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CA PÍTULO 1

CRI SE FEBRIL
Milton Genes

Introdução te por conta da combinação de excitação aumentada e inibi


A crise febril (CF) é de nida como “uma crise epiléptica que ção diminuída, além de diferenças maturacionais nos circui
R RUU Q U P DQR G GDG D R DGD GR Q D I tos subcorticais.
bril, não causada por uma infecção do sistema nervoso central
(SNC), sendo excluídas as crianças que apresentaram crise Epidemiologia
neonatais ou crises não provocadas ou, que se encaixam nos Estima‑se que 2 a 5% das crianças menores de 5 anos apresenta
critérios de outra crise sintomática aguda”. A CF correspon rão pelo menos um episódio de CF. Um estudo realizado no Chile
de a um dos problemas neurológicos mais frequentemente ob apresentou uma incidência de 4%.5 O primeiro episódio de CF
U DGR QD SRS OD R S G U D RQ G UDGD SRU DUG ocorre, em 90% dos casos, entre 6 meses e 3 anos de idade.2,5
RPR U S O S D R D RQDO Estudos populacionais evidenciaram como fatores de risco
Geralmente, a CF ocorre em associação com infecções vi importantes para a primeira CF: história de crise febril em pa
UD GD D D U D S U RU S OPRQDU Q QD GR rentes de 1º e 2º graus, internação hospitalar no período neo
trato urinário, assim como associada à febre decorrente de va QD DO D UD R GR G Q RO P Q R Q URS RPR RU D QG
cinação. A CF ocorre geralmente nas primeiras 24 horas do mento frequente em hospital‑dia, tendo sido observado que,
episódio febril, no período de ascensão rápida da temperatura. P U DQ D DSU Q D P GR G ID RU R U R GD
A curta duração da febre antes da CF e a baixa temperatura são ocorrência de CF seria de 30%. Vários artigos relatam que,
associadas a um aumento do risco de recorrência. após a primeira CF, o risco de recorrência é baixo, pois apenas
As CF são classi cadas em simples e complexas. A CF sim 30% das crianças até os 6 anos terão uma segunda crise e me
ples tem apresentação generalizada, duração inferior a 15 mi tade delas terá uma terceira crise febril. Outro artigo descreve
nutos e não recorre em menos de 24 horas, com exame neuro que a idade de início seria o fator preditivo mais potente para
lógico pós‑ictal normal; enquanto a CF complexa tem duração recorrência. Aproximadamente 50% das crianças com idade
superior a 15 minutos e/ou apresenta uma ou mais recorrên inferior a 1 ano no momento da primeira CF terão recorrência,
cias nas primeiras 24 horas, podendo iniciar‑se como focal e/ comparadas com 20% daquelas abaixo de 3 anos, e 50% apre
ou apresentar exame neurológico pós‑ictal alterado. É impor sentam a segunda crise em período de 6 meses após a primeira
DQ D QDODU D SU Q D G DS QD P G DS R CF, 75% após 1 ano e 90% 2 anos. 2 ID RU PD PSRU DQ
é su ciente para alterar a classi cação de CF simples para tes para recorrência são idade precoce da primeira CF, história
complexa. familiar de CF, grau de elevação da temperatura (o risco de re
O diagnóstico de CF na infância é essencialmente clínico, corrência é inversamente proporcional ao grau da temperatu
tornando fundamentais a anamnese detalhada e o exame físi ra) e duração do período febril (quanto menor a duração da fe
co minucioso, com o objetivo de afastar intoxicações exóge bre, maior a chance de recorrência).
nas, trauma, focos infecciosos e avaliar as características da Existem muitos artigos referentes à recorrência da CF, com
crise e a história familiar. A febre é, sem dúvida alguma, um P D G U GI U Q PSRU DQ PSU U P R
dos fatores determinantes da CF, no entanto, a etiopatogenia cuidado com a febre baixa ou alta em uma criança que já teve
da crise deve ser mais bem esclarecida, especialmente em ní uma CF.
O PRO ODU O risco de a criança com CF desenvolver epilepsia é de 2 a
Estudos clínicos demonstram que o cérebro imaturo pode 7%, maior que na população em geral. 2 U R SDUD S O S D
apresentar maior suscetibilidade a convulsões, provavelmen é de 1% se não houver fator de risco, 2% se houver um fator,
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10% se houver dois ou mais fatores de risco. O risco geral de Q R G P U U DO DGR UR Q UDP Q PD Q R
epilepsia, na idade de 7 anos, é de 1,5%.2,6,9 contribuem para o diagnóstico nem para o tratamento.
