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ÍNDICE

  ............................................................................................. 9



Daniel Sampaio e Henrique Prata Ribeiro .................................................... 13
1.   
José Luís Pio Abreu ..................................................................................... 15
2.    
Rui Durval .................................................................................................. 23
3.  
Rui Durval .................................................................................................. 31
4. 
Gustavo Jesus e Miriam Marguilho .............................................................. 41
5.    
Tiago Duarte ............................................................................................. 61
6. 
André Ponte ............................................................................................... 79
7. 
Diogo Guerreiro ......................................................................................... 101
8. 
Diogo Guerreiro ......................................................................................... 127
9.  -
Pedro Morgado .......................................................................................... 151
10.  
José Oliveira ............................................................................................... 167
11. 
Henrique Prata Ribeiro ............................................................................... 193
12.     
Filipa Moutinho .......................................................................................... 213
13.   
Samuel Pombo ........................................................................................... 229
14.   
Lucas Manarte ........................................................................................... 241
15.   
C M ........................................................................................... 253
16.    
Manuel Gonçalves Pereira .......................................................................... 275
17.   
Adriana Moutinho ...................................................................................... 291
18.   
Joana Mesquita Reis e Daniel Sampaio ........................................................ 309
  –  ......................................................................... 327
  ..................................................................................................... 331
NOTAS BIOGRÁFICAS

Adriana Moutinho
Assistente hospitalar graduada de Psiquiatria no Hospital Beatriz Ângelo. Médica
psiquiatra no PIN – Partners in Neuroscience.

André Ponte
Assistente hospitalar de Psiquiatria no Hospital do Divino Espírito Santo de Ponta
Delgada, EPE; responsável pela Consulta de Insónia do Hospital Internacional dos
Açores.

Cátia Moreira
Assistente hospitalar do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa. Assistente livre
da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Pós-graduada em Psiquia-
tria Forense e Avaliação do Dano Corporal.

Daniel Sampaio
Professor Catedrático Jubilado de Psiquiatria, Faculdade de Medicina da Univer-
sidade de Lisboa. Diretor do Serviço de Psiquiatria do Hospital de Santa Maria
(2014-2016). Fundador da Sociedade Portuguesa de Terapia Familiar.

Diogo Guerreiro
Médico pela Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa.
Especialista em Psiquiatria e Saúde Mental, tendo feito a sua formação no Hos-
pital de Santa Maria. Doutorado em Medicina pela Faculdade de Medicina da
Universidade de Lisboa.
10 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

Filipa Moutinho
Assistente hospitalar de Psiquiatria no Serviço de Psiquiatria e Saúde Mental do
Hospital Garcia de Orta. Pós-graduada em Medicina Social pelo Instituto de Ciên-
cias da Saúde da Universidade Católica. Orientadora de formação do Internato de
Psiquiatria do HGO e do estágio clínico de Psiquiatria da Faculdade de Medicina
da Universidade de Lisboa.

Gustavo Jesus
Médico Psiquiatra no Hospital Beatriz Ângelo. Diretor clínico do PIN – Partners in
Neuroscience. Assistente convidado de Psiquiatria na Faculdade de Medicina da
Universidade de Lisboa.

Henrique Prata Ribeiro


Médico psiquiatra no Hospital Beatriz Ângelo. Coordenador da Estrutura para a
Saúde Mental dos Açores. Assistente na Católica Medical School.

Joana Mesquita Reis


Assistente hospitalar de Pedopsiquiatria no CHULC, atualmente integrada
na equipa da Unidade da Primeira Infância do Centro de Estudos do Bebé e da
Criança do Hospital Dona Estefânia.

José Luís Pio Abreu


Médico psiquiatra, tendo exercido clínica nos hospitais da Universidade de Coim-
bra. Professor de Psiquiatria na Faculdade de Medicina da Universidade de Coim-
bra até 2013. Membro do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa.

José Oliveira
Psiquiatra e investigador na Fundação Champalimaud. Professor auxiliar convi-
dado em Fundamentos de Neurociências na Faculdade de Ciências Médicas da
Universidade Nova de Lisboa. Mestre em Medicina pela Universidade de Coimbra
e doutor em Neurociências pela Université Paris-Est.
NOTAS BIOGRÁFICAS 11

Lucas Manarte
Médico psiquiatra. Professor auxiliar de Psiquiatria na Faculdade de Medicina da
Universidade de Lisboa. Doutorado pelo CAML com trabalho acerca do insight
para a perturbação mental.

Manuel Gonçalves Pereira


Psiquiatra com competência em Geriatria. Professor associado com agregação da
Faculdade de Ciências Médicas | NOVA Medical School, Universidade Nova de
Lisboa. Investigador principal no CHRC – Comprehensive Health Research Centre.

Miriam Marguilho
Interna de formação específica em Psiquiatria no Centro Hospitalar Psiquiátrico de
Lisboa. Pós-graduada em Psicoterapias Cognitivo-Comportamentais e em Sexo-
logia Clínica.

Pedro Morgado
Professor associado da Escola de Medicina da Universidade do Minho. Coordena-
dor regional de Saúde Mental da ARS Norte desde janeiro de 2022. Médico espe-
cialista do Serviço de Psiquiatria do Hospital de Braga e investigador no Instituto
de Investigação em Ciências da Vida e Saúde (ICVS).

Rui Durval
Assistente graduado de Psiquiatria e coordenador do Internato no CHPL. Diretor
do Hospital de Dia Eduardo Luis Cortesão. Coordenador da consulta de PHDA
do Adulto do CHPL.

Samuel Pombo
Psicólogo clínico do Serviço de Psiquiatria e Saúde Mental do Departamento de
Neurociências do Hospital de Santa Maria. Professor auxiliar da Clínica Universi-
tária de Psiquiatria e Psicologia Médica da Faculdade Medicina da Universidade de
Lisboa. Doutorado pela Faculdade Medicina de Lisboa da Universidade de Lisboa
na área dos comportamentos aditivos.
12 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

Tiago Duarte
Assistente hospitalar de Psiquiatria no Hospital de Santa Maria – CHULN. Assis-
tente convidado de Psiquiatria e Psicologia Médica na Faculdade de Medicina da
Universidade de Lisboa, nomeadamente do Mestrado em Doenças Metabólicas e
Comportamento Alimentar. Formação em Doenças do Comportamento Alimentar
no Maudsley Hospital.
PREFÁCIO
DANIEL SAMPAIO e HENRIQUE PRATA RIBEIRO

A primeira edição do Curso Step by Step Psiquiatria decorreu online


entre setembro e outubro de 2022, num total de 19 aulas, ministradas
por especialistas de Psiquiatria e Psicologia com experiência profissional
relevante na respetiva área.
Participaram nesta ação formativa um número significativo de médi-
cos de família, bem como alguns psiquiatras em formação. O curso
constituiu um momento importante de reflexão sobre a necessidade de
maior oferta formativa na área da Psiquiatria e da Saúde Mental, dada a
relevância do tema no momento atual.
As perturbações mentais têm prevalência significativa em Portugal,
mas não têm constituído prioridade nas políticas públicas de saúde. Mui-
tas pessoas com necessidade de cuidados não têm acesso ao tratamento,
o estigma que rodeia estas doenças e a escassez de recursos, entre outros
aspetos, dificultam uma resposta terapêutica integrada e muitas vezes
urgente para muitos doentes.
Nos cuidados primários, local onde poderia ocorrer o tratamento de
perturbações psiquiátricas frequentes como os casos de menor gravidade
de ansiedade e depressão, faltam psicólogos e outros membros da equipa
de Saúde Mental, o que impossibilita, em muitas situações, uma resposta
terapêutica eficaz. Acresce que a pandemia agravou esta situação, com o
aumento já comprovado destas patologias, que não receberam tratamento
atempado.
As páginas que se seguem correspondem às aulas que foram minis-
tradas no curso acima referido e que se reúnem agora num manual de
consulta fácil. Foram revistas pelos técnicos que as ministraram e orga-
nizadas num formato acessível, podendo ser consultadas por temas, de
acordo com o interesse do médico em questão.
14 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

No seu conjunto, consideramos que constituem um valioso conjunto


de informação para a prática clínica de muitos profissionais de saúde.
A edição deste livro só foi possível pelo apoio da Angelini, que desde
o início deste curso tem estado sempre presente, numa colaboração que
muito agradecemos.
1. HISTÓRIA DA PSIQUIATRIA
JOSÉ LUÍS PIO ABREU

Atualmente, os psiquiatras pensam, fundamentalmente, nos neuro-


transmissores (dopamina, serotonina, acetilcolina, noradrenalina) e ten-
tam arranjar uma forma de os equilibrar, pensando que tudo se poderá
resolver dessa maneira. No entanto, a visão da Psiquiatria através dos
neurotransmissores é recente.

A HISTÓRIA DOS PSICOFÁRMACOS


Os neurotransmissores foram descobertos nas décadas de 1950/1960,
e acabaram por nascer fora da Psiquiatria, pelas mãos de dois cirurgiões
que estiveram na guerra – John Cade e Henri Laborit. Laborit, cirurgião
da Marinha francesa, usava anestésicos potenciados pelas fenotiazinas
com propriedades anti-histamínicas. O seu objetivo era prolongar o
estado de choque nos pacientes cirúrgicos, retardando o mais possível
o seu metabolismo. A certa altura, ele pediu para experimentar uma nova
fenotiazina, sintetizada pelos laboratórios da Rohne Polenk (que viria
a ser a clorpromazina, o primeiro dos então chamados neurolépticos).
Quando injetado nos ratos, esta substância deixava-os perfeitamente plá-
cidos e calmos. Nessa altura, ele percebeu as consequências psiquiátricas
desta aplicação e comunicou-as a alguns psiquiatras. Estes não percebe-
ram então o potencial que ela tinha, nem a aceitaram. Contudo, esta
droga acabou por por ser injetada em humanos, levando a que os doen-
tes agitados ficassem espantosamente calmos. Estes resultados chegaram
ao conhecimento de dois psiquiatras importantes, Delay e Deniker, e a
clorpromazina começou a ser usada em vários doentes em França, assim
como nos Estados Unidos e no Canadá. Na verdade, surgira um medi-
camento que podia ser injetado ou ingerido em forma de comprimidos,
16 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

e que conseguia fazer com que os doentes psiquiátricos – queandavam


pelos hospitais e eram acorrentados – se acalmassem e não tivessem de
ficar internados. Efetivamente, a partir daí, os doentes psiquiátricos pude-
ram sair dos hospitais.
Os primeiros medicamentos psiquiátricos foram assim descobertos
casualmente. Primeiro verificaram-se os seus efeitos terapêuticos, e só
depois se indagou a razão de eles atuarem. Foi a partir daí que se descobri-
ram os neurotransmissores e a sua importância, levando ao aparecimento
de novos medicamentos. Em todo este processo, havia outro problema:
os doentes que tomavam os novos medicamentos ficavam com sintomas
parkinsónicos, o que significava que os mesmos poderiam induzir o par-
kinsonismo. Desta forma, percebeu-se a relação entre a doença de Parkin-
son e a deficiência de dopamina. Assim, nos anos 80, a partir dos efeitos
secundários dos neurolépticos, descobriu-se o modo de tratamento da
doença de Parkinson através da levodopa.
Simultaneamente, o outro cirurgião mencionado, o australiano John
Cade, recordou, em 1946, que muitos doentes que deliravam nos cam-
pos de prisioneiros ficavam melhor quando urinavam (provavelmente
quando compensavam a desidratação) Assim, começou a realizar estudos
com urina em ratos, dissolvendo ácido úrico com lítio e injetando a subs-
tância nesses animais que, inevitavelmente, acabavam por morrer. A certa
altura, em desespero, esqueceu o ácido úrico e injetou apenas o solvente
(sais de lítio). Para sua surpresa, os ratos, depois receberem as injeções,
ficavam plácidos e tranquilos. Repetiu o procedimento nos seus doentes,
verificando-se o mesmo efeito do lítio. Descobriu então que os doentes
maníacos melhoravam com esta injeção. John Cade deixou o seu traba-
lho escrito, mas ficou esquecido até um psiquiatra dinamarquês, Mogens
Schou, com uma família de maníaco-depressivos, o ter descoberto em
1952, passando a utilizar o lítio em amplos estudos com uma metodologia
que ficaria como modelo para futuros ensaios terapêuticos.
A segunda metade do século xx também ficou caracterizada por
outro aspeto importante: com o fim da guerra, assiste-se a uma época
HISTÓRIA DA PSIQUIATRIA 17

de imensas descobertas e desenvolvimento de medicamentos (as muitas


drogas utilizadas pelos nazis podem mesmo explicar o grande avanço das
tropas alemãs). Tudo isto aconteceu na segunda metade do século xx,
mas a Psiquiatria é muito anterior.

A HISTÓRIA DA PSIQUIATRIA
A Psiquiatria nasceu, na verdade, noutra altura muito crítica, durante a
Revolução Francesa. A primeira grande figura foi Franz Mesmer. Embora
fosse médico, tinha escrito sobre os fluidos universais e praticava aquilo
que mais tarde se viria a chamar “hipnotismo”. Mesmer acabou por ser
considerado um charlatão, sendo desacreditado em Paris. Mesmo assim,
as práticas dele mantiveram-se, geralmente fora da Medicina, e começara
a aparecer vários hipnotizadores que convenciam alguns médicos da vir-
tude dos seus procedimentos, com particular eficácia nas analgesias.
Um século depois, Charcot deu seguimento aos procedimentos de
Mesmer e acabou por se tornar importante na Neurologia, descrevendo
muito bem a doença de Parkinson e a esclerose lateral amiotrófica.
Porém, a “menina dos olhos” de Charcot era a histeria. Também ele foi
responsável por divulgar procedimentos hipnóticos, criando uma discus-
são enorme, que ainda hoje continua. Um dos alunos do Charcot foi
Freud, que começou a praticar a hipnose nos seus doentes, prática que
foi muito contestada, acabando por originar a psicanálise a partir dos pro-
cedimentos usados. Por sua vez, a psicanálise deu origem às psicoterapias
que, hoje, se podem considerar como poderosos recursos terapêuticos.
Em 1793, Philippe Pinel, um médico que estava impressionado com
o suicídio de um amigo, acabou por dirigir alguns asilos, retirando as
correntes aos doentes que lá permaneciam e começando a praticar um
tratamento mais humano, a que chamava tratamento moral. Considera-
-se Pinel o fundador da Psiquiatria. Na verdade, foi o primeiro dos gran-
des alienistas que trabalhavam nos grandes hospitais psiquiátricos – os
manicómios – e que foram lidando com os doentes que os ocupavam e,
pouco a pouco, iam descrevendo as suas doenças até alcançarem uma
18 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

classificação – uma nosologia – das doenças psiquiátricas. Em França, foi


seguido por Jean-Étienne Esquirol e, entre os mais conhecidos, contam-
-se Bénédict Morel e Valentin Magnan.
Morel (1857) e Magnan (1887) ficaram conhecidos pela teoria da
degenerescência. Na altura, pensava-se que as doenças mentais eram fun-
damentalmente hereditárias, aproximando a Psiquiatria da organicidade
partilhada por outras doenças médicas. Em 1822, Antoine Laurent Bayle
tinha descoberto que muitas doenças psiquiátricas estavam relacionadas
com alterações nas meninges. Não sendo esta teoria aceite pelos colegas,
Bayle acabou por estar dois anos dedicado apenas à escrita. Finalmente,
em 1927, Julius Von Jauregg, vencedor do Prémio Nobel, descobriu que
a malária poderia retardar a paralisia geral. Em tempos diferentes, Bayle,
Von Jauregg, Morel e Magnan estavam a falar da sífilis, que ensombrava
a Europa e inundava os hospitais psiquiátricos (20% ou mais dos interna-
dos), mas cuja evolução, etiologia e tratamento não se conhecia ainda,
mas que apresentava formas evolutivas distintas, desde as lesões genitais
iniciais até às lesões meníngeas secundárias e demência e paralisia finais,
com várias décadas de intervalo. A sífilis não era hereditária, mas sim
transmitida por via uterina, com estigmas visíveis nos descendentes que
sobreviviam. No entanto, pensava-se então que o comportamento promís-
cuo seria herdado pelos descendentes até à erradicação do ramo familiar.
Esta teoria errada (defendida por Lysenko) levaria à eugenia, adoptada
pelos nazis em nome da “purificação da raça”.
Em 1883, Emil Kraepelin, filho de um contador de histórias, traba-
lhou e ensinou em Leipzig e Munique. Era um homem de low profile,
que se dedicou a ouvir os seus doentes e a contar as histórias dos mesmos.
Levava os processos para casa e juntava-os segundo a analogia das histó-
rias, acabando por estabelecer uma classificação que distinguia, por um
lado, a psicose maníaco-depressiva (hoje perturbação bipolar) e, por outro
lado, a demência precoce (mais tarde, esquizofrenia). Entretanto, a Filo-
sofia começou a estabelecer uma relação com a Psiquiatria, através de
Karl Jaspers, o qual permitia que os doentes falassem, na primeira pessoa,
HISTÓRIA DA PSIQUIATRIA 19

das suas sensações subjetivas, tomadas como sintomas. Mais tarde, Kurt
Schneider – talvez dos autores mais respeitados da Psiquiatria – escre-
veu dois pequenos livros importantes. Estes falavam, por exemplo, das
personalidades, das reações, dos sintomas de primeira ordem da esquizo-
frenia e também dos sintomas primários da psicose maníaco-depressiva.
A classificação das psicoses ficou então estabelecida, da mesma maneira
que Freud, em 1911, começou a estabelecer a nosologia das neuroses
(neurose de angústia, neurose obsessiva, neurose fóbica, por exemplo),
que ainda hoje enformam as classificações psiquiátricas.

OS TRATAMENTOS INVASIVOS
Antes da definição das psicoses e neuroses, e do aparecimento dos
psicofármacos, utilizavam-se drogas extremamente fortes. Alguns psi-
quiatras, nomeadamente Donald Ewin Cameron e William Sargant,
faziam experiências completamente fora dos limites da ética e chegaram
a trabalhar no projeto MKULTRA da CIA, utilizando o coma insulí-
nico, eletrochoques, drogas alucinogénicas, o condicionamento durante
o sono e a hipnose. Na mesma altura, Robert Heath foi o primeiro psi-
quiatra a introduzir elétrodos no cérebro para realizar aquilo que agora
se chama de deep brain stimulation. Assim, conseguiu resolver situações
extremamente difíceis. Acabou por cair em descrédito quando, perante o
Senado americano, aceitou que era possível mudar completamente um
indivíduo homossexual. Nessa altura, acabou por ser proibido de exercer
a sua atividade.
Já em meados do século xx, um pouco antes do aparecimento dos
psicofármacos, ocorreu ainda a prática (e o escândalo) das lobotomias,
realizadas pelo português Egas Moniz e pelo americano Walter Free-
man. A incapacidade de lidar com os doentes amontoados nos grandes
hospitais psiquiátricos ou escondidos pelas famílias, levou muitos psiquia-
tras a optarem, em desespero, por tratamentos arriscados. Olhando para
trás, podemos constatar que o maior problema foram os atropelos éticos
que então se fizeram.
20 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

NEUROCIÊNCIAS E NOVAS TERAPIAS


Desde o final do século xx, o conhecimento do cérebro e das Neu-
rociências teve uma evolução explosiva, só comparável à evolução da
inteligência artificial. Os estudos não invasivos da atividade cerebral (por
TAC, RM ou SPECT ou usando dados do eletroencefalograma), a possi-
bilidade de interferir diretamente nessa atividade (por estimulação mag-
nética transcraniana), a descoberta do genoma humano e da epigenética
e ainda a descoberta da neurogénese (a possibilidade de se criarem novos
neurónios cerebrais a partir de células estaminais) e da neuroplasticidade
(a permanente criação de novas ligações cerebrais dependentes do com-
portamento) estão hoje na ordem do dia.
Um grande avanço no estudo das Neurociências deve-se Erik Kandel
que, durante 20 anos, a partir de 1960 (ele ganharia o Prémio Nobel
em 2000), se dedicou ao estudo da memória nas lesmas do mar. Estes
animais, como todos os que se seguiriam na linha de evolução, particu-
larmente os mamíferos, apresentava dois tipos de memória. Uma delas, de
curto prazo, dependia de meras mudanças químicas, sobretudo no hipo-
campo, mas não era relembrada, descrita ou pensada conscientemente.
A segunda, de longo prazo, dependia da formação de sinapses e alterações
estruturais dos neurónios, sobretudo no córtex cerebral, e podia ser des-
crita e pensada conscientemente pelos humanos. Esta passou a ser clas-
sificada como memória declarativa, e a primeira como não-declarativa,
tácita, implícita ou episódica, admitindo-se que ela seria não-consciente
(subconsciente ou inconsciente), mas que controlaria a maior parte do
nosso comportamento. Seria um retorno a Freud, de quem Kandel se
mostrava admirador.
O problema, ainda colocado por Erik Kandel, estava na passagem da
memória de curto prazo, no hipocampo, que era imediatamente marcado
por qualquer experiência, para o longo prazo, no córtex. Tudo leva hoje a
crer que essa passagem se processe durante os sonhos, com os movimentos
pendulares dos olhos (rapid eye movements). De um modo interessante,
a simples indução intencional desses movimentos pode levar a um estado
HISTÓRIA DA PSIQUIATRIA 21

semelhante ao sonho. Este procedimento, conhecido como EMDR


(eye movements desensibilization and reprocessing), tem sido usado para
tratar as situações traumáticas (a síndrome de stress pós-traumático).
Os movimentos laterais oculares levantam um problema antigo que tem
a ver com a lateralidade anatómica e funcional dos hemisférios cere-
brais. Enquanto o hemisfério direito isolado (nos indivíduos dextros)
parece largamente inconsciente (alojando os traumas não enfrentados),
o acesso à consciência só parece ser possível com o concurso do hemisfé-
rio esquerdo, onde se processam os signos linguísticos. Toda esta questão
não é ainda consensual e muito menos assumida pelas práticas psiquiá-
tricas atuais, embora leve à execução de tratamentos empíricos eficazes.
Além da EMDR, têm sido usadas recentemente outras terapêuticas
empíricas, como várias formas de hipnose e o neurofeedback. Também
algumas drogas, antes ignoradas ou proibidas, têm voltado ao mercado
farmacêutico. A mais recente é a ketamina, um anestésico de cavalos
que, com algumas modificações, se usa nas situações em risco de suicí-
dio, provocando um estado dissociativo enquanto os antidepressivos não
fazem efeito. Algumas substâncias alucinogénicas, como a psilocibina,
a ayahuasca, derivados da canábis (CBD), ou mesmo o LSD, têm sido
usadas experimentalmente em situações muito específicas e controladas,
aparentemente com bom resultado.
O futuro da Psiquiatria será muito diferente da prática atual. Por
agora, estamos a experimentar novos tratamentos e a perceber como eles
atuam, tal como nas décadas de 1950 e 1960 se usaram e estudaram os
primeiros psicofármacos. Percebemos muito melhor o funcionamento do
cérebro e podemos explicar as “curas milagrosas” que alguns dos nossos
doentes exibem. Devemos desistir da nossa arrogância e olhar para elas
com humildade. Para além das novas terapêuticas químicas ou físicas,
devemos dar valor ao poder das novas psicoterapias, mais curtas e eficazes.
22 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

REFERÊNCIAS
Lieberman, J. (2016). Psiquiatras – Uma História por Contar. Temas e
Debates.
Pereira, J. (2020). A Psiquiatria em Portugal nas Primeiras Décadas do
Século XX: Protagonistas. Coimbra: Imprensa da Universidade de
Coimbra.
Pio Abreu, J. (2021). Pequena História da Psiquiatria. Lisboa: Dom
Quixote.
Shorter, E. (2001). Uma História da Psiquiatria. Climepsi Editores.
2. HISTÓRIA CLÍNICA
EM PSIQUIATRIA
RUI DURVAL

Uma história clínica em Psiquiatria é como qualquer outra história


clínica em Medicina, apesar de ter certas especificidades relacionadas
com a cultura psiquiátrica.
Estruturá-la exatamente como a descrevo abaixo é mais um exercício
académico do que aquilo que fazemos no nosso dia-a-dia. Não obstante,
é importante construir periodicamente uma história clínica com os pon-
tos abaixo descritos, de forma a interiorizá-la e na prática poder fazê-la
sem tamanha exatidão, mas com o rigor suficiente para conhecer o
paciente.

ELEMENTOS DA HISTÓRIA CLÍNICA


• Identificação;
• Motivo de internamento:
• Anamnese;
• Anamnese biográfica;
• Personalidade;
• Exame objetivo;
• Exames complementares;
• Resumo;
• Discussão do diagnóstico e diagnóstico;
• Projeto terapêutico;
• Prognóstico.

A história clínica não é o relato de uma entrevista. Há uma certa


tentação, mesmo de quem já tem prática de fazer história clínica, de, em
24 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

determinadas áreas, a desenrolar como se fosse uma entrevista. Isso não


faz parte da história clínica.
A sua organização, como previamente indicado, segue uma lógica
e uma sequência que servem para organizar a informação e ajudar no
raciocínio clínico. O entrevistador nunca entra na história, exceto quando
muito relevante (por exemplo, é errado afirmar “quando lhe perguntei
pelo sono, disse que dormia bem”).
O desenvolvimento da história clínica serve como indicação para não
esquecer o relevante, mas o texto deve ser fluído, o que por si só contribui
para a organização da informação.

Identificação da avaliação
• Identificar o paciente;
• Identificar fontes de informação e circunstâncias da avaliação;
• Referir quem foi, ou foram, o(s) avaliador(es).

Motivo do internamento
Nunca descrever o verdadeiro motivo científico – usar a descrição do
doente, por palavras do próprio.

Anamnese
Não devemos usar termos técnicos. Sempre que possível, usar as pala-
vras do doente (em discurso direto, preferencialmente, ou indireto). Se
o doente disser “eu tenho uma depressão”, por exemplo, devemos tentar
perceber o que o doente quer dizer (o termo “depressão” pode não querer
dizer o mesmo para todos).
Tudo o que se encontra entre aspas representa o que o doente disse.
Negar sintomas relevantes não existentes (estamos à procura não só do
que existe, mas também do que não existe).
HISTÓRIA CLÍNICA EM PSIQUIATRIA 25

História da doença atual


• Datas, locais e formas de início. Pródromos;
• Fatores desencadeantes/precipitantes – nunca sabemos se o são, na
realidade; mas devemos identificar aqueles que o são na perspetiva
do doente;
• Descrição da sintomatologia (negar sintomas relevantes da psico-
patologia);
• Contexto biopsicossocial;
• Repercussão na vida quotidiana e disfunções;
• Fatores perpetuantes ou protetores;
• Evolução (ordenação cronológica) e resposta ao tratamento;
• Evolução e sintomatologia intercrítica quando se trata de vários
episódios;
• Problemas atuais.

História médica e psiquiátrica anterior (antecedentes pessoais)


Devemos pesquisar sistematicamente as patologias anteriores ou
atuais.

História cronológica – História pessoal


Deve fazer-se uma colheita desde o início da vida (antes de nascer).
É importante a história perinatal e pré-natal (se foi criança programada,
se foi uma gravidez indesejada, se houve complicações durante a gravi-
dez, se a mãe fumou/teve alguma infeção, se o parto correu bem, etc.).
Na infância, antes dos três anos, é importante saber (se a pessoa não
souber, registá-lo) quais foram os principais marcos de desenvolvimento,
alimentação, controlo de esfíncteres, motricidade.
Na segunda infância, deverá ser abordada a história escolar e pré-
-escolar, adaptação e integração, relação com os pares e professores.
A puberdade e a adolescência correspondem ao início da sexualidade,
sendo que associamos a esta fase comportamentos de risco – estes com-
portamentos não existem só por si, são sempre sociais, o que quer dizer
26 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

que adolescentes estudados em comparação com adultos demonstram


que não são mais impulsivos quando estão sozinhos, mas sim quando
estão interpares.
Na vida adulta, é importante conhecer a história ocupacional, mili-
tar, religião (sobretudo se praticada ativamente), atividade social, situação
habitacional, história judicial, história sexual, marital e dos relacionamen-
tos e também a história da família atual (a história familiar que incluímos
na HC não é a história da família atual; a história familiar é a história da
família de origem, em que o doente cresceu, não a família atual).

Hábitos
• Álcool, tabaco, drogas;
• Medicamentos;
• Outros relevantes.

