo para os re-
netária, forma política do capital mercantil. A essa presentantes mais progressistas da sociedade burguesa.
burocracia que não separa nitidamente os interesses Como se vê, não apenas há coincidência entre a posição
“públicos” daqueles privados contrapõe-se a figura burguesa e a de parte da liderança bolchevista, mas, além
do burocrata que se subordina à lei e age em seus limi- disso, esta apenas realiza — ao defender que o problema
tes, o burocrata de que o capital industrial necessita. da burocracia é apenas técnico e depende de maior ra-
Apenas essa organização da administração estatal cionalização da administração - uma tendência que se
pode assegurar aquelas formas de circulação indispen- observa na própria sociedade burguesa.
sáveis para o capitalismo industrial e para aquelas for- Ademais, a luta contra o burocratismo no capitalis-
mas de exploração do trabalho livre, assalariado,
nas mo encontra limites muito determinados, posto que cer-
quais ele se baseia”.* Se nesse período, o burocrata to grau de burocratismo não apenas é admissível, mas é
ideal era visto apenas como o guardião das “condições
indispensável do ponto de vista do capitalista, pois de
formais da circulação”, com a passagem para o capita-
certa forma preserva uma margem maior de autonomia
lismo financeiro, segundo Pachukanis, “agora dele
exige que seja um organizador, que possa solucionar
se para o proprietário privado em relação à ingerência do
aqueles problemas econômicos intimamente entrelaça- Estado e às demandas das massas. Pachukanis ressalta
dos com os problemas políticos. Daí a tendência para a que quando a morosidade judiciária se instala, por exem-
plo, no campo dos direitos trabalhistas, as instituições
soviéticas necessariamente “voltam-se para o ponto de vista
8 Cf.id, ibid, p. 6.
7 Cf.id, ibid, p. 6.
8 Id. ibid. p.8. 39 Id, ibid., p. 9-10.

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burguês”.“ Citando o exemplo de uma empresa A luta contra o burocratismo tem, para Pachukanis,
perdido uma demanda de um grupo de ondas E um caráter de classe na medida em que o aparelho de
clamava uma compensação financeira, ao invés de estender Estado soviético abriga membros das antigas classes do-
o benefício aos demais operários aos quais igualmente minantes, que o utilizam, a partir das posições que nele
era ele devido, simplesmente opta por contestar na justiça ocupam, para os seus próprios fins privados,” o que evi-
em todas as suasinstâncias, o pleito dos trabalhadores, Pachulkaris dencia que a questão não reside em um aperfeiçoamento
com enta que isso não se reduz a um mero caso de utiliza- técnico do aparelho e sim na depuração dos elementos
ção da morosidade judiciária, mas evidencia a recusa da buro- antioperários. Essa situação é ainda agravada pela pre-
cracia em se colocar na situação de classe dos trabalhado- sença quase nula de operários não vinculados ao partido
res. À propósito, Pachukanis considera absolutamente correta comunista no aparelho de Estado. De modo que o traba-
a seguinte passagem retirada de um jornal de província: lho de depuração deve necessariamente vir acompanhado
O funcionário pretende ter uma posição especial na socieda- da promoção de trabalhadores aos postos administrativos
de. A atitude do funcionário para com as massas é desde- do Estado,“ o que, significativamente, encontra resistên-
nhosa, chegando até ao escárnio. Sob o burocratismo, a cia de dentro do Estado soviético: “Mas quando se trata
causa viva, os interesses das amplas massas são sacrificados a de uma tarefa de combate de classe, de depuração [...] nos
uma minoria que dirige o Estado. Não é segredo que em nos- deparamos no melhor dos casos com a incompreensão, à
so aparelho de Estado há comerciantes, dirigentes, funcio- indiferença [...] a intenção de afastar-se desse assunto, de
nários que trouxeram consigo seu formalismo, sua arrogân- esquivar-se, guardar silêncio”. O processo de promoção
cia e seu desprezo em relação às massas”.! Na consciência de elementos operários não deve ser limitado aos mais
do burocrata soviético está presente uma clara distinção entre avançados, aos mais capazes, mas deve implicar a partici-
os que, como ele, realizam o trabalho intelectual, pação de toda a massa, sobretudo os setores mais atrasa-
e as
massas às quais está destinado o trabalho manual, como fica dos dela. Além disso, a crítica das massas ao Estado deve
evidenciado em outro exemplo citado por Pachukanis, no qual ser encorajada.*
o dirigente se referia aos trabalhadores como pessoas sujas e Por outro lado, nota-se certo incremento da ativida-
doentes, ao mesmo tempo em que fazia questão de dizer que de das massas, de tal sorte que já existem as condições
tinha todas as suas necessidades materiais satisfeitas.“

cação a colocar-se de joelhos frente a ele, dizendo a seguir: “agora


eu vejo que você realmente passa necessidades”. Id,, ibid., p. 13.
*0 Id. ibid, p. 11. 43 Cf. também E. Pachukanis, “Lenin i bor'ba s biurokratizmom”,
41 .
Citado por Pachukanis,. Sovetskii gosudarstvennyi apparat v bor'be s op. cit.
biirocratismom, op. cit., p. 12. 44º Cf.id. ibid.
42
Id., ibid., y p. 11-12. O comportamento do funcioná
onárriio 45 E. Pachukanis, Sovetskii gosudarstvennyi apparat v bor'be 5
pode ar
extremos, como em outro caso citado por Pacha no qu biurokratizmom, op. cit. p. 22.
a
dirigente obrigava um camponês que fora levar-lhe uma reivindi- 46 Cf. E. Pachukanis, “Lenin i bor'ba s biurokratismom”, op. cit.

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Marxismo e direito Socialismo e extinção da forma jurídica

para que elas possam “tomar de assalto esta última ci- Examinemos a distinção operada por Pachukanis
dadela, neste aparelho de Estado soviético, e tomá-la através entre o direito burguês do modo de produção capitalista,
de todos os meios, tanto com um ataque frontal, quanto [...) que ele denomina de direito burguês “puro” ou “genuí-
através de um cerco” [poiti chturmom na etu posledniuiu no” (podlinnyi),” o direito burguês “sem burguesia” ou
tverdyniu, na etot sovetskii gosapparat, i brat' ee vsemi direito “burguês”, entre aspas, (que é, repetimos, aquele
sposobami, i lobovoi atakoi, [...] i okrujeniem].*” Essa luta ao qual Marx faz menção na Crítica ao programa de
antiburocrática deve tomar um caráter organizado e sis- Gotha), e o direito soviético. O direito burguês “puro”
temático, dele resultando a amovibilidade, a eletividade, está relacionado às formas de mediação da exploração
a prestação de contas por parte de todos os funcionários capitalista, não se confundindo com o direito ao qual
e a criação de diferentes formas de ligação dos soviets Marx se refere, já que este direito burguês sem burguesia
com as massas.'* Como diz Pachukanis, “[...] o gelo se é o direito de uma sociedade na qual as classes já foram
partiu; é preciso apenas utilizar a cheia primaveril, este suprimidas, de modo que esses dois direitos estão distan-
crescimento da atividade das massas que começou a que- tes entre si como o “céu da terra”. Ademais, o direito
brar os obstáculos burocráticos”. burguês “puro” só pode ser destruído pela revolução
“A concepção pachukaniana do direito na sociedade de tran- proletária, em virtude da existência do Estado burguês.
Sição €, como vimos, mumais it comp
o lexa do que supõ as e
in- O direito soviético seria um direito que corresponderia a
terpretações de sua obra, que tendem a vê-la como a expressão de um estágio ainda inferior ao direito burguês sem burgue-
uma corrente teórica niilista, que simplesmente negaria tanto sia, mas igualmente seria dele distinto. É justamente esse
a possibilidade da existência do direito no socialismo, co- direito burguês não-genuíno, o direito que se extingue no
moasua utilização revolucionária. O procedimento de Pachukanis período de transição. Qual seria a natureza específica
é bem outro, em tudo diverso do reducionismo que se exprime desse direito soviético, afirmada por Pachukanis — que
na formulação que, ou nega a existência de qualquer direito no ressalta ser a defesa de tal especificidade “um dos gran-
socialismo, ou afirma o caráter socialista desse direito. des méritos” de Stutchka? Em “A teoria marxista do
direito e a construção do socialismo”, tal especificidade está
relacionada apenas com a origem revolucionária do di-
47 E. Pachukanis, Sovetskii gosudarstvennyi apparat v bor'be s reito soviético,” o que é, evidentemente, insuficiente, pois
biurokratizmom, op. cit., p. 25.
** Ao comentar a obra de Lenin, O Estado e a revolução, Pachukanis
procura ressaltar a necessidade de destruição do aparato de Esta-
do burguês, e de sua substituição por um “Estado-comuna”, de 50 O direito soviético é um direito cujas características são “em prin-
modo que as massas não permaneçam separadas do Estado. cípio distintas” (printsipial"no otlitchny) e “opostas” (protivopolojny)
Cf. E. Pachukanis, “Desiatiletie Gosudarstva i revoliutsii Lenina”, à característica pura do direito burguês (kharakteristike
in Revoliutsiia Prava, nº 4, 1927. podlinnogo burjuaznogo prava), cf. E. Pachukanis, “Marksistskaia
*º E. Pachukanis, Sovetskii gosudarstvennyi apparat v bor'be s teoriia prava i stroitel'stvo sotsializma”, op. cit., p. 189.
biurokratizmom, p. 25. 51 Cf.op.cit, p. 189.

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Marxismo e direito Socialismo e extinção da forma jurídica

a origem desse direito somente nos revela a sua fonte jurídicas”. Pachukanis parte da constatação de que nem
normativa — a Revolução -, não permitindo apreender as toda regulamentação tem caráter jurídico. Nas socieda-
relações sociais que a forma direito exprime. Assim, des pré-burguesas grande parte das relações sociais é re-
Pachukanis se refere não propriamente à natureza do gulamentada extrajuridicamente, por meio da interven-
direito soviético, mas a certa política do direito que o Es- ção de elementos religiosos, por exemplo. Mesmo na
tado soviético realiza, ou seja, à utilização do direito em sociedade burguesa, há atividades que só podem ser consi-
conformidade com os interesses de classe que esse Esta- deradas reguladas pelo direito por meio de uma análise
do defende. Esse seria, de qualquer modo, o primeiro ele- superficial, como a organização das estradas de ferro ou
mento que permite distinguir o direito do período da do correio. O trabalho de planejamento das operações
transição do direito burguês “puro”: o que poderíamos ferroviárias é totalmente distinto da lei sobre a responsa-
denominar sobredeterminação da forma jurídica (direito bilidade da empresa em relação aos seus usuários.
burguês “puro”) pela política proletária, o que permitiria Pachukanis denomina de técnica a primeira forma de
a utilização do direito em razão dos interesses da classe regulamentação, e de jurídica, a segunda. Assim, o “an-
operária. Creio que se encaminha neste sentido a afirma- tagonismo dos interesses privados” consiste em uma das
ção de Pachukanis em “Economia e regulação jurídica”, premissas básicas da regulamentação jurídica, sendo, ao
de que a legalidade revolucionária é um problema “que é contrário, a “unidade de fim” o que caracteriza a regula-
em 99% político”,? ou seja, a política, isto é, a luta de clas- mentação técnica. Qual a pertinência desta distinção
se proletária, empresta uma determinada orientação — de
classe — ao direito, o qual, no entanto, não perde - em
virtude dessa razão apenas — o seu caráter formal bur- 53 Id. ibid., p. 73. Outro exemplo fornecido por Pachukanis elucida
guês. Exatamente por isso é que Pachukanis ao mesmo ainda mais a diferença entre as duas modalidades de regulamen-
tempo em que afirma o “comando” do direito pela classe tação: “a cura de um doente pressupõe uma série de regras, seja
operária, recusa qualquer possibilidade de se instaurar para o doente como para o pessoal médico, mas, desde que tais
regras sejam estabelecidas do ponto de vista unitário — o restabe-
um direito proletário, já que a forma jurídica não pode lecimento do doente -, elas têm caráter técnico. A aplicação des-
ter a sua natureza burguesa transformada. tas regras pode estar relacionada com certa coação a ser exercida
Pachukanis, no entanto, ao caracterizar o direito so- sobre o doente. Porém, enquanto essa coação for considerada
viético, não se limita à sua “natureza revolucionária”, sob o ponto de vista de um mesmo fim (idêntico tanto para quem
a exerce como para aquele que lhe está submetido), ela não será
mas oferece um conjunto de elementos para analisar a mais do que uma ação tecnicamente racional. [...] O jurista nada
sua especificidade. Esta repousaria na distinção operada tem que fazer aqui. Sua tarefa começa quando é forçado a aban-
por Pachukanis entre as “normas técnicas” e as “normas donar esse terreno da unidade dos fins e a adotar outro ponto de
vista, o ponto de vista de sujeitos isolados que se opõem um ao
outro e dos quais cada um é portador dos seus próprios interesses
privados. O doente e o médico se transformam, então, em sujei-
tos de direitos e deveres, e as regras que os unem transformam-se
2 E. Pachukanis, “Polojenie na teoretitcheskom pravovom fronte, em normas jurídicas”, “Obschaia teoriia prava i marksizm”,
(K nekotorym itogam diskussii)”, op. cit., p. 49. op. cit., p. 73-74.

