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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE MEDICINA DA BAHIA


DEPARTAMENTO DE MEDICINA PREVENTIVA E SOCIAL
MEDICINA SOCIAL I – MEDD86

Estudo de Caso: Maria Luiza do Garcia.

Luzia, moradora do Garcia, negra, manicure, evangélica, ensino médio incompleto, sempre
teve o desejo de ser mãe e aos 25 anos já achava que estava mais do que na hora. Durante um
culto de oração na Igreja Pronto Socorro do Senhor, Irmã Lúcia, uma profetiza, de 65 anos, teve
a revelação de que um bebê nasceria para livrar um membro da Igreja do pecado. Preocupada,
já que seu namoro com Eduardo, um “preto boa pinta”, morador do mesmo bairro, “tocador”
de Samba de Primeira – um grupo de Partido Alto renomado na localidade, havia completado
29 anos, já lhe rendia meia década e nada de avançar para uma nova etapa, decidiu cobrá-lo “na
tora” o casamento. Foi então que resolveu dar o empurrãozinho que precisava e foi à USF
Clementino Rodrigues (Riachão) para conversar com a enfermeira que já lhe acompanhava há
algum tempo no “planejamento familiar” e aplicava trimestralmente a Medroxiprogesterona
150mg, um anticoncepcional injetável, método que havia escolhido e fazia uso há dois anos, a
despeito de proibição religiosa do sexo antes do matrimônio. Buscava saber dela quando
poderia começar a tentar engravidar e o que precisava fazer para ter uma “benção” de gestação.

Dandara, enfermeira experiente que trabalhou no Centro de Testagem e Aconselhamento de um


município vizinho, disse logo: vamos fazer alguns testes rápidos para detecção de Infecção
Sexualmente Transmissível (IST), vou também fazer a coleta do seu citopatológico do colo de
útero que já está no prazo e vamos dar uma olhada na sua caderneta de vacina. Além disso, já
vou passar para você o uso do ácido fólico e do suplemento de ferro, para tomar todos os dias.

Luzia ouviu tudo com atenção, enquanto Dandara preparava tudo. Após uma furadinha no dedo
ela coletou as gotinhas de sangue para realização dos testes rápidos para detecção de HIV,
Hepatites B e C e Sífilis, ao mesmo tempo que explicava a importância de realizar o rastreio de
certos agravos: “vivemos uma epidemia de sífilis, é uma doença silenciosa”. Para felicidade,
todas as amostras deram resultado “não reagente” e após mais algumas orientações, Luzia foi
para casa com um sorriso no rosto: “hoje mesmo já vou falar com Eduardo”.
Passados alguns meses, já casada, Luzia vem à USF para realização de um teste rápido de
gravidez, para confirmar sua nova condição e para marcar sua primeira consulta de pré-natal.
No dia e horário agendados, comparece sozinha na unidade, pois o companheiro estava
começando um “bico” “pau viola” e não podia estar se ausentando, já que tinham “juntado os
panos”. Novas informações foram passadas, a Caderneta de Saúde da Gestante preenchida com
as primeiras informações: peso, altura, data da última menstruação etc., e novamente os testes
rápidos para detecção das IST são realizados, conforme protocolo.

Para surpresa de Luzia, um dos exames deu reagente: ela estava com sífilis. Um pouco assustada
se isso poderia trazer algum problema para seu bebê, Carol – a médica da equipe, explicou que
é uma doença sexualmente transmissível, tem cura e precisa haver o controle durante a gestação
para evitar a transmissão vertical1 e prevenir que a criança venha a nascer com sífilis congênita.
Nesse mesmo dia foi realizada uma coleta de sangue para realização do exame VDRL (Venereal
Disease Research Laboratory), é através deste exame que o resultado do teste rápido é
confirmado e ocorre a notificação do caso, por se tratar de um agravo de notificação
compulsória. Porém, mesmo antes do resultado confirmatório, o tratamento da gestante
precisou ser iniciado imediatamente com Penicilina G Bezantina 2,4 milhões UI e seu parceiro
convocado a comparecer à unidade.