História familiar (família de origem)


• Genograma (opcional) – Ajuda a perceber relações biológicas e
emocionais;
• Condições socioeconómicas e culturais;
• Descrever, um a um, nome, idade atual (ou quando faleceu e
como), ocupação, relação com o doente
Pai
Mãe
Irmãos
Outros elementos conviventes com o agregado familiar, mesmo
sem serem da família biológica.

Antecedentes familiares (família biológica)


Doenças familiares psiquiátricas ou outras.
Perguntar também acerca de problemas com uso de drogas e álcool,
ou suicídios.
HISTÓRIA CLÍNICA EM PSIQUIATRIA 27

Personalidade
É um assunto difícil, porque há muito que dizer sobre este fator; tudo
é personalidade – é o que distingue o doente das outras pessoas.
• Tipo físico – Por exemplo: o facto de uma pessoa ser obesa pode
modificar a sua personalidade (por ter sido provavelmente discri-
minada);
• Tipo de temperamento – Habitual estado de humor
Particularmente relevante se identificados sintomas afetivos do
humor/emoções na história da doença atual
Para descrever o temperamento, as cinco categorias de que preci-
samos são: distímico (pessoa tendencialmente triste), ciclotímico
(períodos mais ativos/alegres e períodos menos ativos/alegres),
hipertímico (energia para tudo, sempre bem-disposto), ansioso
e irritável
• Mecanismos de defesa – Como um indivíduo encara e defende os
seus conflitos internos;
• Atitudes e comportamentos habituais;
• Traços de caráter;
• Relações com outras pessoas e sociedade;
• Hábitos e rotinas;
• Valores, crenças e pertenças – Particularmente se forem muito pre-
sentes e dogmáticos;
• Autoconceito.

Atualmente, as diferentes facetas do caráter estão divididas em seis


grandes dimensões: honestidade/humildade, conscienciosidade, agrada-
bilidade social, abertura à experiência, introversão/extroversão e emocio-
nalidade/neuroticismo.

Exame objetivo
É o relato do que observamos, pelo que é natural o uso de termos
técnicos. Porém, quando existe um sinal, este deve ser exemplificado pelo
28 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

relato do doente (p. ex., o doente tem delírio místico e de grandeza: “Sou
o irmão de Deus e vou salvar a Terra.”).
• Apresentação e comportamento geral;
• Consciência;
• Orientação;
• Atenção;
• Fala, discurso, linguagem;
• Humor, afetos, emoções;
• Pensamento;
• Perceção;
• Vivência do Eu;
• Inteligência;
• Memória;
• Vida instintiva;
• Autoconsciência (insight) – Capacidade de autorreflexão; autoima-
gem, autoestima, autoconceção; consciência, etc. Perceber o que a
pessoa pensa acerca de si própria. Quando avaliamos objetivamente
o estado mental, é necessário saber se a pessoa tem consciência da
doença e se vai ou não aderir ao tratamento. É importante nesta
parte, também, a noção dos valores morais e normas sociais da
pessoa;
• Exame neurológico.

Exames complementares de diagnóstico


Todos os exames necessários à exclusão de uma causa não psiquiátrica
ou à prescrição e vigilância do tratamento.
Indicar psicometria auxiliar para esclarecimento diagnóstico – isto é
apenas uma indicação, sendo o psicólogo quem escolhe os instrumentos
que vai usar.
HISTÓRIA CLÍNICA EM PSIQUIATRIA 29

Resumo
Tudo o que existir de relevante para o diagnóstico. Não é preciso
mencionar o que é normativo, nem negar sintomatologia.
O resumo não pode conter informação que não esteja já na história,
devendo ser usados termos técnicos.

Discussão do diagnóstico e diagnóstico


• Diagnóstico diferencial.
Hipóteses de diagnóstico – Indiciar todas, mesmo que improváveis,
para as excluir da discussão. Não esquecer as causas não-psiquiátricas e
as perturbações do uso de substâncias.
Discussão do diagnóstico.
• Avaliação da funcionalidade do doente.

Projeto terapêutico e prognóstico


Projeto:
• Manter o tratamento e aumentar a adesão – Base do projeto;
• Psicoterapia e/ou psicoeducação (se indicada, para quê, de que
tipo);
• Intervenção familiar/com os cuidadores (se indicada, para quê, de
que tipo);
• Apoio/intervenção social (se indicada, para quê, de que tipo).
• Prognóstico (apresentar lista de fatores favoráveis e desfavoráveis):
normalmente, indicamos apenas “bom/muito bom prognóstico” ou
“mau/muito reservado”.

RECOMENDAÇÃO: livro de semiologia psiquiátrica – The AMDP System –


retrata um sistema criado como forma de escrever uma história clínica rápida
e eletrónica, apresentando todos os sintomas e sinais que devemos procurar e
a respetiva explicação.
30 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

REFERÊNCIAS
Broome, M., Bottlender, R., Rösler, M., & Stieglitz, R. (2018). The
AMDP system: manual for assessment and documentation of psycho-
pathology in psychiatry (9.ª ed.). Boston: Hogrefe.
Prata Ribeiro, H., & Ponte, A. (2018). Urgências Psiquiátricas (1.ª ed.).
Lisboa: Lidel.
3. PSICOPATOLOGIA COMUM
RUI DURVAL

Quando avaliamos o estado mental de um doente temos, primeira-


mente, de avaliar as alterações do estado da consciência. Uma alteração
do estado da consciência é uma situação urgente e, certamente, reflete
uma alteração cerebral aguda.

ALTERAÇÕES COGNITIVAS
Do desenvolvimento:
• Deficiência intelectual – Habitualmente com alterações genéticas;
• Espectro do autismo.

Agudas:
• Situação de urgência.

Com progressão no idoso:


• Síndromas demenciais (útil utilizar o Mini Mental State).

O USO DE SUBSTÂNCIAS
Antes de prosseguir, devemos tocar no que é um assunto em íntimo
contacto com as alterações do estado da consciência. Não podemos
esquecer que, em Portugal, o álcool é o principal problema. Atual-
mente, há evidência da neurotoxicidade do álcool em qualquer quan-
tidade.
O uso da canábis está cada vez mais liberalizado e surge como algo
que serve para muitos fins. Muitas vezes é uma substância inofensiva,
mas nos doentes mentais certamente não o será, interferindo com o tra-
tamento e a estabilidade dos mesmos.
32 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

Distingamos agora dois tipos diferentes de sintomas psicóticos que


podem ser confundidos.

SINTOMAS PSICÓTICOS
Alucinações
São alterações da perceção, quando as pessoas sentem coisas que não
estão lá.
• Alucinações acústico-verbais – Perceber quem são as pessoas, se
falam com a pessoa ou sobre ela, se dão ordens (perguntas para
determinar o grau de gravidade);
• Alucinações olfativas – Não lhes costumamos dar grande
importância no quotidiano, por não terem grande impacto
funcional, mas são muito frequentes na esquizofrenia;
• Alucinações cenestésicas, táteis ou sinestésicas;
• Outras modalidades de alucinações têm, habitualmente, uma
causa não psiquiátrica e/ou uma causa rara.

Quando há alucinações visuais, a causa não é psiquiátrica, por


norma.

Ideias delirantes, delírios


Não estão de acordo com a realidade.
• Convicção delirante;
• Ideias delirantes não sistematizadas ou delírio
Mais frequentes temas paranoides e persecutórios; quando existi-
rem ideias de grandeza, suspeitar de doença bipolar
• Paranoias – Psicoses delirantes crónicas (são sistematizadas e têm
um tema só)
Delírio de ciúmes, erotomania, hipocondria delirante
Nunca, ou quase nunca, são acompanhadas por alucinações.
PSICOPATOLOGIA COMUM 33

Como distinguir o fanático religioso do psicótico? A diferença está na


convicção delirante (a incapacidade de pôr em causa a ideia psicótica/
/delirante). Esta incapacidade não existe nas ideias “normais”.
Avancemos para abordar as patologias mais comuns na Psiquiatria e
respetivos quadros.

ESQUIZOFRENIA
A mais emblemática doença psiquiátrica, caracterizada pelos clássi-
cos sintomas psicóticos abordados antes, entre outros.

Sintomas e sinais positivos


• Fenómenos de passividade – “Alguém está a controlar-me”
Transcrição do pensamento
Inserção
Roubo
Pensamento audível
Comportamentos controlados
• Alucinações;
• Perturbação afetiva;
• Fenómenos psicomotores;
• Perturbação de pensamento e discurso;
• Delírios;
• Alterações do comportamento;
• Déficit cognitivo;
• Falta de insight.
Quando os esquizofrénicos são testados para adivinhar expressões
faciais, acertam menos do que o grupo de controlo. Percebem mal a
expressão facial do outro – esta interpretação é muitas vezes indife-
rente ou negativa (percebem um aspeto ameaçador quando este não
existe, por exemplo), já que a perceção está gravemente alterada nesta
doença.
34 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

Sintomas negativos: os “5 As” de Andreansen & Olsen


• Alogia;
• Afeto embotado;
• Anedonia/associabilidade – Explica o isolamento social;
• Abulia/apatia;
• Atenção perturbada.

MANIA – DOENÇA BIPOLAR


Na minha perspetiva, o correto seria chamar à doença bipolar de
“mania”, porque o que distingue a doença bipolar de todas as outras doen-
ças é a existência de episódios maníacos.
Os sintomas do humor, marcadores endofenotípicos de mania, resul-
tam da hipersensibilidade do sistema de ativação comportamental:
• Gastam mais energia para a mesma gratificação;
• Aumento da atividade e exploração são pródromos da mania;
• A sensibilidade SAC (sistema de abordagem comportamental)
aumenta a irritabilidade
• O fun seeking prevê a passagem de ciclotomia a doença bipolar
tipo II, e de tipo II a tipo I;
• Diminuição da saciedade;
• Resistência à frustração;
• Mais energia e maior atividade motora estão na base da mania.

Tipos de crises maníacas


Esta doença tem como característica a evolução por episódios.
• Monofásicas;
• Bifásicas – Mais frequentemente, mania seguida de depressão
(o médico, muitas vezes, interpreta a fase depressiva como sendo
“reativa” à maníaca, mas é o processo que é bifásico);
• Multifásicas;
• Mistas.
PSICOPATOLOGIA COMUM 35

Estados mistos – 1 (descritos desde Kraepelin)


Podem existir formas de transição ou autónomas (mau prognóstico) em
que surgem, ao mesmo tempo, sintomas maníacos e depressivos. O doente
está “ativado” comportamentalmente.
• Mania depressiva ou ansiosa;
• Depressão agitada;
• Mania com pobreza do pensamento;
• Estupor maníaco;
• Depressão com fuga de ideias;
• Mania inibida.

Estados mistos – 2
• Akiskal – outra forma de ver os estados mistos
Temperamento depressivo + mania
Temperamento ciclotímico + depressão
Temperamento hipertímico + depressão
• O estudo Pisa-S. Diego (estados mistos depressivos) demonstrou
que existem diferenças nos ciclos, na sua duração e pior prognós-
tico, conforme haja mais sintomas psicóticos paranoides, mais irri-
tabilidade e mais défices cognitivos.

Tipos de mania
Existe a mania expansiva (clássica), expansiva com sintomas psicó-
ticos, estados mistos com sintomas depressivos e a irritabilidade (que,
quando aparece conjuntamente a mania, é o tipo mais perigoso). Quando
existe irritabilidade, temos de pensar que o doente pode ser perigoso,
tanto para ele, como para os outros.
Estrutura da mania (estudo EPIMAN – França):
• Expansividade do humor;
• Ativação mental e afetiva;
• Aceleração psicomotora;
• Ansiedade-depressão;
36 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

• Desinibição social;
• Diminuição do sono;
• Irritabilidade/hostilidade;
• Consciência da doença – Este fator pode prever a adesão ao trata-
mento que o doente vai ter.

A hipomania é a “mania que não causa tantos estragos”.

Hipomania – o lado solar


• Precisam de menos sono;
• Têm mais vontade e energia;
• Maior atividade social, menor timidez;
• Maior atividade física;
• Mais ideias e planos, pensamentos rápidos;
• Falam mais, muitas piadas e ironia;
• Alegria demais, mais risos.

Hipomania – o lado escuro


• Mais viagens, condução imprudente;
• Compras e gastos aumentados;
• Irritabilidade, impaciência;
• Distratibilidade, falta de concentração;
• Maior interesse e necessidade sexual – Muito relevante, sobretudo
nas mulheres, pelo risco de um abuso contra o comportamento
habitual da pessoa;
• Aumento do uso de café, tabaco, álcool, drogas;
• Comportamentos de risco.

Ciclos rápidos
Além disso, existem pessoas com ciclos rápidos:
• Pelo menos quatro episódios num ano;
• Casos de ciclos semanais, circadianos e ultradianos;
PSICOPATOLOGIA COMUM 37

• Ciclos rápidos + frequentes nos bipolares tipo II;


• Provável situação transitória, autolimitado;
• Resistência ao tratamento;
• Instabilidade caracterial;
• Maior risco de suicídio;
• Agravamento do prognóstico.

Estas pessoas são, habitualmente, encaradas como tendo perturbação


da personalidade, sendo este, provavelmente, o tipo de doença bipolar
mais difícil de tratar.

Transições de diagnósticos
Diagnósticos feitos com precisão quer dos episódios, quer do tempera-
mento; mostram que há relação entre mania, hipomania e depressão e o
tipo de doença (mania unipolar, bipolar tipo I, II ou depressão unipolar).
Exemplos: hipomania relacionada com o bipolar tipo II; a hiperti-
mia provoca, muitas vezes, temperamento ciclotímico e mania unipolar;
uma pessoa com depressão unipolar pode ter uma crise hipomaníaca,
passando a ser bipolar tipo II.

Comorbilidades
Como comorbilidades da mania, podemos ver:
• Uso, abuso e dependência de álcool e/ou drogas;
• Perturbações ansiosas;
• POC;
• PHDA;
• Perturbações da personalidade;
• Alterações da tiroide;
• Enxaqueca;
• Obesidade/síndrome metabólico – Tanto pelos maus hábitos dos
doentes, como pela medicação que fazem.
38 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

SÍNDROME DEPRESSIVO
Qual a doença que está por detrás dos sintomas depressivos?
• Reação de adaptação com sintomas depressivos (p. ex., luto) – rea-
ção normal; o “luto prolongado” pode transformar-se em distimia
(depressão moderada, mas crónica);
• Episódio depressivo major;
• Episódio depressivo num doente bipolar;
• Múltiplos episódios (depressão recorrente);
• Depressão dupla – Distimia e depressão recorrente;
• Depressão secundária (drogas, fármacos, doenças);
• Depressão resistente – Não é propriamente um diagnóstico, mas
sim uma característica do síndrome depressivo (a tratar com
ketamina ou ECT).

Se alguém apresentar dois destes três sintomas persistentemente, o mais


provável é que padeça de síndrome depressiva. Se apresentar os três sin-
tomas, certamente sofre de síndrome depressiva:
• Humor depressivo
e/ou irritável
• Anedonia – Perder prazer nas coisas;
• Ideação suicidária.

Sintomas somáticos
• Apetite;
• Sono/ritmos circadianos;
• Energia;
• Sexualidade;
• Dor – Aparecimento de novas dores ou o agravamento de dor pre-
existente.

Os primeiros quatro sintomas desta lista podem cursar com aumento


ou diminuição.
PSICOPATOLOGIA COMUM 39

Sintomas psicossociais
• Ideação de culpa e ruína, e de morte – Chegam a ser delirantes;
• Desesperança/a pessoa já não pode ser ajudada;
• Pessimismo (são normalmente mais realistas do que as pessoas
normais);
• Isolamento social;
• Diminuição dos elos de suporte e apoio familiar e social;
• Autoimagem e autoconceito negativos;
• Incapacidade de ver o futuro.

POC
É fácil de diagnosticar. Estes doentes têm o “tecido do pensamento”
(ideias do próprio, desprovidas de sentido ou exageradas, reconhecidas
como tal) e o “tecido do comportamento” (as ideias só desaparecem
quando o doente tem um comportamento ritual).
Por vezes, os doentes têm delírios relacionados com a limpeza ou com a
ideia sexual, que necessitam de tratamento farmacológico. Sendo esta uma
das doenças mais difíceis de tratar, por vezes recorre-se à neurocirurgia.

REFERÊNCIAS
Sendo o presente capítulo o reflexo de uma aula, e dada a experiência
do Dr. Rui Durval, este é escrito considerando a sua interpretação de várias
obras de referência nacional e internacional a nível da psicopatologia.
Bibliografia recomendada a nível da psicopatologia:

Elementos de Psicopatologia Explicativa, José Luís Pio Abreu, Fundação


Calouste Gulbenkian
Fish, Psicopatologia Clínica, Brendan Kelly e Patrícia R. Casey
Introdução à Psicopatologia Compreensiva, José Luís Pio Abreu, Fundação
Calouste Gulbenkian
SIMS, Sintomas da Mente, Introdução à Psicopatologia Descritiva, Femi
Oyebode
4. PSICOFARMACOLOGIA
GUSTAVO JESUS e MIRIAM MARGUILHO

Este capítulo pretende fazer uma abordagem generalista à psicofar-


macologia. Sendo um tema bastante extenso, optou-se por respeitar a
estrutura utilizada para a aula a partir da qual se verteu o seu conteúdo
– a aula lecionada no contexto do curso Step by Step. Por esse motivo,
ainda que pretenda este capítulo fornecer informação útil à prática clí-
nica diária, ele não dispensa a consulta de manuais mais extensos e
informação científica mais detalhada, que podem ser encontrados na
bibliografia.
A psicofarmacologia é relativamente recente face aos restantes ramos
da farmacologia, tendo tido o seu início nos anos 50, com a síntese da
clorpromazina e, nos anos seguintes, de fármacos que constituiriam as
principais classes farmacológicas usadas nos dias de hoje. A clorproma-
zina foi o primeiro agente psicoativo com efeito terapêutico nas doenças
psiquiátricas, ao invés de as “mascarar”, como faziam os agentes usados
até então – sobretudo sedativos e hipnóticos, muitos usados nos asilos
psiquiátricos, onde eram colocados os doentes, por não haver quaisquer
opções de tratamento disponíveis. Apesar de as décadas seguintes terem
sido especialmente profícuas na síntese e comercialização de novas subs-
tâncias terapêuticas e terem permitido a desinstitucionalização de grande
parte dos doentes psiquiátricos e a sua reintegração na sociedade, esses
primeiros fármacos estavam associados a efeitos adversos importantes
(sialorreia, ganho ponderal, sonolência excessiva). Infelizmente, esta
imagem permanece na cultura popular, embora seja, hoje em dia, injus-
tificada, uma vez que os fármacos evoluíram significativamente e são, na
sua maioria, bem tolerados, com um perfil de efeitos adversos gerível e
um bom perfil de segurança.
42 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

A psicofarmacologia permitiu ainda importantes avanços no conhe-


cimento da neurobiologia subjacente às doenças psiquiátricas e na inter-
pretação das suas manifestações comportamentais, sendo a sua história
indissociável da descoberta dos princípios da neurotransmissão.
Recentemente, como resultado da colaboração de diferentes orga-
nizações científicas na área das neurociências, foi proposta uma nova
forma de designar os fármacos que atuam no sistema nervoso central – a
Neuroscience-based Nomenclature –, que pretende substituir a termino-
logia anterior, ainda frequentemente usada na prática clínica (que inclui
termos como por exemplo “antidepressivos”, “ansiolíticos” ou “antipsicó-
ticos”), por um sistema baseado na farmacologia de cada fármaco.
A Neuroscience-based Nomenclature permite ainda diminuir o
estigma associado aos termos que se baseiam em “doenças”, colocando
maior ênfase nos sistemas neurobiológicos alterados (a título de exem-
plo: em vez de dizermos que estamos a usar um “antidepressivo” para
tratar uma perturbação de ansiedade, dizemos que o fármaco usado atua
no sistema serotoninérgico, alterado nas perturbações de ansiedade).
Ao longo do capítulo, os autores usarão preferencialmente a Science-
-based Nomenclature, recorrendo pontualmente à nomenclatura antiga
para efeitos de simplificação.
Alguns dos sistemas neurobiológicos mais relevantes na psicofarmaco-
logia são os monoaminérgicos, ou seja, os que se baseiam na transmissão
serotoninérgica, dopaminérgica e noradrenérgica. Os fármacos psiquiátri-
cos, na sua maioria, atuam nestes sistemas, dentro dos quais existem diferen-
tes alvos moleculares, nomeadamente o próprio neurotransmissor, os seus
recetores, os transportadores e as enzimas que metabolizam o neurotrans-
missor. Outra ideia importante é a de que, ao atuar num destes sistemas,
essa ação vai estender-se aos restantes sistemas, uma vez que eles funcio-
nam de forma interatuante. Por exemplo, ao atuar no SERT (transporta-
dor de serotonina), inibindo a recaptação de serotonina, aumentamos a
disponibilidade de serotonina, que vai atuar em diferentes recetores, alguns
responsáveis pelos seus efeitos terapêuticos e outros por efeitos adversos.
PSICOFARMACOLOGIA 43

Além disso, esses três sistemas relacionam-se também indiretamente


com outros sistemas de neurotransmissores, como, por exemplo, o do glu-
tamato e o do GABA. Assim, por exemplo, atuar ao nível da serotonina ou
da dopamina afeta o glutamato, que é o neurotransmissor mais abundante
do nosso cérebro (responsável, por exemplo, pela neuroplasticidade).

GRUPOS PSICOFARMACOLÓGICOS
Como referido anteriormente, a divisão dos fármacos por grandes
grupos que se baseiam no seu uso em determinadas doenças é artificial e
possivelmente cairá em desuso nas próximas décadas. No caso dos “anti-
depressivos”, estes tratam não só sintomas depressivos como a perturba-
ção obsessivo-compulsiva, perturbações de ansiedade, perturbações do
comportamento alimentar, entre outras. Assim, uma forma mais precisa
de classificar os psicofármacos tendo em conta o seu perfil de ação é
a proposta na Neuroscience-based Nomenclature, tal como explicado
anteriormente neste capítulo. Ainda assim, para efeitos de simplificação,
apresentamos em seguida os principais grupos da classificação anterior,
detalhando o seu perfil farmacológico sempre que oportuno:
• Antipsicóticos;
• Estabilizadores de humor;
• Antidepressivos;
• Ansiolíticos;
• Psicoestimulantes.

Antipsicóticos
Os antipsicóticos são os principais fármacos utilizados no trata-
mento da esquizofrenia (doença psicótica por excelência, embora exis-
tam outras) e atuam nos recetores de dopamina e serotonina, entre
outros. Como já vimos, esta terminologia tende a cair em desuso, uma
vez que o seu uso clínico se estende para lá dos quadros psicóticos, e são
frequentemente usados, por exemplo, no tratamento de perturbações
do humor.
44 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

Este grupo de fármacos atua, preferencialmente, nos recetores do


neurotransmissor dopamina (sobretudo no subtipo D2) e a sua utiliza-
ção assenta na hipótese dopaminérgica da psicose. Esta hipótese propõe
que os sintomas psicóticos (os que chamamos sintomas positivos, que
incluem ideação delirante e alucinações) se devem a um excesso de ati-
vidade dopaminérgica nos recetores D2 na via mesolímbica. Esta hipó-
tese é sustentada ainda pela evidência de que fármacos que bloqueiam
os recetores D2 tratam os sintomas psicóticos. No entanto, esta hipótese
não explica a totalidade dos sintomas presentes na psicose, e sabe-se que
hoje que estão envolvidas uma multiplicidade de vias e de outros neuro-
transmissores, pelo que os fármacos usados atualmente atuam também
em outras vias e recetores. Apesar disto, os primeiros fármacos que sur-
giram para travar os sintomas psicóticos, por isso chamados antipsicó-
ticos de primeira geração, tinham como principal mecanismo de ação
bloquear os recetores D2 na via mesolímbica. No entanto, atuavam
também noutras vias, causando efeitos adversos a nível da cognição,
efeitos extrapiramidais, entre outros. Alguns exemplos deste grupo de
fármacos são: o haloperidol, a flufenazina, o zuclopentixol, o fluanxol
e a clorpromazina.
Com os fármacos de segunda geração, além do antagonismo D2,
passou a existir antagonismo 5-HT2A (um recetor da serotonina), o que
fez com que, ao bloquear a transmissão serotoninérgica, se desiniba a
transmissão dopaminérgica em vias que não a mesolímbica (passando
a ter muito menos efeitos adversos). Alguns exemplos deste grupo de
fármacos são: a risperidona, a paliperidona, a ziprasidona, a clozapina,
a olanzapina, a quetiapina e a zotepina. No entanto, apresentam o
síndrome metabólico como problema bastante comum (uma estrati-
ficação destes fármacos por risco metabólico pode ser consultada na
tabela 1) ).
PSICOFARMACOLOGIA 45

ALTO RISCO RISCO METABÓLICO BAIXO RISCO


METABÓLICO INTERMÉDIO METABÓLICO
Clozapina Risperidona Aripiprazol
Olanzapina Paliperidona Cariprazina
Quetiapina Ziprasidona

Mais recentemente, surgiu um outro grupo de antipsicóticos, designa-


dos de terceira geração, que incluem o aripiprazol e a cariprazina). Estes
fármacos fazem agonismo parcial de D2 – o seu mecanismo depende não
apenas do fármaco, mas também da disponibilidade de dopamina na fenda
sináptica –, doses mais baixas tendem a ter efeito agonista e doses mais
elevadas, a causar antagonismo D2. Isto quer dizer que podem funcio-
nar, dependendo do status dopaminérgico naquele momento, como um
agonista ou como um antagonista. Se houver pouca dopamina disponível,
o fármaco funciona tendencialmente como um agonista (ativa o recetor);
se houver demasiada dopamina disponível, funciona como antagonista.
Considerando todos os antipsicóticos, comparados em termos de
eficácia, a clozapina surge no topo da tabela, ainda que não seja uti-
lizada em primeira linha por questões relacionadas com a segurança,
nomeadamente o risco de agranulocitose. Seguem-se a olanzapina e a
amissulprida, e depois todos os outros fármacos, todos com uma eficácia
semelhante. Há que considerar, no entanto, que a eficácia global não é
o único critério de escolha, uma vez que ela pode ser estratificada em
diferentes grupos de sintomas. Além disso, variáveis a ser tidas em conta
na escolha do fármaco incluem a tolerabilidade, as vias de administração
disponíveis, entre outras.

Estabilizadores de humor
Tal como para o grupo anterior, o termo “estabilizadores de humor”
não é totalmente correto, uma vez que estes fármacos são frequente-
mente usados para outras indicações terapêuticas. Originalmente, o termo
46 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

designava fármacos que tratavam a fase aguda de mania e preveniam a sua


recorrência, “estabilizando” o polo maníaco na perturbação bipolar. Hoje
em dia, consideram-se estabilizadores de humor fármacos que tratem a
fase aguda de elação ou depressão do humor, bem como que previnam
a recorrência em ambos os polos. São um grupo farmacologicamente
heterogéneo, que inclui além do lítio (o primeiro estabilizador de humor),
fármacos classificados habitualmente como antipsicóticos e fármacos anti-
convulsivantes. No tratamento da perturbação bipolar, a escolha de deter-
minado fármaco deve ter em conta a fase em que o doente se encontra.
No tratamento de fase aguda, o fármaco pode ser eficaz para o tratamento
do polo maníaco, do polo depressivo ou para o tratamento do episódio
misto. Na fase da manutenção, o fármaco deve ter eficácia para a prevenção
da recaída maníaca e depressiva. Sabemos que os fármacos não são igual-
mente eficazes em todas as fases.