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para a sua caracterização do direito do período de transi- lectual e manual, e pela crítica dirigida ao Estado sovié-
ção? Para podermos responder a essa questão, é necessá- tico, na qual fica explicitada a existência de uma sepa-
rio apreender a concepção do socialismo de Pachukanis. ração entre o aparelho estatal e as massas. Quanto a
Em Pachukanis duas tendências sobre a natureza da este último ponto, merece ser ressaltado que Pachukanis,
sociedade de transição estão presentes, sendo uma do- muito embora possa afirmar o caráter operário do Estado
minante e a outra subordinada. A tendência dominante soviético, apresente como objetivo das massas a apropria-
exprime-se na identificação do socialismo com a proprie- ção desse mesmo Estado por parte delas. Toda a exposição
dade estatal dos meios de produção e com o planejamen- que Pachukanis faz do problema do burocratismo é, na
to, de tal sorte que a contradição fundamental que atra- verdade, a demonstração de que o Estado soviético já per-
vessa esta sociedade de transição seria a que opõe o dera o seu caráter de classe proletário, sendo eloquente
“plano” ao “mercado”. É esta concepção que vai autorizá- nesse sentido a referência que Pachukanis faz à necessidade
lo a afirmar que na sociedade soviética não há explora-
da tomada de assalto do poder pelas massas: ora, se as
ção da força de trabalho, a identificar a presença de “ele-
massas precisam tomar o poder e, ademais, por uma via
mentos socialistas” na economia soviética e a limitar o
revolucionária (“tomar de assalto”), então, pode-se con-
“campo” capitalista remanescente à presença da peque-
na produção mercantil (estes seriam, aparentemente, os cluir que essas mesmas massas já não estão no poder, que
“elementos capitalistas” na economia soviética). Em elas já foram expropriadas do exercício do poder de Esta-
suma, o setor estatal da economia, submetido às regras do, e agora esse poder é exercido contra elas.
do planejamento, seria identificado com o socialismo. Além Não obstante isso, Pachukanis não extrai todas es-
disso, o Estado soviético é considerado por Pachukanis um sas consegiiências, e pode, ao mesmo tempo, continuar
Estado operário. Pachukanis não aduz as razões para tal afirmando que esse Estado, que ele demonstra estar com-
caracterização, mas, partindo de sua concepção mais ge- pletamente apartado das massas, é a expressão política
ral do socialismo, talvez não seja trair o seu pensamento — da classe operária. Isso é também o índice do caráter
muito embora ele não seja explícito a respeito -, supor que, subordinado que essa tendência crítica joga no interior
para ele, a natureza operária desse Estado decorra, em do dispositivo teórico pachukaniano. A que se devem es-
primeiro lugar, do fato de o partido bolchevique — identifi- sas limitações e contradições em que incorre Pachukanis?
cado com a classe operária — dirigir este Estado e, em se- Fundamentalmente, a causa de suas dificuldades decor-
gundo lugar, da nacionalização dos meios de produção re de uma concepção da transição que não permite pen-
por ele efetivada. sar de modo conseqiiente esse período como um perío-
A tendência subordinada exprime-se na recusa em do de revolucionarização das relações de produção, no
considerar o período de transição determinado por re- qual, portanto, as relações de produção capitalistas
lações de produção específicas, relações de produção remanescem, não sendo suficiente para a sua transfor-
de natureza socialista, assim como pela afirmação da mação a mera transferência jurídica da propriedade dos
necessidade de superação da divisão do trabalho inte- meios de produção da burguesia privada para o Estado.

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Assim, a existência de um “setor estatal planificado temente de sua origem de classe, assim como de suas
da economia” não implica necessariamente que as re- representações ideológicas sobre o papel que cumprem
lações de produção nesse setor sejam, ipso facto, de no processo revolucionário, que tomam as decisões so-
natureza “comunista”. Para que tal transformação se bre a produção e sobre o destino do produto; são eles,
dê, é necessário que a própria organização do proces- portanto, que se apropriam do sobreproduto — que é,
so de trabalho seja transformada, de modo que a divi- aqui, mais-valia -, enfim, são eles que dirigem o proces-
são do trabalho intelectual e do trabalho manual, assim so de valorização do capital. Essa nova burguesia se
como a divisão entre as tarefas de direção e as tarefas de distingue da antiga burguesia “privada” por não pos-
execução no interior da unidade de produção sejam suir o título de propriedade dos meios de produção, sen-
superadas. O sentido dessas transformações é o de permi- do o seu domínio de classe exercido pela mediação do
tir que a classe operária possa se reapropriar das condi- Estado, o que autoriza pensar em uma formação social
ções materiais da produção, condição absolutamente constituída, assim, como um capitalismo de Estado.”
essencial para ela romper com a dominação de classe A análise pachukaniana, no entanto, não é capaz de
burguesa. Do mesmo modo é necessário que o Estado ir além da concepção dominante da Terceira Internacio-
seja transformado a fim de de permitir a apropriação nal, não obstante em alguns momentos ela possa se apro-
real do poder pelas massas, o que exige o controle efeti- ximar da concepção que pensa a transição como um pe-
vo por parte da classe operária do aparelho de Estado. ríodo de luta pela transformação comunista das relações
Isso implica que o aparelho repressivo como instância de produção e pela apropriação do poder pelas massas.
separada e acima das massas, isto é, como corpo espe- É nesse sentido que se encaminham as análises desenvol-
cializado e “destacado” dos trabalhadores, seja des- vida por Pachukanis sobre a necessidade de as massas
montado e as suas funções sejam exercidas pelo “povo ocuparem e trasformarem o Estado soviético, assim como
em armas”. Implica também que o conjunto do funcio- a respeito da necessidade de se superar a figura da “du-
nalismo seja subordinado do controle das massas, ou pla separação” — separação entre o proletariado e os meios
seja, é necessário que os princípios da elegibilidade, da de produção, e entre as unidades de produção — o que
movibilidade, da responsabilidade e o estabelecimento sugere que a sua concepção alberga elementos que per-
de salário igual ao de um operário sejam introduzidos. mitem começar a pensar a necessidade de uma transfor-
Ora, o que Pachukanis está impedido de ver é a possi- mação revolucionária na organização do processo de
bilidade de, na ausência dessas condições políticas para trabalho para se ultrapassar a sociedade burguesa. Con-
o domínio da classe operária, e persistindo relações de sequentemente, não se pode dizer que a posição de
produção cuja natureza capitalista não tenha sido de Pachukanis sobre o problema da transição seja a mesma
modo algum afetada pelas medidas de caráter jurídico desenvolvida na década de 60 no decorrer da revolução
adotadas pelo Estado, se constituir uma nova classe
burguesa, a partir das funções exercidas pelos respon-
sáveis indicados pelo partido no processo de produ- 54 Para uma análise teórica do “capitalismo de Estado”,
ção. São esses “funcionários do capital”, independen- cf., notadamente, as obras de Charles Bettelheim.

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cultural proletária na China, tal como afirma Dietrich Lôber ação da lei do valor, é um setor no qual podem aflorar
em seu trabalho acerca da concepção pachukaniana da relações de natureza não-fetichizada, isto é, racionais,
burocracia.” Pelo que já expusemos acima, a problemáti- então a forma jurídica, cuja existência e reprodução de-
ca do capitalismo de Estado, no sentido que precisamos, pendem da existência e reprodução das formas mer-
está ausente na reflexão de Pachukanis - embora, como cantis, forma mistificada, fetichizada e irracional das
vimos, existam elementos em sua análise que tendem para relações sociais, à medida que o mercado vai sendo subs-
ela —, ao passo que tal problemática é central nas inter- tituído pelo plano, também ela perde a sua natureza juri-
venções teóricas no curso da revolução cultural e na prá- dica, e se transforma em um conjunto de dispositivos de
tica revolucionária das massas chinesas. natureza técnica, adequado à natureza racional da orga-
Após essa explicitação podemos retornar à questão nização socialista da produção.
que o suscitou: qual o lugar ocupado pela distinção entre O limite da posição teórica de Pachukanis decorre de
normas jurídicas e normas técnicas na concepção do di- sua concepção de que o socialismo possa conhecer nor-
reito na sociedade de transição por Pachukanis? Se, como mas de caráter “técnico”, não afetadas pela luta de clas-
já tivemos a oportunidade de ver, Pachukanis pensa a ses, “isoladas” do processo de transformação das rela-
progressão para o socialismo como extensão maior da ções sociais, normas rigorosamente “neutras”, do ponto
economia estatal planificada, com a consegiiente progres- de vista de classe, do ponto de vista da luta política e
siva supressão das formas mercantis, por força mesmo ideológica que as massas travam contra as formas de exis-
dessa expansão, e se o setor estatizado, por estar livre da tência do capital. Tudo se passa como se houvesse um
“espaço” recortado e subtraído à luta de classes, um es-
paço em que a política, isto é, a luta de classe proletária
º* Cf. D. Lôeber, “Bureaucracy in a Workers' State: E. B. Pashukanis
não penetra, o que é justamente a representação que à
and the Struggle Against Bureaucratism in the Soviet Union”, burguesia faz da política, interditando o espaço da produ-
op. cit., p. 165. ção à luta de classe proletária. Não por acaso, Pachukanis
56
A propósito da revolução cultural proletária na China, dentre a compreende essa esfera técnica como a realização de rela-
imensa bibliografia a ela dedicada, pode-se ver, particularmen- ções não-fetichizadas, como um espaço de racionalidade,
te, Charles Bettelheim, Revolução cultural e organização industrial na construindo uma oposição que opera inteiramente den-
China, Rio de Janeiro, Graal, 1979; Bernard Fabrêgues, “Organisation tro de um dispositivo teórico especulativo, no qual as fi-
capitaliste et organisation socialiste du travail, III. Chine:
machinisme, science et tecnique”, in Communisme, nº 19, 1975;
guras idealizadas das relações sociais reais substituem a
B. Fabrêgues, Sauro Alberto e Ana-Maria Castillo, “Lutte de classes materialidade dessas mesmas relações.”
et transition socialiste. Les leçons de I'experience chinoise”, in
Communisme, nº 3, 1973; Bernard Jovic, “La revolución cultural y
la crítica del economicismo”, in Crítica de la Economia Política, nº 2,
1977; Jean Daubier, Histoire de la révolution culturalle prolétarienne 57 Essas limitações se tornam particularmente graves quando
en Chine, Paris, Maspero, 1971; Massimo Bonfantini e Marco Pachukanis aplica essa concepção ao campo do direito penal,
Macciô (orgs.), La filosofia della rivoluzione culturale (Antologia di sugerindo que a adoção de medidas de natureza médica para
testi cinesi), Milão, Bompiani, 1974. substituir o emprego de medidas penais, especialmente da pena

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Marxismo e direito Socialismo e extinção da forma jurídica

Não obstante suas vacilações teóricas, é possível di- qual nós medimos o grau de proximidade de um jurista
zer que Pachukanis, ao considerar a questão do direito do marxismo e do leninismo” [Problema otmiraniia prava
no período de transição, sustenta, nos textos que exa- iavliaetsia probnym kamnem, po kotoromu my ispytyvaem
minamos, uma posição de princípio rigorosamente stepen” blizosti k marsizmu i leninizmu togo ili inogo
fundada na problemática aberta por Karl Marx em O jurista]. o
capital: o princípio da extinção do direito no período de tran- Por isso mesmo, o abandono dessa posição de princí-
sição para o comunismo, o que o leva a afirmar que “o pio, no período subsegiente, acarretará o progressivo
problema da extinção do direito é a pedra de toque pela distanciamento de Pachukanis de suas posições teóricas
originárias, e a progressiva constituição de uma concep-
ção do direito fundada no positivismo jurídico, com a
necessária e prévia exaltação das “virtudes do Estado.
de privação de liberdade, aos transgressores da ordem social soci
a- A recuperação da doutrina do Estado e do direito no
lista. Depois dos estudos de Michel Foucault (cf. Vigiar e punir. Nas-
cimento da prisão, Petrópolis, Vozes, 1984) e de D. Melossi
socialismo e a sua constituição em ideologia oficial do
M. Pavarini (cf. Cárcel y fábrica. Los orígenes del sistema penitenciario -
e Estado exigem o obscurecimento da crítica do direito en-
siglos XVEXIX, op. cit.), entre outros, pode-se avaliar as conseqiiên- cetada por Pachukanis, o que permite supor que a con-
cias teóricas e políticas de uma orientação como essa. De qualqu
er cepção jurídica pachukaniana é, no âmbito teórico, um
modo, seria tendencioso e ingênuo atribuir a Pachukanis qual- dos únicos obstáculos à consolidação do direito burguês
quer responsabilidade pelo uso de métodos repressivos apoiad
na medicina, especialmente na psiquiatria, contra dissidentes na
os no período de transição.
antiga União Soviética, como querem Colin Sumner (cf. “Pashukanis
and the “Jurisprudence of Terror'”, in The Insu rgent Sociologist, v. 10,
nº 4/v. 11, nº 1, 1981) e P. Binns (cf. “Law and Marxism”, op. cit.).
Pachukanis não tinha em vista, evidentemente, o “momento atual”,
mas trabalhava com uma perspectiva futura, na qual o capitalismo
já teria sido suprimido. Não faz, portanto, nenhum sentido aplicar
a sua concepção para um objeto totalmente estranho a ele, o uso
político-criminal de medidas médico-psiquiátricas contra indiví-
duos contrários ao Estado soviético. O que se deve censurar a
Pachukanis é a sua incapacidade em compreender a trama ideoló-
gica em que se encontra enredado um objeto construído para fun-
cionar “tecnicamente”, isto é, fora da política e da ideologia, e a sua
incapacidade de pensar a transição como um complexo período de
luta de classe proletária visando a transformação revolucionária
das relações de produção, e não como uma oposição entre dois
objetos “ideais”: a irracionalidade (o “fetichismo”) e a razão.
Um comentário sobre a intervenção de Peter Binns pode ser vis-
to em Ronnie Warrington, “Standing Pashukanis on His Head”,
in Capital and Class, nº 12, 1980-81. 58 E. Pachukanis, “Ekonomika i pravovoe regulirovanie”, op. cit, p. 35.