Eduardo, muito resistente a ir à USF, disse que o resultado do exame “só podia ter dado errado”,
pois ele “nunca teve nada dessas doenças”, afirmou. Olhou o Google® e viu que nunca teve
este negócio de “cancro”, nem ferida ou algum tipo “escorrimento”. Além disso, tomava todos
os dias Água de Rabelo2® para manter o sangue limpo. Frente a essa recusa, Luzia é orientada
a utilizar preservativo nas relações sexuais como forma de se proteger e ao bebê. Como houve
rejeição da camisinha por parte de Eduardo, ela passou a negar ter relações sexuais com ele. É
orientada ainda a conversar mais com o companheiro na tentativa de “convencê-lo” a ir ao
serviço de saúde. A este ponto, o casamento já “tava indo para Cucuia”.

Após o esquema terapêutico concluído, Luzia comenta em uma de suas consultas que não está
mais com Eduardo: “ele mudou muito, desconfio que estava ‘me dando zig’ e ainda disse que
eu devo ter pegado essa doença de algum frequentador do salão. Me magoou muito”. Enxugou
uma lágrima no canto do olho e disse: “mas o importante é que meu bebê está protegido, vou
fazer tudo direitinho, doutora”. A equipe passa então a se organizar, para realizar uma busca

1
Transmissão Vertical: ocorre quando a criança é infectada por alguma IST durante a gestação, parto, e em alguns
casos durante a amamentação. (http://www.aids.gov.br/pt-br/publico-geral/infeccoes-sexualmente-
transmissiveis/transmissao-vertical).
2
Água de Rabelo: é um produto feito com plantas medicinais da flora nordestina: romã, aroeira e eucalipto.
(https://consultaremedios.com.br/agua-rabelo/bula).
ativa na tentativa de convencer Eduardo a realizar o teste e o tratamento que precisava.

No 6º. mês, durante exame físico na consulta pré-natal, ao medir à altura do fundo uterino, a
médica Carol observou ser incompatível com a idade gestacional, o que levantou a suspeita da
condição de crescimento intrauterino restrito (CIUR). Diante disso, na própria USF, agendou,
por meio do acesso regulado, Luzia para o ambulatório de referência para o pré-natal de alto
risco no Distrito Barra-Rio Vermelho, com vistas à avaliação especializada e realização de
exames ultrassonográficos específicos: USG obstétrico com doppler e USG morfológico, caso
necessários. Após avaliação criteriosa, não foram identificadas malformações ou alterações
significativas e foi orientada continuar o acompanhamento de rotina na USF. “Graças a Jeová”,
respirou aliviada. Luzia realizou exames para seguimento do seu caso durante toda gestação e
Jéssica Dandara nasceu livre da sífilis congênita. Porém, por ter sido exposta ao agravo ainda
no ventre, necessitará de um acompanhamento mais rigoroso até os 18 meses de idade na
consultas de puericultura, com a realização de alguns testes específicos para detecção e
prevenção de sinal ou sintoma. Fora a situação da sífilis, a gestação transcorreu sem nenhuma
intercorrência e o sonhado parto natural no Centro de Parto Normal Marieta de Souza Pereira
(Mansão do Caminho), aconteceu.

Sara, a atual companheira de Eduardo descobriu uma gravidez aos 4 meses de gestação. Ao
iniciar o pré-natal na mesma USF, foi detectada a infecção pela sífilis. A equipe ainda não havia
conseguido encontrar Eduardo para realização dos testes para IST, e a cena estava se repetindo
embaixo dos olhos de todos. Foi quando começaram a se dar conta da necessidade de trabalhar
mais a temática das IST, abrangendo também a população masculina, incluindo adolescentes e
jovens: “que tal começarmos pelas escolas do nosso bairro?”, sugeriu Dandara.

Caso fictício baseado em vivências em uma unidade de saúde de Salvador/BA.

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