Estudos de neuroimagem em ressonância magnética cere O tratamento da CF é baseado em três aspectos funda
bral (RM) com espectroscopia mostram uma relação entre di mentais:
I U Q JUD G O UR P DO PSRUDO PD D D IU • tratamento da fase aguda;
Q G S O S D IR DO Q RP D U IUD U D D GURJD • pro laxia da recorrência das crises;
antiepilépticas) e CF prolongadas em crianças. • RU Q D R IDP O DU
Existe ainda artigos referentes a uma relação mal entendi
da entre crises febris na infância e desenvolvimento de epilep A maioria das crianças já chega ao pronto‑socorro no período
sia de lobo temporal na idade adulta.5,6,10 Aventa‑se a hipótese pós‑ictal. Nos casos em que a criança está em convulsão, o tra
de que as alterações hipocampais preexistentes possam:9,11 DP Q R DJ GR J DO D DO U U S O S D QG S Q
• deixar o hipocampo mais vulnerável aos efeitos lesivos da febre; G Q P Q G D RORJ D Q O QR U I U DP
• facilitar as CF que causarão a esclerose hipocampal com pos G GD J UD
terior epilepsia; 1R PRP Q R GD DGP R QR RU GR SURQ R R RUUR D
• predispor a criança inicialmente à CF e posteriormente à epilepsia. PS UD UD G U P G D DP Q DI U GD QGR QG D
do controle da febre por meios físicos (compressas frias) e
Crianças com CF têm risco discretamente aumentado para cri antitérmicos. Nas situações em que há recorrência da CF, po
ses focais complexas, da mesma forma que outros tipos de de‑se recomendar o uso de benzodiazepínicos (diazepam,
epilepsia, quando comparadas com a população geral. Entre clonazepam e nitrazepam) durante o episódio febril. O clo
tanto, somente pequena porcentagem de crianças com CF de QD SDP R Q UD SDP IRUDP O DGR RP R P
senvolveram crises focais complexas e não foi ainda bem esta GR Q R RQ URODGR PD RPR R GURJD SU GRP QDQ
belecida uma relação causal.9,12 temente sedativas e miorrelaxantes, devem ser usadas com
parcimônia.15‑18
Genética A Academia Americana de Pediatria (AAP) revisou evidên
A ocorrência de epilepsia ou de CF em familiares de pacientes cias em relação ao tratamento da CF simples e, com base nos
com CF, bem como a constatação de CF em pacientes com for riscos e benefícios das terapêuticas e cazes, não recomenda o
PD G RS D G S O S D G PRQ UDP R DU U J Q R GD uso contínuo ou pro lático de anticonvulsivantes na CF sim
CF. A história familiar de CF em parentes de 1º grau é comum, e ples. O tratamento pro lático da CF não altera o risco de epi
observa‑se uma porcentagem bem maior de concordância de CF O S D I UD 12,19,20
entre gêmeos monozigóticos (31 a 70%) que dizigóticos (14 a Na CF complexa e com alta recorrência, podem‑se utilizar
18%). Existem estudos da ligação de CF com vários cromosso benzodiazepínicos durante os episódios febris. Cada caso
mos, como 2q, 5q, 5, 8q e 19, que parecem alterar o funciona deve ser avaliado individualmente, embora, de modo geral,
mento de canais de sódio neuronais. Estudos referem a ocor U DQ D Q URORJ DP Q D G RP U S GD U S UD
rência de crises epilépticas em 7% dos familiares em geral e em ção da consciência e sem dé cits neurológicos focais, geral
7% dos pais e 12% de irmãos de crianças com CF. A incidência mente não necessitem de internação hospitalar.
de CF varia também de acordo com a região geográ ca. Em cer
tos países da Ásia, há uma elevada frequência de CF. A diferença Diagnóstico diferencial
de frequência de CF em famílias da Ásia em comparação com O principal diagnóstico diferencial é a P Q QJ DO P G DO
aquelas da Europa ou América do Norte sugere um efeito popu guns processos que simulam as crises convulsivas, como sín
OD RQDO D DO J Q DP Q G UP QDGR copes febris, que se comportam como crises atônicas, delírios
febris, calafrios e tremores.
Diagnóstico e tratamento É importante informar à família que:
O diagnóstico da CF é predominantemente clínico. 1. A crise febril tem um caráter benigno, não tendo sido observa
O exame do líquido cefalorraquidiano, diante de uma pri do, até os dias atuais, nenhum estudo em que houvesse mor
meira convulsão febril, está indicado nas seguintes condições: te causada pela CF, pois a crise para os pais está associada à
• menos de 6 meses de vida; G D G PRU
• sintomatologia de infecção do SNC; 2. O controle rigoroso da febre é o aspecto mais importante do tra
• recuperação lenta ou alteração neurológica pós‑ictal; tamento, com o uso de antitérmicos e/ou banhos típicos. As
• uso de antibióticos (lembrar que os sintomas de meningite RPSU D IU D SRG P U SR UJDGD SDUD R D R P D
SRG P U PD DUDGR PS UD UD Q R G P Q RP R R GD P G GD DQ U RU
3. O risco de um novo episódio convulsivo durante o mesmo
Os demais exames laboratoriais são direcionados para a inves quadro febril é raro, embora possa ocorrer.