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o
ÁAUTOCRÍTICA E RECUPERAÇÃO
DO DirEITO BURGUÊS

A concepção teórica de Pachukanis, objeto de exame


nos capítulos anteriores, é substancialmente modificada
em um dado momento pelo autor. A determinação deste
momento constitui, por si só, uma dificuldade que não se
limita à esfera teórica, mas é também marcada por deter-
minações políticas e ideológicas.
Qual o interesse em percorrer os caminhos da auto-
crítica de Pachukanis, notadamente se o nosso objeto pri-
vilegiado de estudo é a sua concepção “originária”, tal
como a examinamos nos capítulos precedentes?
O motivo principal para o fazermos reside em que as
modificações operadas na concepção jurídica de Pachukanis
após 1930 permitem compreender melhor o sentido de suas
análises originárias, ao mesmo tempo em que demons-
tram que o seu abandono leva, necessariamente, ao re-
torno da dogmática jurídica burguesa. Ademais, como
veremos, Pachukanis resiste, até por volta de 1935, a
renunciar completamente às suas idéias, o que permite
revelar o caráter, em certa medida, artificioso de sua
abjuração, contrariamente à leitura corrente que apre-
senta a sua autocrítica como o abandono prematuro de
uma problemática teoricamente insustentável.

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Marxismo e direito
Autocrítica e recuperação do direito burguês

O que está em jogo nesta questão, portanto, é a ten-


como um de seus momentos fundantes, alguns dos tex-
tativa de desqualificar a concepção pachukaniana do
tos dos anos 30 do próprio Pachukanis.
direito — e as suas implicações teóricas e políticas.
Ora, se a autocrítica se dá a partir de um momento
Para alguns, como Bjorg Melkevik,! o abandono da preciso — não importa se em 1925 ou 1930 —, como expli-
concepção primeva já ocorre em 1925, enquanto para car que, em textos nos quais se pode efetivamente reco-
outros, como Robert Sharlet,? não obstante Pachukanis nhecer a presença de outra problemática, ajustada às
já ter operado substanciais modificações em sua obra exigências extrateóricas da conjuntura política, Pachukanis
desde 1925, é a partir de 1930 que Pachukanis muda de possa retornar à problemática original?
posição. Deve-se observar que essa divergência é carre-
Essas observações introdutórias, que esboçam uma
gada de sentido, já que, se o “corte” na obra de Pachukanis
crítica à análise corrente das “retificações” operadas por
se deu a partir dos anos 30, é forçoso reconhecer, como
Pachukanis, não visam, no entanto, sustentar a tese de
aliás o faz R. Sharlet, que a autocrítica não teve, substan-
que nada se altera em seu pensamento. Como já foi dito,
cialmente, caráter espontâneo, mas foi o resultado de uma Pachukanis efetivamente modifica e abandona as suas
coerção de natureza administrativa por parte da direção posições. A diferença de nossa análise desse processo
stalinista. Isso, evidentemente, anularia, em certa medi- autocrítico em relação às outras reside, por um lado, em
da, a validade teórica e política das novas posições de um novo esforço de leitura do modo pelo qual Pachukanis
Pachukanis. Por outro lado, se o “corte” já tivesse ocorri- reorganiza o seu dispositivo teórico, e procura dar conta
do ainda nos anos 20, antes da consolidação do grupo de suas vacilações e resistências, particularmente em re-
dirigente stalinista, a nova posição adotada por conhecer a existência de um “direito proletário” ou “so-
Pachukanis teria sido o resultado de uma reelaboração cialista”. Por outro lado, e em estreito vínculo com a
teórica “legítima”, autorizando, por via de consegiiên- primeira, procuramos pensar a reconstituição do apara-
cia, o repúdio da obra anterior. to conceitual jurídico nos anos 30 como a negação das
Qualquer que seja, no entanto, a interpretação que teses originariamente defendidas por Pachukanis.
esses autores fazem da autocrítica de Pachukanis, ela é Podemos dividir esse período em dois momentos. No
limitada não só por causa de sua dificuldade em compreen- primeiro, Pachukanis introduz um “desequilíbrio” teóri-
der o complexo e tortuoso processo pelo qual Pachukanis co não desprezível em sua teoria do direito, comprome-
abandona as suas posições teóricas originais, como tam- tendo a sua construção teórica, mas ainda conservando —
bém por sua incapacidade teórica de apreender o sentido mesmo que em contradição com as novas teses — alguns
da reconstrução da ideologia jurídica - de que faz parte, elementos da concepção original. E um segundo mo-
mento — a partir de 1936 -, no qual Pachukanis sustenta
uma teoria do direito — e do Estado — em conformidade
| Cf. B. Melkevik, Pasukanis et la théorie marxiste du droit, op. cit.
2? CFR. Sharlet, Pashukanis and the Commodity Exchange Theory of
Law, op. cit. 3 Examinaremos esse problema mais adiante.

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Marxismo e direito Autocrítica e recuperação do direito burguês

com a orientação stalinista, claramente demarcada em É verdade, no entanto, que agora Pachukanis obs-
relação as formulações de A teoria geral do direito e o curece a determinação imediata do direito pela esfera
marxismo. da circulação, parecendo a ele ser suficiente afirmar a
Passemos ao exame de alguns aspectos desse percur- exclusiva e direta determinação do direito pelas rela-
so autocrítico, no qual, como dissemos, Pachukanis pro- ções de produção.
cessa alterações essenciais em sua concepção jurídica. Esse “ajuste” está vinculado à necessidade de ade-
O primeiro ponto que deve merecer a nossa atenção quar a teoria do direito à nova concepção dominante
refere-se ao problema da determinação do direito pela que pensa a formação social soviética como uma socie-
“esfera” econômica. Pachukanis abandona a relação dade capaz de se reproduzir sobre as suas próprias ba-
antes estabelecida por ele entre a forma jurídica e a for- ses, como um modo de produção socialista. Não obstante
ma mercantil, e vincula, agora, o direito direta e exclusi- isso, é de se notar que Pachukanis continue a negar a
vamente com as relações de produção. Pode parecer que possibilidade de que uma sociedade de transição possa
essa “retificação” tenha uma dimensão extraordinária, ser fundada sobre relações de produção socialistas, e,
já que a concepção pachukaniana do direito é considera- consequentemente, não se refira ao direito soviético
da “circulacionista”, mas já tivemos a oportunidade de como “direito socialista”.
ver que, em sua obra anterior, a determinação do direi- Passemos a acompanhar a nova formulação de
to pelas relações de produção não apenas não estava Pachukanis. Em seu texto, já citado, “A teoria marxista
ausente, mas era essa precisamente a determinação do Estado e do direito”,º Pachukanis se esforça para acen-
estabelecida por Pachukanis. Somente uma leitura que tuar o caráter de classe do Estado e do direito. O direito é
não tenha sido capaz de apreender as determinações o direito da classe dominante, e seu fundamento deve ser
mais complexas do texto pachukaniano poderia acredi- buscado na relação de propriedade dos meios de produ-
tar que essa “reconceitualização [...] do primado final ção, que, em uma sociedade baseada na exploração, per-
das relações de produção é sem dúvida preferível em mite que uma classe possa se apropriar do trabalho
relação às suas noções anteriores”, como o fazem Piers não-pago de outra classe.” Assim, diz Pachukanis, “A
Beirne e Robert Sharlet em seu comentário introdutório forma da exploração determina a especificidade de um
ao texto de Pachukanis “A teoria marxista do Estado e sistema jurídico”,* de modo que o decisivo para que se
do direito”, de 1932.º possa apreender os diferentes sistemas jurídicos é a rela-

Muito embora, ainda nesse momento, Pachukanis possa oferecer


uma surpreendente resistência à concepção oficial stalinista, como 6 E. Pachukanis, “Marksistskaia teoriia gosudarstva i prava”, in
veremos. E. Pachukanis (org.), Uchenie o gosudarstve i prave, Moscou,
P. Beirne e R. Sharlet, “Introductory note”, in E. Pachukanis, Partiinoe Izdatel'stvo, 1932.
Selected Writings on Marxism and Laiw, org. por P. Beirnee R. Sharlet, 7 Id, ibid, p. 28.
Londres, Academic Press, 1980, p. 274. 8 Id., ibid., p. 28.

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Marxismo e direito
Autocrítica e recuperação do direito burguês
ção entre o trabalhador direto e os meios de produção.
Sendo o direito um fenômeno ligado à existência das Desse modo, Pachukanis pensa ter solucionado os três
classes sociais, o seu surgimento está relacionado à di- aspectos do problema da definição do direito ao afirmar
visão da sociedade em classes, assim como a sua extinção que todo direito é direito da classe dominante; que a de-
está relacionada à supressão das classes na sociedade terminação do direito provém das relações de produção;
comunista. Pachukanis nega que possa haver direito em e que o funcionamento da superestrutura jurídica exige
uma sociedade que não conheça a divisão em classes, a existência de um aparelho coercitivo.” Pachukanis sus-
entendendo que nessas sociedades estão ausentes os ele- tenta que o caráter de classe do direito é o elemento deci-
mentos que permitem o nascimento e o desenvolvimen- sivo para que se possa afirmar a existência ou não em
to do direito, tais como a desigualdade em relação à presença de um sistema jurídico. É justamente este traço
propriedade e a exploração.'” Esses elementos já são de distinção que permite a ele negar qualquer natureza
suficientes para que Pachukanis possa apresentar uma jurídica a fenômenos existentes em sociedades sem clas-
definição do direito como “a forma de regulação e con- ses,! o que o leva a afirmar que os juristas burgueses pri-
solidação das relações de produção e também de ou- vilegiam a forma do direito, negando o seu conteúdo (de
tras relações sociais da sociedade de classes [formu classe)."
regulirovanie i proizvodstvennykh, a takje drugikh Pachukanis procura, ainda, ressaltar o papel do Es-
zakrepleniia obschestvennykh otnochenii klassovogo tado em sua definição do direito, considerando que sem
obschestva]”, acrescentando que o direito depende da a presença de um aparelho coercitivo o direito permanece
existência de um aparelho de Estado da classe domi- uma “ficção”. A superestrutura jurídica depende em sua
nante e reflete os interesses dessa classe.” existência e em seu funcionamento da existência de uma
A superestrutura jurídica compreende não apenas organização estatal da classe dominante, cujo aparelho
um aspecto formal — a totalidade das normas jurídicas -, repressivo toma a forma da polícia, do exército, etc. Mui-
mas também um conteúdo de classe: as relações sociais. to embora a classe dominante não precise usar a violên-
As normas jurídicas são o “reflexo” dessas relações, mas cia em todas as circunstâncias, a “base da ordem jurídica”
também podem exercer uma “ação de retorno”, ao for- é sempre a força física, da qual ela depende para poder
malizar, sancionar e modificar tais relações. Assumin- desfrutar de seu direito.'*
do uma expressão jurídica, essas relações passam a ser Pachukanis pode assim, afirmar a dependência do
providas de uma natureza coercitiva pelo Estado da clas- direito relativamente ao Estado, mas acrescentando ime-
se dominante.! diatamente que a atividade de criação da superestrutura
jurídica pelo Estado não se dá por meio de um ato de

Id., ibid., p. 29.


13 Td, ibid. p. 31.
IO
Id., ibid., p. 30.
!4 Id, ibid., p. 29-30.
HH Id, ibid. p.31.
15 Td, ibid., p. 32.
!2 Id. ibid. p.31.
16 Td. ibid., p. 33-34.

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livre vontade, de caráter arbitrário, justamente porque o vilegiar a forma, não concedendo a devida importância
Estado é, por sua vez, o “reflexo das necessidades econô- ao conteúdo do direito; não reconhecer que o direito pode
micas da classe dominante na esfera da produção [otrajenie ser utilizado pelo proletariado como uma arma na luta
ekonomitcheskikh nujd klassa, gospodstvuiuschego v oblasti de classes; e obscurecer o estudo do direito soviético,
proizvodstva]”.” dificultando a luta contra as influências burguesas.”
Referindo-se, particularmente, ao problema do direito Pachukanis pode, então, concluir que “O erro teórico de
no socialismo, Pachukanis pode afirmar que o proletaria- ter superestimado as relações mercantis pode ser o fun-
do criou o direito soviético e vem modificando-o conforme damento de conclusões oportunistas de direita sobre a
as etapas por que passa a economia no período de transi- necessidade de manter as formas do direito burguês corres-
ção, de modo que “em cada uma dessas etapas o direito pondentes à circulação privada [neobkhodimosti sokhraneniia
soviético regula e formula de modo diferente as relações v neprikosnovennosti burjuasnykh form prava, sootvetstbuiuschikh
de produção”.'* Assim, para Pachukanis, o direito sovié- tchastnomu oborotu]. Inversamente, ignorar a troca ao
tico é diferente do direito burguês, porque sob a ditadura se examinar o problema do direito soviético leva a po-
do proletariado o direito tem como função a proteção sições “esquerdistas' sobre a extinção do direito no pro-
dos interesses dos trabalhadores, a supressão dos elemen- cesso de socialização dos meios de produção [...) [otmiranii
tos que se opõem ao proletariado e a defesa da constru- prava uje v protsesse obobschestoleniia sredstv
ção do socialismo." Esse direito soviético pode, então, ser proizvodstva]”.*
definido como “uma forma particular de política segui- A questão do direito soviético é retomada em um tra-
da pelo proletariado e pelo Estado proletário”, cujo obje- balho posterior, de 1935,? no qual a problemática expos-
tivo é “a vitória do socialismo”, o que o faz “radicalmente ta em A teoria geral do direito e o marxismo ressurge — não
diferente” do direito burguês, não obstante a semelhan- sem contradições com o texto em seu conjunto — em um
ça formal das leis.” preciso momento. Neste Curso de direito econômico sovié-
Tais análises permitem a Pachukanis negar as teses tico, Pachukanis procura ressaltar, mais uma vez, o pa-
defendidas em A teoria geral do direito e o marxismo. Ele pel do direito soviético e do direito econômico soviético,
considera, agora, insuficiente e unilateral relacionar o di- em particular, como uma arma do proletariado na luta
reito com o processo de troca mercantil, assim como o de classes. A natureza de classe do direito, a sua utiliza-
Estado como guardião desse processo — o que teria leva- ção consciente dirigida para fins específicos, é claramen-
do a negligenciar o seu papel como órgão repressor; pri- te enunciada pelo autor. Assim, o direito soviético pode

7 Id, ibid, p. 34. 21 Cf.id, ibid, p. 43.


'8 Id, ibid. p. 35. 22 Id. ibid, p. 44, grifos meus, MBN.
9 Cf. id, ibid. p. 35. 23 E. Pashukanis e L. Gintsburg, Kurs sovetskogo khoziastvennogo
20 Id. ibid, p. 35. prava, Moscou, Sovetskoe Zakonodatelstvo, 1935, v. 1.