Lítio
O lítio é usado para tratar episódios maníacos há cerca de 50 anos e é
o estabilizador do humor com melhor eficácia em todas as fases da doença
bipolar. Contudo, o seu mecanismo de ação não é inteiramente conhecido.
Pensa-se que exerça os seus efeitos terapêuticos através de vias de transdu-
ção de sinal que vão para além dos recetores de neurotransmissores, através
de segundos mensageiros como o sistema de fosfatidil-inositol, modulação
de proteínas G e regulação da expressão de determinados genes.
Tem como indicações:
• Tratamento do episódio maníaco agudo – Principal;
• Prevenção da recaída maníaca (++) e depressiva (+);
• Tratamento do episódio depressivo com pouca evidência;
• Redução do risco de suicídio.
Além dos seus efeitos terapêuticos, outro dos fatores importantes a ter
em conta na escolha de um fármaco é o seu perfil de toxicidade. No caso
do lítio, é especialmente importante avaliar a função renal e tiroideia
antes de iniciar o tratamento e durante o mesmo. Além disso, a dose de
PSICOFARMACOLOGIA 47

lítio deve variar de acordo com a fase da doença. Na fase aguda, em epi-
sódio maníaco, é necessária uma dose mais alta (0,8 a 1,5 mmol/L). Na
fase depressiva, doses tão baixas quanto 0,6 a 0,75 mmol/L são eficazes.
Na manutenção, a dose deve situar-se entre 0,4 e 0,75 mmol/L.
Alguns efeitos adversos dose-dependentes são: alterações gastrintesti-
nais ligeiras, polidipsia, poliúria, tremor.
Os efeitos tóxicos são observados com níveis plasmáticos > 1,5 mmol/L:
anorexia, náusea, diarreia, ataxia, tremor e espasmos musculares.
A variabilidade da dose plasmática é de tal ordem estreita que a toxici-
dade pode manter-se após redução do lítio (não podemos enviar para casa
doentes que cheguem ao SU com intoxicação por lítio, por exemplo – é
necessária uma monitorização cuidada).
O lítio é uma molécula identificada como sendo de categoria D na
gravidez, pelo que o seu uso na mulher em idade fértil é desaconselhado,
embora em cada caso deva ser pesada de forma cautelosa a relação risco-
-benefício.
A prevenção de efeitos adversos e toxicidade pode e deve ser feita de
várias formas:
• Iniciar em dose baixa;
• Realizar medições de níveis plasmáticos após sete dias da iniciação;
sete dias após cada alteração de dose; semanalmente, até obter dose
no intervalo terapêutico. A colheita de sangue para o efeito deve ser
realizada 12 horas depois da toma do fármaco;
• Depois da dose estável, monitorizar com frequência de 3-6 meses;
• Optar por uma toma única diária sempre que possível;
• Ter atenção às interações (IECAs, tiazídicos, AINEs).

Ácido valpróico
Tal como para outros anticonvulsivantes, o mecanismo de ação de
valproato de sódio não é inteiramente conhecido. Embora não se saiba
qual é mais preponderante no seu efeito estabilizador de humor, as várias
teorias sobre o seu mecanismo terapêutico envolvem a inibição de canais
48 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

de sódio dependentes de voltagem, a potenciação dos efeitos do neuro-


transmissor GABA e a regulação de cascatas de transdução de sinal.
As suas indicações são:
• Tratamento do episódio maníaco agudo (ciclos rápidos e episódios
mistos);
• Tratamento do episódio depressivo (-);
• Prevenção da recaída maníaca e depressiva.
Os seus principais efeitos adversos são: tremor, queda de cabelo,
aumento de peso, sintomas motores e cognitivos decorrentes de hipera-
moniemia (doentes hipersensíveis), alterações hematológicas, alterações
hepáticas.
Estes efeitos podem não ser tão fáceis de evitar, como acontece, por
exemplo, com o lítio.
Não deve ser utilizado em mulheres em idade fértil, uma vez que
é teratogénico.

Carbamazepina
A carbamazepina foi o primeiro fármaco a mostrar eficácia no trata-
mento da fase maníaca da perturbação bipolar. Apesar de atuar eficaz-
mente nesta fase, tal como o valproato de sódio, parece diferir deste no
mecanismo de ação, tendo também um perfil de efeitos adversos distinto.
Tem como principais indicações:
• Tratamento do episódio maníaco agudo;
• Prevenção da recaída maníaca e depressiva;
• Tratamento do episódio depressivo com pouca evidência.
É muito usado como antiepilético, mas como estabilizador de humor
tem caído em desuso, sobretudo pelo potencial de causar múltiplas interações
medicamentosas, por ser um potente indutor enzimático do CYP450 3A4.
Como efeitos adversos destacam-se ainda os seus efeitos supressores da
medula óssea, sendo recomendado realizar uma monitorização regular
das diferentes linhagens hematológicas e os seus efeitos de toxicidade fetal
(malformações do tubo neural).
PSICOFARMACOLOGIA 49

Lamotrigina
Embora também seja usada no tratamento da perturbação bipolar,
tem indicações distintas dos fármacos mencionados anteriormente, refor-
çando a ideia de que os anticonvulsivantes com ação estabilizadora de
humor atuam através de mecanismos diferentes. É geralmente bem tole-
rada, embora esteja descrita a ocorrência (rara) de um rash cutâneo, que
pode evoluir para síndrome de Stevens-Johnson.
Está indicada para:
• Prevenção da recaída maníaca e depressiva;
• Tratamento do episódio depressivo com evidência clínica.
A dose tem de ser aumentada lentamente (principalmente, pela
possibilidade de rash), sendo o esquema habitualmente recomendado:
25 mg durante 15 dias; 50 mg durante 15 dias; 100 mg durante sete dias;
200 mg a partir daí (nem sempre é necessário subir dose até 200 mg/dia).
É importante ter em consideração as interações medicamentosas (nomea-
damente, o ácido valpróico – porque se aumentam a dose mutuamente,
quando usados concomitantemente).

Antipsicóticos
Os antipsicóticos são também muito frequentemente utilizados como
estabilizadores de humor, com muita evidência. Abaixo a tabela com
aprovações pela EMA/FDA dos antipsicóticos para as diferentes fases da
doença bipolar; outras guidelines, tais como as da CANMAT, podem
fornecer graus de evidência mais estratificados para cada fármaco e fase.

Antidepressivos
A designação “antidepressivos” é pouco correta e cairá em desuso,
uma vez que os fármacos que classicamente pertencem a este grupo são
eficazes no tratamento de várias outras entidades clínicas.
No caso da depressão, a escolha do antidepressivo depende do con-
junto de sintomas que avaliamos no doente em particular, nomeadamente
se predomina a diminuição de afeto positivo, afeto negativo aumentado,
50 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

perturbações de sono, sintomas físicos, entre outros. De seguida enume-


ramos algumas pistas (úteis, ainda que demasiado simplistas) que podem
ser úteis na escolha do fármaco:
• Se afeto negativo aumentado predominante – Fármacos seroto-
ninérgicos;
• Se afeto positivo diminuído – Fármacos dopaminérgicos;
• Numa posição intermédia, os noradrenérgicos (alguma relevância
a nível do tratamento da dor e sintomas somáticos).
A maioria dos fármacos pode ser usado em primeira linha, sendo os
mais frequentes os SSRIs, SNRIs e os multimodais.

SSRIs
Todos os SSRIs têm em comum uma característica farmacológica
importante: a inibição seletiva e potente da recaptação de serotonina,
através da inibição do transportador de serotonina (SERT). Têm um
início quase imediato de efeitos adversos e um início mais lento de efei-
tos terapêuticos (como acontece na maioria dos antidepressivos). No uso
de SSRIs, é muito frequente existir um aumento de ansiedade no início
do tratamento, pelo que poderá ser benéfico utilizar uma benzodiazepina
em esquema com planeamento de descontinuação numa fase inicial.
Os efeitos adversos mais prevalentes dos SSRIs incluem: agitação
mental, ansiedade, inibição do orgasmo e ejaculação, diminuição da
líbido e prazer sexual, náuseas e vómitos, motilidade GI, cólicas.
Habitualmente, os efeitos adversos diminuem à medida que os efeitos
terapêuticos se instalam, embora nem sempre seja assim.

Fluvoxamina
Foi o primeiro SSRI a ser lançado a nível mundial para o tratamento
da depressão, embora nunca tenha recebido essa aprovação formal pela
FDA, sendo nos EUA mais frequentemente utilizado no tratamento da
POC. É sedativo e, portanto, deve ser utilizado à noite. Além da sua ação
no SERT, exerce ainda ação nos recetores 1, onde se pensa que atue
PSICOFARMACOLOGIA 51

como agonista, contribuindo para uma ação ansiolítica bem conhecida.


Além disto, tem mostrado eficácia também no tratamento da depressão
psicótica.

Fluoxetina
Além da sua ação no SERT, tem algum efeito de antagonismo dos
recetores 5H2C, o que resulta num aumento ligeiro da NE e DA, ajudando
a explicar o seu perfil distinto dos outros SSRIs. Tem uma semivida muito
longa, o que permite que possa ser feita uma descontinuação abrupta, sem
necessidade de redução gradual, sem existirem efeitos adversos.
Deve ser tomada de manhã, por ter um perfil ativador.

Sertralina
Além da sua ação no SERT, funciona ainda como inibidor do trans-
portador de dopamina (DAT) e, tal como a fluvoxamina, liga-se ao recetor
1, embora a relevância clínica da ação nestes dois recetores não esteja
ainda totalmente esclarecida.
Deve também ser tomado de manhã, pelo seu perfil ativador.

Paroxetina
Este SSRI tem, ao contrário dos anteriores, um perfil sedativo, sobre-
tudo em fases precoces do tratamento, provavelmente relacionado com
a sua ação anticolinérgica ligeira. Além disso, tem também uma ação
inibidora do transportador da norepinefrina (NET). Tem ainda como
potencial desvantagem causar aumento do apetite e ter uma semivida
muito curta, o que dificulta a descontinuação, sendo recomendável a
redução muito gradual e lenta da dose para evitar a ocorrência de efeitos
adversos como cefaleias ou tonturas…

Citalopram/Escitalopram
O citalopram tem dois enantiómeros (S e R), sendo que o S isolado
é o escitalopram.
52 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

O escitalopram surgiu para melhorar as propriedades do seu enantió-


mero R (citalopram), com um melhor perfil de segurança, removendo as
propriedades anti-histamínicas e a restrição de doses mais altas por risco
de prolongamento do intervalo QT (que ocorrem com o citalopram).
Assim, o escitalopram é o SSRI para o qual a inibição do SERT explica,
mais provavelmente, todas (ou quase todas) as suas propriedades farmaco-
lógicas. É considerado o SSRI mais bem tolerado, com o menor número
de interações medicamentosas mediadas pelo CYP450.

SNRIs
Os SNRIs combinam a inibição do SERT (comum aos SSRIs) com
diferentes graus de inibição do NET.

Venlafaxina
Inibição SERT (transportadores de serotonina) mais potente que
NET (transportadores de norepinefrina), dependente da dose. Até à dose
de 150 mg, é apenas serotoninérgico.

Duloxetina
Inibidor SERT e NET mais equilibrado. Tem ainda a vantagem de ter
eficácia no tratamento da dor – desde dor neuropática a fibromialgia, dor
musculoesquelética crónica (como a associada a osteoartrite).

Inibidor da recaptação da dopamina – Bupropion


O bupropion é um fármaco predominantemente dopaminérgico,
pelo que deve ser usado quando existe predomínio de sintomas como
anedonia, anergia ou apatia. Tem efeito bloqueador do transportador da
Dopamina (DAT) e do NET.
Tem ainda a vantagem de estar indicado na cessação tabágica.
PSICOFARMACOLOGIA 53

Inibidores seletivos da recaptação da noradrenalina


Esta classe é menos utilizada, sobretudo pela possibilidade de recru-
tar a neurotransmissão noradrenérgica com antidepressivos de outras clas-
ses. Inclui a reboxetina e a atomoxetina (este último não é antidepressivo,
apenas sendo utilizado no tratamento da PHDA).

Antidepressivo noradrenérgico e serotoninérgico específico


Esta classe inclui a mirtazapina e a mianserina. São fármacos seguros
e bem tolerados, mas são sedativos e aumentam o apetite (aspetos que
podem ser usados a nosso favor, mas que noutros casos são efeitos adversos
indesejáveis).

Multimodais
Trazodona
É um fármaco multimodal e multifuncional, o que quer dizer que
faz inibição da recaptação da serotonina e agonismo ou antagonismo de
uma série de outros recetores.
Tem características sedativas e apresenta atividade antidepressiva a partir
da dose de 150 mg (abaixo desta dose: tratamento da insónia e ansiedade).

Vortioxetina
É um fármaco multimodal que difere dos outros SSRIs por atuar
através da modulação direta de vários recetores serotoninérgicos. É uma
molécula versátil, que funciona como agonista no recetor da serotonina
5-HT1A, como agonista parcial do recetor 5-HT1B e como antagonista
nos recetores 5-HT3, 5-HT1D e 5-HT7. Exerce ainda uma ação blo-
queadora no SERT. Apresenta como principais vantagens interferir
pouco com a função sexual (ao contrário da maioria dos SSRIs), não
ser sedativo e não causar ganho ponderal, não precisar de titulação e
ter um efeito pró-cognitivo, especialmente relevante em doentes que se
apresentam com queixas a este nível. Os efeitos adversos mais frequen-
tes são de natureza GI e poderá ser útil, quando os doentes apresentam
54 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

náuseas, alterar o horário de toma para depois do jantar ou mesmo ao


deitar.

Tricíclicos
Atualmente, tendo em conta a existência de fármacos com melhor
perfil de tolerabilidade e segurança, os fármacos incluídos neste grupo
não são considerados de primeira linha, mas são considerados por algu-
mas guidelines opções no tratamento da depressão resistente. Têm esta
designação devido à sua estrutura química, composta por três anéis. Um
dos fármacos deste grupo (a clomipramina) está indicado no tratamento
da POC e outros estão indicados no tratamento da dor neuropática e
enxaqueca (como é o caso da amitriptilina). Os efeitos adversos estão
relacionados com a ação nos recetores:
• Muscarínicos: xerostomia, visão turva, retenção urinária e obsti-
pação;
• Histamínicos (H1): sedação e aumento de peso;
• 1 adrenérgicos: hipotensão ortostática e tonturas.

Melatoninérgico – Agomelatina
A agomelatina é um fármaco com efeitos a nível dos recetores 1 e 2
da melatonina (MT1 e MT2 respetivamente) e, portanto, além de indi-
cado no tratamento da depressão, tem vantagem para o tratamento da
desregulação dos ciclos de vigília e de sono. Tem ainda ação antagonista
nos recetores 5HT2C.

Ansiolíticos
Quando falamos de ansiolíticos, referimo-nos às benzodiazepinas.
No entanto, existem outros fármacos não ansiolíticos utilizados no trata-
mento da ansiedade, como os próprios antidepressivos e os gabapentinói-
des, que abordaremos de seguida.
PSICOFARMACOLOGIA 55

Benzodiazepinas
As benzodiazepinas são fármacos que atuam ao nível do recetor do
GABA. Este é o segundo neurotransmissor mais abundante do SNC,
sendo o neurotransmissor inibitório mais abundante. O recetor do
GABA é um canal de cloro. Os fármacos que aqui atuam permitem
modular esta função, facilitando a entrada de cloro nos neurónios e,
por essa via, a inibição neuronal. Outras substâncias psicoativas atuam
no recetor do GABA, como o etanol, ainda que de forma diferente,
sendo por isso que a coadministração de álcool e benzodiazepinas não
é recomendada e aumenta os riscos. Os barbitúricos, que já não estão
em utilização, também atuam no mesmo recetor. No entanto, os barbi-
túricos atuam neste canal independentemente da presença ou ausência
de GABA no canal, sendo o seu risco muito maior. As benzodiazepinas,
por outro lado, dependem da presença de GABA, facilitando a sua
ação.
A utilização das benzodiazepinas tem sido associada a alguns
receios, entre os quais o principal é a possibilidade de dependência.
No entanto, este grupo de fármacos mantém o seu papel na prática
clínica porque é o único a aliviar de imediato a ansiedade quando
ela é muito intensa e pode ser associado a outros fármacos para
melhorar a resposta e mitigar efeitos adversos. Além disso, as benzo-
diazepinas não são todas iguais e há vários fatores que mitigam o risco
de dependência. A própria forma de iniciar e cessar a prescrição pode
mitigar esses riscos.
Do ponto de vista farmacodinâmico, as benzodiazepinas não são
todas iguais. O canal do GABA é constituído por várias subunidades, e as
diferentes benzodiazepinas ligam-se preferencialmente a diferentes tipos
de recetores GABA, e em função disso apresentam diferentes potenciais
de efeitos terapêuticos e adversos.
56 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

Neuropsychiatric Disease and Treatment 2018:14 1351–1361


Table I Model of GABAA receptor subtypes and their contribution toward benzodiazepine's
psychopharmacological effects
Reference 25, 28, 35-39, 49-52 28, 35-39, 49-52, 64 29-41, 50-53, 65 26-39, 42-49
GABAA Receptor 1 2 3 5

Sedation

Addiction

Anxciolysis

Myorelaxation

Anticonvulsive

Amnesia

Key:
contribution toward
clinical effect
Negligible Minor Moderate Significant

Por outro lado, as benzodiazepinas apresentam também diferenças


farmacocinéticas, nomeadamente relacionadas com a semivida. As ben-
zodiazepinas de semivida muito longa têm o problema da acumulação.
As de semivida relativamente longa são boas, por causarem menor efeito
“pico-vale” da dose plasmática, com melhor controlo da ansiedade e
menor tendência para aumentar dose e aproximar tomas, pela manuten-
ção mais estável da dose plasmática. Da mesma forma, é mais fácil fazer
a descontinuação de um fármaco com semivida mais longa porque cada
retirada de dose tem um menor impacto sintomático imediato em termos
de agravamento da ansiedade.
A forma de prescrever também modera o risco de dependência.
A prescrição em SOS deve ser desincentivada, e a prescrição em esquema
PSICOFARMACOLOGIA 57

é recomendada, devendo no ato da prescrição ser de imediato informada


a duração do tratamento e planeada a descontinuação.
• No tratamento da ansiedade patológica, preconiza-se uma duração
máxima de oito a 12 semanas, incluindo período de descontinua-
ção;
• No tratamento de insónia patológica, preconiza-se uma duração
máxima de quatro semanas, incluindo período de descontinuação;
• Em certas situações pode prolongar-se o período máximo de uti-
lização.
Os pacientes tratados com benzodiazepinas de forma mais prolon-
gada desenvolvem, a longo prazo, tolerância fisiológica, ou seja, é neces-
sária uma dose cada vez maior para obter o mesmo efeito terapêutico; por
outro lado e pelo mesmo motivo, ocorrem sintomas de descontinuação
quando abruptamente interrompidas, pelo que é necessário estabelecer
um esquema de descontinuação.
• Na grande maioria dos doentes, a dose não é aumentada durante
o tratamento;
• Os problemas de dependência e abuso podem ser mitigados, como
já foi dito, pela escolha da benzodiazepina e pela forma de pres-
crever.

Descontinuação gradual
Caso se verifique, após reavaliação da manutenção de necessidade
clínica e segurança do tratamento com BZD, que este deve ser interrom-
pido, quer por se ter ultrapassado o tempo recomendado e os sintomas
que motivaram o seu uso já não estarem presentes, quer por haver sus-
peita de abuso ou dependência, deve ser preparada a sua descontinuação
gradual. No entanto, pode haver situações em que, devido à gravidade
ou especificidade do quadro clínico, a cessação do tratamento com BZD
não está indicada. É importante que a suspensão da terapêutica com
BZD seja realizada através de um esquema gradual e flexível, adaptada às
necessidades do doente, evitando fazê-lo numa altura em que coexistam
58 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

vários fatores de stress acrescido na sua vida. Geralmente, este esquema


é feito com recurso à conversão para diazepam, estratégia que pretende
minimizar os sintomas de abstinência que possam ocorrer – e que são tão
mais prováveis quanto menor a semivida do fármaco.

Benzodiazepinas e demência
Outro dos receios habitualmente associados à prescrição de benzodia-
zepinas é o desenvolvimento de demência. Apesar de alguns estudos ini-
ciais o referirem, não existe evidência atual que relacione causalmente
o uso de BZD com o aumento de risco de demência. Existem, isso sim,
efeitos cognitivos a curto prazo para algumas benzodiazepinas, e a escolha
do fármaco, dose e momento em particular devem ser considerados para
mitigar esse problema.

Gabapentinoides
Pregabalina e Gabapentina
Estes fármacos ligam-se à subunidade delta alfa 2 dos canais de
cálcio dependentes de voltagem, fazendo com que os canais de tipo N
e P/Q pré-sinápticos fechem, diminuindo a atividade neuronal exces-
siva e a libertação de neurotransmissores na amígdala e em circuitos
envolvidos na resposta de medo e ansiedade. Embora relacionados
estruturalmente com o GABA, não se conhecem ações diretas neste
neurotransmissor ou nos seus recetores. Estão indicados no tratamento
da perturbação de pânico e de ansiedade social, tendo ainda eficácia
no tratamento de dor neuropática e fibromialgia, sendo uma opção em
doentes com estas comorbilidades. Uma vez que têm um mecanismo
de ação distinto, são especialmente úteis em doentes que não toleram
SSRI ou benzodiazepinas, como tratamento de segunda linha ou, em
combinação, em doentes que responderam apenas parcialmente com
estes grupos farmacológicos.
PSICOFARMACOLOGIA 59

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5. PERTURBAÇÕES DO
COMPORTAMENTO ALIMENTAR
TIAGO DUARTE

No Mundo Ocidental, estas doenças são mais frequentes nos países


industrializados e nas classes altas.
A prevalência da anorexia nervosa em Portugal é de apenas de 0,4%.
No entanto, é muito falada nos meios de comunicação social – não por
ser frequente, mas por ser uma doença grave, que pode levar à morte,
e por afetar algumas figuras conhecidas do grande público.
A bulimia nervosa é mais frequente que a anorexia nervosa – em
Portugal tem uma prevalência de 2% na população em geral. A perturba-
ção de comportamento alimentar sem outra especificação (PCA SOE)
é a mais frequente.

PICA
Características de diagnóstico
• Ingestão persistente de substâncias não nutritivas e não alimentares
(≥ 1 mês). O comportamento tem de comprometer o desenvolvi-
mento;
• Não está relacionado com hábitos culturais ou práticas socialmente
aceites.
Se ocorrer no contexto de outra perturbação mental, tem de ser sufi-
cientemente grave para ser diagnosticada.

Perturbações associadas
• Incapacidade intelectual leve, moderada ou grave;
• Perturbação do espectro do autismo;
• Esquizofrenia.
62 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

Género e idade
• Não existem diferenças entre géneros;
• Inicia-se geralmente na infância (> 2 anos) ou na adolescência;
• Gravidez;
• Existem poucos estudos relativamente à prevalência.

Complicações físicas
• Desnutrição (pouco frequente, pois não há evitamento da ingestão
alimentar);
• Obstrução intestinal.

PERTURBAÇÃO DE RUMINAÇÃO
Características de diagnóstico
• Regurgitação repetida (≥ 1 mês);
• Pode ser remastigada, reengolida ou cuspida;
• Não é atribuída a nenhuma condição física (estenose esofágica,
refluxo gastroesofágico);
• Não ocorre com outras perturbações de comportamento alimentar;
• Se ocorre no contexto de outra perturbação mental, tem de ser
suficientemente grave para ser diagnosticada.

Complicações físicas
• Desnutrição.

Prevalência
• Não existem diferenças entre sexos;
• Pode aparecer na infância (3-12 meses), na adolescência ou na
idade adulta.

Perturbações associadas
• Incapacidade intelectual leve, moderada ou grave;
• Perturbação de ansiedade generalizada.
PERTURBAÇÕES DO COMPORTAMENTO ALIMENTAR 63

PERTURBAÇÃO DE EVITAMENTO/RESTRIÇÃO
DA INGESTÃO ALIMENTAR (ARFID)
Características de diagnóstico
• Aparente desinteresse pela alimentação
Perda significativa de peso
Deficiência nutricional significativa
Dependência de suplementos ou alimentação entérica
Interferência marcada no funcionamento psicossocial
• Não é explicada por falta de alimentos ou restrição alimentar cul-
tural;
• Não ocorre com outras perturbações de comportamento alimentar;
• Não é atribuída a nenhuma condição física ou a outra perturbação
mental;
• Especificar se em remissão.
São, normalmente, indivíduos com quadros de cansaço, medo de
engasgar ou vomitar, dor abdominal, perda de peso significativo e into-
lerância ao frio.
Qual a diferença em relação à anorexia nervosa? O indivíduo não
apresenta alterações da imagem corporal, não tem medo de ganhar
peso (a preocupação é com a comida) e é comum a ingestão apenas de
alimentos com determinadas texturas particulares.

Prevalência
• Não existem diferenças entre sexos;
• Aparece na infância e pode persistir na idade adulta (ICD-10: per-
turbação da alimentação da infância).

Complicações físicas
• Desnutrição grave, ou mesmo morte.
64 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

ANOREXIA NERVOSA
Perspetiva histórica
• A sua primeira descrição foi feita por Morton, em 1694;
• Posteriormente, foi descrita por Marce, em 1859;
• Charles Lasègue e, posteriormente, William Gull descrevem a
apepsia histérica em 1873 – consideravam que existia uma carga
emocional envolvida e que a perda de peso era deliberada;
• A descrição destes autores corresponde exatamente ao quadro clí-
nico que conhecemos atualmente;
• Este aspeto vai contra a ideia de que a anorexia nervosa é poten-
ciada pela indústria da moda, apoiando a ideia de que esta é uma
doença de base biológica, que tem mantido o seu curso inalterado
ao longo dos tempos, sendo, contudo, mais rapidamente identifi-
cada hoje face a outrora.

Características
Marcada perturbação cognitiva e emocional da imagem corporal;
• Receio mórbido de engordar;
• Pressão interna patológica para a magreza, podendo coexistir perda
de peso autoinduzida por diversos métodos (restrição, vómito
autoinduzido, exercício físico intenso e abuso de laxantes);
• Mortalidade pode ser significativa (10-15%):
2/3 por complicações físicas
1/3 por suicídio.

Etiologia
Os fatores que mais contribuem para o desenvolvimento da doença
são de índole comportamental e psicobiológica.
Podemos distinguir vários períodos no âmbito do desenvolvimento
da doença:
• Período de risco acrescido;
• Período prodrómico;
PERTURBAÇÕES DO COMPORTAMENTO ALIMENTAR 65

• Período da síndrome;
• Quadro grave (a evitar).

Pessoas em risco
• Baixo peso prévio;
• Problemas alimentares;
• Dificuldades sociais;
• Défices na cognição pessoal;
• Rigidez cognitiva;
• Elevada sensibilidade à ameaça;
• Grande capacidade de protelar a recompensa.

Período prodrómico
• Mecanismos de coping agravam (evitamento da alimentação) e os
pacientes são muito perfecionistas;
• Ansiedade;
• Compulsividade.

Síndrome
• Comportamentos de controlo do peso;
• Controlo da alimentação;
• Evitam flutuações emocionais (recorrendo ao isolamento);
• Elevada sensibilidade aos mecanismos de recompensa (ficam
muito tempo sem comer, comem muito, vomitam).

Quadro grave
• Isolamento social progressivo;
• Mais impacto na qualidade de vida;
• Dificuldades de cognição social;
• Maior sensibilidade às ameaças externas.
66 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

Critérios de diagnóstico (ICD-11)


• Baixo peso: ≥ 15% abaixo do esperado, índice de massa corporal
(IMC) ≤ 17,5;
• Perda de peso autoinduzida – evitamento de comidas “gordas”,
vómito, purga, exercício excessivo, uso de supressores do apetite
e/ou diuréticos;
• Alteração da imagem corporal – “terror da gordura”: ideia
sobrevalorizada, intrusiva, e autoimposição de um limiar de
baixo peso;
• Perturbações endócrinas secundárias – efeitos de disfunção do
eixo hipotálamo-pituitária-adrenal: amenorreia, redução do interesse
sexual/ impotência, aumento da hormona do crescimento (GH),
aumento do cortisol; alterações da função tiroideia e da secreção
de insulina, etc.;
• Atraso/prolongamento da puberdade – se a doença tiver início
pré-puberal. Observa-se a redução do crescimento, amenorreia pri-
mária, atraso no aparecimento dos carateres sexuais secundários
(ausência de crescimento mamário).
Todos os critérios deverão estar presentes para diagnóstico definitivo
dos casos típicos.

Subtipos
• Restritivo;
• Ingestão compulsiva/purgativa.
Especificar se:
• Leve – IMC ≥ 17 kg/m2;
• Moderada – IMC entre 16 e 16,99 kg/m2;
• Severa – IMC entre 15 e 15,99 kg/m2;
• Extrema – IMC < 15 kg/m2.
PERTURBAÇÕES DO COMPORTAMENTO ALIMENTAR 67

Prevalência e cultura
• 10 : 1 (sobretudo mulheres jovens);
• Habitualmente começa na adolescência, tendo dois picos: por
volta dos 14 e dos 16 anos;
• Raramente se dá em > 30 anos;
• Homens, aproximadamente aos 12 anos.