JD R GR IR R QI R R Q R ID QGR SDU GD Q JD R 4. Uma vez que as convulsões febris são associadas a elevações rá
rotineira da CF simples ou complexa. pidas de temperatura corporal acima de 38°C, a crise pode ser o
Eletroencefalograma (EEG), mapeamento cerebral, tomo primeiro sinal de um processo infeccioso, não havendo tempo
gra a computorizada (TC) de crânio e RM cerebral também SDUD D DGP Q UD R G DQ UP R DQ OD R RUUD
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5. É importante proteger a criança durante a crise; porém, sem Referências bibliográficas


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8. 6 D U DQ D U QR D U R SD G P PDQ U D DOPD 1):S9‑13.
posicionar a criança em uma superfície confortável, em decú 3. Aicardi J. Febrile convulsions. In: Aicardi J (ed.). Epilepsy in children.
bito lateral direito, para evitar o acúmulo de saliva na cavida 2.ed. New York: Raven Press, 1994. p.253‑75.
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9. Após o término das crises, não se deve administrar qualquer febrile seizures: a metaanalytic review. J Pediatr 1990; 116:329‑39.
medicação ou líquidos por via oral até que a criança esteja 5. Hauser WA. The prevalence and incidence of convulsive disorders in
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mais próxima ou chamar uma ambulância. 7. Buchhalter JR. Inherited epilepsies of childhood. J Child Neurol 1994;
11. É preciso avaliar a temperatura com termômetro e não agasa 9(Suppl 1):12‑9.
lhar demais a criança. 8. Berg AT, Shinnar S, Shapiro ED, Salomon ME, Hansen WA. Risk factors
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Prognóstico 36:334‑41.
Em um projeto nacional colaborativo, na Grã‑Bretanha, não se 9. Elkis LC. Crises sintomáticas agudas. In: Manreza MLG, Grossmann RM,
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O estudo do efeito da CF sobre o perímetro cefálico, a inteli 66:1009‑12.
gência e o comportamento em crianças com CF até os 5 anos 11. Maher J, McLachlan RS. Febrile convulsions. Is seizure duration the
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Considerações finais 13. Italian League Against Epilepsy Genetic Collaborative Group. Concor
Crise febril é a crise epiléptica mais comum em lactentes e pré dance of clinic forms of epilepsy in families with several affected mem
‑escolares, de baixa morbidade, recorrência pouco frequente e bers. Epilepsia 1993; 34(5):819‑26.
não requer tratamento contínuo com drogas antiepilépticas. 14. Duchowny M. Febrile seizures in childhood. In: Treatment of epilepsy:
A pro laxia secundária não é indicada no caso de CF sim principles e practice. Philadelphia/London: Lea & Febiger, 1993. p.647‑53.
ples, mas no caso de CF complexa, prolongada ou focal, a pro 15. Knudsen FU. Effective short term diazepam prophylaxis in febrile con
laxia secundária intermitente pode ser considerada. vulsions. J Pediatr 1985a; 106:487‑90.
A opção ou não pelo tratamento pro lático e qual a melhor 16. Rosman NP, Colton T, Labazzo J, Gilbert PL, Gambardella NB, Kaye EM
forma de fazê‑lo envolve não apenas o conhecimento sobre a et al. A controlled trial of diazepam administered during febrile seizures.
CF, mas também aspectos individuais, familiares e a estrutura N Engl J Med 1993; 329:79‑84.
R DO P D U DQ D Q U GD 17. Sarmento MRS, Machado ODV, Nascimento OJ. Prevenção das crises
convulsivas febris com uso de diazepam supositório (estudo de 40 ca
Ao final da leitura deste capítulo, o pediatra deve estar apto a: sos) JBLE 1991; 4:19‑20.
• Diferenciar uma crise febril simples de uma crise febril 18. Vanasse M, Masson P, Geoffroy G, Larbrisseaut A, David PC. Intermit
########## complexa. tent therapy with nitrazepan for simple febrile convulsions. J Cam Neu
• Orientar a família para as medidas de combate à febre rol Sci 1984; 11:387‑9.
e o que fazer durante a crise. 19. Capovilla G, Mastrangelo M, Romeo A, Vigevano F. Recommendations
• Avaliar os diagnósticos diferenciais urgentes e crônicos. for the manegement of febrile seizures. Ad hoc task Force of LICE Gui
• Encaminhar para a urgência as crianças com crise delines Commision. Epilepsia 2009; 50(Suppl 1):2‑6.
demorada. 20. Steering Committee on Quality Improvement and Management, Sub
• Saber que a convulsão febril é comum em crianças até committee on Febrile Seizures American Academy of Pediatrics. Febrile
6 anos de idade. seizures. Pediatrics 2008; 121(6):1281‑6.
• Apontar os fatores prognósticos para tranquilizar a 21. Ellenberg JH, Nelson KB. Febrile seizures and later intellectual perfor
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