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aparecer como “uma especial (específica) forma da políti A natureza de classe do Estado soviético é o que, para
ca
do Estado proletário no âmbito da organização da Pachukanis, explica esse extraordinário papel que a su-
pro-
dução socialista e do comércio soviético”? como um
“siste- perestrutura política cumpre. É a ditadura do proletaria-
ma de medidas necessárias para a solução dos mai do que permite uma nova combinação entre as forças
s
importantes problemas organizacionais da construção produtivas e as relações de produção, sendo a classe
de
uma economia socialista” [sistemu mer, neobkhodimykh dlia operária mesma a mais potente das forças produtivas e
recheniia vajneichikh organizatsionnykh voprosov stroitel' a força dirigente do Estado, além de proprietária dos
stva
sotsialistitcheskogo khoziaistva];* e como “a forma da pol meios de produção. “É esta”, diz Pachukanis, “a fonte
íti-
ca da ditadura proletária” [forma politiki proletarskoi e a explicação do papel especial e do significado excep-
diktatury].% cional da superestrutura política durante a ditadura do
Esse aspecto “instrumental” concedido ao direito de- proletariado”.”
corre de uma concepção do socialismo na qual o elemento Toda esta concepção está intimamente relacionada
subjetivo parece prevalecer e “comandar” todo o proces com a definição do direito econômico soviético elabora-
- da por Pachukanis. De fato, o direito econômico soviéti-
so de organização da sociedade. Pachukanis afirma que
“tudo depende (vce zavicit) da qualidade do gerenciam co é um dos fatores dessa transformação socialista das
ento relações sociais, justamente porque a “grande tarefa” após
econômico”, além de uma adequada organização da econo-
mia e do domínio da técnica. Para ele, a política, isto a revolução proletária, é de natureza “organizacional”
é, a [organizatsionnaia])” e este direito econômico, como vi-
linha do partido expressa em seus documentos e decisões,
“determina”, conforme o documento do partido intitulado mos, provê as medidas necessárias para solucionar jus-
As seis condições do camarada Stalin, citado por ele, “as leis tamente os problemas organizacionais do período de
construção do socialismo. Quais são os “princípios” e as
do nosso desenvolvimento econômico e nosso vitorioso
“instituições” do direito econômico soviético que reali-
caminho para o socialismo”.” Ao mesmo tempo,
zam esta tarefa? Pachukanis aponta a disciplina do pla-
Pachukanis é capaz de afirmar que a política não pode
no, a direção única, a autonomia financeira e a disciplina
prevalecer sobre o econômico, o que é revelador da unida-
contratual como os elementos importantes para a orga-
de entre Oo sub
sub)jetivismo e o economicismo, nessa concep-
ção do “socialismo”.
29 Id, ibid. p. 8.
30 Id. ibid, p. 8. É possível reconhecer aqui a influência da concepção
24 Id. ibid, p. 6. de Bogdanov, que vai sendo “recebida” no meio bolchevique, cul-
minando com a palavra de ordem que prevalece nos anos 30: “a
25 Id. ibid. p.8. organização decide tudo”. Cf. Ch. Bettelheim, A luta de classes na
2º Id. ibid. p. 11. União Soviética, segundo período, 1923-1930, Rio de Janeiro, Paz e
2?” Id, ibid, p. 7, grifo meu, MBN. Terra, 1983, p. 493-494, A influência dessas idéias já se fizera notar
.8 Voltaremos mais à frente a nos referir a este ponto. Cf. a propó- no campo jurídico por intermédio de Goikhbarg, como já salienta-
sito, L. Althusser, Réponse a John Lewis, op. cit. mos no Capítulo 4.

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nização da economia socialista. O plano aparece como o Diferentemente da sociedade burguesa, na qual as re-
direito do Estado soviético, cujo cumprimento é uma “obri- lações de propriedade podem aparecer como forma de
gação sagrada” garantida pela sanção penal e pela ativi- intercâmbio de produtores isolados e separados entre si,”
dade dos tribunais; o princípio da direção única é “o mais a propriedade única dos meios de produção pelo prole-
importante princípio da organização da produção socia- tariado permite a organização da administração do pro-
lista”, que requer a mais estrita subordinação à vontade cesso de produção e de troca por meio da “construção
do diretor soviético, de tal modo que a violação deste prin- consciente e planejada de uma economia socialista”. As-
cípio “é considerada uma violação das leis da União Sovié- sim, “a organização da produção e da troca na U.R.S.5.
tica”)? a autonomia financeira é a base “da atividade é o problema do controle do processo de produção social
econômica em todos os setores da economia nacional”; e e a organização de relações econômicas entre os elos iso-
o contrato econômico soviético permite a implementação lados da economia socialista”.*
de uma rede de relações na economia socialista.” As relações de propriedade no socialismo diferenciam-
Pois bem, tendo considerado o direito econômico sovié- se das relações de propriedade no capitalismo, funda-
tico, até aqui, em seu sentido lato, Pachukanis passa a mentalmente, porque, sendo a propriedade socialista
examiná-lo em seu sentido estrito, tendo como objeto as re- unitária, ela promove a unidade não permitindo a divi-
lações de propriedade da sociedade socialista. A proprieda- são.” Assim, na U.RSS.S., a propriedade pública ou socia-
de socialista, ou pública, é a expressão das relações de lista se transformou na única forma de propriedade dos
produção da economia socialista. Sob a ditadura do prole- meios de produção, o que teve significado de transfor-
tariado, a separação entre os meios de produção e o produ- mar o modo de produção socialista no único modo de
tor direto é “eliminada”, e a classe operária se torna produção na União Soviética.
proprietária das condições materiais da produção.” Assim, Nas condições do capitalismo ocorre o inverso: a
o direito de propriedade (socialista) pode aparecer como o propriedade privada supõe uma multiplicitude de pro-
conceito central do sistema de direito econômico (socialis- prietários com interesses distintos, portanto, a proprie-
ta), e a propriedade pública pode ser definida como a “base
de todo o sistema soviético”, e considerada legalmente
“sagrada e intocável” .%
37 | Notemos, desde já, que Pachukanis retorna aqui à sua concepção
original, exposta em A teoria geral do direito e o marxismo, chegando
mesmo a citar esse livro, não obstante as seguidas abjurações dele
HH Cf.id. ibid, p. 8. feitas em seus trabalhos anteriores na década de 30. Voltaremos
32 Id. ibid. p.8. a isso.
33 Id. ibid. p. 8. 38 E. Pachukanis e L. Gantsburg, Kurs sovetskogo khoziastvenngo prava,
34 Cf.id, ibid, p. 8-9. p. 21.
35 Id, ibid, p. 19. 39 "Ja propriedade pública (socialista) é unitária. Ela não divide,
36 Id, ibid,, p. 20. mas une”, id., ibid., p. 22.

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dade privada divide, ao mesmo tempo em que se cons- tão, nesta área, pergunta ele, a preservação deste “direito
titui em uma “cadeia sem fim de relações entre proprie- burguês”? Tal preservação “consiste no uso do método
tários privados [...]”.“º da autonomia financeira pelo Estado proletário para O
Como explicar, no entanto, a persistência de relações objetivo da direção planejada da economia socialista.
de propriedade sob o socialismo? As empresas socialistas que adotaram a autonomia fi-
Pachukanis, para dar conta deste problema, retorna à nanceira entram em relações umas com as outras como
conhecida passagem de Crítica do programa de Ghota, na unidades econômicas separadas, como sujeitos de di-
qual Marx se refere à persistência do “direito burguês” na reitos e obrigações de propriedade independentes. Uma
primeira fase do comunismo. Nesta fase, conforme organização fundada na autonomia financeira não
Pachukanis, já não há exploração da força de trabalho, a equivale a um proprietário privado. A parte da proprie-
propriedade privada dos meios de produção já não per- dade do Estado correspondente a uma organização funda-
siste, e é plenamente observado o princípio da remune- da na autonomia financeira é “distribuída” a ela, mas não
ração conforme o trabalho. “A preservação do direito deixa de ser parte de um fundo único da propriedade do
“burguês” consiste aqui”, diz Pachukanis, “no fato de Estado”.º Mas, ao mesmo tempo, uma organização des-
que uma mesma escala (uma mesma medida) é aplica- sa espécie possui propriedade “própria”, haveres e uma
da (efetivamente) a pessoas diferentes, a relações dife- contabilidade independente — nos limites impostos pelo
rentes. A desigualdade, assim, é preservada. Portanto, as plano — em suas relações com outras organizações fun-
normas que legalizam essa desigualdade sã i- dadas na autonomia financeira.“ É isto, justamente, o
das pelo Estado”.*! S id que permite explicar por que as relações no interior da
A preservação do “direito burguês” no socialismo economia socialista adquirem a natureza de relações de
implica que os indivíduos se relacionem entre si na quali- propriedade.”
dade de sujeitos de direito, mas, acrescenta Pachukanis Já tivemos a oportunidade de ressaltar, de passagem,
destas relações estão excluídas as que se referem à pro- que Pachukanis, nesse texto, retoma algumas de suas aná-
priedade dos meios de produção.' No entanto, o lises originariamente desenvolvidas em A teoria geral do
direito burguês” não apenas regula a distribuição dos direito e o marxismo. Pois bem, ao desenvolver aspectos
produtos, mas ele também regula a distribuição de tra- particulares do direito econômico soviético — particular-
balho entre os diferentes ramos da economia, o que, para mente a superação das divisões entre o direito público e o
Pachukanis, se constitui no problema da organização e privado, e entre o direito das coisas e o direito das obriga-
distribuição da produção socialista. O que significa en- ções -, cotejando-os com o direito burguês, Pachukanis,
—-

*0 Id, ibid. p. 21. 3 Id, ibid, p. 23.


“1 Id. ibid, p. 22. 14 Id. ibid, p. 23.
*2 Id, ibid,, p. 22. 45 Td, ibid, p. 23.

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ainda uma vez, concebe o direito burguês conforme o dis- do, Pachukanis ainda é capaz de “tensionar” o cerco dou-
positivo teórico de sua obra principal. trinário e político, pondo em dúvida a base de sustenta-
É assim que Pachukanis estabelece uma vinculação ção da doutrina oficial e de suas próprias abjurações, em
entre o direito privado e as transações de compra e venda uma precisa passagem à qual retornaremos.
do burguês proprietário; afirma que o direito das obri- O reconhecimento da existência de um “direito so-
gações é basicamente o direito de “comércio”, que facili- cialista” depende de uma concepção a respeito da na-
ta a troca de mercadorias, e que o contrato permite a tureza do período de transição. Como já observamos
circulação; ressalta ainda que o capitalismo é uma eco- antes, Pachukanis considerava este período o espaço de
nomia mercantil na qual “o vínculo entre os produtores uma luta entre os elementos capitalistas e os elementos
individuais isolados se dá por meio da troca” ,“ e, repor- comunistas, de tal sorte que o que caracterizava o socia-
tando-se a O capital, afirma que no primeiro capítulo do lismo era justamente ele ser uma fase na qual não po-
volume 1 dessa obra, “Marx estuda o processo de troca de dem se estabelecer relações sociais “estáveis”, uma fase
mercadorias. Em uma ação 'M-D” (troca de mercadorias na qual se dá uma luta para que as relações sociais ca-
por dinheiro), duas partes participam: o proprietário da pitalistas sejam extintas e possam surgir relações sociais
mercadoria e o proprietário do dinheiro. De uma pers- de natureza comunista. Pois bem, em sua última fase
pectiva jurídica, a relação jurídica 'M-D' é uma transa- autocrítica, Pachukanis acaba por admitir que a socie-
ção de compra e venda. As partes nessa relação jurídica, os dade soviética é uma sociedade na qual vigem relações
sujeitos de direito, são o comprador e o vendedor”. de produção socialistas, na qual, portanto, não mais exis-
Se é verdade que, em todas essas passagens, Pachukanis tem classes exploradoras. Tendo sido as classes domi-
claramente recupera a sua inspiração original, é verda- nantes liquidadas, e sendo a sociedade soviética uma
de, também, que a sua exposição do direito econômico so- sociedade constituída apenas por trabalhadores e inte-
viético está em contradição com a sua formulação original. lectuais, apresenta-se a questão de saber as razões da
Nos escritos derradeiros, Pachukanis acaba por persistência do direito e do Estado.
ceder em uma questão decisiva: ele passa a reconhecer a Pachukanis encontra tais razões na tese staliniana do
existência de um “direito socialista”. No entanto, mesmo “reforço do Estado” como condição para a sua extinção.”
em uma fase de pleno domínio doutrinário stalinista, e De fato, em 1933, Stalin afirma que “A eliminação das
de completo alinhamento político com a linha do parti- classes não se completa com a supressão da luta de clas-
ses, mas com a sua intensificação. A extinção do Estado
não acontecerá com o enfraquecimento da autoridade do
46 Id. ibid, p. 26.
*7 Id, ibid., p. 30.
+ Id. ibid., p. 30.
50 Cf, a propósito, B. Fabrêgues, “Staline, la lutte de classe, 'Etat”,
*2 Id, ibid. p. 31. in Communisme, nº 24, 1976.