Características físicas
• Cardiovasculares: Hipotensão; prolongamento do QT; arritmias
(défices de potássio – causada pelos vómitos); cardiomiopatia;
• Gastrintestinais: prolongamento do trânsito gastrintestinal (atraso
no esvaziamento gástrico, diminuição da motilidade intestinal);
obstipação;
Nota: agentes procinéticos podem acelerar o esvaziamento gástrico
e aliviar o “inchaço” abdominal, o que pode catalisar a retoma de
hábitos alimentares normais;
• Endócrinos e metabólicos: hipocaliemia; hiponatremia; hipogli-
cemia; hipotermia; função tiroideia alterada; hipercortisolemia;
atraso na puberdade; fraturas por osteoporose;
• Renais: cálculos renais;
• Neurológicos: neuropatia periférica – necessário exame neu-
rológico e eventual TAC, que pode revelar perda de volume
cerebral: aumento do volume dos ventrículos, alargamento dos
sulcos, atrofia cerebral (pseudoatrofia – corrige com o aumento
de peso);
• Hematológicos: anemia; leucopenia; trombocitopenia;
• Ginecológicas: amenorreia (por disfunção do eixo hipotálamo-
-pituitária-adrenal com níveis baixos de FSH e LH, apesar dos
níveis baixos de estrogénio), que pode persistir (5-44% dos casos)
mesmo após recuperação do peso normal;
• Ósseos: osteopenia (osso cortical e trabecular), que persiste apesar
da terapêutica com estrogénio. Verificar história de fraturas.
68 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

Para avaliar as características físicas, pode ser utilizada a checklist


MARSIPAN (Management for Really Sick Patients with Anorexia Nervosa
– dividida em três partes: assessing, refeeding e managing).
Relativamente à prevenção da síndrome de realimentação, é expectá-
vel que a pessoa aumente o peso 1-1,5 kg no internamento, ou 300-500 g
em ambulatório, por semana.

Complicações físicas
• Consequências da desnutrição:
Paragem do crescimento
Amenorreia
Pele seca, queda de cabelo e lanugo (aumento de pelos finos na
superfície corporal, comum nos bebés)
Falência cardíaca
Osteoporose (pela alteração dos estrogénios)
Morte eventual
• Complicações semelhantes às da bulimia nervosa quando se fala
de anorexia nervosa do tipo purgativo.

Avaliação clínica
• Estabelecer o contexto no qual os problemas surgiram;
• Detalhar a perda ponderal (há quanto tempo começou a perder
peso, qual o peso máximo na vida, o mais baixo, etc.), as alterações
alimentares e o exercício excessivo;
• Confirmar o diagnóstico de perturbação do comportamento alimentar;
• Avaliar as complicações médicas decorrentes da malnutrição;
• Apurar o risco de comportamento autolesivo/suicídio.

Exame objetivo
• Perda de massa muscular, cabelo e unhas frágeis;
• Pele calosa no dorso das mãos, em regra a direita, com escoriações
sobre as articulações interfalângicas (sinal de Russell);
• Hipercarotenemia (escleróticas e pele amarelas);
PERTURBAÇÕES DO COMPORTAMENTO ALIMENTAR 69

• Pelos finos no corpo (lanugo), erosão do esmalte dentário;


• Cianose periférica; hipotensão; bradicardia; hipotermia; atrofia
mamaria; inchaço das glândulas parótida e submaxilares; abdó-
men inchado (dilatação intestinal devido a redução da motilidade
e obstipação); neuropatia periférica.

Psicopatologia
• Voz anorética (pseudoalucinação, voz interna que reconhece como
de si mesma);
• Rigidez cognitiva;
• Problemas de concentração/memória;
• Irritabilidade (não toleram flutuações do mundo externo);
• Humor depressivo;
• Baixa autoestima;
• Insónia;
• Diminuição da libido;
• Isolamento social;
• Pensamentos obsessivos face à comida.

Perturbações associadas
• Sintomas depressivos ou perturbação da personalidade nos casos
acima dos 18 anos (pode existir comorbilidade com perturbação
distímica e perturbação depressiva major);
• Perturbação dismórfica corporal;
• Doenças físicas crónicas debilitantes;
• Tumores cerebrais de novo;
• Doenças gastrointestinais (p. ex., doença de Crohn, síndromes de
má absorção);
• Traços obsessivo-compulsivos da personalidade – eventual pertur-
bação obsessivo-compulsiva (mais frequente no tipo restritivo);
• Padrão familiar de:
Perturbações do comportamento alimentar
Perturbações do humor.
70 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

Diagnóstico diferencial
• Depressão melancólica (perda de peso e insónia terminal);
• Infeção crónica;
• Doença ulcerosa;
• Síndromes de má absorção intestinal;
• Síndrome da artéria mesentérica superior/Wilkie;
• Doença inflamatória intestinal (colite ulcerosa, doença de
Crohn);
• Hipertiroidismo;
• Diabetes mellitus tipo I;
• Neoplasia (incluindo tumores hipotalâmicos).

Abordagem terapêutica
Ter em atenção que as complicações médicas podem necessitar de
intervenção urgente/internamento.
• Os doentes devem ser referenciados para consulta de Psiquiatria
especializada em comportamento alimentar, quando existente;
• Depois da intervenção nas complicações médicas, ponderar inter-
namento;
• Hospitalização deve ser considerada apenas se houver problemas
médicos graves – internamento compulsivo ao abrigo da Lei de
Saúde Mental se necessário, em caso de risco de vida;
• A terapêutica farmacológica com maior evidencia é a olanzapina
em baixas doses (2,5-10 mg ao deitar);
• Psicoterapia familiar/sistémica; psicoterapia interpessoal ou psico-
terapia cognitivo-comportamental;
• Necessidade de cumprir plano alimentar definido junto de nutri-
cionista clínico (alimentação polifracionada, com eventual associa-
ção de suplementos nutricionais).
PERTURBAÇÕES DO COMPORTAMENTO ALIMENTAR 71

Indicações para internamento


• Perda ponderal extremamente rápida que não foi resolvida com
tratamento ambulatório;
• IMC muito baixo;
• Alterações eletrolíticas graves (risco de vida devido a hipocaliemia
ou hiponatremia);
• Complicações fisiológicas graves, p. ex., temperatura < 36 oC, sin-
cope por bradicardia (FC < 45 bpm) e/ou marcada diminuição na
pressão arterial em ortostatismo;
• Complicações cardíacas ou outras doenças médicas agudas;
Sintomas psicóticos ou risco significativo de suicídio.

Evolução
Inicia-se (quase) sempre com uma dieta.
• Frequentemente, a procura de ajuda médica/psiquiátrica tem a
oposição do doente;
• Atualmente, o diagnóstico é feito de forma mais rápida;
• Evolução:
Resolução rápida
Resolução lenta
Crónica
Eventualmente mortal
Possível passagem para bulimia nervosa.

BULIMIA NERVOSA
Descrita muito por Gerald Russell em 1979, foi introduzida em 1980
no DSM-III (APA). Do grego “bolimus” – fome de um boi.

Características clínicas
• Episódios recorrentes de ingestão alimentar compulsiva (crise bulí-
mica);
72 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

• Comportamentos compensatórios do aumento de peso (manobras


purgativas ou restritivas);
• Autoavaliação e autoestima com ênfase excessiva no corpo e no peso.

Critérios de diagnóstico (ICD-11)


• Preocupação persistente com o ato de comer;
• Irresistível desejo de comida;
• Episódios de ingestão alimentar compulsiva;
• Tentativas de contrariar os efeitos de “aumento de peso” dos ali-
mentos (vómitos autoinduzidos, abuso de purgantes, períodos de
fome, utilização de fármacos, p. ex., supressores do apetite, tiro-
xina, diuréticos);
• “Pavor da gordura”, com autoimposição de um limiar de baixo
peso.
Todos deverão estar presentes para diagnóstico definitivo dos casos
típicos.
É importante especificar o número de episódios por semana:
• Leve: 1 a 3;
• Moderada: 4 a 7;
• Severa: 8 a 13;
• Extrema: >14.

Neuroprogressão: o impacto do jejum e do binge no cérebro


Os modelos que explicam o surgir do mecanismo de binge baseiam-se
em ter à disposição comida altamente palatável (batatas fritas, ovos estre-
lados, refrigerantes, etc.) de forma intermitente, o que gera períodos de
hiperglicemia, com o consequente aumento de dopamina. Concomitan-
temente, associa-se a indução de stress (horários de trabalho longos, pou-
cas horas de sono) e limitação do acesso à comida. Neste contexto, temos
um aumento da sensibilização do circuito da recompensa e a indução de
uma adição à própria comida, com a aprendizagem deste comportamento
e períodos de verdadeira “abstinência de comida”.
PERTURBAÇÕES DO COMPORTAMENTO ALIMENTAR 73

Perturbações associadas
• Sintomatologia depressiva – perturbação distímica e perturbação
depressiva major;
• Abuso ou dependência de substâncias (≈1/3 das pessoas com a
patologia);
• Perturbações da personalidade sobretudo perturbação de persona-
lidade estado-limite/borderline (1/3 a 1/2 das pessoas com a pato-
logia);
• Padrão familiar de:
Perturbações do comportamento alimentar
Perturbações do humor
Abuso e dependência de substâncias
Obesidade.

Prevalência – Cultura
• Incidência de 1-1,5% em mulheres, com início mais frequente-
mente no final da adolescência, e apresentação na segunda ou
terceira décadas de vida;
• Maior prevalência nos países industrializados – nestes países, a pre-
valência varia entre 1% a 3% numa população feminina entre os
14 e os 40 anos;
• A incidência está a aumentar no mundo industrializado e nos paí-
ses em vias de desenvolvimento.

Evolução
• Início durante ou após uma dieta;
• O comportamento persiste, em média, durante vários anos, até à
procura de tratamento;
• Evolução:
Resolução rápida
Crónica
Intermitente.
74 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

Bulimia multi-impulsiva
• Elevada gravidade;
• Comportamento bulímico associado a automutilação e tentativas de
suicídio; consumo de tóxicos; roubos; múltiplos parceiros sexuais.

Complicações físicas
• Erosões dentárias e perda do esmalte dentário;
• Ingurgitamento das glândulas salivares e sinal de Russell;
• Irregularidades menstruais;
• Arritmias cardíacas e insuficiência cardíaca (morte súbita);
• Distúrbios hidroeletrolíticos (hipocaliemia, hiponatremia, hipoclo-
remia, acidose metabólica [laxantes] ou alcalose [vomito]);
• Erosões esofágicas, perfuração esofágica/gástrica; úlceras gástricas/
duodenais; pancreatite;
• Obstipação/esteatorreia;
• Leucopenia/linfocitose.

Abordagem terapêutica
• Referenciar para consulta de Psiquiatria especializada em compor-
tamento alimentar, quando existente;
• A maioria será tratada em ambulatório;
• Internamento apenas se ideação suicida com plano estruturado,
problemas físicos graves, casos refratários extremos, ou gravidez
(devido ao risco aumentado de aborto espontâneo);
• Terapêutica farmacológica: maior evidência para inibidores da
recaptação de serotonina (SSRIs) em alta dose (fluoxetina 60 mg)
– necessidade de tratamento prolongado (> 1 ano);
• Psicoterapia familiar/sistémica; psicoterapia interpessoal ou psi-
coterapia cognitivo-comportamental (reforço positivo quando a
pessoa vai comendo várias vezes ao longo do dia – o objetivo será
a pessoa sentir-se alimentada ao longo do dia, para não ter a neces-
sidade de “comer muito num curto espaço de tempo”);
PERTURBAÇÕES DO COMPORTAMENTO ALIMENTAR 75

• Necessidade de cumprir plano alimentar definido junto de nutri-


cionista clínico.

PERTURBAÇÃO DE INGESTÃO ALIMENTAR COMPULSIVA


(BINGE EATING DISORDER)
Tem uma prevalência de 3,5%, sendo mais comum do que a buli-
mia nervosa. Em regra, o IMC está no limite superior do normal, ou há
excesso de peso.

Critérios de diagnóstico (ICD-11)


• Consumo de grande quantidade de comida num curto período,
mais do que a maioria das pessoas em iguais circunstâncias
• Sentimento de perda de controlo, de culpa, de vergonha e de nojo
durante o episódio
• Impossibilidade de parar, sem a noção de fome ou saciedade
durante o período compulsivo alimentar
• Sem recurso a mecanismos compensatórios inapropriados destina-
dos a perder peso
• Os episódios provocam sofrimento e ocorrem, pelo menos, uma
vez por semana durante três meses.

Abordagem terapêutica
• Farmacológica:
• SSRIs (p. ex., fluoxetina 60 mg/dia);
• Topiramato (começar com 50 mg/dia) – tomar 1/2 hora antes do
episódio compulsivo, que costuma ocorrer sempre à mesma hora
do dia;
• Dimesilato de lisdexanfetamina (começar com 30 mg/dia).
Necessidade de cumprir plano alimentar definido junto de nutricio-
nista clínico.
76 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

OUTRAS ESPECIFICAÇÕES DE PERTURBAÇÃO


DO COMPORTAMENTO ALIMENTAR
• Anorexia nervosa atípica;
• Bulimia nervosa de menor frequência (e não de frequência semanal);
• Perturbação de ingestão compulsiva de menor frequência;
• Perturbação de purga – ausência de binge.

PERTURBAÇÃO DO COMPORTAMENTO ALIMENTAR


SEM OUTRA ESPECIFICAÇÃO
• Não preenchem os critérios completos para uma perturbação do
comportamento alimentar específica;
• Grande maioria dos casos – até 34% numa população feminina
entre os 14 e os 40 anos;
• Tratamento consoante a situação e de acordo com a patologia mais
semelhante.

EM SÍNTESE
Doenças do comportamento alimentar de tipo restritivo
Surgem mais cedo, com grande predisposição genética, maior rácio
de mulheres com grande suscetibilidade à desregulação do apetite,
grande vulnerabilidade metabólica, influências perinatais.
Traços de personalidade: rigidez, atenção aos detalhes, não tolera
erros/incerteza, perfecionismo, controlo de impulsos, habilidade de
atraso de recompensa (ao contrário do tipo bulímico), diminuição da
expressividade fácil, défice de sensibilidade social, grande sensitividade
ao ranking social e à ameaça, alexitimia.
Fatores psicossociais: problemas alimentares nos pais, stress por pares,
exposição a trauma precoce, influência cultural, família de estrato socioe-
conómico mais elevado.
Comportamentais: controlo de peso e comida, preocupação com
IMC, coping por evitamento e perfecionismo.
PERTURBAÇÕES DO COMPORTAMENTO ALIMENTAR 77

Doenças do comportamento alimentar tipo bulímico


Ocorrem mais tarde, tendo já maior prevalência em homens e nos
povos asiáticos. Comportamento impulsivo.
Traços de personalidade: adversidades na infância, quadros de défice
de atenção, incapacidade de atrasar recompensa, problemas de cognição
social, perturbação da imagem corporal, alexitimia.
Fatores psicossociais: problemas alimentares nos pais, stress por pares,
fat talk (sente culpa e inicia registo de binge e purga), exposição a trauma
precoce, influência cultural, idealização da magreza.
Comportamentais: preocupação com IMC, coping por evitamento e
perfecionismo, isolamento social.

REFERÊNCIAS
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weight and obsessive thinking in women with anorexia nervosa:
a randomized, double-blind, placebo-controlled trial. The American
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help screen for eating disorders. Journal of general internal medicine,
18(1), 53–56. https://doi.org/10.1046/j.1525-1497.2003.20374.x
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tar. Em: Ponte, A., & Prata Ribeiro, H. Urgências Psiquiátricas
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Lima, C. (2012). Contributo para a validação da versão portuguesa do
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portamento alimentar. Repositório Aberto da Universidade do Porto.
https://hdl.handle.net/10216/67767
Sampaio, D., Figueira, M. L., & Afonso, P. (2014). Manual de Psiquiatria
Clínica (1.ª ed.). Lisboa: Lidel.
Semple D., & Smyth R. (2013). Oxford Handbook of Psychiatry
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78 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

Taylor, D., Paton, C., & Kapur, S. (2015). The Maudsley Prescribing
Guidelines in Psychiatry (12.ª ed.). West Sussex: Wiley-Blackwell.
Treasure, J., Antunes-Duarte, T., Schmidt, U. (2020). Eating disorders.
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World Health Organization. (2019). ICD-11 - International Classification
of Diseases 11th Revision. Retrieved from https://icd.who.int/en
6. INSÓNIA
ANDRÉ PONTE

As perturbações do sono encontram-se divididas de forma ligeira-


mente diferente entre as várias classificações existentes. A versão mais
comumente utilizada na Medicina do Sono é a ICSD-3 (International
Classification of Sleep Disorders, 3.ª edição), que inclui na sua última ver-
são as atualizações mais recentes sobre o sono e respetivas perturbações.
Nesse sentido, optou-se por organizar os conteúdos do tema de acordo
com este sistema de classificação. A ICSD-3 divide as perturbações do
sono em seis categorias principais:
– Insónia;
– Perturbações respiratórias relacionadas com o sono;
– Hipersónias de origem central;
– Perturbações do ritmo circadiano do sono;
– Parassónias;
– Perturbações do movimento relacionadas com o sono.

A ICD-11 (International Classification of Diseases, 11.ª edição) cria


um novo capítulo com a sua nova versão onde organiza as perturbações
do sono de uma forma muito semelhante ao ICSD-3. Neste capítulo,
vamos focar-nos na insónia.

INTRODUÇÃO
Apesar da frequência e impacto causado pela insónia, os mecanismos
por detrás desta ainda não são totalmente conhecidos.
As teorias existentes sugerem alterações a nível da função cerebral,
com fatores genéticos, comportamentais, cognitivos e emocionais envol-
vidos, tanto no desenvolvimento como na sua manutenção. A forma mais
80 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

fácil de os dividir é no modelo conhecido como três “Ps” de Spielman,


que abordaremos à frente.
Sabemos que a insónia está associada a inúmeras comorbilidades psi-
quiátricas e não psiquiátricas. A sua prevalência aumenta quantas mais
são as patologias de que padece uma pessoa, mas, de facto, não se pode
partir do pressuposto de que a insónia é apenas secundária a outros
problemas. Só por si, a insónia:
• Diminui a qualidade de vida do indivíduo;
• Aumenta o risco de problemas de saúde futuros;
• Agrava problemas de saúde coexistentes;
• Permanece mesmo quando outros problemas de saúde melhoram.
Nesse sentido, a insónia deve ser sempre tratada.

Prevalência
A prevalência no mundo inteiro de sintomas de insónia é de aproxi-
madamente 30-35%, sendo que a perturbação de insónia está presente
em cerca de 10% da população.
Embora a insónia possa ser situacional ou recorrente, a sua evolução
é geralmente crónica, com duração mediana de três anos e taxas de per-
sistência variando de 56% a 74% num ano.

Comorbilidades
É importante lembrar que as perturbações do sono podem sobrepor-
-se ou serem comórbidas entre si ou com outras doenças mentais.
Posto isto, devemos identificar e tratar a insónia, que existe também
em associação com:
• Patologia psiquiátrica – Insónia associada a uma perturbação men-
tal em 30-40% dos casos;
• Perturbações do sono – 5 a 9% associado a perturbações respirató-
rias do sono como a síndrome de apneia obstrutiva do sono; cerca
de 15% associado a síndrome das pernas inquietas ou movimentos
periódicos do sono.
INSÓNIA 81

Insónia e perturbação mental


Sabe-se que a insónia e as perturbações mentais têm uma relação
bidirecional:
• Abandonaram-se os conceitos de insónias primárias ou secundárias
Atualmente, a insónia divide-se em curta duração (menos de três
meses) ou crónica (mais de três meses)
• 30 a 60% das pessoas com perturbação mental queixa-se de insónia
80% dos indivíduos com depressão também se queixam de insónia
• Uma revisão sistemática de 2018 (Cunningham e Shapiro, 2018)
mostra que o tratamento de insónia em doentes com depressão atra-
vés de terapia cognitivo-comportamental dirigida à insónia (TCC-i)
pode levar a melhorias da depressão similares aos efeitos de anti-
depressivo, com menos efeitos adversos ou contraindicações.

INSÓNIA E AS PERTURBAÇÕES DO SONO


Como referido no início do tema, segundo a ICSD-3 existem seis
grandes grupos, sendo que para efeitos deste capítulo gostava que tomas-
sem atenção aos três grupos seguintes:
Insónia
• Insónia de curta duração;
• Insónia crónica;
• Outras perturbações de insónia.

Perturbações respiratórias relacionadas com o sono:


Aqui incluem-se as condições caracterizadas por perturbações respi-
ratórias que ocorrem durante o sono:
• Síndrome de apneia obstrutiva do sono (SAOS);
• Síndrome da apneia de origem central;
• Hipoventilação relacionada com o sono;
• Hipoxemia relacionada com o sono.
82 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

Perturbações do movimento relacionadas com o sono:


Estas condições caracterizam-se pela presença de movimentos sim-
ples e frequentemente estereotipados que ocorrem durante o sono ou ao
adormecer. Dividem-se em:
• Síndrome das pernas inquietas (SPI);
• Perturbação dos movimentos periódicos do sono (PMPS);
• Bruxismo, cãibras, mioclonias e movimentos rítmicos relacionadas
com o sono;
• Perturbações do Movimento relacionadas com causa médica, subs-
tâncias, medicação ou doença psiquiátrica.
Numa avaliação sumária de queixas de insónia, é importante ter em
mente pelo menos a SAOS, a SPI e a PMPS.

Fatores de risco – Modelo dos “3 Ps”, de Spielman


Existem vários modelos explicativos da insónia, mas o mais utilizado
é o modelo dos “3 Ps”, de Spielman. No seu modelo, Spielman referia
que uma insónia era mais bem compreendida por três tipos de factores
de risco:
• Predisponentes
Idade avançada
Comorbilidade médica
Sexo feminino
Traços de personalidade obsessivos
Horário de sono “social” diferente do horário de sono biológico,
trabalhadores por turnos
• Precipitantes
Eventos de vida stressores: desemprego, dificuldades económi-
cas, morte de um familiar, problemas conjugais, etc.
• Perpetuadores
Higiene do sono inadequada
Comportamentos agravantes da insónia (ir mais cedo para a
cama, dormir à tarde, horários irregulares, etc.)
INSÓNIA 83

Erros cognitivos que aumentam a ansiedade relativamente à


insónia (p. ex., “se eu não conseguir dormir oito horas, amanhã
não me vou conseguir concentrar no trabalho e o meu dia estará
arruinado”).
Os predisponentes por si só não levam a insónia (apesar de aumenta-
rem o risco), os precipitantes podem levar a uma insónia aguda, mas para
que a cronicidade da insónia ocorra é necessária a existência de fatores
perpetuadores. Os fatores perpetuadores são o alvo da TCC-i.
As características do sono também variam ao longo da vida. Sabemos
que existe uma diminuição do sono profundo e ocorre um aumento do
período em que uma pessoa está acordada a meio da noite. A verdade
é que uma mesma pessoa, aos 75 anos, em média, necessita de dormir
menos uma hora e meia do que dormia aos 25 anos – no entanto, a pessoa
passa o mesmo tempo na cama (daí que exista um aumento do tempo
em que a pessoa está acordada a meio da noite e maior risco de insónia).

Critérios de diagnóstico da insónia (segundo a ICSD-3)


Critério A: o doente relata dificuldade em iniciar o sono, manter o
sono ou terminar o sono;
Critério B: o doente relata impacto diurno (fadiga, dificuldades da
atenção, irritabilidade, sonolência diurna, desempenho profissional, insa-
tisfação com o sono, etc.);
Critério C: as queixas em A e B não são explicadas por oportunidades
ou circunstâncias desadequadas para iniciar o sono;
Critério D: se há menos de três meses – insónia de curta duração;
se há mais de três meses – insónia crónica;
Critério E: sintomas não são explicados de forma tão efetiva por outra
perturbação do sono.
Assumindo estes critérios, conseguimos perceber que, se estivermos
perante uma pessoa que dorme pouco sem que tal tenha impacto no
seu quotidiano, possivelmente estamos perante um short-sleeper e não
propriamente uma insónia. Se estivermos perante alguém que dorme
84 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

pouco, porque não teve oportunidades ou circunstâncias adequadas para


iniciar o sono, esta pessoa está em privação de sono e não com insónia.

COMO AVALIAR O SONO DE FORMA SISTEMÁTICA?


A avaliação clínica do sono deve ser a mais estruturada possível, de forma
a rastrear todas as perturbações do sono passíveis de causar impacto funcio-
nal no doente. A avaliação proposta é adaptada de Hugh Selsick (2018).
Este modelo, apesar de ser dirigido para a insónia, pode ser utilizado
para todas as perturbações do sono, podendo ser aprofundado ou encur-
tado consoante o caso e o contexto em que é feita a avaliação.
1. Caracterização do sono;
2. Sinais e sintomas associados;
3. Antecedentes.
Nota: Nem todas as avaliações têm de passar por todas as fases; em
média, uma avaliação completa demora ~ 30 minutos.

Na caracterização do sono
a) Queixas principais e cronologia dos sintomas
É fundamental perceber qual a queixa principal, aquilo que mais
preocupa o utente, de forma a direcionar a abordagem e o tratamento.
Exemplos de perguntas que podem ser colocadas: “Como é o seu sono?”,
“Desde quando é que acha que é um problema?”, “O que acha que está
a causar o problema?”
Explorar o início dos sintomas, como evoluíram ao longo do tempo,
variação de noite para noite e relação entre os mesmos sintomas. É muito
importante estabelecer uma relação entre o início dos sintomas e o
começo ou término de fármacos ou outras substâncias.

b) Noite típica
Não queremos descrever a melhor ou a pior noite de uma pessoa,
queremos a habitual. Devemos descrever o ciclo do sono típico da pessoa:
“A que horas vai para a cama?”, “Quanto tempo demora a adormecer?”,
INSÓNIA 85

“Acorda quantas vezes durante a noite?”, “Quanto tempo está acordado


durante esses despertares?”, “A que horas acorda e já não volta a dormir?”,
“Usa despertador?”, “A que horas sai da cama de vez?”, “Quanto tempo
acha que acaba por dormir numa noite?”

c) Impacto funcional
Na maior parte das perturbações do sono, o maior impacto é sentido
durante o dia e não durante a noite. Devem ser explorados sintomas cog-
nitivos, alterações do humor, perda de funcionalidade laboral, dificulda-
des durante a condução.

d) Diagnóstico diferencial
d1 – Insónia
Além do já caracterizado nas secções anteriores, pode ser importante
procurar fatores perpetuadores adicionais, pois, como já vimos, são aque-
les nos quais conseguimos atuar. Devemos também estar atentos para
sinais de má higiene do sono.

d2 – Síndrome das pernas inquietas (SPI)


ou movimentos periódicos do sono (MPS)
“Costuma sentir uma sensação estranha ou desconfortável nas
pernas, que começa ao final da tarde ou à noite e parece aliviar com
o movimento?” Esta pergunta mostrou ter uma sensibilidade de 100% e
uma especificidade de 96,8% para SPI, num estudo realizado em doentes
neurológicos seguidos em ambulatório. Deve ser colocada em todas as
avaliações sumárias de insónia.
Os sintomas são mais comuns à noite e geralmente estão ausentes
(ou são de baixa intensidade) durante o dia – relacionado a variação cir-
cadiana da dopamina, com os níveis mais baixos à noite.
Os MPS são mais difíceis de detetar com história clínica.
• São movimentos involuntários, repetitivos, separados por intervalos
regulares, normalmente durante o sono, que envolvem a flexão da
86 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

perna e da coxa, a dorsiflexão do pé e extensão do primeiro dedo


do pé – podem levar a vários despertares noturnos, causando sono
não reparador;
• Mais frequentes na primeira metade do sono;
• Ocorrem em 80 a 90% dos doentes com SPI.

d3 – Síndrome de apneia obstrutiva do sono (SAOS)


A história clínica deve ser colhida, sempre que possível, com o
companheiro de cama. Devemos perguntar se o companheiro de cama
alguma vez presenciou períodos de apneia durante a noite.
Se não existir companheiro de cama, algumas questões podem ser
úteis na investigação de sinais e sintomas associados à SAOS: “Costuma
fazer muito barulho a respirar durante a noite?”, “Há alturas em que tem a
sensação de que para de respirar ou se engasga?”, “É costume suar muito
durante a noite?”, “Acorda à noite para ir urinar?”, “É um volume maior
do que o normal?” (normalmente, é um valor excessivo), “Acorda de
manhã com a garganta seca ou com dores de cabeça fortes?” Também
estas questões devem fazer parte da avaliação sumária da insónia.
Fadiga vs. sonolência: dois conceitos importantes de distinguir na
entrevista com o doente (os dois podem estar presentes na SAOS; na
insónia, a pessoa sente normalmente fadiga, mas não propriamente sono,
apesar de poder acontecer).

d4 – Pesadelos ou sonhos vívidos


A sua presença regular poderá ser um sinal indireto da presença de
despertares noturnos frequentes (independentemente da causa).

d5 – Perturbações do ritmo circadiano


Mais bem diagnosticadas com a ajuda de um diário do sono ou inqui-
rindo o doente sobre a sua preferência quanto a horas de deitar e acordar
quando não existem compromissos (férias, por exemplo). Um atraso de
fase pode por vezes ser confundido com uma insónia inicial.
INSÓNIA 87

d6 – Parassónias
“Já alguma vez lhe disseram que tinha episódios em que durante
a noite se levantava e andava pela casa?”, “Já lhe disseram ter outros
comportamentos estranhos durante a noite enquanto dorme?”, “Em
que altura da noite é que esses episódios ocorrem?” – diferenciar paras-
sónia NREM (mais no início da noite) de REM (mais no final da noite)
–, “Com que frequência ocorrem?”, Quando era pequeno, tinha estes
episódios?”, “Já lhe disseram que durante a noite parece que está a
vivenciar os seus próprios sonhos e costuma lutar, ou mexer com as
mãos no ar?”

d7 – Narcolepsia
Tétrade da narcolepsia: hipersonolência diurna, cataplexia, alucina-
ções hipnagógicas e hipnopômpicas e paralisia do sono.

e) Condições do quarto
“Por que razão acha que não consegue dormir?” Alguns doentes sabe-
rão as principais razões para não conseguirem dormir bem, principal-
mente quando a causa é um fator externo (p. ex., luz ou barulho).

f) Tratamentos prévios
Compreender que estratégias foram utilizadas no passado (farmaco-
lógicas ou não) poderá ser também importante.
É importante averiguar o consumo de substâncias ou fármacos que
possam estar temporalmente relacionados com o início ou o agravamento
da perturbação do sono.