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Estado, mas por meio de sua máxima consolidação. Isto é classes estão sendo abolidas e a sociedade sem classes
vital se nós quisermos destruir os remanescentes das clas- sendo construída. Todo o cerne da questão reside em que
ses moribundas, e organizarmos uma defesa contra o a fase de construção do socialismo apenas prepara as
cerco capitalista, o qual ainda está longe de ter sido eli- condições para a extinção do Estado, a qual só pode se
minado, e não o será logo”! verificar na fase superior do comunismo. Ora, “a criação
A justificativa para a manutenção do Estado e do direi- das condições para a futura organização sem Estado não
to no socialismo reside, assim, notadamente, na necessidade é um processo de redução do poder do Estado, mas um
de garantir a consolidação e o ulterior desenvolvimento do processo de fortalecimento dele, em particular e espe-
sistema socialista”, de tal modo que o problema da cialmente, mediante a participação de amplas massas tra-
extinção do Estado e do direito é deslocado para o mo- balhadoras na administração do Estado.
mento em que a fase superior do comunismo for Não há barreira entre o aparato de Estado e as massas
alcançada. A condição para se alcançar essa fase é o trabalhadoras no Estado proletário. Este aparato de Esta-
desenvolvimento das forças produtivas (e da cultura), o do, no sentido amplo da palavra, representa a própria soma
que permitiria se organizar uma distribuição conforme das organizações de massa” [V proletarskom gosudartve
às necessidades dos indivíduos. Só então as pessoas “se- net bar'era mejdi gosudarstvennyim apparatom à vsei
riam capazes de trabalhar sem “capatazes e contadores' massoi trudiaschikhsia; sam etot gosudarstvennyi apparat,
sem normas jurídicas, sem força coativa, e sem o Esta- v chirokom smysle slova, predstavliaet soboi summu
do , A diferença entre a fase inferior do comunismo — o massovykh organizatsii].”
socialismo — e a sua fase superior residiria na natureza
No Estado proletário soviético, as organizações de
da propriedade: o socialismo seria caracterizado pela
massa e os sindicatos correspondem à natureza desse
dominância da propriedade pública socialista, enquanto
o comunismo seria caracterizado pela consolidação e
Estado desde o seu surgimento, e o seu desenvolvimento
desenvolvimento da propriedade pública. e consolidação não significam, em absoluto, o enfraque-
cimento e desaparecimento do poder de Estado em
Desse modo, enganam-se os que pensam que o pro- virtude de sua inutilidade. Ao contrário do Estado bur-
cesso de extinção do Estado deva se verificar em um rit- guês, o Estado proletário soviético não conhece nenhu-
mo rápido durante o período de transição, quando as ma contradição ou antagonismo entre ele e a sociedade,
sendo a atividade do aparelho de Estado ao mesmo tem-
1]. Stalin, Voprosy leninizma, 1934, p. 509, apud E. Pachukanis po atividade social, e a propriedade estatal dos meios de
“Gosudarstvo
ESTA D A i pravo p pri sotsializme”, + inin Sovestko
; e gosudarstvo,
produção, propriedade social. As massas participam
constante e progressivamente das atividades do Estado,
52
E Pachukanis, “Gosudarstvo i pravo pri sotsializme”, op. cit.
p. 4-5.
3 Id, ibid, p.5. 55 Id, ibid, p. 6, grifos meus, MBN.
4 Id. ibid, p.5. 56 Id, ibid., p. 6.

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em atividades administrativas e de supervisão. Isso não Se tudo isso é justo, então como explicar a assertiva
significa que o processo de enfraquecimento (zas'chaniia) de Marx em Crítica ao programa de Gotha, de que o “di-
e extinção (otmiraniia) do Estado esteja ocorrendo. Ao con- reito burguês” perdura na fase do socialismo? O prin-
trário, isso significa que “esse é um dos meios de fortale- cípio da retribuição conforme o trabalho deve ser
cimento do poder do Estado. O máximo desenvolvimento considerado um princípio cuja natureza é socialista.
da participação dos trabalhadores significa o fortaleci- Ele significa que a sociedade socialista não conhece
mento do aparelho de Estado o qual é persuasivo, influen- mais a exploração da força de trabalho, e as pessoas só
te ideologicamente, e pode usar o poder, a compulsão e a podem viver de seu próprio trabalho. Este “direito bur-
força como bem lhe aprouver”.” guês” não pode, assim, representar os interesses de clas-
Do mesmo modo, a extensão do planejamento e a se da burguesia. Ele “é estabelecido pela ditadura do
consolidação das agências que dirigem a economia nacio- proletariado e é a lei do Estado socialista. Ele serve aos
nal não implicam o enfraquecimento do Estado, mas interesses dos trabalhadores e aos interesse do desen-
igualmente, o seu fortalecimento. volvimento da produção socialista. O desprezo a esse
Ademais, “a despeito da construção fundamental da direito, considerado como sendo “burguês”, é adequa-
sociedade socialista sem classes”, a luta de classes pros- do somente para a heróica 'fraseologia de esquerda"
segue. É necessário realizar um trabalho de reeducação anarquista e para os defensores da igualdade peque-
das massas trabalhadoras e de supressão dos elementos no-burguesa”.“”
recalcitrantes e hostis. Isso, juntamente com a necessi- Ao afirmar que a distribuição conforme o trabalho
dade de proteger a nação contra o inimigo externo, jus- era uma limitação da sociedade socialista, Marx estava
tificar a existência e o reforço do Estado socialista. fazendo, tão-somente, uma comparação com a fase mais
A sociedade socialista é uma sociedade estatal avançada do comunismo, na qual esta limitação já não
[Sotsialistitcheskoe obschestvo organizovano kak obschestvo subsistiria.”
gosudarstvennoe], na qual o Estado e o direito devem ser O caráter socialista do direito soviético pode ser
inteiramente (polnost'iu) conservados, e, assim, constitui depreendido seja de seu conteúdo de classe — a proprie-
“oportunismo” sustentar que “o direito se extinguirá dade dos meios de produção -, seja de sua função como
sob o socialismo, assim como afirmar que a autoridade arma do proletariado na construção do socialismo, de
estatal deverá extinguir-se no dia seguinte à derrubada tal sorte que uma concepção que relacione O direito
da burguesia”.* com a esfera da circulação mercantil, e apreenda o di-
reito como uma forma social de natureza burguesa,
desvia da tarefa de combater a influência burguesa e

7 Id, ibid, p. 6.
58 Cf.id, ibid, p. 7. 60 Id, ibid., p. 7.
9º Id. ibid. p.8. 61 Cf.id, ibid, p. 7-8.

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os esforços da burguesia em distorcer o direito e a le- sotsilistitcheskikh proisvo-dstvenykh otnochenii),* e o siste-


gislação soviéticos. ma do direito socialista soviético deve se assentar sob a
O período que se abre, segundo Pachukanis, é aquele base da propriedade pública socialista e da distribuição
no qual o direito socialista soviético formaliza, tendo por conforme o trabalho. A tarefa, agora, deve se voltar para
pressuposto a vitória do socialismo e sob a base da pro- o trabalho de codificação, no qual estas novas relações
priedade socialista, a dominação de “relações socialistas possam se exprimir.” | |
de produção do mesmo tipo na cidade e no campo” Neste sentido, para Pachukanis, adquire enorme sig-
[odnotipniykh sotsialistitcheskikh proisvodstbennikh otnochenii nificado a proteção aos direitos individuais, a qual te-
iv gorode i v derevne]º As relações socialistas de produ- ria sido insuficientemente desenvolvida. O socialismo
ção estão firmemente estabilizadas [protchnoi stabilizatsii significa o mais amplo respeito a esses direitos, que são
os direitos “de cada membro da sociedade socialista,
sociedade de trabalhadores livres [...]".º
* Cf. id. ibid, p. 8. Pachukanis procede, aqui, à autocrítica das Finalmente, Pachukanis esboça um programa de
teses defendidas em A teoria geral do direito e o marxismo. Diz ele: “educação jurídica”, ao considerar que, a par de em
funções repressivas, compete ao direito — em sua ap -
“[...] O direito, o Estado e a moral foram [em A teoria geral do
direito e o marxismo, MBN] simplesmente declarados como for- a e E
mas burguesas que não podem ser preenchidas com um conteú- ção prática pelos tribunais —, tarefa de
do socialista, e que devem se extinguir em proporcionalidade ressocialização, a qual permitirá a “necessária aplicaç o
com a realização de tal conteúdo. Esta posição enormemente da relação justa entre o cidadão co Estado ua ...]
errada, estranha ao marxismo-leninismo, distorce o significado [vnedrenie doljvogo otnocheniia k dostoinstuu gray E
da moralidade proletária comunista e distorce o significado do sotsialistitcheskogo gosudarstva]. É isto, conclui Pachukanis,
o que deve ser levado em consideração no trabalho teórico
direito soviético como o direito do Estado proletário o qual
serve como um instrumento na construção do socialismo. [...] a
teoria da “natureza burguesa” de todo direito persistentemente no campo jurídico.
confunde coisas tão diferentes como a admissibilidade da pe-
quena propriedade e autonomia financeira das empresas socia-
listas, o comércio capitalista e o comércio gerido pelas coope-
rativas e órgãos do Estado proletário, a troca equivalente de 64 Id, ibid., p. 10.
mercadorias de acordo com o valor e o princípio socialista da 65 Cf.id, ibid., p. 10. |
Id. ibid. p. a Pachukanis acrescenta, ainda, que deve a eae
distribuição conforme o trabalho.
66
Nesta teoria, o socialismo, na realidade, era contraposto ao o
de censura a ausência de tais preocupações em seu tra A
comércio, à autonomia financeira com controle pelo rublo. No pn e
curso de direito econômico soviético — por nós comenta
que respeita à extinção do comércio e da moeda, e à transição nômi
qual se limita a considerar as relações entre as unidades eco
para a troca direta de produtos, as pseudoteorias 'esquerdis- uma
cas. Esse texto, na verdade, representa o esforço para porem
tas estão na mesma categoria lógica das teorias que enfatizam agoror
via de superação do direito burguês, com a necessária 4
g
gem das categorias que lhe são próprias, especialmente a cate
a “extinção do direito” e o “desaparecimento da superestrutura
jurídica”, id., ibid., p. 8.
ria de “sujeito de direito”.
93 Id, ibid., p. 10. 67 Id. ibid., p. 11, grifos meus, MBN.

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A concepção de Pachukanis que expusemos aqui é Do mesmo modo, em um texto já da sua última fase,
como já afirmamos, sensivelmente diversa de sua con- na qual pode-se dizer que não restam traços de sua con-
cepção original, mesmo se considerarmos que esta irrompe cepção original, Pachukanis ainda é capaz de, não
em uma longa passagem de seu trabalho sobre o direito eco- obstante todos os cuidados de que se revestiu, pôr em
nômico soviético — que já tivemos a oportunidade de exa- questão o ponto chave da concepção stalinista dominan-
munar —, O que, a nosso ver, demonstra a persistência, em te, a questão do Estado socialista, como bem notou N.5.
parte e contraditoriamente, da problemática original. Essa Timasheff.” Neste texto, “A constituição staliniana e a
problemática remanesce contida e encoberta por outro legalidade socialista”, de 1936, Pachukanis pergunta: “Se
discurso, de natureza ideológica — que reproduz a orien- na URSS os elementos capitalistas foram realmente eli-
tação emanada dos novos centros de produção teórica minados, e foi construída uma sociedade sem classes,
que então se constituem —-, perdurando apenas nos então, porque o Estado é conservado?” [Esli v 5SSR
desvãos desse discurso. É justamente o caso da passa- deistvitel'no unitchtojeny kapitalistitcheskie elementy 1
gem que citamos. Nela, Pachukanis, ao discorrer sobre postroeno besclassovoe obschestvo, togda potchemu je tam
alguns aspectos do direito burguês em contraposição
ao direito proletário”, sente-se autorizado a aproximar
o direito burguês das formas da circulação, para a seguir balho maior apenas demonstram o quanto o seu “ajustamento”
mostrar que o direito no socialismo opera de modo total- tem de artificial, de submissão forçada à pressão política, ad-
mente diverso, mas, para o exame deste, já não conser- ministrativa e policial da direção stalinista, e a sua resistência
vando o mesmo aparato conceitual.“ a ela. É claro que isso, por si só, não explica a sua mudança de
posição. Ela decorre em uma medida não negligenciável das
próprias limitações de suas concepções, que possuem um fun-
do comum com toda a “doutrina” da Terceira Internacional,
68
De qualquer forma, é significativo que Pachukanis não apenas da qual o stalinismo é parte constitutiva. A acusação de “opor-
recupere suas antigas idéias, mas que possa citar o seu livro A tunismo” que lhe fazem Beirne e Sharlet é portanto totalmen-
teoria geral do direito e o marxismo, de modo a sustentar a sua expo- te descabida. Se quiséssemos nos manter no terreno moral e
sição, quando esse livro já havia sido “oficialmente” banido, e político seria preciso dizer o contrário, apontar para a cora-
ele próprio já o tivesse renegado várias vezes anteriormente gem pessoal e política de, em um cenário de repressão brutal,
Não deixa de ser sintomático o quase silêncio sobre esse ponto, sustentar idéias sobre as quais já recaía todo o peso de uma
por parte dos que só foram capazes de ver na obra de Pachukanis condenação definitiva. Mas a questão deve ser apresentada
após 1930 (e para alguns já a partir de 1925!) os signos da em outro e em tudo diverso patamar. Pachukanis modifica a
autocrítica. Piers Beirne e Robert Sharlet, por exemplo, afirmam sua concepção do direito por força, substancialmente, das con-
que nesse texto ao qual nos referimos — o Curso de direito econômico tradições internas de seu pensamento, que o tornam extrema-
soviético — Pachukanis tenta conciliar as suas posições pregressas mente vulnerável quando o “socialismo” parece ter triunfado
com a nova orientação stalinista. Esquecem-se, no entanto, de ex- ao mesmo tempo em que a exigência do direito remanesce, €
plicar por que isso ocorre em 1935, quando eles próprios já haviam ele não pode encontrar em sua teoria os elementos para expli-
anunciado tanto o completo domínio da orientação stalinista no car esse paradoxo!
campo do direito, como o abandono por Pachukanis de suas anti- 69 Cf. N. Timasheff, “The Crisis in the Marxian Theory of Law”, in
gas posições teóricas. As referências que Pachukanis faz a seu tra- New York University Law Quartely Review, v. XVI, nº 4, 1939.