Sinais e sintomas associados


Sintomas psiquiátricos – Existe uma relação bidirecional entre a insó-
nia e algumas patologias psiquiátricas, como, por exemplo, a depressão,
como já vimos, por isso é importante estar alerta para outros sintomas de
patologia psiquiátrica.
88 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

Exame físico – Um exame físico extensivo raramente será necessário,


exceto se a história clínica nos alertar para certas condições médicas,
como hipertiroidismo ou perturbações respiratórias.
Exames complementares de diagnóstico – O estudo analítico poderá
ser importante na exclusão de causas não psiquiátricas associadas às
alterações do sono. Uma polissonografia pode ser usada no despiste de
perturbações do movimento e respiratórias relacionadas com o sono.
A actigrafia poderá também ser equacionada no diagnóstico diferencial
com perturbações do ritmo circadiano do sono-vigília.

Antecedentes
• Pessoais (médicos, hábitos de consumo, medicação habitual);
• Familiares.

COMO TRATAR A INSÓNIA?


Guidelines – European Sleep Research Society – ESRS (2017)
Como ponto prévio, as guidelines europeias aconselham a investiga-
ção de eventuais comorbilidades presentes, devendo o médico assistente
proceder à decisão clínica sobre se a comorbilidade deve ser tratada pri-
meiro ou se de forma concomitante com a insónia.
Em relação à insónia propriamente dita:
1.ª linha: a terapia cognitivo-comportamental dirigida à insónia
(TCC-i) deve ser recomendada como primeira linha de tratamento em
adultos de qualquer idade com insónia crónica.
2.ª linha: podem ser propostas intervenções farmacológicas se TCC-i
ineficaz ou não disponível. A ESRS recomenda apenas a utilização de
Z-drugs, benzodiazepinas ou antidepressivos sedativos, durante períodos
inferiores a quatro semanas.

Guidelines – American Academy of Sleep Medicine – AASM (2017)


Abordagem inicial: deve ser recomendada a TCC-i ou incluir pelo
menos uma das suas intervenções comportamentais.
INSÓNIA 89

TCC-i ineficaz? Considerar tratamento combinado ou investigar


comorbilidade não diagnosticada. Tratamento combinado = TCC-i + hip-
nóticos durante período de duas a quatro semanas com reavaliação poste-
rior da necessidade de manutenção do fármaco.
Devido à quase inexistência de estudos de eficácia para hipnóticos
(ainda mais raros se considerarmos fármacos utilizados em off-label),
a AASM recomenda apenas a utilização de benzodiazepinas, Z-drugs,
suvorexant e ramelteon no tratamento farmacológico.
A utilização de fármacos off-label está recomendada apenas se as
comorbilidades associadas justificarem a sua utilização ou se as opções
terapêuticas prévias falharem.

Crítica às guidelines
As guidelines baseiam-se no nível de evidência para cada tratamento.
Tendo em conta a reduzida quantidade de estudos de eficácia para os
fármacos utilizados na insónia na prática clínica, o nível de evidência é,
regra geral, baixo.
Ainda assim, isso não implica que esses fármacos não sejam eficazes,
podendo ser utilizados de acordo com a teoria psicofarmacológica e a
sensibilidade clínica do médico.

O meu algoritmo de atuação


Se insónia for de curta duração:
• Tratamento farmacológico:
BZD ou zolpidem (máximo quatro semanas)
Melatonina ou agomelatina
antidepressivos ou antipsicóticos sedativos em doses baixas
• Tratamento combinado;
• TCC-i (terapia cognitivo-comportamental para a insónia).
Se a insónia for crónica:
1.ª linha:
• TCC-i (terapia cognitivo-comportamental dirigida à insónia).
90 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

Se não resultar:
2.ª linha:
• Tratamento combinado;
• Tratamento farmacológico:
melatonina ou agomelatina
antidepressivos ou antipsicóticos sedativos em doses baixas.
Não recomendo a utilização de BZD ou zolpidem na insónia crónica
visto que não é expectável que exista uma remissão espontânea da mesma
enquanto os fatores perpetuadores da insónia não forem modificados (ver
TCC-i). Dado o seu risco de habituação, estes fármacos devem ser evita-
dos na insónia crónica.
De seguida, discutiremos com mais detalhe os diferentes tratamentos
disponíveis.

Tratamento não-farmacológico – Terapia cognitivo-comportamental


dirigida à insónia (TCC-i)
• Higiene do sono;
• Ajuste do horário de sono;
• Controlo de estímulos;
• Relaxamento;
• Técnicas cognitivas.
Objetivo: estas diferentes técnicas foram criadas de forma a modificar
os fatores que perpetuam a insónia.
A TCC-i está associada a uma melhoria do quadro de insónia em
70% dos doentes, independentemente da gravidade e cronicidade da
insónia. A melhoria mantém-se durante pelo menos seis meses.
Todas as medidas têm evidência de eficácia em monoterapia, com
exceção para as medidas de higiene do sono.
Podem ser utilizadas em combinação sinérgica com tratamento far-
macológico ou como forma de parar gradualmente a medicação hipnó-
tica (switch).
As técnicas comportamentais são as que têm maior eficácia, mas tam-
bém as mais desafiadoras de aplicar.
INSÓNIA 91

Higiene do sono
Objetivo: identificar e modificar o ambiente e estilos de vida que
possam interferir com o sono.
A rotina do doente deve ser avaliada em conjunto com o clínico.
• De forma a facilitar a conceptualização da higiene do sono, ajuda
pensar nos seus cinco pilares: condições do quarto, álcool, exercí-
cio, nicotina, café.
Exercite-se regularmente
Certifique-se de que seu quarto é confortável, silencioso, sem luz
e a uma temperatura adequada
Evite ter relógios visíveis no quarto quando está na cama
Coma nos horários previstos e não vá dormir com fome
Evite líquidos excessivos à noite
Evite cafeína e outras substâncias estimulantes
Evite o consumo de álcool nas horas antes de dormir
Evite fumar antes de se deitar.

Ajuste do horário de sono


Objetivo: aumentar a pressão de sono ou sleep drive, tornar o sono
mais compacto e, por isso, mais profundo (restringindo o tempo na cama).
Pode ser chamado ajuste de horários de sono ou restrição de sono ou
compressão de sono (apesar de este último ser uma variação mais gradual
da técnica). Apesar de ser chamado restrição de sono, o que estamos
realmente a tentar restringir é o tempo passado na cama.
Como compreender a pressão do sono?
A pressão do sono tem a ver com o processo homeostático – quando
estamos acordados, acumulamos adenosina, aumentando a pressão de
sono. Concomitantemente, existe o processo circadiano que promove a
vigília e é diariamente ressincronizado através da presença de luz.
Pessoas sem perturbações do sono devem ir para a cama no momento
em que a pressão circadiana, de forma geral, é mais baixa e a pressão
homeostática é mais alta.
92 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

Enquanto dormimos, vamos gastando esta pressão de sono. Se formos


demasiado cedo para a cama, existe pressão de sono insuficiente para
depois dormir a noite inteira.
O que queremos é “guardar” esta pressão e gastá-la ao longo da noite.
Esta é razão pela qual não devemos fazer sestas ao longo do dia.
Em termos práticos, é necessário retreinar o nosso relógio biológico
de forma a reduzir o tempo na cama e passarmos a maior parte do tempo
que estamos na cama a dormir:
1. Acordar todos os dias à mesma hora (ancorar o despertar);
2. Preencher um diário do sono onde é importante tomar nota do
tempo total de sono e tempo total na cama;
3. Ir para a cama durante esta semana todos os dias à mesma hora;
4. Evitar sestas;
5. Reavaliar no final da semana a hora a que vai para cama na
semana seguinte através da eficiência do sono da semana.
A eficiência do sono (ES) é calculada a partir dos dados registados
no diário do sono.
ES = (tempo total de sono/tempo total na cama) x 100
A ES da semana anterior dita hora de deitar da semana seguinte:
• ES < 80%: ir para a cama 15 minutos mais tarde;
• ES entre 80 e 85%: manter a hora de deitar;
• ES ≥ 85%: ir para a cama 15 minutos mais cedo.
ES baixa é sinal de que passa muito tempo na cama acordado e por
isso deve ir mais tarde para a cama. ES alta é indicativo que possivelmente
conseguiria aumentar o tempo na cama sem fragmentar o sono.
Se é clara a contribuição para a insónia dos horários do sono do
doente e não existe possibilidade de aplicar de forma sistemática o
explicado, deve ser recomendado ao doente pelo menos a ancoragem
do despertar, associada a uma hora de deitar mais tarde e suspensão
de sestas.
INSÓNIA 93

Controlo de estímulos
Objetivo: reduzir condicionamentos disfuncionais que associem a
cama e o quarto a um local de atividade e vigília e reforçar a associação
entre a cama e o sono.
1. Ir para cama apenas quando se sente sono;
2. Usar o quarto apenas para dormir, vestir/despir ou ter sexo (não
ler, não comer, não falar ao telefone, nem ver TV);
3. Regra dos 15 minutos – não ficar deitado na cama, frustrado,
à espera do sono (se está há mais de 15 minutos acordado, sair do
quarto e ir fazer atividades relaxantes até voltar a ter sono);
4. Sestas são para evitar.
O efeito não é imediato, e nesse sentido pode ser útil dizer ao doente
para manter em mente que “Eu não estou a fazer isto esta noite para
dormir melhor hoje. Pode ser que durma pior. Eu estou a fazer isto esta
noite para que possa dormir melhor dentro de um mês”.

Relaxamento
O relaxamento muscular progressivo é a técnica de eleição, dentro
do grupo de medidas de relaxamento no tratamento da insónia, com
eficácia demonstrada em vários estudos.
Realiza-se tensionando cada grupo muscular por alguns segundos (seis
segundos) e, posteriormente, relaxando-o (12 segundos). Isto pode parecer
contraintuitivo, mas no fim desse processo o músculo encontra-se mais rela-
xado do que se encontrava anteriormente. Se o corpo está relaxado e a nossa
ativação fisiológica é mais baixa, a mente também se torna mais relaxada.

Técnicas cognitivas
Objetivo: alterar as respostas emocionais negativas relacionadas com
o ato de dormir.
• Encoraja-se o indivíduo a incluir na sua rotina uma buffer zone ou
zona tampão:
o doente deverá guardar cerca de uma a duas horas antes de
deitar para fazer atividades relaxantes, prazerosas, pondo de lado
94 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

as atividades potencialmente ansiogénicas (trabalho, contas por


pagar, etc.). Este período, tal como o nome indica, serve de tam-
pão entre a atividade do dia-a-dia e o sono
• Pode também incluir técnicas para melhor lidar com os pensamen-
tos automáticos negativos, nomeadamente o algoritmo do pensa-
mento ou técnicas de supressão do pensamento.

Tratamento farmacológico – Insónia crónica


Antes de especificarmos alguns dos fármacos que podem ser utiliza-
dos no tratamento farmacológico da insónia crónica, é importante com-
preender o conceito de burden anticolinérgico.
Burden anticolinérgico – Associado com declínio cognitivo, delirium,
tonturas, confusão, quedas e hospitalização. Existem várias tabelas que
mostram o burden relativo de cada fármaco e que podemos consultar para
decisões mais informadas sobre que fármacos prescrever, especialmente
nos mais idosos.
Apesar disso, fármacos com efeito anticolinérgico marcado conti-
nuam a ser prescritos, encontrando-se medicados com eles cerca de 1/3
dos idosos seguidos nos cuidados primários.

Trazodona
Fármaco sem aprovação formal, mas com evidência no tratamento
da insónia.
Dose terapêutica: 50 a 150 mg, ao deitar (se libertação imediata).
Existem vários tipos de formulações diferentes, sendo que para a insó-
nia interessam:
• A trazodona de libertação imediata tem maior eficácia no trata-
mento da insónia inicial e intermédia;
• A trazodona de libertação modificada pode também ser usada com
benefício no tratamento da insónia intermédia (apesar de poder
condicionar sedação ao acordar).
Tempo de semivida – 7-15 horas.
Sem burden anticolinérgico associado.
INSÓNIA 95

Mirtazapina
Fármaco sem aprovação formal, mas com evidência no tratamento
da insónia.
Dose terapêutica: 7,5 a 15 mg ao deitar.
• o efeito sedativo não é dose dependente, ou seja, a mirtazapina na
dose de 7,5 mg pode ser mais sedativa que a dose de 15 mg.
Mecanismo: efeito sedativo ocorre através do antagonismo dos rece-
tores H1.
Baixo burden anticolinérgico associado.

Quetiapina
Fármaco sem aprovação formal, mas com evidência no tratamento
da insónia.
Dose terapêutica: 25 a 100 mg de comprimidos de libertação ime-
diata, ao deitar.
• Hora e meia para atingir pico de concentração e uma semivida de
sete horas, o que implica que a libertação prolongada não deve ser
utilizada na insónia sem outras comorbilidades associadas que o
justifiquem.
Mecanismo: efeito sedativo ocorre por antagonismo dos recetores H1
e antagonismo de vários recetores serotoninérgico.
Moderado burden anticolinérgico associado.

Melatonina de libertação prolongada


Fármaco aprovado formalmente pela FDA para o tratamento da insónia.
Dose terapêutica: 2 mg/dia, em toma única realizada à hora de deitar.
• Doses mais altas podem ser necessárias em algumas pessoas, mas
estão associadas a efeitos adversos como sonolência matinal, cefa-
leias ou sonhos vívidos;
• O comprimido pode ser tomado de forma intacta ou esmagando-o/
mastigando-o, consoante o foco na insónia intermédia ou inicial,
respetivamente.
96 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

Mecanismo: foi sintetizada para ser muito semelhante à melatonina


endógena, que é secretada durante a noite e promove o sono ao ligar-se
aos recetores M1 e M2 e inibindo sinais de alerta.
Sem burden anticolinérgico associado.

Agomelatina
Fármaco aprovado formalmente pela FDA para o tratamento da insó-
nia.
Dose terapêutica: 25 a 50 mg/dia.
• Boa opção em doentes deprimidos com insónia associada;
• É recomendado monitorizar com alguma frequência a função
hepática, motivo pelo qual deverá ser evitado o seu uso nos doentes
em que tal monitorização não pode ser feita.
Mecanismo: é um agonista da melatonina e antagonista 5-HT2.
Sem burden anticolinérgico associado.

Tratamento farmacológico – Insónia aguda


Nos casos de insónia aguda, existe normalmente um evento precipi-
tante identificável e, se, entretanto, não se desenvolverem comportamen-
tos perpetuadores da insónia, é razoável considerar que os sintomas irão
remitir com a resolução do evento precipitante. Nestes casos, além dos
fármacos já explorados para a insónia crónica, podemos também consi-
derar período curto de tratamento com benzodiazepinas ou zolpidem.

Benzodiazepinas ou zolpidem
Fármacos aprovados formalmente pela FDA para o tratamento da
insónia.
• Fármacos com menor tempo de semivida e maior rapidez ao
atingir o pico de concentração plasmática: maior benefício no
tratamento da insónia inicial – p. ex., zolpidem ou triazolam;
• Fármacos com tempo de semivida intermédia: maior benefício no
tratamento da insónia intermédia – p. ex., estazolam e temazepam;
INSÓNIA 97

• Fármacos com tempo de semivida longa: maior risco de efeitos


adversos e maior sedação nas primeiras horas da manhã – p. ex.,
flurazepam.
• Mecanismo: ligam-se aos recetores do GABA, potenciando o seu
efeito inibitório.
• Se não houver resolução do quadro ao fim de quatro semanas,
deve-se rever o diagnóstico e a terapêutica;
• É importante notar que as benzodiazepinas podem induzir tolerân-
cia, dependência física e psíquica. As que têm maior potencial de
induzir dependência são as de curta duração;
• O seu uso a longo prazo está relacionado com aumento de incidên-
cia de fraturas em idosos e alterações cognitivas (em particular amné-
sia anterógrada), daí a preferência pelo seu uso na insónia aguda.
Nota: Os restantes fármacos usados para a insónia crónica podem
também ser utilizados com benefício.

CONCLUSÕES
• As perturbações do sono ocorrem frequentemente em comorbili-
dade entre si;
• Devemos dividir a insónia em insónia de curta duração/aguda ou
crónica – a divisão insónia primária/secundária deve ser abandonada;
• A insónia crónica deve ser sempre tratada;
• Para cada insónia, devemos tentar identificar os fatores predispo-
nentes, precipitantes e perpetuadores (os “3 Ps”, de Spielman);
• Devemos ser o mais sistemáticos possíveis na nossa avaliação do
sono: avaliar o ciclo do sono numa noite típica e rastrear outras
perturbações do sono é de especial importância;
• A primeira linha de tratamento na insónia crónica são as técnicas
cognitivo-comportamentais dirigidas à insónia, e não têm todas a
mesma eficácia terapêutica;
• É importante uma perspetiva crítica quando olhamos para as
guidelines referentes à medicação na insónia.
98 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

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7. DEPRESSÃO
DIOGO GUERREIRO

Principais questões práticas que este capítulo aborda:


• Relevância da depressão como um importante problema de saúde
pública;
• Principais teorias etiológicas;
• Sintomas e diagnóstico;
• Diagnóstico diferencial de um episódio depressivo;
• Abordagem e tratamento do paciente deprimido.

Perguntas fundamentais para se chegar ao diagnóstico/abordar o pro-


blema:
1. Como se tem sentido ultimamente?
2. Como é que os sintomas depressivos afetam as suas atividades diárias?
3. Existem pensamentos ou ideias sobre a morte?
A depressão é uma das doenças médicas mais frequentes. Sendo
que, atualmente, cerca de 322 milhões de pessoas no mundo sofrem de
alguma forma de depressão.

NÚMEROS E FACTOS
A depressão:
• É uma perturbação mental muito comum. Globalmente, mais de
300 milhões de pessoas, de todas as idades e classes sociais, sofrem
de depressão;
• É a causa líder de incapacidade a nível mundial e um contribuinte
major para o global burden of disease;
• Afeta mais as mulheres do que os homens;
• Pode levar ao suicídio.
102 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

As estimativas atuais dizem-nos que:


• Uma em cada quatro mulheres possa vir a ter um episódio depres-
sivo durante a sua vida;
• Um em cada dez homens possa vir a ter um episódio depressivo
durante a sua vida.
As perturbações mentais permanecem há décadas como o primeiro
contribuinte para a medida Years Lived with Disability (YLD) a nível
global, muito acima de outras causas com mais atenção mediática quanto
a medidas de prevenção. Destas, a depressão é a doença com maior peso
dentro das patologias psiquiátricas, sobretudo a depressão major.
É, assim, um problema de saúde pública que, se não for devidamente
tratado, pode levar a consequências severas, entre as quais:
• Perda de saúde;
• Perda de qualidade de vida;
• Mortalidade;
• Doenças futuras.
Trata-se de uma doença em que quanto mais se atrasa o tratamento,
mais complicações advirão. Dito isto, o tratamento da depressão não
passa apenas pela Psiquiatria, como também pelos cuidados de saúde
primários, sendo importante priorizar as doenças mentais nestes.
Consequências do não-tratamento:
• Aumento da mortalidade;
Suicídio – a depressão major é o principal fator de risco
Doença cardiovascular – aumento de risco de mortalidade em
quase cinco vezes
Estilos de vida menos saudáveis (tabagismo, obesidade, seden-
tarismo)
Maior abuso de substâncias.

Uma pessoa com depressão major não tratada tem quase o dobro da
probabilidade de morrer quando comparada com controlos saudáveis – algo
a ter em conta quando se trata de uma patologia que é tão desvalorizada.
DEPRESSÃO 103

Além disso, a própria depressão aumenta o risco de outras doenças


crónicas. É extremamente frequente uma pessoa ter concomitantemente
outras doenças autoimunes, uma vez que partilham mecanismos. Mais:
uma pessoa com depressão ao longo da vida tem o dobro da probabilidade
de padecer de doença de Alzheimer.
Face aos custos da depressão, exponho alguns dados relativos apenas
à Europa:
• Estimativa de 120 mil milhões de euros (por ano):
35% custos diretos – consultas, hospitalizações, medicamentos
65% custos indiretos – morbilidade, mortalidade e outras conse-
quências da depressão não tratada
• 253 euros por habitante;
• 1% do PIB Europeu;
• A depressão é a doença do SNC associada a maiores custos.
A maior parte dos custos são indiretos, e destes os mais relevantes
estão relacionados com o trabalho, referindo-se a:
• Absentismo;
• Presenteísmo – refere-se às pessoas que estão a trabalhar com uma
produtividade muito abaixo da média;
• Morte por suicídio – é possível medir o impacto económico da
morte precoce devido ao suicídio.
A menor parte dos custos de depressão está nos tratamentos, sendo o
custo do não-tratamento muito mais elevado.
Custos do não-tratamento:
• Quebra marcada da produtividade profissional, académica;
• Custos pessoais, sociais, laborais e familiares.

FISIOPATOLOGIA
Em muitos aspetos é desconhecida e controversa, mas tudo aponta
para uma complexa interação entre:
• Vulnerabilidade genética;
• Fatores do neurodesenvolvimento;
104 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

• Fatores ambientais/psicossociais, que se desenvolvem para modifi-


cações epigenéticas (mudanças na expressão dos genes), levando
depois a alterações a nível neuroquímico, neuroendócrino, neu-
roinflamatório, neuroestrutural, neurofuncional.
A hipótese da deficiência de monoaminas foi a primeira formulada,
em 1965, e só a partir desta altura é que existiu um foco maior na etiologia
da depressão.
A teoria surge pela observação de que certos fármacos que provoca-
vam depleção de monoaminas despoletavam sintomas depressivos, e de
que fármacos com o efeito inverso ajudavam no tratamento. No entanto,
não explica por si só porque é que isto acontece, nem por que razão
demoram os antidepressivos a fazer efeito, pois o aumento dos neurotrans-
missores na fenda sináptica é quase imediato.

Hipótese dos recetores monoaminérgicos


Surge na sequência das limitações da hipótese do défice de monoa-
minas, postulando-se que existiriam anomalias dos recetores pré e pós-
-sinápticos das monoaminas, o que estaria na origem da depressão. Surge da
observação de que, na deficiência de monoaminas, há uma suprarregulação
compensatória e que, com o tratamento, se observa uma “normalização”.

Hipótese da disfunção monoaminérgica


Hipótese dos recetores monoaminérgicos + deficiência monoaminas.
Apesar de ser consensual que estes fatores representam a consequência
de uma anomalia “mais primária”, estas hipóteses continuam a ser clini-
camente muito relevantes no contexto de uma hipótese neurobiológica
mais complexa:
• Estão na base do desenvolvimento da maioria dos antidepressivos
atuais;
• Verifica-se que o potenciar a neurotransmissão destas monoaminas
e a regulação dos seus recetores constitui um mecanismo antide-
pressivo eficaz;
DEPRESSÃO 105

• Todos os antidepressivos atuais são baseados nesta hipótese.


Verifica-se relação direta entre diferentes monoaminas e o seu efeito
correspondente na sintomatologia:

MONOAMINAS SINTOMAS
5-HT Alterações de peso e apetite; ideação suicida; sentimentos
(serotonina) de culpa e desvalorização; ansiedade

DA e NA Apatia/diminuição do interesse e do prazer com as


(dopamina e atividades (anedonia); fadiga física/mental; dificuldades
noradrenalina) cognitivas (atenção/concentração/memória)

5-HT, DA e NA Humor deprimido; problemas de sono; alterações


psicomotoras (agitação ou lentificação)

Hipótese da vulnerabilidade genética


Evidências robustas de estudos familiares e em gémeos que demons-
tram que 30 a 40% do risco é genético. Ter um familiar em 1.º grau
afetado aumenta o risco de depressão em duas a três vezes. Não esquecer
que: se 30-40% do risco é genético, 60-70% é ambiental! A base desta
teoria postula que existem múltiplos genes de risco para depressão, cada
um com pequeno efeito individual e que dependem de interações gene-
-ambiente.

O contributo da neuroimagem
A evolução da neuroimagem também nos ajuda. O mais comum a
ser observado em exames de imagem PET em pacientes deprimidos é
uma disfunção global, demonstrada pela diminuição do fluxo sanguíneo
e redução do metabolismo cerebral. Não funciona como diagnóstico, pois
os nossos padrões de funcionamento cerebral são extremamente varia-
dos, não se podendo assim afirmar a partir de que ponto de corte é que
existe uma depressão. Vários sistemas neuronais são importantes para a
106 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

compreensão da perturbação depressiva, incluindo aqueles responsáveis


pelo processamento e regulação das emoções, bem como sistemas de
recompensa e procura de prazer.
É muito habitual a atrofia do hipocampo (reversível), o que explica
os problemas de perturbação cognitiva.

Hipótese neurotrófica
Estudos genéticos e de neuroimagem apoiam uma hipótese neuro-
trófica de depressão e da resposta aos antidepressivos, propondo que a
depressão resulte de:
• Diminuição do suporte neurotrófico;
• Diminuição da neurogénese de áreas cerebrais e perda de glia;
• Levando a atrofia neuronal e perda de volume (p. ex., hipo-
campo);
• Possivelmente resultando em maior sensibilidade a fatores de stress
e em maior probabilidade de recorrência.
O tratamento antidepressivo bloqueia ou reverte esse défice de
suporte neurotrófico e, por isso, reverte a atrofia e a perda celular.