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sokhraniaetsia gosudarstvo?).”º É verdade que Pachukanis Pachukanis em seu texto de 1936 passa a aceitar plena-
atenua o impacto de seu questionamento, não só atri- mente a existência de um direito socialista, além de ado-
buindo aos “inimigos do partido” a formulação do pro- tar uma concepção normativa do direito, em perfeita
blema da extinção do Estado, mas, no prosseguimento consonância com a orientação ideológica stalinista.
da passagem citada, referindo-se àquela pergunta como O caminho percorrido até a plena aceitação da ca-
uma questão “inocente” (entre aspas), e atribuindo a quem tegoria de “direito socialista” passa pela acentuação
a faz intuitos anti-socialistas.”! De qualquer modo, tem do caráter de classe do direito e, particularmente, do
razão Timasheff, ao ressaltar o sentido crítico dessa pas- caráter proletário do direito soviético; pelo estabeleci-
sagem, não apenas porque Pachukanis não oferece uma mento de uma relação de determinação direta entre o
resposta satisfatória à sua própria pergunta, mas tam- direito e as relações de produção, que gradativamente
bém porque, deixando de fazê-lo, sugere que a socieda- cede lugar à determinação “normativa” do direito; e a
de soviética pode não ter uma natureza socialista.” insistência no papel instrumental jogado pelo direito
Mas, o nosso interesse maior, agora, é o de oferecer na construção do socialismo. Todos esses aspectos es-
alguns elementos que permitam explicar as razões que tão intimamente ligados entre si. O direito proviria das
levam Pachukanis a reformular as suas concepções. Deve relações de produção, mas essa determinação só pro-
ser notado, inicialmente, que analisamos um conjunto de duz os seus efeitos por meio da mediação do aparelho
trabalhos que podem ser divididos em dois blocos: o pri-
meiro compreendendo os textos A teoria marxista do Es-
tado e do direito (1932) e Curso de direito econômico
soviético (1935); e o segundo, o artigo “Estado e direito teoriiu gosudarstva i prava, Moscou/Leningrado, Sotsekgiz, 1931;
“Sobstvennost”, obmen i pravovye otnocheniia”, in Biulleten”
no socialismo”, de 1936” A diferença básica entre eles é que Zaotchnogo Konsul"tatsionnogo Otdeleniia IKP, nº 4, 1931;
“Sotsialistitcheskoe gosudarstvo i ego konstitutsiia”, in Sovetskoe
Gosudarstvo, nº 4, 1936, entre outros. Para um estudo dessa fase
podem-se consultar: B. Melkevik, Pasukanis et la théorie marxiste du
70 E. Pachukanis, “Stalinskaia konstitutsia i sotsialistitcheskaia droit, op. cit.; R. Sharlet, “Pashukanis and the Commodity Theory
zakonnost”, in Sovetskoe Gosudarstvo, nº 4, 1936, p. 19. of Law”, op. cit.; N. Reich, “Marxistische rechtstheorii zwischen
revolution und stalinismus. Das beispiel PaSukanis”, op. cit.;
71 Id, ibid, p. 19. Norbert Reich, “Hans Kelsen y Evgeni Paschukanis”, in Instituto
72 CE N. Timasheff, op. cit. Hans Kelsen, Teoría pura del derecho y teoria marxista del derecho,
*º | O período autocrítico de Pachukanis não se limita a esses poucos Bogotá, Temis, 1984; P. Beirne e R. Sharlet, “Editors” introduction”,
trabalhos. Limitamo-nos a eles porque o nosso intuito não é estu- in E. Pashukanis, Selected Writings on Marxism and Law, op. cit.,
dar particularmente as alterações em sua concepção teórica; mas republicado com alterações sob o título de “T oward a General
podem-se consultar várias obras em que uma nova problemáti- Theory of Law and Marxism: E. B. Pashukanis”, in P. Beirne (org.),
ca, parcial ou completamente estranha ao esforço original desen- Revolution in Law. Contributions to the Development of Soviet
volvido em À teoria geral do direito e o marxismo, é anunciada: “Pravo Legal Theory, 1917-1938, op. cit.; Remigio Salgado, Pashukanis y la
v sisteme istoritcheskogo materializma”, in Biulleten' Zaotchnogo teoria marxista del derecho, Madri, Centro de Estudios
Konsul'tatsionnogo Otdeleniia IKP, nº 8, 1930; Za K marsoleninskuiu Constitucionales, 1989, entre outros.

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de Estado. Como vimos, Pachukanis diz que o direito rar o direito uma forma de organização da sociedade socia-
depende da existência do Estado, que, sem o Estado, o lista. De forma cuja existência repousava em uma orga-
direito é tão-somente uma ficção. Já na definição mes- nização específica das relações sociais, o direito passa a
ma que ele dava então do direito transparecia essa de- ser ele próprio o organizador dessas relações sociais. A
pendência do Estado, pois o direito era apreendido inversão é completa e exige, para ser intelegível, a passa-
como forma de regulação e consolidação das relações gem da “determinação pelo econômico” para a determi-
de produção. Para poder manter a determinação “eco- nação pelo Estado, isto é, para uma concepção
nômica”, Pachukanis acrescenta que o Estado, por sua normativista do direito, pois só na condição de conjunto
vez, é um “reflexo” da economia. normativo, o direito pode “organizar”, “regular”, “dis-
Essa formulação de Pachukanis está cortada por uma ciplinar” a sociedade socialista.
contradição insolúvel, que é a de afirmar simultanea- Como vemos, todos os elementos para que emergisse
mente que o direito é reflexo da economia e produção a doutrina do “direito socialista” já estavam presentes
estatal normativa. Naturalmente, a “solução” ofereci- nos textos de 1932 e 1935 por nós expostos. Para com-
da por ele não é satisfatória, já que Pachukanis não é preendermos o sentido de sua formulação de 1936 é
capaz de explicar - e nem ao menos descrever — como necessário examinar as implicações de sua concepção
tais determinações exercem os seus efeitos e qual a rela- do socialismo. O socialismo deixa de ser um período
ção entre elas. de transição marcado por um esforço voltado à revo-
A rigor, a dificuldade de Pachukanis decorre da lucionarização das relações de produção, para se consti-
dominância, já aqui, de uma problemática positivista tuir em um modo de produção específico. Em decorrência,
do direito, que o apelo ao conteúdo econômico de classe Pachukanis deve atribuir a essa sociedade relações de
não é capaz de anular, mas, ao contrário, tem a proprie- produção socialistas. Como ele define tais relações? Essas
dade de acentuar ainda mais, porque esse conteúdo de relações decorrem da não-separação entre o trabalhador
classe só ganha “jurisdicidade” quando o Estado direto e os meios de produção. Ora, a superação dessa se-
“normatiza” a relação. paração exige que a organização capitalista do processo
Tal aspecto se torna mais evidente quando acompa- de trabalho tenha sido ultrapassada, o que só pode se dar
nhamos a sua concepção do direito soviético. O direito com o fim da separação entre o trabalho manual e o tra-
soviético surge como uma “criação” do proletariado e balho intelectual, e o fim da separação entre as tarefas de
sua função é “proteger” os interesses proletários, repri- direção e de execução. É essa “reapropriação” das condi-
mir Os inimigos e defender o socialismo, podendo ser de- ções materiais da produção pela classe operária que “co-
finido, agora, como uma forma de política do Estado manda” a superação da divisão entre os diversos processos
proletário, objetivando a vitória do socialismo. O caráter de trabalho independentes e autônomos, de modo que, na
“ativo” e instrumental do direito, ou seja, sua “utiliza- ausência de tais transformações, o trabalhador permanece
ção consciente” é acentuada, o que reforça o seu caráter separado dos meios de produção, desprovido de qualquer
normativo a tal ponto que Pachukanis passa a conside- controle das condições materiais de sua existência e im-

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possibilitado de exercer a sua completa dominação políti- da empresa, Pachukanis consagra a separação dos proces-
ca. Pois bem, Pachukanis, ao mesmo tempo em que afir- sos de trabalho. A rigor, na ausência de uma transforma-
ma a superação dessa separação — sem que se verifique ção real das relações de produção, todo intento de superar
qualquer dos elementos para que isso possa ocorrer —, sus- tal divisão é ilusório.
tenta que o princípio básico do socialismo é o princípio da A concepção normativista do direito, o reconhecimen-
direção única no interior das empresas do Estado, deven- to de um “direito socialista”, a aceitação de um “modo
do a classe operária prestar a mais estrita obediência ao de produção socialista”, são completados por uma con-
diretor da unidade de produção. Ora, há uma contradi- cepção do Estado “socialista” fundada na paradoxal
ção antagônica entre a ultrapassagem da separação entre assertiva stalinista de que, para desaparecer, o Estado deve
os meios de produção e a classe operária e a existência do antes atingir o grau máximo de seu desenvolvimento. Essa
diretor único de empresa. Esse princípio da direção única concepção do Estado no socialismo, evidentemente, pro-
consagra, na verdade, o domínio do processo de produ- cura dar conta da contradição entre o reconhecimento
ção por um agente estranho à classe operária, que por meio de que já não existem as classes na sociedade soviética —
do controle por ele exercido no interior da fábrica impede não há mais exploração -, e a persistência de um apare-
a transformação revolucionária das relações de produção lho cuja justificação é justamente a existência das classes!
e, portanto, consagra a separação entre o trabalhador di- Já tínhamos visto a insistência com que Pachukanis vol-
reto e os meios de produção. tava sempre ao texto de Karl Marx, Crítica ao programa
Pachukanis só pode dizer que tal separação foi supri- de Gotha, procurando explicar o sentido da afirmação
mida porque ele confunde as relações de produção com as marxiana a respeito da natureza “burguesa” do direito
relações de propriedade, tomando estas como idênticas no socialismo, para justificar a possibilidade de um “di-
aquelas. Como do ponto de vista jurídico, os meios de pro- reito socialista”. Pois aqui também a mesma dificuldade
dução foram estatizados, e formalmente (juridicamente) se apresenta e, a rigor, ela permanece irresolúvel. O Estado
pertencem aos trabalhadores, Pachukanis pode concluir necessita ser fortalecido para enfrentar os “inimigos do
que a classe operária já não está separada deles. socialismo”, mas, se não há mais exploração, se as clas-
Do mesmo modo, a divisão social do trabalho tam- ses foram suprimidas, que inimigos seriam esses? Mesmo se
bém é declarada superada em virtude do estatuto jurídi- considerarmos que elementos remanescentes das antigas
co de que se revestem as empresas do Estado. A separação classes dominantes realizam atividade hostil ao Estado,
entre os processos de trabalho, exercidos autônoma e in- é razoável supor que, para enfrentar alguns indivíduos
dependentemente uns dos outros, teria sido anulada pela anti-socialistas, seja necessário um Estado mais forte do
mera transferência da titularidade jurídica, sem que a con- que aquele que foi capaz de suprimir toda a antiga classe
tradição entre o trabalho privado e o trabalho social seja dominante?
ultrapassada e a forma-valor extinta. Ao elevar o princí- Em primeiro lugar, Pachukanis estabelece uma iden-
pio da autonomia financeira (khorostchet) das empresas tidade entre a classe operária e o Estado, o qual chegaria
do Estado em critério fundador de uma gestão socialista mesmo a subsumir as organizações de massa. Essa iden-

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tidade comporia a própria natureza do Estado. A seguir, patazes”, sem uma disciplina vinda de fora, isto é, sem a
ele estende essa identificação para o conjunto da socie- disciplina que Marx, em O capital, chamou de despotismo
dade, de tal modo que, não havendo nenhum antagonis- de fábrica. A isso se acrescenta a tarefa que o Estado deve
mo entre o Estado e a sociedade, tudo se passa como se cumprir de “reeducação” das massas, a qual, na ausên-
ela fosse simplesmente absorvida pelo Estado, o qual resta- cia de um efetivo processo de reapropriação das condi-
ria a única instância efetiva. Essa concepção exprime, a ções materiais da produção pelas massas, aparece com a
rigor, em termos ideológicos, a existência de um capita- sua verdadeira fisionomia: o submetimento da classe ope-
lismo de Estado, e a sua representação como “organiza- rária à disciplina fabril, ao qual se liga a “tarefa” — tam-
dor” das relações sociais. Observemos que essa concepção
bém “educativa” — do direito consistente em estabelecer
exige, para ser dotada de coerência interna, que as orga-
a correta relação entre o cidadão e o Estado. Na ausência
nizações de massa sejam integradas no Estado e desapa-
reçam nele, por via de consegiiência. Isso decorre da de efetivo controle do poder político pelas massas, essa
necessidade de se negar que na transição socialista tarefa revela-se como forma de sujeição da classe operá-
remanesce a contradição entre o Estado e as massas, ria ao poder político da burguesia de Estado.”
contradição que só pode ser resolvida pela extinção do A dificuldade referente à tese de Marx sobre a persis-
Estado. O processo de extinção do Estado é um pro- tência do “direito burguês” no socialismo — objeto de se-
cesso no qual as massas, por intermédio de suas orga- guidas análises, como já expusemos -, é finalmente
nizações, que existem fora do Estado — e na medida em “resolvida” com a decretação da natureza “socialista”
que são capazes de simultaneamente transformar do princípio da retribuição conforme o trabalho. A ma-
revolucionariamente as relações de produção -, vão se nutenção do princípio da equivalência não é mais consi-
apropriando do poder político e exercendo a sua do- derado por Pachukanis uma limitação burguesa da
minação sobre a classe burguesa (de Estado) que se sociedade de transição, mas apenas uma limitação rela-
constitui no decorrer do processo de transição. Ora, tivamente à sociedade comunista. O que Pachukanis não
uma vez que essas organizações sejam fundidas no
é capaz de explicar é por que, se não há mais a explora-
Estado, toda a possibilidade de uma transformação
ção da força de trabalho, já não há mercadoria, nem
efetiva das relações de poder — e das relações de produ-
ção — está interditada.
classes sociais, não se pode então passar a uma distribui-
ção direta do produto, sem a mediação da lei do valor.
Pachukanis teoriza, efetivamente, o exercício da do-
minação de classe (burguesa de Estado) sobre o proleta-
riado ao sustentar que o recurso à coerção só poderá ser
dispensado quando o Estado desaparecer, no período do 74 Não é surpreendente a remissão à categoria de cidadania por
comunismo, ou seja, ele defende o emprego na transição Pachukanis. A figura do “cidadão” reproduz as condições de do-
socialista de métodos repressivos, voltados contras as mas- mínio de classe burguesa, como tivemos a oportunidade de ana-
sas, as quais não seriam capazes de trabalhar sem “ca- lisar no Capítulo 3 deste trabalho.