Hipótese das experiências adversas precoces


Papel das “Experiências adversas precoces” (EAP, em inglês Adverse
Childhood Experiences) com base no ACE Study, cujos participantes
foram recrutados entre 1995 e 1997 e acompanhados a longo prazo para
resultados de saúde (promovido pelos CDC dos EUA).
Foi visto que as EAP são comuns, uma vez que quase 2/3 dos parti-
cipantes do estudo relataram pelo menos uma experiência adversa pre-
coce e mais de 1/5 relataram três ou mais (p. ex., abuso(s), negligência,
dificuldades económicas, etc.). Dados deste estudo revelam (de forma
consistente) uma relação dose-resposta entre EAP e resultados negativos
de saúde e bem-estar ao longo da vida, sendo que a exposição a EAP está
associada ao aumento do risco de perturbações depressivas até décadas
após a sua ocorrência.
DEPRESSÃO 107

Outras teorias biológicas sustentam até uma possível ligação direta


entre as EAP e a inflamação em adultos.
Assim, postula-se que estar repetidamente exposto a EAP possa afetar
o sistema regulador do stress humano:
• Hormonas relacionadas com o stress podem ser libertadas excessi-
vamente (p. ex., cortisol, adrenalina, etc.);
• Isso pode resultar em desregulação do eixo HPA (hipotálamo-
-hipófise-suprarrenal) e do sistema nervoso simpático (relacionado
com reação de alarme), levando ao aumento da inflamação cró-
nica;
• Processos epigenéticos também podem desempenhar um papel –
p. ex., as EAP podem afetar a expressão genética pró-inflamatória;
• Os efeitos prejudiciais das EAP no sistema de regulação do stress
aparentam, a longo prazo, resultar em inflamação crónica ao longo
da vida.
Conhecem-se ainda múltiplas outras hipóteses, como sendo:
• Sono e ritmos circadianos: doentes deprimidos mostram frequen-
temente alterações dos ritmos circadianos, perturbações do sono e
variação diurna do humor;
• Neurotransmissores não-monoaminérgicos (p. ex., glutamato):
novos fármacos têm como alvo os recetores NMDA. O sistema
do glutamato pode estar envolvido em processos de ativação de
segundos mensageiros, levando a expressão genética de fatores rela-
cionados com processos de neuroplasticidade;
• Teorias psicossociais: vários modelos tentam explicar, de um ponto
de vista psicológico e social, a origem da depressão, existindo psi-
coterapias com vasta evidência de eficácia.

DIAGNÓSTICO
Tipicamente, apresenta um diagnóstico mais clínico e com uma
grande variabilidade de sintomas. No entanto, na depressão major,
é típico encontrar humor deprimido (90% dos doentes):
108 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

• Persistente e duradouro;
• Confere tonalidade negativa e pessimista do presente, do passado
e do futuro;
• Não é controlável pelo sujeito;
• Não é reativo a eventos externos (mantém-se apesar de experienciar
um acontecimento positivo, por exemplo);
• Invasivo de toda a sua esfera mental.
A depressão é uma doença heterógena, sendo mais bem compreen-
dida como um constructo multidimensional – existem vários conjuntos
de sintomas com diferentes expressões consoante os indivíduos.

Sintomas afetivos/emocionais
• Tristeza patológica (humor deprimido): é o mais frequente;
• Anedonia (perda de interesse ou prazer nas atividades que anterior-
mente eram agradáveis para o paciente);
• A ansiedade é muitíssimo frequente e normalmente encontramos
as duas em conjunto;
• Irritabilidade (muito frequente em adolescentes): leva a complica-
ções por, muitas vezes, não ser visto como um sintoma;
• Alterações: reatividade emocional (labilidade – exagero de reações
com estímulos pequenos ou anestesia afetiva –, a pessoa parece que
deixou de ter a capacidade de sentir emoções);
• Apatia;
• Redução do campo de interesses: a pessoa deixa de ter interesse em
falar com amigos, ir trabalhar, ter hobbies, entre outros.

Sintomas cognitivos
• Lentificação do pensamento;
• Caráter negativo dos pensamentos, como se a pessoa só conseguisse
ver o lado negativo da sua vida;
• Pensamento monotemático/ruminativo;
DEPRESSÃO 109

• Baixa autoestima;
• Ideação (delirante ou não) de culpa, ruína, hipocondria, em casos
mais graves podem existir delírios;
• Ideação suicida ou pensamentos sobre a morte, que pode ser pas-
siva ou ativa consoante o planeamento;
• Défice de atenção/concentração;
• Queixas de memória.

Sintomas somáticos
• Astenia (cansaço fácil);
• Insónia/hipersónia;
• Alterações do apetite (anorexia/aumento de peso) muito dirigidas
a substâncias (comfort food, alimentos que estimulam o prazer no
cérebro);
• Alterações do peso (perda/aumento);
• Disfunção sexual;
• Queixas álgicas (quer por terem uma patologia prévia que provoca
dor, quer por dores de novo, já que muitos dos circuitos responsá-
veis pela depressão estão associados também à dor);
• Perturbações gastrointestinais.

Sintomas motores/comportamentais
• Alterações psicomotoras (inibição/agitação – muito associado a sin-
tomas de irritabilidade);
• Isolamento social, com efeitos bastante negativos, porque somos
seres sociais; quanto maior o isolamento, mais se agrava a depres-
são;
• Diminuição da produtividade;
• Negligência com a aparência e higiene;
• Comportamentos autolesivos/tentativas de suicídio;
• Condutas autodestrutivas (abuso álcool ou drogas; abandono tera-
pêutico; etc.).
110 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

Não existindo meios complementares de diagnóstico que possam


afirmar se estamos ou não perante uma depressão, o diagnóstico é esta-
belecido com base em categorias de diagnóstico:
• É predominantemente clínico;
• É baseado em sintomas atuais e passados;
Obrigatório excluir doenças “orgânicas” que se possam manifestar
com sintomas psiquiátricos (p. ex., Parkinson, demência, hipotiroidismo,
mononucleose, perturbações do sono, etc.);
Diagnóstico formal baseado nos critérios da DSM-5 ou ICD-10;
Humor deprimido ou anedonia – é obrigatório pelo menos um destes
sintomas para o diagnóstico.

Definição de perturbação depressiva major, segundo os critérios da DSM-5:


Apesar de existir uma lista enorme de sintomas, na prática, os critérios
de classificação baseiam-se em apenas oito sintomas. Através de critérios
estatísticos de estudos, concluiu-se de que é necessário estarem presen-
tes cinco (ou mais) dos seguintes sintomas, durante um período de pelo
menos duas semanas consecutivas, representando uma alteração do fun-
cionamento prévio (sendo obrigatório que se verifique humor depressivo
ou anedonia):
• Humor deprimido;
• Anedonia;
• Diminuição ou aumento do apetite e/ou do peso;
• Insónia ou hipersónia;
• Agitação ou lentificação psicomotora;
• Fadiga ou perda de energia;
• Sentimentos de desvalorização ou culpa excessiva ou inapropriada;
• Diminuição da capacidade de pensar, de concentração ou de
tomar decisões;
• Pensamentos de morte recorrentes ou ideação suicida.
Na realidade, a maior parte dos psiquiatras consegue identificar
quando se trata de uma depressão, uma tristeza normal ou algo mais
DEPRESSÃO 111

reativo/evento de vida. O DSM-5 põe mais enfase no que é a avaliação


clínica e, a partir daí, alcança-se um diagnóstico.
Outro aspeto importante é o mal-estar significativo (a tristeza por si só
não significa uma depressão) ou défice funcional dos sintomas ao nível de:
• Trabalho/ocupação/estudos;
• Vida social e atividades de lazer;
• Vida familiar e responsabilidades em casa;
• Relações interpessoais.
Na perturbação depressiva major, os sintomas não são mais bem
explicados por outra perturbação psiquiátrica, nem tampouco são atri-
buíveis aos efeitos fisiológicos de uma substância (como drogas ou medi-
camentos) ou a outra condição médica.
Por vezes, pode-se tornar difícil discernir a diferença relativamente a
outras condições médicas, sendo preferível tratar primeiro outras condi-
ções e verificar se os sintomas se mantêm, sendo que certas substâncias ou
medicamentos têm alguns efeitos depressivos (p. ex., álcool). Da mesma
forma, a observação de um episódio maníaco ou hipomaníaco também
descartaria o diagnóstico (neste caso, poderá colocar-se em hipótese um
diagnóstico de doença bipolar).

Mas as depressões são todas iguais?


“Cada caso é um caso” – “Não há duas pessoas iguais”:
• Estes são factos para qualquer profissional que trabalhe em saúde
mental;
• Os aspetos individuais de cada paciente tornam as perturbações
depressivas heterogéneas em termos de psicopatologia e, conse-
quentemente, de tratamento.
Diferentes formas de apresentação de uma depressão:
• Diferentes biologias;
• Diferentes funcionamentos psicológicos;
• Diferentes ambientes em que crescemos;
• Diferentes ambientes em que vivemos.
112 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

Conseguimos coadunar vários diagnósticos no espectro da depressão,


já que depende da individualidade de cada um e de diferentes fatores,
podendo apresentar-se de forma muito variada de indivíduo para indi-
víduo, sendo importante “procurar” a depressão. É, portanto, relevante
perceber que existem várias doenças dentro da depressão, com formas
diferentes de tratamento, como sendo:
• Perturbação depressiva major (depressão major);
• Perturbação depressiva persistente (distimia);
• Doença bipolar;
• Perturbação afetiva sazonal;
• Depressão periparto;
• Depressão atípica;
• Depressão melancólica vs. “reativa”;
• Perturbação de ajustamento/luto;
• Depressão associada a doença física;
• Depressão associada a abuso de substâncias.

Como diagnosticar a depressão


O procedimento do médico é diferente consoante o tipo de depressão.
A severidade da depressão é avaliada por três fatores:
• Número de sintomas;
• Intensidade dos sintomas;
• Incapacidade/dificuldade no funcionamento.
Severidade na DM
Depressão ligeira:
• Existem os sintomas necessários para o diagnóstico (cinco total);
• Não existem muito mais sintomas e o grau de disfunção é ligeiro;
• Exemplo: pessoa que cumpre critérios, mas que, apesar de tudo,
continua a trabalhar ou a estudar (provavelmente com maior difi-
culdade e sentindo que “tudo é um esforço”), cuja intensidade dos
sintomas pode levar a que não peça ajuda. Habitualmente, não são
doentes seguidos ou medicados;
DEPRESSÃO 113

• Poderá resolver espontaneamente ou evoluir para uma depressão


moderada ou severa;
• Não é claro se deve haver indicação para antidepressivo, podendo
ser abordado apenas com terapias psicológicas.
Depressão moderada:
• Número maior de sintomas e de maior intensidade;
• Observa-se um maior grau de disfunção, que habitualmente já é
notório para os outros;
• Exemplo: pessoa que apresenta vários sintomas para além dos míni-
mos para os critérios, em que o trabalho, estudos e vida social estão
normalmente afetados (com faltas, com incapacidade, com isola-
mento). Já podem apresentar negligência no seu autocuidado (em
arranjar-se, na higiene pessoal), sendo que na observação se nota
inibição psicomotora, a expressão triste e distante;
• Muito habitualmente, aponta para a necessidade de tratamento
antidepressivo, com ou sem tratamento psicológico associado.
Depressão severa:
• Quase todos – ou mesmo todos – os sintomas presentes, com inten-
sidade máxima;
• Disfunção quase total em todas as áreas; o doente apresenta sin-
tomas cognitivos e motores severos, disrupção dos ritmos de sono,
alterações alimentares, ideação suicida e de ruína e poderá ter sin-
tomas psicóticos;
• Exemplo: pessoa que apresenta (quase) todos sintomas depressivos.
Está incapacitado para o trabalho ou estudos, praticamente não
sai da cama, pode apresentar vários comportamentos autodestruti-
vos. Pode ter delírios e alucinações. Sente-se culpado, inútil, sem
esperança;
• Indicação obrigatória para tratamento antidepressivo. Eventual-
mente, hospitalização.
Isto remete-nos para uma questão: será que o diagnóstico de depressão
= tratamento?
114 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

Na Europa, quase 50% das pessoas não recebem tratamento. O fenó-


meno apelida-se de treatment gap, a “diferença entre o número de pessoas
que precisa de tratamento e aquelas que efetivamente o recebem”, quer seja
farmacológico ou psicológico. Portugal não foge à diferença e apresenta
um treatment gap de entre 34 a 82%, sendo as depressões ligeiras as mais
afetadas. Um terço das perturbações mais severas não recebem tratamento.

TRATAMENTO
Os objetivos primordiais do tratamento por parte dos médicos são:
• Eliminar os sintomas;
• Restaurar a atividade psicossocial e ocupacional;
• Melhorar a qualidade de vida;
• Reduzir o potencial de suicídio;
• Reduzir a probabilidade de recaída e recorrência.
Mas os pacientes podem ter outros objetivos:
• Melhorar a sua funcionalidade;
• Melhorar relações familiares e/ou sociais;
• Aumentar comportamentos positivos de saúde;
• Encontrar um emprego;
• Organizar a sua casa, etc.
Esse potencial desfasamento entre o que os pacientes esperam rece-
ber de um tratamento e o que de facto recebem pode contribuir para um
baixo padrão de adesão no tratamento da depressão.
É importante um foco nos “cuidados de saúde centrados no paciente”
e na compreensão do que os pacientes querem retirar do tratamento.
De um ponto de vista geral, existem diferentes opções para o trata-
mento da depressão:
Psicofármacos:
• Antidepressivos;
• Antiepiléticos;
• Lítio;
• Antipsicóticos de 2.ª geração.
DEPRESSÃO 115

Psicoterapia:
• Cognitivo-comportamental;
• Interpessoal;
• Psicodinâmica;
• Integradas;
Terapias físicas:
• ECT;
• Estimulação do nervo vago;
• Estimulação magnética transcraniana repetitiva;
• Estimulação cerebral profunda;
• Estimulação cerebral.
Medicina ”alternativa” e complementar:
• Exercício físico;
• Terapia exposição luz (fototerapia);
• Terapia baseada em meditação (mindfulness);
• Abordagens nutricionais (p. ex., ácidos gordos ómega-3).

Guidelines para o tratamento da depressão major – princípios básicos:


• Individualizar o plano de tratamento;
• Preparar o paciente para um potencial tratamento a longo prazo;
• Prestação de cuidados baseada na evidência científica mais atual;
• Tratar até atingir a remissão;
• Fazer psicoeducação;
• Promover estilos de vida saudáveis.

Depressão ligeira: vigilância atenta (pode resolver de forma espontâ-


nea), exercício físico ou aconselhamento. Psicoterapia ou antidepressivos
podem ser usados se os esforços iniciais falharem.
Depressão moderada: monoterapia antidepressiva, psicoterapia iso-
lada ou a combinação de ambas.
Depressão severa: pode exigir combinação de antidepressivos ou
potenciação com antipsicóticos, psicoterapia combinada também pode
116 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

ser necessária. Em casos extremos, pode ser usada a eletroconvulsivote-


rapia.
Opções complementares usuais: exercício físico, intervenções nutri-
cionais, terapia de luz brilhante, relaxamento/sono adequados, técnicas
de meditação baseadas em mindfulness.
Existem vários fatores a ter em conta:
• Tipo de depressão;
• Sintomas proeminentes;
• Preferências do doente;
• Experiência prévia;
• Comorbilidades;
• Custos;
• Interações.

Fases do tratamento da depressão


O objetivo é dar uma resposta à depressão e ir atenuando os sintomas,
avaliar os efeitos dos antidepressivos e chegar à remissão (à quase ausên-
cia de sintomas), até que a pessoa recupere a função cognitiva normal.
Podemos dividir o processo por fases:
Fase aguda: 6-12 semanas; objetivo: remissão sintomatológica.
Fase de continuação: 4-9 meses; objetivo: prevenção de recaída e
avaliação se se começa a fazer o desmame da medicação.
Fase de manutenção: > 1 ano; indicada nos casos em que o risco de
recorrências é elevado.
Os sintomas residuais podem indicar a necessidade de alteração nos
tratamentos; uma vez que quantos mais sintomas residuais observarmos,
existe por norma:
• Maior risco de recidiva;
• Mais episódios depressivos;
• Menor tempo entre episódios;
• Agravamento do défice funcional;
• Menos qualidade de vida;
DEPRESSÃO 117

• Maior morbilidade;
• Maior mortalidade;
• Maior risco de suicídio.
Assim, podemos inferir que quantas mais vezes uma pessoa cai
numa depressão major, maior é a probabilidade de tal voltar a acontecer.
É importante num primeiro tratamento conseguir tratar-se antecipada
e eficazmente, alterando comportamentos da pessoa e mecanismos psi-
cológicos para lidar com a adversidade. A ideia é atingir a recuperação
total.

Farmacologia
Os antidepressivos são eficazes?
Muitas vezes os doentes questionam a eficácia dos antidepressivos.
Nesse âmbito, foi realizado um estudo com um total de 116 477 parti-
cipantes, tendo-se concluído que “todos os antidepressivos foram mais
eficazes do que o placebo em adultos com perturbação depressiva major.
Pequenas diferenças foram encontradas entre os vários fármacos em ter-
mos de eficácia e tolerabilidade, quando comparados com placebo”.
Tipos de antidepressivo:
• Tricíclicos – Antidepressivos pouco seletivos que atuam em várias
monoaminas;
• SSRIs – Inibidores seletivos da recaptação da serotonina;
• SNRIs – Inibidores da recaptação da serotonina e noradrenalina;
• NDRIs – Inibidores da recaptação da noradrenalina e dopamina;
• NRIs – Inibidores seletivos da recaptação da noradrenalina;
• RIMA – Inibidores reversível e seletivo da monoamina oxidase A;
• NaSSA – AD noradrenérgico e serotoninérgico específico;
• AD Melatoninérgico – Agonista recetores MT1 e MT2/antagonista
dos recetores 2C de serotonina;
• AD atípico – Modulador e estimulador da serotonina;
• SARI – Inibidor da recaptação de serotonina/antagonista dos rece-
tores 2A/2C.
118 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

Todos eles são eficazes, sendo sempre necessário considerar o tipo


de depressão e sintomatologia predominante, podendo haver, ou não,
efeitos secundários.
O objetivo primordial seria a utilização de antidepressivos mais ati-
vadores que promovam o sentimento de prazer, motivação e concen-
tração – embora só consigamos corroborar a sua eficácia com base na
tentativa-erro.
Algumas linhas de orientação face ao uso de terapêutica farmaco-
lógica:
• Devemos garantir a monitorização cuidadosa e persistente da res-
posta do paciente (entrevistas clínicas e/ou escalas validadas);
• A manutenção do tratamento inicial até oito semanas antes de fazer
ajustes está desatualizado;
• Mudanças/ajustes na prescrição podem ser feitos entre a primeira
e quarta semana de tratamento, monitorizando de perto a eficácia
e a tolerabilidade. Quanto mais cedo mudarmos de tratamento
melhor, quando algo não corre bem;
• Há cada vez maior evidência que melhorias precoces nos sintomas
depressivos e no funcionamento são preditores de remissão e recu-
peração funcional.
É importante avisar o doente de que podem existir efeitos secundá-
rios, geralmente nas fases iniciais, enquanto os benefícios do medica-
mento poderão apenas sentir-se após três ou quatro semanas.

Estratégias de segunda linha na depressão


Quando o medicamento não funciona à primeira tentativa, podemos:
Fazer uma nova tentativa com antidepressivo ou uma nova forma de
terapia, caso não sejam visíveis nenhumas melhorias
ou
potenciação (combinação):
• Introduzir um mecanismo de ação diferente;
• Aumentar resposta?
DEPRESSÃO 119

• Aceleração de resposta?
• Mantendo a tolerabilidade?

Exemplos de estratégias de potenciação


Potenciação farmacológica “clássica”:
• Lítio;
• Hormona tiroideia;
• Antipsicóticos atípicos;
• Combinação de dois antidepressivos.
Psicoterapia:
• Terapias complementares ou adjuvantes;
• Exercício físico;
• Terapia baseada em meditação (mindfulness);
• Fototerapia;
• Intervenções nutricionais.
As medidas de psicoterapia podem ajudar muito na recuperação
da depressão e são fáceis de implementar. As metanálises mostram
que uma combinação de antidepressivos e psicoterapia tem efeitos
muito superiores, assim como a combinação com a iniciação de exer-
cício físico anaeróbico. A dieta também tem efeitos positivos, sendo
que o doente deve ser encorajado a praticar um estilo de vida mais
saudável.

Outras dicas práticas


Antes de mais, não podemos descurar o despiste de causa não psiquiá-
trica, quando suspeito, ou em caso de resistência ao tratamento.
É importante dominar o uso de um ou dois antidepressivos das classes
de uso mais comum (e que são também eficazes na ansiedade):
• SSRI;
• SNRI;
• TCA (antidepressivos tricíclicos);
• NDRI.
120 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

Convém também ter armas para ajudar a regular o sono – quanto


mais insónia, mais depressão e vice-versa:
• Mirtazapina, trazodona, pregabalina, zolpidem, BZD.
Saber ativar, se for caso disso, com recurso:
• Bupropiona, fluoxetina, nortriptilina.
Atentar às doses terapêuticas:
• Começamos devagar, mas podemos subir até à dose máxima, se for
necessário. Ressalvo que o objetivo é atingir a remissão total dos
sintomas – não desistir de tentar;
• É útil saber que terapêutica antidepressiva já foi eficaz no passado
(e também em familiares diretos).
Devemos ainda avisar o doente da demora no efeito positivo e da
hipótese de efeitos acessórios na fase inicial (que, na sua maioria, são
transitórios).
Quando possível, o apoio psicológico por norma potencia muito o
efeito do antidepressivo.
Por último, é igualmente importante prescrever sempre: exercício
físico, boa alimentação e algumas estratégias de regulação do stress.

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8. ANSIEDADE
DIOGO GUERREIRO

Principais questões práticas que este capítulo aborda:


• Ansiedade normal versus patológica;
• Síntese das principais perturbações ansiosas: fobias; ansiedade
social; ansiedade generalizada; perturbação de pânico; POC;
PTSD;
• Sintomas e diagnóstico:
• Abordagem e tratamento do paciente com ansiedade.

Perguntas fundamentais para se chegar ao diagnóstico/abordar o


problema:
1. Como se tem sentido ultimamente?
2. Como é que os sintomas de ansiedade afetam as suas atividades
diárias?
3. Que estratégias utiliza para se autorregular quando está “ner-
voso”?
A ansiedade é uma experiência normal que qualquer ser humano irá
sentir, várias vezes, ao longo da sua vida. O problema acontece quando
se transforma em ansiedade patológica.

O que é a ansiedade?
Uma resposta emocional complexa:
• Habitualmente sentida como desagradável.
Origina-se numa perceção de ameaça (real – p. ex., um cão a ladrar
para nós – ou imaginada – p. ex., pensar “como é que vai correr a apre-
sentação”).
128 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

MECANISMOS DE ANSIEDADE
A ansiedade leva à ativação reativa de respostas em vários níveis:
• Fisiológico;
• Cognitivo;
• Comportamental.
É uma experiência comum a todos os seres humanos, assim como
a todos os animais superiores, sendo as suas respostas semelhantes. Isto
sugere que se trata de um mecanismo universal, através do qual os orga-
nismos se adaptam às situações adversas. É, muitas vezes, um estado nor-
mal e transitório.
Prova disso mesmo é a sua funcionalidade inicial adaptativa:
• Assinala antecipadamente uma ameaça e promove a ação neces-
sária (p. ex., verificar que um cão está descontrolado e sair do seu
caminho);
• Até certo ponto, ter ansiedade é vantajoso para se conseguir uma
eficiência máxima em situações de adversidade ou ameaça. Prova-
velmente, todos já experienciámos um tipo de ansiedade que nos
pode deixar mais concentrados;
• A resposta normal de ansiedade leva à otimização de certas capa-
cidades cognitivas (como a atenção, concentração ou a perceção
de ameaças), maximiza a eficácia do funcionamento corporal
(ao nível cardiovascular, respiratório e imunitário) e promove com-
portamentos adequados para lidar com o desafio, ou perigo, que
se apresenta.

Ansiedade patológica
Ocorre quando a resposta se torna excessiva e os seus sintomas se
tornam incapacitantes, prolongando-se para lá do momento da ameaça.
A ansiedade deixa de ser útil e torna-se patológica, assim como um carro
a chegar à zona vermelha do ponteiro no mostrador e avariar por estar
em sobreaquecimento.
ANSIEDADE 129

A ansiedade é patológica quando os seus sintomas deixam de ser van-


tajosos e tornam a pessoa mais incapaz – resumindo, quando esta perde
a sua ação adaptativa.

Lei de Yerkes-Dodson (1908): um clássico!


Esta teoria é clássica quando se fala de stress e ansiedade, relacionando-
-se com o grau de adaptabilidade da ansiedade. No lado esquerdo da
curva, não temos ansiedade, e quanto mais para a direita vamos, mais
alerta ficamos. Ao encontrarmos um desafio, a ansiedade ajuda-nos a
atingir uma maior capacidade cognitiva e de resolução de problemas,
até chegarmos à nossa performance máxima. Este estímulo pode ser algo
interno (ansiedade) ou externo (stress); o que pode acontecer é chegar
ao ponto de desintegração, ou seja, quando a ansiedade é excessiva, per-
demos a capacidade de pensar com clareza, o corpo começa a ficar can-
sado, podendo mesmo chegar à exaustão e ficar efetivamente com uma
perturbação de ansiedade.

Sintomas psicológicos de ansiedade


Há vários tipos de sintomas no espectro da ansiedade, pelo que des-
taco alguns subdivididos abaixo.
Humor ansioso:
• Sensações intensas de inquietação, preocupação, medo, insegu-
rança ou tensão.
Fobias:
• Medo e aversão exagerados, muitas vezes reconhecidos como irra-
cionais, de determinada situação (p. ex.: multidões, desconhecidos,
abandono, escuridão, animais, etc.).
Dificuldades cognitivas:
• Concentração, atenção e memória.
Alterações emocionais:
• Impaciência, irritabilidade, labilidade emocional ou letargia.
130 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

Perturbações do sono:
• Normalmente, insónia, mas também é possível observar sonolência
excessiva.
Despersonalização*:
• Sensação de estar desligado do seu corpo, fora de si.
Desrealização*:
• Sensação de estar desligado da realidade.

Sintomas somáticos de ansiedade


Todos os sistemas do corpo podem apresentar sinais de ansiedade e,
portanto, as somatizações são muito frequentes.
Músculo-esqueléticos:
• Tensão muscular, fadiga ou dores generalizadas.
Neurovegetativos:
• Suores frios, rubor ou palidez, boca seca, extremidades frias.
Cardiovasculares:
• Palpitações, taquicardia, hipertensão ou sensação de “peito apertado”.
Respiratórios:
• Sensação de falta de ar, de engasgamento ou hiperventilação.
Gastrointestinais:
• Náuseas, cólicas, diarreia ou dor abdominal.
Génito-urinários:
• Dificuldades em urinar ou urgência miccional, dificuldades
sexuais.
Neurológicos:
• Cefaleias, tonturas.
Desta feita, não é infrequente que o doente se dirija a outras especia-
lidades pelos seus sintomas.