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O caráter “socialista” do direito é, agora, não só deter- O ponto central, objeto das intervenções de P. Yudin,”*
minado por seu caráter de classe, mas também pode ser e, principalmente, de A. Vychinski,” é a questão do “di-
extraído de seu conteúdo, a propriedade “social” dos meios reito socialista”.
de produção. Fica evidente aqui o recurso à tautologia: a
propriedade, que é um conceito jurídico — e depende, por-

+
tanto, de uma definição do direito para ser explicada -, se jeto deste trabalho, razão pela qual devo limitar-me ao que,

e —
e
torna o elemento que permite explicar o direito! Natural- nessa elaboração doutrinária, está relacionado ao pensamento

e
de Pachukanis e à reconstituição do direito burguês - o qual se

e o
mente, dizer que o direito é a propriedade, ou que a proprie-

es.
faz em contraposição à crítica do direito de Pachukanis, formu-
dade é o direito, equivale a dizer que o direito é o direito! lada particularmente nos anos 20. Para um exame mais detalha-
Resta, portanto, explicar o que é a propriedade... A mesma do deste período, podem-se consultar os seguintes estudos:

cd.
inconsequência teórica evidencia-se quando Pachukanis R. Guastini, “La “teoria generale del diritto” in U.R.S.S. Dalla
tenta distinguir as fases socialista e comunista em termos coscienza giuridica rivoluzionaria alla legalitã socialista”, op.
cit.; U. Cerroni, “Introduzione”, in U. Cerroni (org.), Teorie
estritamente jurídicos: o socialismo seria caracterizado pela sovietiche del diritto, op. cit.; U. Cerroni, O pensamento jurídico
“dominância” da propriedade pública, e o comunismo pela soviético, op. cit.; K. Stoyanovitch, La philosophie du droit en U.R.5.5.
“consolidação e desenvolvimento” da mesma propriedade (1917-1953), Paris, Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence,

“a
pública! A dificuldade aqui reside em não ser o período de 1965; Eugene Huskey, “Vyshinsky, Krylenko, and Soviet Penal
transição definido pela natureza das relações de produção Politics”, in P. Beirne (org.), Revolution in Law. Contributions to
the Development of Soviet Legal Theory, 1917-1938, op. cit.;]. Hazard,
e pelo caráter das forças produtivas, assim como pela trans- “Introduction”, in J. Hazard (org.), Soviet Legal Philosophy,
formação nelas operada, mas por um elemento da superes- op. cit.; Henri Chambre, Le marxisme en Union Sovietique, Paris,
trutura. Reside também em perenizar a propriedade, Seuil, 1960; Remigio Conde, Sociedad, Estado y derecho en la filoso-
portanto o direito, cuja existência é admitida até mesmo na fia marxista, Madri, Cuadernos para el Dialogo, 1968; ). Hazard,
“Reforming Soviet Criminal Law”, in Journal of Criminal Law
sociedade comunista. E, por fim, reside na indistinção entre
and Criminology, XXIX, 1938; R. Schlesinger, Soviet Legal Theory:
as duas fases, pois o critério de sua distinção perdura Its Social Background and Development, op. cit.; N. Timasheff, “The
inalterado: o caráter público da propriedade. Crisis in the Marxian Theory of Law”, op. cit.; R. Sharlet,
Se para Pachukanis a decantação de suas concepções “Stalinism and Soviet Legal Culture”, in Robert Tucker (org.),
Stalinism. Essays in Historical Interpretation, Nova York, W. W.
encerra a sua intervenção no campo teórico, a plena Norton, 1977. Para uma compreensão do contexto ideológico,
reconstituição do espaço jurídico ainda demandaria o cf. Ch. Bettelheim, A luta de classes na União Soviética, segundo
trabalho dos juristas “proletários”. Tal esforço nos convi- período, 1923-1930, op. cit.; Ch. Bettelheim, Les luttes de classes en
da a seu breve exame porque é a partir da crítica da U.R.S.S, troisiôme période, 1930-1941, t. 1: “Les dominés”, Paris,
concepção primeva de Pachukanis que esse trabalho irá Maspero/Seuil, 1982; Ch. Bettelheim, Les luttes de classes en
U.R.S.S, troisiême période, 1930-1941, t. 2: “Les dominants”, Paris,
se desenvolver.” Maspero/Seuil, 1983.
76 Cf.P. Yudin, “Socialism and Law”, in J. Hazard (org.), Soviet Legal
Philosophy, op. cit.
75 Uma análise ampla do desenvolvimento da jurisprudência após o 77 Sobre Vychinski, pode-se consultar: R. Sharlet e P. Beirne, “In Search
desaparecimento de Pachukanis, evidentemente, excederia o ob- of Vyshinsky: The Paradox of Law and Terror”, in International

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Autocrítica e recuperação do direito burguês
Marxismo e direito

não outra —, mas ela é, a rigor, construída sobre um pres-


Yudin, em seu artigo “Socialismo e direito” considera
suposto não demonstrado: o Estado Soviético é “socialis-
que o direito soviético é “socialista” tanto em sua forma ta”, logo, em decorrência disto, o direito dele emanado
como em seu conteúdo. A forma do direito soviético de- deve também compartilhar a sua natureza, erigindo-se
corre de esse direito ser criado pelo Estado Soviético; o em “direito socialista”.
seu conteúdo socialista decorre de esse direito ser utiliza-
do na construção do socialismo, no fortalecimento das O mais significativo, no entanto, dessa formulação é
relações de produção socialistas e na criação de condi- a relação que Yudin estabelece entre o direito socialista e a
ções favoráveis para o setor socialista da economia.” produção legislativa do Estado: “somente” pode ser con-
Assim, “a forma soviética do direito se expressa em seu siderado direito socialista o direito do Estado soviéti-
conteúdo socialista”, de tal sorte que não há mais distin- co, o que já anuncia uma concepção jurídica normativista.
ção entre forma e conteúdo: “somente como direito
As únicas diferenças relativamente ao direito burguês
provindo da autoridade soviética, pode ele ser direito pro- consistem em que o direito socialista teria como forma e
letário-socialista”.”” Esta fórmula não apenas descon- conteúdo as relações socialistas de produção, além de
sidera o problema da forma em Marx,” não apenas não defender os meios de produção socialistas e os cidadãos
da União Soviética! Mas o direito “socialista” se expri-
responde à simples questão de se saber o por quê de um sis tem a de nor mas jurí dica s,” do mesmo
miri a em um
determinado conteúdo adquirir uma determinada forma — e
modo que o direito burguês.
Uma vez estabelecidas as bases de um “direito socia-
lista”, Yudin reforça o que poderíamos denominar
“criminalização” do dissenso teórico, ao qualificar
Journal of the Sociology of Law, nº 12, 1984, igualmente publicado o”.
em P. Beirne (org.), Revolution in Law. Contributions to the
Pachukanis e outros juristas como “inimigos do pov
Development of Soviet Legal Theory, 1917-1938, op. cit.; E. Huskey, Esse processo de criminalização atinge o seu cume
ições
“Vyshinsky, Krylenko, and Soviet Penal Politics”, op. cit.; R. nas intervenções de A. Vychinski, nas quais as pos
ão”.º
Sharlet, “Stalinism and Soviet Legal Culture”, op. cit.; Lon de Pachukanis são tipificadas como atos de “traiç
Fuller, “Pashukanis and Vyshinsky: a Study in the Development aspecto
of Marxian Legal Theory”, in Michigan Law Review, v. 47, 1949;
O interesse nessas referências não decorre de seu
mais dra-
U. Cerroni, O pensamento jurídico soviético, op. cit.; U. Cerroni, “sociológico”, mas sim de que elas são os signos
“Introdução”, in U. Cerroni (org.), Teorie sovietiche del diritto,
op. cit.; J. Hazard, “Introduction”, in John Hazard (org.), Soviet
Legal Philosophy, op. cit.; R. Salgado, Sociedad, Estado y derecho en 81 P. Yudin, op. cit. p. 295.
la filosofia marxista, op. cit.; K. Stoyanovitch, La philosophie du droit
en U.R.S.S., op. cit.; R. Guastini, “La “teoria generale del diritto” 82 Cf.id. ibid., p. 295.
A. Vyc hin ski , “O sn ov ny e zad atc hi nau ki sov etskogo
in U.R.S.S. Dalla coscienza giuridica rivoluzionaria alla legalitá 83 Cf.
skaia Zakonnosf”,
socialista”, op. cit. sotsialistitcheskogo prava”, in Sotsialistitche
teóricas não-ofi-
nº 8, 1938. A criminalização das concepções
78 Cf. P. Yudin, op. cit. p. 292. ciais adq uir e exp res são leg al no Cód igo Pen al russo (artigo
79 Td, ibid,, p. 294. 58, 8 10).
80 | Remetemos ao capítulo 2 deste livro, no qual é discutida tal questão.
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Marxismo e direito Autocrítica e recuperação do direito burguês

máticos da reconstrução da ideologia jurídica, que passa a possível o desenvolvimento do direito no socialismo.”
permear todas as relações sociais e, particularmente, as Vychinski também se volta contra a assertiva de
formas de luta política. Tudo vai se passar “dentro” ou Pachukanis, exposta em 1930 — e já examinada por nós —
“fora” do direito: mesmo quando a repressão se organi- de que o direito no socialismo é subsumido à política.
za à margem do quadro legal, o seu objeto é, previamen- Para o crítico, tal posição tem como consequência O
te, submetido a uma “desqualificação jurídica”. enfraquecimento do corpo de leis do Estado soviético, su-
Toda o esforço de crítica de Vychinski se encami- gerindo que a aplicação da lei decorreria de injunções
nha, então, no sentido de negar as teses sobre a impos- de natureza política, e não por força e autoridade da nor-
sibilidade teórica de se conceber um “direito socialista”, ma mesma. Vychinski pode, então, introduzir uma de-
sendo esse, mesmo, o principal defeito da obra “sacrílega” finição do direito claramente normativista: "O direito é
de Pachukanis, A teoria geral do direito e o marxismo. Uma de um conjunto de normas de conduta estabelecidas em um
suas teses, diz Vychinski, é a de que, alcançando o di- ordenamento jurídico que exprime a vontade da clas-
reito o seu maior desenvolvimento na sociedade bur- se dominante, assim como os costumes e as regras de
guesa, a forma jurídica começa a desaparecer no convivência sancionadas pelo poder estatal, e cuja apli-
socialismo. Ora, diz Vychinski, essa análise não é cor- cação é garantida pela força coercitiva do Estado com
reta, pois na fase do imperialismo a sociedade burgue- o fim de tutelar, assegurar e desenvolver as relações
sociais e o ordenamento vantajosos e convenientes à classe
sa tende a desconsiderar o direito e a violar o princípio
dominante”. [Pravo sobokupnost" pravil poveleniia,
da sua própria legalidade, de tal sorte que “a História voliu gospodstuuiuschego klassa,
vyrajaiuschikh
mostra, ao contrário, que é no socialismo que o direito
ustanovlennykh v zakonodatelnom poriadke, a takje
alcança o mais elevado grau de seu desenvolvimento. obytchaev i pravil obschejitiia, sanktsionirovanniykh
Somente na sociedade socialista o direito adquire uma gosudarstvennoi vlast'iu, primenente kotorykh
base sólida para o seu desenvolvimento. 4 época mais fa- obespetchivaetsia prinuditelnosi siloi gosudarstva v
vorável para o desenvolvimento do direito e para o desen- tseliakh okhrany, zakrepleniia i razvittia obschestvennykh
volvimento da legalidade, para a vitória do direito e a vitória otnocheniia i poriadkov, vygodnykh i ugodrykh
da legalidade, não é a época do imperialismo, mas a época gospodstbuiuschemu klassu.]”
do socialismo”. [Ne epokha imperializma, a epokha
sotsializma iavliaetsiia naibolee blagopriiatnoi epokhoi
razvitiia prava, dlia razvitiia zakonnosti, dlia torjestva
prava 1 torjestva zakonnosti.]* Posições como essa (de 85 Id. ibid., p. 12.
Pachukanis) acabam por defender a idéia de que o di- 86 Id. ibid., p. 12, grifos meus, MBN. E Vychinski prossegue: “Tal
reito não é necessário no socialismo e, portanto, não é idéia leva a um grande descrédito da legalidade e do direito sovié-
ticos, pois ela é evocada para sustentar uma intervenção da “polí-
tica” e não a defesa dos direitos dos cidadãos, e precisa partir das
8º A. Vichisnski, “Osnovnye zadatchi nauki sovestskogo exigências da política (e não das exigências da lei), na solução de
sotsialistitcheskogo prava”, in Socialistitcheskaia Zakonnost, nº 8, qualquer demanda judiciária”, id., ibid., p. 12.
1938, p. 12, grifos meus, MBN., 87 Id, ibid. p. 16.