*
Muito típicos na ansiedade mais extrema, tendo efeitos absolutamente horríveis. Acontece
muito em situações de cenário de choque ou no stress pós-traumático, podendo acontecer
noutras perturbações de ansiedade, embora não sendo o mais frequente, mas indica um grau
de sofrimento maior.
ANSIEDADE 131

Sintomas comportamentais de ansiedade


Agitação:
• Não conseguir estar quieto ou repousar.
Reatividade extrema a estímulos:
• É muito comum existirem queixas por parte de pessoas próximas
de maior impaciência ou relatos, em vários contextos de situações
de maior confronto ou agressividade. As respostas de ansiedade são
mecanismos que ativam alguns instintos mais básicos (incluindo
o de lutar).
Evitamento de situações:
• A nível social, profissional, académico ou pessoal.
Isolamento social – por vezes extremo.
Abuso de substâncias:
• Muitas vezes, como forma de “automedicação” para a ansiedade.
Também as substâncias podem provocar perturbações de ansie-
dade e é importante fazer um diagnóstico diferencial. O álcool é
utilizado, muitas vezes, como automedicação, de forma a deixar a
pessoa mais tranquila em situações sociais, ou as benzodiazepinas,
em situações de pânico, para conseguir gerir a ansiedade. Deve ser
algo a ter em conta ao avaliar estes pacientes.
Rituais/compulsões:
• Têm como função tentar reduzir pensamentos ansiosos;
• Podem ser, por exemplo, rituais de lavagem, de organização, de
contagem, ou mesmo relacionados com pensamento supersticioso
(p. ex., bater na madeira para dar sorte). São coisas que a pessoa
não consegue deixar de fazer mesmo que perceba a sua inutilidade,
para além de aliviar pensamentos ansiosos. É um ciclo que inclu-
sivamente se pode perpetuar, sendo mais comum na perturbação
obsessivo-compulsiva
132 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

Fisiopatologia da ansiedade
De uma forma muito simples, temos uma excessiva ativação do nosso
“sistema de alarme” e défice na sua regulação:
• Córtex, sistema límbico (amígdala), eixo hipotálamo-hipófise-
-suprarrenal, sistema nervoso vegetativo.
Todos nós já sentimos esta hiperativação, algo normal e expectável,
mas nem todos desenvolvemos uma perturbação de ansiedade, porque
temos a capacidade de nos autorregularmos após uma ameaça.

correlatos humanos do modo de alarme

EXEMPLOS
• Irritabilidade, irrequietude
LUTAR • Maior tendência a gerar discussões
• Assumir uma postura de crítica perante tudo
• Evitar situações, locais ou pessoas
• Relutância em aceitar novos projetos ou desafios
• Comunicação passiva (p. ex., “Tanto faz”, “É indiferente”)
• Comportamentos para agradar a pessoas (people pleasing)
• Congelar
FUGIR
• “Brancas” em avaliações, em conversas
• Aumento do tempo passado em redes sociais ou a ver
televisão
• Aumento do tempo passado na cama
• Uso de substâncias ou drogas com poder sedativo
• “Brancas” em avaliações, em conversas
• Aumento do tempo passado em redes sociais ou a ver
CONGELAR televisão
• Aumento do tempo passado na cama
• Uso de substâncias ou drogas com poder sedativo
ANSIEDADE 133

Fatores associados à ansiedade patológica


Genética
Antecedentes familiares são bastante frequentes. A hereditariedade
pode condicionar até 26% do risco de ter uma perturbação de ansiedade.
Na verdade, um quarto do risco é genético.

Alterações ao nível da neurotransmissão


Dão-se alterações na regulação de determinados neurotransmissores:
• Serotonina, noradrenalina e ácido gama-aminobutírico (GABA);
• Envolvidos na regulação das emoções, do sono e das reações cor-
porais ao stress.
Resta saber se estas alterações ocorrem antes ou depois da perturba-
ção se ter instalado.
Os fármacos atuais têm como alvo estes neurotransmissores.

Alterações do padrão de atividade cerebral


• Estudos de neuroimagem funcional demonstraram alterações de
padrão em pacientes com perturbações de ansiedade vs. controlos;
• Córtex pré-frontal;
• Amígdala cerebral;
• Cingulado anterior.
Ou seja, se temos este desequilíbrio entre a nossa parte racional,
que nos podia ajudar a regular para baixo o nosso sistema de alarme,
é natural que esse sistema comece a manifestar-se e crie perturbações
de ansiedade.
O tratamento bem-sucedido parece reverter estes padrões.
Como sempre, existem fatores biológicos, psicológicos e sociais, assim
como fatores externos. Estes são de extrema importância para a criação
de perturbações de ansiedade. De entre estes, podemos destacar o stress:
• Especialmente se for crónico (mantido ao longo do tempo), ou se
for muito extremo, constitui um dos principais fatores envolvido na
génese das perturbações de ansiedade;
134 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

• A forma individual de lidar com o stress – as estratégias de coping –


também tem um papel fundamental na possibilidade de a pessoa
desenvolver ou não uma perturbação de ansiedade.
Experiências adversas precoces, tal como na depressão, são extrema-
mente importantes. Numa altura em que estamos a desenvolver o nosso
cérebro e a selecionar as sinapses que vamos manter, se este ambiente nos
comunicar que o mundo é um lugar perigoso, entramos na idade adulta
com esta ideia, aumentando a nossa ansiedade e diminuindo bastante a
sua regularização. Exemplos dessas situações seriam:
• Experiências da infância e adolescência, que condicionam forte-
mente a nossa resiliência ou vulnerabilidade;
• Ambiente familiar tenso;
• Abusos (sexuais, físicos, psicológicos);
• Abandono;
• Bullying;
• Cuidadores com doença mental não tratada.
Situações de grandes mudanças são fatores reativos, positivos ou
negativos, que geram um stress na nossa vida e consequente necessidade
de ajustamento. Se a pessoa tiver menos mecanismos para lidar com
estas transições, poderá estar em risco de desenvolver ansiedade. Nor-
malmente, estes não são os fatores que iniciam o processo propiamente
dito, mas sim os gatilhos, os fatores precipitantes; tanto quando são coisas
desejadas ou positivas, como inesperadas ou negativas, por exemplo:
• Mudanças de casa;
• Alterações de emprego ou escola;
• Transição de ciclo de vida;
• Parentalidade;
• Doenças;
• Morte de pessoas próximas;
• Emigração/migrações.
ANSIEDADE 135

Características psicológicas
• Inibição comportamental;
• Perfeccionismo;
• Neuroticismo;
• Baixa autoestima;
• Harm avoidance;
• Poucos recursos de coping saudáveis;
• Excessiva necessidade de controlo.

FOBIAS ESPECÍFICAS
São um tipo de transtorno de ansiedade que se caracterizam por:
• Medo exagerado, irracional, repetido e incoercível relativo a um
objeto ou situação específicos;
• A reação emocional é altamente desproporcional face ao perigo
real que o objeto ou situação constituem;
• Sempre que um indivíduo é exposto à circunstância temida
(ou antecipa esta exposição), reage com ansiedade;
• Na maioria das vezes, a pessoa tenta ativamente evitar situações
que ativam a fobia;
• As fobias específicas são uma das formas mais comuns de doença
psiquiátrica;
• A probabilidade de vir a sofrer de uma destas, ao longo da sua vida,
é de 7,4%.
As categorias mais comuns entre estas fobias são relativas a:
• Animais (p. ex., insetos ou cães);
• Sangue-feridas-procedimentos médicos (p. ex., tirar sangue, vaci-
nas, dentista);
• Relacionadas com o ambiente (p. ex., alturas, tempestades);
• Situacionais (p. ex., elevadores, espaços fechados).
Não obstante, qualquer coisa pode constituir uma fobia.
136 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

Etiologia das fobias específicas


Uma das teorias mais aceites constata que as fobias são medos nor-
mais da infância que persistem na vida adulta:
• Na infância, todos passamos por fases de “medos” (p. ex., escuro,
fantasmas) normais e transitórios, que fazem parte do nosso neu-
rodesenvolvimento;
• Por razões não totalmente definidas, poderão persistir ao longo do
tempo.
Encontramos outros fatores que contribuem para o aparecimento de
fobias, como a genética ou o condicionamento.
Carga genética:
• É muito frequente existirem familiares de primeiro grau com uma
ou mais fobias;
• O peso dos fatores hereditários pode chegar aos 40%.
Teoria do condicionamento:
• Condicionamento direto: por exemplo, se o indivíduo foi mordido
por um cão, o cérebro poderá ligar todo o tipo de cães ao risco
de se magoar, ignorando quaisquer outras informações que lhe
poderiam indicar que a maioria dos cães, quando são bem tratados
e treinados, não mordem ninguém. Por vezes, coisas simples e,
aparentemente, não muito importantes, podem levar a enormes
condicionamentos na vida das pessoas;
• Condicionamento indireto (através da observação do comporta-
mento dos outros): a criança vê que os pais têm um medo incon-
trolável de trovoadas, correndo para debaixo da mesa sempre que
troveja, mesmo que não perceba a lógica ou o porquê do medo.
Assim, desenvolverá o mesmo tipo de comportamento face ao
mesmo estímulo (ficar com medo, esconder-se, sempre que há
uma tempestade).
ANSIEDADE 137

Tratamento de fobias específicas


Na realidade, o tratamento não é predominantemente médico, recor-
rendo, sobretudo, a técnicas de psicoterapia como exposição progressiva
ao estímulo e reestruturação cognitiva.
O objetivo é alterar o reflexo irracional de que certo estímulo pode
ser perigoso e tem de ser evitado a todo o custo, ou seja, mudar a forma
de pensar sobre determinada coisa e transformar esse medo irracional em
algo mais “real”.
• Habitualmente, usam-se benzodiazepinas de curta ação em SOS,
de forma a “evitar o evitamento”. A medicação tem realmente um
papel limitado;
• Não obstante, como o trabalho do psicólogo com o doente é um
processo longo, enquanto o primeiro não consegue que o segundo
se exponha, valerá a pena medicar. Importa, no entanto, insistir em
que a medicação não cura os sintomas, estando apenas a mascará-
-los.

PERTURBAÇÃO DE ANSIEDADE SOCIAL


O grande estímulo de ansiedade é a ideia que reflete como vamos ser
julgados pelos outros.
• Afeta aproximadamente 4% da população;
• Tipicamente, inicia-se durante a adolescência, mas não é inco-
mum ver o seu aparecimento até aos 40 anos;
• Ligeiramente mais frequente em mulheres;
• Quanto não tratada, tende a ser crónica e bastante debilitante, limi-
tando o potencial do indivíduo em vários aspetos;
• Tendo em conta que somos uma espécie social, ter uma perturba-
ção de ansiedade social é muitíssimo disruptivo.
Está, muitas vezes, associada à depressão e ao consumo de substân-
cias.
138 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

situações sociais tipicamente temidas


na perturbação de ansiedade social

EXEMPLOS
• Conhecer novas pessoas
• Falar em reuniões ou grupos
INTERAÇÃO • Iniciar conversas
• Falar com figuras de autoridade
• Ir a uma festa
• Trabalhar, comer ou falar ao telefone enquanto se é
observado
OBSERVAÇÃO • Estar numa sala de aula
• Fazer compras
• Ser visto em público
• Apresentações
• Discursos
DESEMPENHO
• Atividades desportivas de grupo
• Utilização de casas de banho públicas

Antes da situação social, podemos ter crenças de incapacidade e


ameaça que levam ao evitamento da mesma. Estas crenças levam a que,
durante a situação social, existam sintomas como suores, palpitações, ton-
turas, náuseas, etc., e um foco excessivo no próprio, situações que, por si
próprias, levam a distorções cognitivas de performance. Sendo este um
ciclo que se perpetua, pois as distorções cognitivas reforçam as crenças.
A nível farmacológico, o foco está nos sintomas de ansiedade. A medi-
cação previne os sintomas e, consequentemente, diminui as distorções
cognitivas e as crenças erradas começam a dissipar. Um bom tratamento
psicológico, a par da farmacologia, pode fazer toda a diferença.

Etiologia de ansiedade social


• Mistura de fatores biológicos, psicológicos e sociais;
• Genética;
ANSIEDADE 139

• Hiper-reactividade perante estímulos sociais de circuitos e áreas


cerebrais relacionados com o processamento do medo;
• Papel de aprendizagens precoces e de estilos parentais:
Superproteção das crianças. Uma elevada proteção da criança
impede que, aos poucos, ela desenvolva as competências e estra-
tégias de coping para lidar com situações sociais, de desempe-
nho, etc.
Frequente rejeição e desvalorização da criança
Padrão de inibição comportamental. Observa-se precocemente
em crianças que desenvolvem uma perturbação de ansiedade
social. Resulta de uma combinação de fatores biológicos, rela-
cionados com a parentalidade ou com o ambiente envolvente.
Caracteriza-se por uma elevada sensibilidade de uma criança
a estímulos sensoriais (como auditivos ou visuais) e a situações
novas (como uma pessoa estranha), levando a uma resposta exa-
gerada do sistema nervoso autónomo
• Experiências adversas envolvendo rejeição social ou humilha-
ção.

Tratamento da perturbação de ansiedade social


1.ª linha
Psicoterapia cognitivo-comportamental:
• A terapia individual regular que dura, em média, 15 a 20 sessões.
Focos: psicoeducação; exposição a situações sociais temidas; exer-
cícios de reestruturação cognitiva antes e depois das exposições;
modificação de sistema de crenças e prevenção de recaídas.
Em casos muito severos, poderá ser ajuizado fazer o uso de medica-
mento para o controlo de sintomas logo numa primeira fase.

2.ª linha
Uso de SSRI/ SNRI:
• Forte grau de evidência de eficácia;
140 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

• Escolha dependente da experiência prévia, tolerabilidade. É difícil


indicar aqueles que têm mais eficácia, embora, tendencialmente,
sejam antidepressivos mais ativadores com um certo grau de desi-
nibição social e melhor efeito em perturbações de ansiedade social.

3.ª linha
• Combinação de psicoterapia + SSRI/SNRI;
• Uso de outros psicofármacos: TCA (antidepressivos tricíclicos),
RIMA (inibidores reversíveis da monoamina oxidase).
O uso de SOS pode ser útil em qualquer linha, sendo até muito
vulgar o uso de propranolol em situações de exposição. O uso de BZD
de curta ação pode ajudar as pessoas a expor-se às situações e até pode
vir a mudar o sistema de crenças da pessoa. No entanto, não substitui o
tratamento, devendo ser usado apenas numa fase inicial.

PERTURBAÇÃO DE PÂNICO
Entre 1,5 e 3,5% das pessoas desenvolvem esta doença ao longo da
sua vida. Mais uma vez, é algo que ocorre, sobretudo, em adultos jovens,
entre os 20 e os 45 anos. Mais frequente no sexo feminino (duas a três
vezes mais).
Principal característica: ocorrência, repetida, pelo menos durante um
mês, de ataques de pânico inesperados em que não existe um ativador
situacional, i.e., algo que justifique esta reação emocional.
A estes episódios associa-se o medo e a preocupação intensa relativos
à possibilidade de novos ataques de pânico ou das suas consequências
(“Vou sentir-me assim outra vez?... Onde?... E se for à frente de toda a
gente?”).

Ataque de pânico – Definição da DSM-5


Um ataque de pânico caracteriza-se por um período abrupto de medo
ou desconforto intensos, que atinge um pico em minutos, e durante o
qual ocorrem, pelo menos, quatro dos seguintes sintomas:
ANSIEDADE 141

• Palpitações ou taquicardia;
• Sudorese;
• Tremores;
• Sensação de falta de ar;
• Sensação de asfixia;
• Dor ou desconforto no peito;
• Náuseas ou mal-estar abdominal;
• Sensação de tontura, de desequilíbrio, de “cabeça leve” ou de desmaio;
• Sensações de frio ou de calor;
• Parestesias (formigueiros ou sensação de entorpecimento);
• Desrealização (sentir que o mundo é irreal) ou despersonalização
(sentir-se desligado de si mesmo), em situações severas;
• Medo de perder o controlo ou “de enlouquecer”;
• Medo de morrer.
Estes sintomas não são atribuíveis aos efeitos fisiológicos de uma
substância (como drogas ou medicamentos) ou a outra condição médica
(p. ex., hipertiroidismo, doenças cardiopulmonares).

Diagnóstico diferencial de um ataque de pânico


É muito importante fazer um cuidado diagnóstico diferencial, uma
vez que muitas outras situações ou eventos podem criar sintomas iguais
aos ataques de pânico.
• Ataque pânico perturbação de pânico;
• Pessoas sem qualquer doença em alturas de elevado stress;
• No contexto de determinadas fobias (p. ex., o medo de falar em
público pode desencadear um ataque de pânico);
• Situações de abuso de substâncias (p. ex., canábis, cocaína, excesso
de cafeína, bebidas estimulantes).
Ter um ataque de pânico não equivale a ter uma perturbação de
pânico, pois até pode ser uma situação normal em situações de elevado
stress. Logo, é importante fazer um bom exame diferencial utilizando
anamnese, exame físico, ECG, análises.
142 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

Doenças “físicas” com sintomas muito semelhantes:


• Asma;
• Arritmias cardíacas;
• Hipertiroidismo;
• Anemias;
• Enfarte agudo do miocárdio.

Fisiopatologia do ataque de pânico


• Desregulação do sistema de alarme interno;
• ativação;
• défice de regulação.

Características inatas
Todos temos uma parte mais biológica na nossa personalidade e exis-
tem pessoas com um temperamento ansioso basal mais elevado.
• Temperamento (base biológica da personalidade);
• Genética (fatores hereditários atribuem 40% do peso).

Características individuais
• Tendência em interpretar situações de forma mais negativa ou
catastrófica. Por exemplo, olhar para um alarme de incêndio e
pensar imediatamente na existência do último;
• Perfeccionismo;
• Tendência a monitorizar e interpretar exageradamente sintomas
físicos.

Circunstâncias
• Até 80% dos pacientes relatam ter sofrido eventos negativos major
antes do primeiro ataque de pânico, muito habitualmente existindo
triggers ambientais;
• Stress crónico.
ANSIEDADE 143

Complicações da perturbação de pânico


Apesar de considerada uma doença mental ligeira, os pacientes rela-
tam elevado grau de sofrimento:
• Incapacidade de fazer o seu dia-a-dia normal;
• Dificuldades cognitivas;
• Problemas de sono.
Pode levar a comportamentos de evitamento:
• ”Se isto aconteceu no supermercado, não volto lá”, “Se foi no ele-
vador, não volto lá”, Se foi porque estava sozinho...”, “Se foi porque
estava muita gente…”
Os ataques de pânico na perturbação de pânico não são situacionais,
podendo acontecer em qualquer altura, inclusive quando se está a dor-
mir. O nosso cérebro arranja sempre formas para sistematizar os ataques,
mas o que provoca o ataque de pânico é a hiperativação do sistema de
alarme e o défice de regulação. Assim, a pessoa vai passar a evitar deter-
minadas situações.
Em casos extremos, pode desenvolver-se agorafobia:
• Medo intenso e irracional de várias situações e sítios onde a pessoa
se sente insegura ou de onde considera difícil poder escapar;
• Preocupação principal: ideia de que, nestes contextos, se se sentir
mal ou se tiver um ataque de pânico, poderá ser difícil fugir ou ter
auxílio disponível.

Tratamento da perturbação de pânico


1.ª linha
• Psicoterapia cognitivo-comportamental.
Focos: psicoeducação; estratégias de autorregulação; prevenção de
comportamentos de evitamento; estratégias de gestão do stress.
O objetivo é tentar desmontar a ideia de que os ataques são situacionais
e, ao mesmo tempo, ajudar as pessoas a regular melhor as situações, através
de estratégias para desviar a atenção do cérebro no sistema nervoso.
144 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

2.ª linha
• Uso de SSRI/SNRI. É comum a medicação ser necessária quando
a perturbação de pânico já se instalou.
Forte grau de evidência de eficácia.
Escolha dependente da experiência prévia, tolerabilidade. Normal-
mente, SSRI/SNRI que não sejam muito ativadores.

3.ª linha
• Combinação de psicoterapia + SSRI/SNRI é a combinação mais
eficaz;
• Uso de outros psicofármacos;
• TCA, BZD de longa ação.
O uso de SOS pode ser útil. Por ex., BZD de curta ação, hipnóticos.

PERTURBAÇÕES DE ANSIEDADE GENERALIZADA


Neste caso concreto, o sintoma principal é a ansiedade constante ou
free float.
• Muito frequente, afetando 4% da população a nível mundial, com
maior incidência na do sexo feminino;
• Tipicamente, começa no início da idade adulta e tende a persistir
ao longo do tempo.
A grande maioria dos doentes com este diagnóstico apresenta comor-
bilidade psiquiátrica:
Outra perturbação de ansiedade
Depressão major (cerca de 50% dos casos sofre de DM e PAG)
Abuso de substâncias.
Existe maior risco de doença física (p. ex., doença cardiovascular,
autoimunes, etc.). Muitas vezes, são doentes somáticos que vão ao médico
por razões mais físicas do que mentais.
Principal característica: padrão de preocupação, persistente e exces-
sivo, relacionado com múltiplos e diferentes assuntos (generalizado).
O dia-a-dia da pessoa passa por preocupação. Muitas vezes, antecipação
ANSIEDADE 145

negativa, “esperar o pior”. É um estado de hiperalerta do sistema de


alarme, com falta de regulação completa, que frequentemente leva a
sintomas físicos.
A ansiedade está presente, com maior ou menor oscilação, em todas
as ocasiões, em todas as situações e na grande maioria dos dias.
Este estado de alerta constante provoca elevado desgaste, não só psi-
cológico como físico, pelo que são comuns os sintomas físicos:
• Cefaleias, dores generalizadas, tensão muscular;
• Cansaço, fadiga.

Diagnóstico de PAG – DSM-5


Ansiedade e preocupação excessivas (apreensão expectante) que ocor-
rem em mais de metade dos dias, durante pelo menos seis meses, sobre
vários acontecimentos ou atividades (seja trabalho, escola, questões de
saúde, vida familiar, etc.).
A pessoa tem dificuldades em controlar a ansiedade; e a ansiedade
e preocupação estão associadas com três (ou mais) dos seguintes sin-
tomas:
• Agitação, nervosismo ou tensão interior;
• Cansaço fácil;
• Dificuldades de concentração ou sensação de “cabeça vazia”;
• Irritabilidade;
• Tensão muscular;
• Perturbação do sono (insónia inicial é a mais frequente).

Diagnóstico de PAG
Muitas vezes, não procuram ajuda, considerando que são “apenas
nervosos”. Quando o fazem, muitas vezes recorrem a apoio médico
devido a sintomas físicos ou depressivos.
A doença provoca elevado impacto a todos os níveis: profissional,
académico, pessoal e familiar.
146 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

Etiologia de ansiedade generalizada


Mistura de fatores biológicos, psicológicos e sociais.
• Genética (representa 30% do risco);
• Hiper-reactividade de circuitos e áreas cerebrais relacionados com
o processamento do medo perante estímulos processados como
ameaças (reais ou imaginadas);
• Papel de aprendizagens precoces e de estilos parentais. Mais uma
vez, se a criança aprende que o mundo é um lugar perigoso, vai ter
tendência para perturbações ansiosas.

Paralelamente, o neuroticismo é a tendência, mantida ao longo do


tempo, para estar num estado emocional negativo ou ansioso. Estes indi-
víduos são particularmente sensíveis ao stress ambiental e têm menor
capacidade de exprimir o que sentem. Tentam controlar ao máximo qual-
quer situação inesperada.
Circunstâncias sociais adversas podem precipitar ou agravar:
• Desemprego, ruturas afetivas, isolamento, ambientes “tóxicos”,
exatamente por terem dificuldade em exprimir-se e lidar com
situações diferentes.

Tratamento da PAG

1.ª linha
• Psicoterapia (habitualmente mais prolongada).
Focos: psicoeducação; estratégias de autorregulação; prevenção de
comportamentos controlo; estratégias de gestão do stress; intervenções
baseadas em mindfulness e exercícios de relaxamento.

2.ª linha
• Uso de SSRI/SNRI.
Forte grau de evidência de eficácia. Infelizmente, menor eficácia
quando a utilização de fármacos não é acompanhada de psicoterapia.
Escolha dependente da experiência prévia, tolerabilidade.
ANSIEDADE 147

3.ª linha
• Combinação de psicoterapia + SSRI/SNRI;
• Uso de outros psicofármacos;
• TCA, BZD longa ação, pregabalina.
O uso de SOS pode ser útil. Por ex., BZD de curta ação, hipnó-
ticos.

DICAS PRÁTICAS
Pacientes com ansiedade podem gerar bastante ansiedade no clínico:
reconheça isso e tente usar técnicas de relaxamento ou de foco no pre-
sente.
Lembre-se de que o que está a sentir foi ativado pela intensidade dos
sintomas da pessoa que tem à sua frente.
Use as primeiras consultas para (tentar) tranquilizar o doente:
• Explicar o que é uma perturbação de ansiedade;
• Que se trata de uma” desregulação do sistema de alarme interno”;
• Que tem tratamento;
• Que os sintomas físicos não irão levar a consequências maiores.
Faça um bom diagnóstico diferencial e despiste de patologias orgâ-
nicas ou uso de substâncias que possam estar a contribuir para o quadro,
mas não exagere no número de exames ou referências a especialistas, pois
tal pode ser prejudicial.
Os fármacos (SSRI/SNRI/outros), normalmente, precisam de chegar
a doses altas para serem eficazes:
• Muitas vezes, o dobro da dose eficaz para a depressão;
• É preferível ir aumentado a dose gradualmente e devagar, pois
doentes com ansiedade têm, muitas vezes, menor tolerabilidade a
efeitos secundários.
O uso de BZD é, por vezes, inevitável: preferir longa ação em situa-
ções mais generalizadas (perturbação de ansiedade social, perturbação
de ansiedade generalizada) e de curta ação (SOS) quando em ”picos”
(perturbação de pânico, fobias).
148 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

As estratégias que se seguem são fundamentais para auxiliar no trata-


mento e prevenir recaídas:
• Exercício físico aeróbico regular;
• Mindfulness;
• Uma boa gestão de stress e equilíbrio de trabalho/vida pessoal;
• Práticas de bem-estar regulares (p. ex., hobbies, tempo para estar
com os amigos, passeios na natureza);
• Boa regulação de sono para o corpo não entrar em modo de alarme;
• Alimentação saudável;
• Ter um “aliado” médico/psicólogo, a que o paciente possa recorrer
se considerar que está a ficar pior, pode ser algo muito tranquili-
zador.

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9. PERTURBAÇÃO
OBSESSIVO-COMPULSIVA
PEDRO MORGADO

A perturbação obsessivo-compulsiva é uma perturbação muito fre-


quente na nossa população que, pela sua prevalência, acaba por estar
presente na prática clínica de todas as especialidades.

INTRODUÇÃO
A perturbação obsessivo-compulsiva é uma perturbação psiquiátrica
que se caracteriza pela presença de obsessões e compulsões com impacto
significativo na qualidade de vida da pessoa.
A etiologia da perturbação obsessivo-compulsiva é determinada pela
interação entre fatores genéticos e ambientais, sendo os casos familia-
res relativamente comuns. Contudo, o peso relativo da hereditariedade
genética é inferior a outras patologias psiquiátricas como a esquizofrenia.
É uma doença muito sensível a circunstâncias e fatores de vida como
eventos perinatais, infeções na infância e adolescência, experiência de stress
crónico e também a exposição a eventos significativamente traumáticos.
No caso do stress crónico e dos eventos traumáticos, verifica-se frequen-
temente uma relação temporal entre a ocorrência destes estímulos e o
surgimento dos sintomas, embora esteja por determinar com certeza o nexo
de causalidade entre estes fatores etiológicos e o surgimento e/ou agra-
vamento da doença.
A doença caracteriza-se pela existência de alterações cerebrais bem
documentadas: os circuitos cortico-estriato-talâmicos encontram-se
desregulados com predominância de circuitos associados a compor-
tamentos habituais, enquanto se verifica uma falência dos mecanismos
de controlo da ação e de interpretação dos sinais corporais e externos.
152 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

Estes últimos, por sua vez, atribuem demasiado valor a alguns estímulos,
que em situações normais seriam desvalorizados, gerando respostas
excessivas.
Os tratamentos da perturbação obsessivo-compulsiva incluem a far-
macoterapia (nomeadamente, antidepressivos e antipsicóticos), a psicote-
rapia e, em situações refratárias, outras modalidades de intervenção como
a estimulação cerebral profunda.

Obsessões e compulsões

Obsessões
As obsessões são pensamentos, imagens ou impulsos que são intrusivos
(surgem independentemente da vontade e, na maior parte das vezes, contra
a sua vontade) e que, como tal, são indesejados, inaceitáveis e egodistónicos.
Estes pensamentos/imagens/impulsos são repetitivos, reconhecidos
como absurdos, originam resistência subjetiva, provocam intensa ansie-
dade e são reconhecidos como próprios.
Além da forma de pensamentos, as obsessões podem ser tanto ima-
gens, quanto a sensação de impulso de fazer alguma coisa. Podem também
adquirir a forma de perceção corporal (por exemplo, a sensação de que a
sujidade é percecionada e não necessariamente uma ideia de sujidade).
O conceito de “obsessão” é frequentemente confundido com “obce-
cação”. Estes termos são muitas vezes utilizados de forma indiscriminada,
mas significam coisas distintas. Do ponto de vista etimológico, obsessão
significa “importunação perseverante, perseguição diabólica ou ideia fixa”,
enquanto obcecação diz respeito ao “ato ou efeito de obcecar ou obcecar-
-se, pertinácia, teimosia num erro, cegueira de espírito”, ou seja, uma situa-
ção em que o sujeito ativo da ação é a própria pessoa. Assim, a obsessão é
algo que persegue e cerca um sujeito, enquanto numa obcecação é
o sujeito que persegue ou rodeia uma ideia, evento ou crença. Esta dis-
tinção é muito importante porque a ideia de que o sujeito na perturbação
obsessivo-compulsiva é um sujeito passivo das suas obsessões é nuclear
para o diagnóstico da doença e para a compreensão da sua psicopatologia.
PERTURBAÇÃO OBSESSIVO-COMPULSIVA 153

Compulsões
As compulsões são comportamentos ou atos mentais repetitivos e,
em regra, respondem a uma obsessão para diminuir a ansiedade que é
provocada por esta.
São caracterizadas por uma sensação subjetiva de resistência – a
pessoa muitas vezes não quer efetuar o ritual, sabendo que é desneces-
sário, que é absurdo e que não vale a pena; são reconhecidas como pró-
prias pela pessoa e dependentes da sua vontade – os doentes muitas vezes
dizem “eu não quero fazer”, mas sabem que o estão a fazer por sua von-
tade, causam um enorme sofrimento e interferem com a vida da pessoa.
As compulsões motoras podem ser algo como lavar as mãos, fechar
uma porta, verificar um interruptor, entre outras. Os atos mentais são
muitas vezes pensamentos para anular as obsessões, como repetir uma
palavra ou fazer uma contagem mental.