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Com essa definição, que se torna “oficial”, encerra-se privada para o Estado, de sorte que a única modificação
o período marcado pela influência das teses pachukanianas, que se processa nessa operação é a mudança do titular do
que conhecem a partir desse momento, um longo degredo. domínio.” A estatização dos meios de produção aparece
Resta-nos, por fim, explicar as razões da recupera- como suficiente para criar novas relações de produção,
ção do direito, que tão expressivamente se manifesta nas de natureza socialista, uma vez que, em virtude da
intervenções de Vychinski, particularmente se levarmos estatização, já não há proprietários privados dos meios de
em conta que o período stalinista é considerado “dita- produção, e esses meios não mais se apresentam separados do
torial”, isto é — para a ideologia burguesa -, antijurídico. trabalhador direto. É assim que Stalin pode afirmar em
Há razões, naturalmente, que remetem à organização 1938 que “Sob o regime socialista, que até o momento só
da sociedade soviética e à história de sua formação,** se realizou na U.RSS.S, é a propriedade social dos meios
mas, o que nos interessa analisar neste trabalho, é o fun- de produção que forma a base das relações de produ-
damento ideológico deste “retorno do direito” na socie- ção”,” identificando claramente a transformação econô-
dade “socialista”. mica (relações de produção) com a alteração no domínio
Podemos encontrar esse fundamento na interpretaçã jurídico (propriedade). É sintomático que a própria lin-
stalinista do socialismo.” O socialismo é concebido juri-
. . e “
ção
guagem de Stalin seja elaborada sob o modelo jurídico,
dicamente como a simples transferência da propriedade como observa Bernard Chavance: “A tendência a identi-
ficar, senão a inverter, o econômico e o jurídico, marca
profundamente a teoria soviética nos diversos domínios.
Pode-se notar, por exemplo, a utilização por Stalin de
AS
Os aspectos históricos da formação social soviética podem ser
“ .

no nha, em: Ch. Bettelheim, A luta de classes


mão Soviética, primeiro período (1917-1923),e segundo período (1 di produzioni e forze produttive”, in G. La Grassa, F. Soldani e
1 950), op. cit.; Ch. Bettelheim, Les luttes de een RSS, Same M. Turchetto, Quale marxismo in crisi?, Bari, Dedalo Libri, 1979;6.
période, 1930-1941, t. 1: “Les dominés”, e t. 2: “Le dominants” La Grassa e M. Turchetto, Dal capitalismo alla societã di
op. cit.; Massimo Cacciari e Paolo Perulli, Piano economico e composizione transizione, op. cit.; G. La Grassa e Costanzo Preve, La fine di una
di classe. (Il debattito sull'industrializzazione e lo scontro politico teoria. II collasso del marxismo storico del novecento, Milão, Unicopli,
durante la NEP), Milão, Feltrinelli, 1975; Nicolas Spulber (org.) 1996; Bernard Chavance, Le capital socialiste. (Histoire critique de
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discussione degli anni venti nel/'U.RS.S, Turim, Einaudi, 1970; Sycomore, 1980; além dos já citados trabalhos de Charles
Alexander Erlich, The Soviet Industrialization Debate, 1924-1928, Bettelheim, As lutas de classes na União Soviética e Cálculo económico
Cambridge, Harv ard University Press, 1960. e formas de propriedade.
89 Mas nãoa apenas nela. A rigor,
- tal concepção, oriunda do “marxis- 90
Uma crítica dessa concepção pode ser vista em M. B. Naves,
mo da Segunda Internacional”, é “recebida” pelos teóricos e diri- “Marxismo e capitalismo de Estado”, in Crítica Marxista, nº 1,
gentes da Terceira Internacional, incluída aí toda a vanguarda 1995, e “Stalinismo e capitalismo: a “disciplina do açoite"”, in
bolchevique. Cf., a propósito, os ensaios: G. La Grassa e M. Outubro, nº 3, 1998.
Turchetto, “Aspetti teorici della “crisi del marxismo”, e “Note 91
]. Staline, Le matérialisme dialectique et le matérialisme historique, Ti-
sul leninismo”, e G. La Grassa, M. Turchetto e Franco Soldani, “Rapporti rana, “8 Nêntori”, 1979, p. 47.

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um vocabulário jurídico a propósito das “leis econômi- é evidente que o direito só pode ser concebido como nor-
cas”: as leis gerais 'são aplicadas”, as novas leis “entram ma emanada desse Estado. O direito precisa ser subordi-
em vigor”, no conjunto, as leis comportam “exigências”, nado ao Estado, verdadeiro sujeito das transformações
“disposições”, etc.”.2 A suposição de que o “socialismo” “socialistas”, recebendo dele a sua “natureza socialista”.
tenha sido instaurado por força de uma medida jurídica Assim, completa-se o “fetichismo” do direito com o “feti-
acarreta, ainda, a consegiiência de se crer que as classes chismo” do Estado.”
sociais tenham sofrido transformações profundas, o que
Podemos, então, começar a entender as razões que
fica claro na exposição de Stalin a propósito da promul-
levaram à reconstituição do tecido jurídico e à elevação
gação da Constituição de 1936, na qual ele afirma: “[...]
do direito à plena cidadania teórica. A concepção mes-
todas as classes exploradoras foram liquidadas. Restou a clas-
ma do “socialismo” stalinista - na verdade, um capitalismo
se operária. E restou a classe dos camponeses. Restaram
de Estado — exigia a elaboração de uma doutrina do direi-
os intelectuais”. Desse modo, uma vez suprimidas as
to que lhe servisse de fundamento ideológico. Começa-
relações de produção capitalistas em virtude da extinção
da propriedade privada, a sociedade “socialista” pode mos a perceber também as razões que levaram à completa
ser representada como um modo de produção fundado na renúncia dos postulados teóricos originais de Pachukanis,
propriedade social, isto é, estatal, dos meios de produ- a necessidade imperiosa de apagar da memória comu-
ção. Ora, se é o Estado “proletário” o detentor dos meios nista os vestígios da irredutibilidade burguesa de todo o
de produção, e se é por essa razão que se pode caracteri- direito, apagar suas palavras que denunciavam a con-
zar a sociedade soviética como uma sociedade socialista, tradição inerente a um projeto de socialismo fundado
na ilusão jurídica.

** B. Chavance, Le capital socialiste. (Histoire critique d'économie


politique du socialisme - 1917-1954), op. cit., p. 41. Em um texto
de 1933, Stalin afirma: “A base do nosso regime é a propriedade
social, assim como a base do capitalismo é a propriedade privada.
Se os capitalistas proclamaram a propriedade privada sagrada e
inviolável, e vieram em seu tempo a consolidar o regime capitalis-
ta, nós, comunistas, devemos mais ainda proclamar a proprieda-
de social sagrada e inviolável, a fim de estabilizar desse modo as
novas formas socialistas da economia em todos os ramos da pro-
dução e do comércio”, ). Stalin, “Le bilan du premier plan
quinquennal”, in J. Stalin, Les question du léninisme, Moscou, ELE,
1951, p. 592, apud B. Chavance, op. cit., p. 41-42.
*3 J. Stalin, “Sul proggeto di Costituzione del!'U.R.S.S”, in Paolo
Biscaretti di Ruffía e Gabriele Crespi Reghizzi, La Costituzione
sovietica del 1977. (Un sessantennio di evoluzione costituzionale 94 Para uma crítica dessa concepção, ver, notadamente,
nel"URSS), Milão, Giuffrê Editore, 1979 (grifos meus, MBN). B. Chavance, op. cit.

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Me
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CONCLUSÃO

Após este percurso podemos reapresentar a pergun-


ta sobre o sentido dessa leitura de Pachukanis.
Contra toda uma tradição exegética procuramos de-
monstrar a ausência de fundamento da tese “circulacionista”,
sem, no entanto, deixar de dar à esfera da circulação todo
o peso de sua determinação específica. Ao afastarmos a
hipótese do “economicismo” de Pachukanis, se tornou pos-
sível, então, revelar a complexidade de sua leitura de Marx,
que já se antecipara na extraordinária — para a sua épo-
ca — recuperação de um texto marxiano fundamental
sobre a crítica da economia política, para fundar a críti-
ca do direito sobre a base do materialismo. Pachukanis, a
rigor, parte da análise de Marx do processo de trabalho
para, a partir dessa aquisição teórica, e só então, retornar pa-
ra a teoria do valor, o que lhe permite apreender a
especificidade das categorias da economia política. É essa
a razão que permite a ele afirmar a determinação do di-
reito pela esfera da circulação e pelas relações de produ-
ção, estabelecendo o que chamamos de sobredeterminação
do jurídico pelas esferas da “economia”.
Que os comentadores da obra da Pachukanis não te-
nham se dado conta dessa “contradição” — e que é tudo
menos uma contradição -, apenas revela a complexidade

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Marxismo e direito

de sua escrita, sob a aparência de uma determinação sim-


ples do direito pela esfera da circulação.
A partir dessa base fundamental pudemos restabele-
cer a crítica pachukaniana da democracia burguesa, e
perceber a sua surpreendente atualidade — que se deixa
revelar, como procuramos demostrar, na recuperação e BIBLIOGRAFIA
no desenvolvimento de suas teses no interior do marxismo.
Do mesmo modo, procuramos oferecer uma leitura
da relação que Pachukanis estabelece entre o socialismo ALTHUSSER, Louis. La transformation de la philosophie. In: Sur
e o direito que fosse além da vulgata sobre o pretenso la philosophie. Entretiens et correspondence avec Fernanda
niilismo de Pachukanis. Aqui, igualmente, a formulação Navarro, suivis de La transformation de la philosophie. Paris,
pachukaniana é complexa, e, embora limitada pela pro- Gallimard, 1994.

blemática marxista da Terceira Internacional, conserva Pour Marx. Paris, Maspero, 1978.
o princípio fundamental de defesa da extinção do direi- — . Réponseà John Lewis. Paris, Maspero, 1973.
to, estabelecida por Marx e Engels. ALTHUSSER, Louis et alii. Discutere lo Stato. Posizioni a confronto
Por fim, perseguimos os momentos fundamentais de sua su una tesi di Louis Althusser. Bari, De Donato, 1978.
“fase” autocrítica, mostrando a resistência de Pachukanis ARTHUR, Chris. Towards a Materialist Theory of Law. Critique,
nº 7, 1977.
em abandonar as suas teses originárias ao mesmo tempo em
que ele vai formulando as bases de uma nova problemá- ARX, Susan von. An Examination of E.B. Pashukanis's General
tica, em consonância com os postulados teóricos do Theory of Law and Marxism. Tese de doutorado. Universida-
de Estadual de Nova York, Buffalo, 1997.
stalinismo. O interesse da leitura que proponho aqui re-
ASUA, Luis Jimenez de. Derecho penal sovietico. Buenos Aires,
side em mostrar a irrupção da antiga problemática já
Tipografia Editora Argentina, 1947.
então “renegada” no interior do novo dispositivo
BALIBAR, Étienne. Au nom dela raison? (marxisme, rationalisme,
conceitual, e também a necessidade da nova concepção
irrationalisme). La Nouvelle Critique, nº 99, 1976.
ideológica jurídica para que pudesse “funcionar” certa
Sur la dictature du prolétariat. Paris, Maspero, 1976.
representação do socialismo.
BALIBAR, Étienne et alii. Marx et sa critique de la politique. Paris,
Os limites e as vacilações teóricas de Pachukanis não Maspero, 1979.
invalidam o seu esforço de pensar a questão do direito a
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partir das categorias fundadas por Marx, e é nisso que BUTLER, William E. (Org.) Russian Law: Historical and Political
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crítica do direito tem-se limitado a denunciar o
Te RUCA
do de classe de um direito que favorece as classes a COST
mo do que , se fos se pos siv el ins tau rar O “b om dir eit o”, a
de tal
anos
opressão e a desigualdade desapareceriam da Terra. Nos
cas
1920, 0 jurista russo Evgeni Pachukanis já denunciava O
ráter superficial e ingênuo dessa concepção, a ga RT
treito vínculo entre a forma mercantil e à forma jurídica e
afirmando a natureza irremediavelmente burguesa do direi-
to. Bloqueando toda via de acesso ao reformismo ELELu eita
%achukanis sustenta a impossibilidade teórica de um direito
“socialista” e recupera, desse modo, toda à
radicalidade da crítica do direito empreendi-
da por Marx em O capital,
Marxismo e direito — um estudo sobre
Pachukanis analisa as idéias do mais in-
fluente jurista marxista, situando-as no
interior do debate teórico e político do pe-
riodo que vai dos anos 1920 ao final dos
anos 1930 na União Soviética.

ISBN 978-85-85934-63-

1885851934637

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