EPIDEMIOLOGIA
A prevalência de perturbação obsessivo-compulsiva é muito variável
entre países, o que denota diferentes abordagens metodológicas na sua
estimativa. Na maioria dos países, a prevalência anual é de 2-3%; da popu-
lação, enquanto que em Portugal é de 4,4%.
A doença afeta de igual forma ambos os sexos – embora a doença
se expresse de forma mais prevalente nos rapazes durante a infância e
adolescência, é mais prevalente nas mulheres em idade adulta.
A idade média de início é de 20 anos (18-29 anos), com uma distri-
buição bimodal de indecência (primeiro pico nos 10/12 anos e segundo
nos 20/30 anos). Raramente surge após os 30 anos.
Existem algumas formas de POC que estão associadas a eventos de
vida (p. ex., parto, maternidade, paternidade) – será normal nestas situa-
ções a doença aparecer mais tarde do que é habitual. Assim como todas
as situações de POC numa fase avançada de vida, deve ser objeto de um
cuidado diagnóstico diferencial.
154 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

CARACTERÍSTICAS CLÍNICAS
O diagnóstico de perturbação obsessivo-compulsiva requer a presença
de obsessões e/ou de compulsões que durante um período considerável
de tempo (em regra mais do que uma hora por dia) provocam sofrimento
e interferem ou reduzem a qualidade da vida da pessoa nas suas diferentes
dimensões (pessoal, social, académica, ocupacional). Para estabelecer o
diagnóstico é importante a existência de prejuízo do funcionamento.
Os sintomas não podem ser explicados por outra doença psiquiátrica
ou não psiquiátrica.
No DSM-5 foram também definidos especificadores como:
• Insight – A doença tem níveis de insight muito variáveis (é muito
difícil fazer o diagnóstico diferencial de uma POC sem insight com
as perturbações psicóticas ou do espectro do autismo, por exemplo).
É um desafio diagnóstico;
• Tic-related – Quando o doente tem distúrbio ou história de distúr-
bio com tiques, este especificador reflete possíveis padrões dife-
rentes de condições coexistentes, curso da doença e transmissão
familiar.

Ciclo obsessões-compulsões
Tipicamente, as pessoas com perturbação obsessivo-compulsiva
encontram-se num ciclo de obsessões-compulsões que é gerador de
sofrimento e consumir de tempo. Tipicamente, a pessoa experiencia as
obsessões (pensamentos, imagens e impulsos intrusivos) e estas geram
uma ansiedade muito significativa que está associada ao medo, preo-
cupação e necessidade de fazer algo. A ansiedade sentida pelo doente
é muito intensa – é fundamental que se tenha noção da sua magnitude
esmagadora para compreender a patologia. Geram-se então depois as
compulsões – comportamentos que servem para reduzir a ansiedade.
Contudo, o alívio posterior é muito temporário e gera novas obsessões.
Relativamente ao tratamento, os antidepressivos atuam melhor
na redução da ansiedade e na intensidade e frequência das obsessões,
PERTURBAÇÃO OBSESSIVO-COMPULSIVA 155

enquanto a psicoterapia atua sobretudo na redução das compulsões e na


integração da ansiedade ou na redução da ansiedade por uma integração
diferente daquele que é o significado das obsessões.

Outras características clínicas da doença


Tem sido descrita uma associação entre a perturbação obsessivo-
-compulsiva e uma série de características psicológicas de personali-
dade estritamente relacionadas com a sintomatologia da doença, não
necessariamente em todas as dimensões da vida da pessoa. Entre essas
características encontram-se a elevada conscienciosidade, a sobrevalori-
zação da importância dos pensamentos, as vivências de culpa, a escru-
pulosidade, a preocupação excessiva com o controlo dos pensamentos,
a elevada meticulosidade, a maior intolerância à ambiguidade e incerteza
com a maximização dos resultados negativos e a tendência ao perfecio-
nismo e ao pensamento dicotómico (maior dificuldade em abandonar o
pensamento dicotómico).
Deve salientar-se que a associação entre personalidade obsessivo-
-compulsiva e perturbação obsessivo-compulsiva pode estar presente,
mas não se verifica na maioria das pessoas com perturbação obsessivo-
-compulsiva.

Dimensões da perturbação obsessivo-compulsiva


Os sintomas da perturbação obsessivo-compulsiva têm sido agrupados
em cinco dimensões distintas:
• Pensamentos de contacto e contaminação e rituais de limpeza
ou de evitamento;
• Medo de agressividade e verificações associadas*;
• Pensamentos proibidos ou inaceitáveis, sobretudo pensamentos
agressivos, sexuais, de natureza religiosa*;

*
Em algumas classificações poderemos ter a associação entre as categorias de agressão/violên-
cia e sexuais/religiosas, tornando-se apenas a categoria de pensamentos proibidos (passando
de cinco para quatro dimensões fundamentais).
156 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

• Ordem e simetria;
• Acumulação (a acumulação na perturbação obsessivo-compulsiva
deve ser distinguida da perturbação de acumulação pela sua apre-
sentação clínica).
A doença é altamente heterogénea, pelo que é possível existirem
apresentações que não partilham entre si um único sintoma.
Estão também descritas diferenças de género, com dimensões mais fre-
quentes no género feminino e outras mais frequentes no género masculino.

DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
No DSM-5, a perturbação obsessivo-compulsiva integra o grupo das
doenças obsessivo-compulsivas e doenças relacionadas, conjuntamente
com a doença dismórfica corporal, a perturbação de acumulação, a trico-
tilomania e a perturbação de escoriação.
No ICD-11, a síndrome de Tourette e a hipocondria também estão
incluídas neste grupo, uma vez que partilham características clínicas com
a perturbação obsessivo-compulsiva.
No seu conjunto, estas patologias apresentam um componente
obsessivo ou um componente compulsivo integrado na apresentação
clínica e com especificidades que as diferenciam entre si. Na prática
clínica encontramos um contínuo transdiagnóstico entre estas patologias
com potencial de dificultar o processo diagnóstico e terapêutico.
Um desafio diagnóstico, do ponto de vista diferencial, é o diagnós-
tico diferencial com a psicose, nomeadamente com a psicose delirante
crónica. Frequentemente, os pensamentos (quando há algum insight por
parte dos doentes) são-nos apresentados como quase-obsessivos e, como
tal, dificultam a sua distinção.
Da mesma forma, a fase inicial de alguns quadros de psicose esqui-
zofrénica também pode cursar com uma apresentação que se assemelha
à perturbação obsessivo-compulsiva, embora muitas vezes consigamos
identificar alguma não-plausibilidade/irracionalidade no tipo de pensa-
mentos obsessivos que são apresentados pelos doentes.
PERTURBAÇÃO OBSESSIVO-COMPULSIVA 157

Neurobiologia
A perturbação obsessivo-compulsiva está associada a uma desregula-
ção de circuitos que envolvem regiões corticais (nomeadamente o córtex
orbito-frontal, o córtex insular e o córtex cingulado anterior), os gânglios da
base (nomeadamente os núcleos caudado e putamên) e regiões talâmicas.
De uma forma muito simples, podemos afirmar que as regiões corti-
cais tendem a maximizar os resultados negativos de situações de potencial
risco. Ao maximizar essa probabilidade de risco e, subsequentemente,
ao falharem os mecanismos de controlo da resposta, gera-se uma rea-
ção excessiva para a situação que a provocou e, consequentemente,
estabelecem-se comportamentos compulsivos para limitar consequências
potenciais cuja probabilidade de ocorrência é extraordinariamente baixa.
Alguns estudos têm descrito duas fases para o funcionamento cerebral
na POC. Uma primeira fase dominada pela ansiedade e pela incerteza,
em que a pessoa faz coisas para reduzir a incerteza de uma ação ou a
ansiedade que essa ação lhe gera. E uma segunda fase, dominada pelos
comportamentos habituais.

TRATAMENTO
Os tratamentos de primeira linha para a POC incluem a psicoterapia
cognitivo-comportamental com exposição e prevenção de resposta e os
antidepressivos inibidores seletivos da recaptação da serotonina (SSRIs).
As hipóteses mais desenvolvidas implicam a terapia cognitivo-
-comportamental na redução das compulsões e na modulação dos cir-
cuitos cerebrais associados às compulsões e os SSRIs nos mecanismos de
geração de obsessões e do controlo das obsessões.
Nas situações ligeiras de doença, os tratamentos de primeira linha
podem ser utilizados em simultâneo ou alternadamente.
Vários estudos têm procurado sistematizar a eficácia dos diferentes
tratamentos. A maior parte dos ensaios com psicofármacos utilizaram a
clomipramina e a fluvoxamina. A escala Y-BOCS é utilizada como gold
standard da avaliação e monitorização da gravidade da doença, dado que
158 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

permite avaliar, entre outros aspetos, o tempo que o doente despende com
os sintomas da doença e o tempo que está sem sintomas.
Nos estudos publicados parece haver um efeito superior dos tra-
tamentos psicoterapêuticos face aos tratamentos farmacológicos na
redução média de sintomas, embora não existam estudos comparativos
robustos.

Psicoterapia
A psicoterapia indicada na POC é a psicoterapia cognitivo-
-comportamental de exposição e prevenção de resposta, em programas
de tratamento que têm uma duração-padrão típica de 12 a 20 sessões.
Este tipo de psicoterapia nem sempre está disponível e apresenta eleva-
dos custos, uma vez que existem poucos profissionais com experiência
em psicoterapia na perturbação obsessivo-compulsiva. Além disso, outras
psicoterapias têm vindo a ser experimentadas, ainda que sem resultados
tão consolidados como a psicoterapia cognitivo-comportamental de expo-
sição e prevenção de resposta.
A abordagem cognitivo-comportamental na POC recorre frequente-
mente a dois tipos de intervenção:
1. Exposição e prevenção de resposta: em que se trabalha a exposição
de forma controlada, repetida e prolongada aos estímulos que provocam
os sintomas, com objetivo de controlar o comportamento compulsivo
associado. Normalmente, inicia-se a exposição com os sintomas menos
angustiantes. A exposição pode acontecer em consultório ou no ambiente
do paciente (por exemplo, em casa).
2. Terapia cognitiva: tem como objetivo a identificação das crenças
desadaptativas que levam ao comportamento, de modo a desenvolver
esquemas alternativos. Existem vários esquemas e formas de aplicação des-
tes princípios da psicoterapia, que podem incluir a identificação daquilo
que está no ambiente e nas perceções do doente que gera ou agrava sinto-
mas, a análise das obsessões e dos pensamentos metacognitivos acerca das
obsessões e a gestão da ansiedade e do sofrimento associado às obsessões.
PERTURBAÇÃO OBSESSIVO-COMPULSIVA 159

Antidepressivos inibidores seletivos da recaptação da eerotonina (SSRIs)


O tratamento com antidepressivos SSRIs apresenta uma relação
custo-benefício mais favorável. Os estudos comparativos entre SSRIs não
descrevem diferenças entre os diferentes fármacos disponíveis, embora
dados de casos clínicos e séries de casos tenham apontado uma possível
superioridade da fluvoxamina. A gestão dos efeitos secundários dos anti-
depressivos é a maior dificuldade. Contudo, na perturbação obsessivo-
-compulsiva estes efeitos tendem a ser mais ligeiros do que no tratamento
da depressão ou ansiedade.
As doses a utilizar no tratamento da perturbação obsessivo-compulsiva
devem ser tituladas de forma gradual até à dose eficaz, que é duas a três
vezes superior à dose máxima utilizada para tratar depressão ou ansie-
dade. É essencial aumentar até à dose máxima recomendada antes de
afirmar que a doença é resistente à medicação.

Antidepressivos tricíclicos (TCA)


Os antidepressivos tricíclicos podem ser utilizados na perturbação
obsessivo-compulsiva resistente ao tratamento com antidepressivos SSRIs.
A clomipramina é particularmente eficaz e tem uma eficácia superior
aos outros antidepressivos. Contudo, apresenta significativamente mais
efeitos secundários, verificando-se necessidade de monitorizar os riscos
cardíacos através da realização de ECG no início do tratamento e de
forma periódica após estabilização da dose, bem como monitorizar os
riscos metabólicos através da avaliação do IMC e da monitorização dos
fatores metabólicos séricos.

Estratégias de potenciação
Os antipsicóticos são a estratégia de potenciação mais utilizada.
Risperidona, paliperdiona e aripiprazol em doses baixas são os anti-
psicóticos mais eficazes na potenciação. Por outro lado, fármacos como
olanzapina, clozapina e quetiapina têm sido associados ao desenvolvi-
mento de sintomas obsessivos em pessoas com psicose.
160 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

Além dos antipsicóticos de segunda geração, outros fármacos têm


vindo a ser utilizados com resultados preliminares positivos. Neste grupo
incluem-se a lamotrigina, a memantina e o topiramato.
As benzodiazepinas podem ser utilizadas para controlo de situações
de ansiedade extrema, mas não devem ser consideradas tratamento de
longo prazo na POC, nem em monoterapia, nem como estratégia de
potenciação.
Nas situações graves e refratárias ao tratamento psicoterapêutico e psi-
cofarmacológico podem considerar-se as intervenções físicas. A estimu-
lação cerebral profunda é a alternativa com maior eficácia demonstrada,
embora a sua natureza invasiva com intervenção da neurocirurgia seja
um entrave à sua utilização mais generalizada. A estimulação magnética
transcraniana e o neurofeedback têm demonstrado eficácia em estudos
preliminares, não tendo, contudo, a evidência necessária para uma
recomendação de forma generalizada.
A eletroconvulsivoterapia demonstrou eficácia em casos anedóticos,
não devendo ser considerada um tratamento com evidência na POC.

Algoritmo de tratamento
O primeiro passo no tratamento da POC é o estabelecimento de
um diagnóstico adequado e a avaliação da gravidade da doença. Se
a doença for ligeira ou moderada, devemos considerar a psicoterapia
cognitivo-comportamental com exposição e prevenção de resposta
como tratamento de primeira linha (individual ou em grupo) ou, alter-
nativamente, o uso de antidepressivos SSRIs. A combinação da inter-
venção psicoterapêutica e farmacológica deve ser considerada sempre
que possível.
No caso de se verificar resposta insatisfatória com a psicoterapia, deve
considerar-se o início do tratamento com antidepressivo SSRI.
Na ausência de resposta satisfatória com o primeiro SSRI em dose
terapêutica máxima, deve considerar-se a troca por outro SSRI pelo
menos duas vezes. Tendo em conta a dose terapêutica, deve considerar-se
PERTURBAÇÃO OBSESSIVO-COMPULSIVA 161

adicionar (se não tiver acontecido mais cedo) psicoterapia cognitivo-


-comportamental.
Na ausência de resposta aos SSRIs e psicoterapia, deve considerar-se
a utilização de clomipramina em monoterapia ou em associação com um
SSRI (o que pode permitir a utilização de doses inferiores de clomipra-
mina, e assim minimizar os seus efeitos secundários).
Na ausência de resposta, deve considerar-se o uso de um antipsicótico
de segunda geração, após avaliação do risco-benefício. Esta estratégia
pode ser antecipada sempre que exista contraindicação para a utilização
de clomipramina, quando o risco-benefício não justifica a sua escolha ou
sempre que as características clínicas da doença favoreçam a escolha de
antipsicótico.
Nas situações refratárias à potenciação, pode ainda considerar-se a
utilização da clomipramina endovenosa periódica ou outros fármacos
como o haloperidol, a memantina, o topiramato ou a lamotrigina. Se
continuarmos com uma ausência de resposta, então pode ser considerada
a potenciação com novos agentes, a estimulação magnética transcraniana
ou a estimulação cerebral profunda.
Havendo resposta positiva, o tratamento farmacológico deve manter-
-se pelo menos durante 24 meses após a remissão, podendo considerar-se
reforços periódicos da psicoterapia cognitivo-comportamental.

PROGNÓSTICO
Até 40% dos doentes respondem aos tratamentos de primeira linha
(antidepressivos SSRI e/ou psicoterapia), embora esta resposta seja usual-
mente parcial. A doença torna-se crónica em cerca de 2/3 dos casos, sendo
a recaída muito comum.
O melhor preditor da resposta aos tratamentos é a melhoria precoce
(> 20% melhoria Y-BOCS às quatro semanas), estando associada a res-
posta terapêutica (> 35% melhoria Y-BOCS) às 12 semanas.
Têm sido descritos fatores de mau prognóstico que incluem a gra-
vidade da doença, a presença de obsessões de acumulação (obsessões
162 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

agressivas são fator de bom prognóstico), a idade precoce de início,


o baixo insight, a existência de comorbilidades, características psicológi-
cas que determinem baixa adesão ou maior resistência à mudança, o sexo
masculino, o baixo nível educacional, as dificuldades socioeconómicas,
a história familiar de POC, a baixa aliança terapêutica, a acomodação
familiar (a família estrutura-se à volta da doença, o que a acomoda e
favorece) e a ausência de resposta precoce aos SSRIs em dose terapêutica.
A menor duração e menor gravidade dos sintomas são fatores de bom
prognóstico.
A doença evolui tipicamente para a cronicidade: após três anos de
tratamento, a remissão total apenas se verifica em 27% dos doentes com
POC.
Menor duração e menor severidade são fatores de bom prognóstico.

Perspetiva futura
Apesar de se tratar de uma doença grave e potencialmente incapa-
citante, a perturbação obsessivo-compulsiva dispõe de tratamentos que
podem melhorar significativamente a qualidade de vida das pessoas que
vivem com a doença. É por isso fundamental aumentar a literacia acerca
da doença na população geral, garantir o diagnóstico adequado e provi-
denciar o tratamento atempado, de forma a prevenir a sua evolução para
formas de mais difícil tratamento.

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10. PERTURBAÇÃO BIPOLAR
JOSÉ OLIVEIRA

Neste capítulo vamos definir o que é uma perturbação bipolar, iden-


tificar os seus sinais e sintomas, perceber como orientar os doentes e
conhecer as principais terapêuticas, quer farmacológicas, quer não-
-farmacológicas.
Começando pela definição, a perturbação bipolar não foi, durante
muito tempo, um conceito consensual.

PERSPETIVA HISTÓRICA
Areteu da Capadócia é reconhecido como o autor das primeiras des-
crições escritas referentes a melancolia e a mania, num conceito unifi-
cado de doença maníaco-depressiva. A combinação de depressão e mania
é, obviamente, a base do conceito de perturbação bipolar. Devemos pro-
vavelmente a formulação mais próxima da conceptualização atual a Jean-
-Pierre Falret, médico francês que, em 1854, proferiu uma palestra na
Académie Impériale de Médecine, com base em observações longitudi-
nais, desenvolvendo o conceito publicado anteriormente (1851) de “folie
circulaire” – episódios maníacos e melancólicos separados por intervalos
sem sintomas.Também em 1954, Jules Baillarger apresentou o conceito
de “folie à double forme” e acusou Falret de plágio. No entanto, o trabalho
de Falret é aceite como o pioneiro e mais próximo das nossas conceções
atuais. Além do diagnóstico, Falret enfatizou a importância da genética
na perturbação bipolar, algo que os investigadores ainda hoje procuram
esclarecer completamente. Mais tarde, Emil Kraepelin rompeu com a
teoria de Freud de que a sociedade e a supressão dos desejos desempenha-
vam um papel primordial na doença mental. Recorrendo ao conceito de
ciclotimia de Kahlbaum, Kraepelin categorizou e estudou o curso natural
168 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

de doentes não tratados. Cunhou o termo “psicose maníaco-depressiva” e


diferenciou-o da demência precoce, hoje conhecida como esquizofrenia.
Finalmente, terá sido Karl Leonhard, em 1957, o primeiro a distinguir os
termos “perturbação bipolar” (para indivíduos com episódios maníacos) e
“perturbação unipolar” (para indivíduos com episódios depressivos exclu-
sivamente). O termo “perturbação bipolar”, atualmente usado, substituiu
o de “psicose maníaco-depressiva” como um termo diagnóstico, no DSM-
-III, em 1980.

EPIDEMIOLOGIA
A perturbação bipolar afeta aproximadamente 1% da população
(a estimativa é variável se considerarmos a existência de um espectro de
perturbação bipolar).
A idade de início segue uma distribuição trimodal: início precoce,
início intermédio e início tardio. Os pontos de corte estimados para a
idade de início são de 21 e 35 anos de idade.
A perturbação bipolar de início precoce é a mais prevalente. Tem um
pico de incidência entre os 16/17 anos e corresponde a 45% do total de
casos. Caracteriza-se por:
• tentativas de suicídio;
• Ciclos rápidos;
• Associação a abuso de substâncias;
• Associação a perturbação obsessivo-compulsiva;
• História familiar de perturbação bipolar.

A par com as doenças neurológicas e as perturbações de abuso de


substâncias, as doenças mentais causam uma considerável perda de
anos de vida ajustados por incapacidade. E mais: incidem, sobretudo
as de início precoce, no período de vida de transição para a vida adulta,
interferindo potencialmente com concretizações académicas e profis-
sionais, relações afetivas, autonomia, entre outras. A perturbação bipo-
lar é também a quarta causa de perda de anos de vida ajustados por
PERTURBAÇÃO BIPOLAR 169

incapacidade nos mais jovens (10-24 anos de idade) e está associada,


considerando a globalidade dos doentes, a uma redução de 9-20 anos
na esperança média de vida, por suicídio, mas também provavelmente
por associação a hipertensão arterial, doenças cardiovasculares, diabetes,
doenças respiratórias e infeções.

ETIOLOGIA
No que diz respeito à componente hereditária, os estudos mostra-
ram que existem múltiplos genes de risco, afetando funções biológicas
diversas, tais como, para nomear algumas, a neurotransmissão, neuro-
trofismo, estabilidade das sinapses e imunidade/inflamação; adicional-
mente, ter história familiar de perturbação bipolar implica um risco
considerável.
Hereditariedade – O risco:
• 0,5-1,5% em relação a um não familiar;
• 5-10% em familiares de 1.º grau;
• 40-70% em gémeos monozigóticos.
Os fatores ambientais identificados, tal como os genéticos, são
múltiplos e parecem ser partilhados com outras patologias psiquiá-
tricas.
Identificando alguns dos mais importantes:
• Malnutrição na gestação;
• Baixo peso à nascença;
• Complicações no periparto;
• Consumo de substâncias ilícitas durante a gestação;
• Exposição a stress psicossocial;
• Gripe durante a gestação;
• Adversidade na infância;
• Trauma (ex., abuso sexual).
Curiosamente, a associação com doenças infeciosas parece ser impor-
tante, não só como uma componente da comorbilidade física destes
doentes, mas também como potencial fator de risco. Algumas infeções
170 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

foram associadas ao diagnóstico de perturbação bipolar, nomeadamente,


foi identificada uma associação entre seropositividade para toxoplasma
gondii e a perturbação bipolar, e que os doentes com perturbação bipolar
apresentam alterações cognitivas (linguagem, atenção e memória ime-
diata) que se correlacionam com a presença de anticorpos anti-HSV-1.
Por outro lado, a exposição ao vírus da gripe durante a gravidez está asso-
ciada a um aumento do risco de ter um descendente com perturbação
bipolar, o que, neste caso, é sugestivo de causalidade.
Assim, estamos perante uma etiologia multifatorial. O risco aumen-
tado de doença resulta provavelmente de uma interação complexa entre
vulnerabilidade genética e exposição a fatores de risco ambiental.

PRÓDROMO
Alguns estudos indicam a existência de sintomas prodrómicos:
• Irritabilidade;
• Ansiedade;
• Labilidade do humor (“mudanças rápidas de humor”);
• Agitação;
• Agressividade;
• Perturbação do sono;
• Hiperatividade.

CARACTERÍSTICAS CLÍNICAS
A perturbação bipolar é uma perturbação do humor crónica, cíclica,
evoluindo por crises. É caracterizada por episódios de mania, de hipo-
mania, de depressão e/ou episódios mistos. Entre os episódios, embora
muitos doentes logrem períodos prolongados de eutimia, não considera-
mos habitualmente que exista remissão da totalidade de sintomas psiquiá-
tricos. Podem persistir perturbações do sono, impulsividade, ansiedade,
alguma instabilidade afetiva e dificuldades cognitivas.
PERTURBAÇÃO BIPOLAR 171

Mania
Episódio maníaco – Quando pode existir?
• Perturbação bipolar tipo 1;
• Perturbação esquizoafetiva;
• Induzido por substâncias;
• Secundário a outras doenças (ex., eventos vasculares cerebrais, vas-
culites autoimunes, etc.).
São critérios de diagnóstico, segundo a 5.ª edição do Manual de Diag-
nóstico e Estatística das Perturbações Mentais (DSM-5):

A. Humor persistentemente elevado, expansivo ou irritável e ativi-


dade ou energia persistentemente aumentada durante pelo menos uma
semana (ou qualquer duração, se necessidade de internamento).

B. Três (ou mais) dos seguintes sintomas (quatro, se o humor for


apenas irritável) estão presentes em grau significativo e representam uma
mudança notável do comportamento habitual:
1. Aumento da autoestima ou grandiosidade
2. Diminuição da necessidade de dormir
3. Verborreia
4. Fuga de ideias ou experiência subjetiva de aceleração do pensamento
5. Distratibilidade
6. Aumento na atividade ou agitação psicomotora
7. Comportamentos com risco ou dano potencial

C. Causar prejuízo acentuado no funcionamento social ou ocupa-


cional, ou necessidade de internamento para evitar danos a si mesmo
ou a outros, ou presença de sintomas psicóticos (i.e., ideação delirante
e/ou alteração da perceção sensorial).

A ocorrência de episódios maníacos é característica da perturbação


bipolar tipo 1.
172 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

Hipomania
São critérios de diagnóstico, segundo o DSM-5:

A. Humor persistentemente elevado, expansivo ou irritável e ativi-


dade ou energia persistentemente aumentada durante pelo menos quatro
dias consecutivos.

B. Três (ou mais) dos seguintes sintomas (quatro, se o humor for


apenas irritável) estão presentes em grau significativo e representam uma
mudança notável do comportamento habitual:
1. Aumento da autoestima ou grandiosidade
2. Diminuição da necessidade de dormir
3. Verborreia
4. Fuga de ideias ou experiência subjetiva de aceleração do pensamento
5. Distratibilidade
6. Aumento na atividade ou agitação psicomotora
7. Comportamentos com risco ou dano potencial

C. O episódio está associado a uma mudança inequívoca no funcio-


namento, que não é característica do indivíduo quando não sintomático.

D. A perturbação do humor e a mudança no funcionamento são


observáveis por outros.

E. O episódio não é grave o suficiente para causar prejuízo acen-


tuado no funcionamento social ou ocupacional, ou para necessitar de
internamento. Se houver características psicóticas, o episódio é, por defi-
nição, maníaco.
A ocorrência de episódios hipomaníacos, na ausência de episódios
maníacos, é característica da perturbação bipolar tipo 2.
PERTURBAÇÃO BIPOLAR 173

MANIA HIPOMANIA
DURAÇÃO > 1 semana > 4 dias
A maior parte do dia;
DISTRIBUIÇÃO DO EPISÓDIO
quase todos os dias
SINTOMAS PSICÓTICOS Pode ter Não
IMPACTO FUNCIONAL Sim Não
NECESSIDADE DE INTERNAMENTO Sim Não
PERIGO PARA O PRÓPRIO/TERCEIROS Sim Não

Depressão
São critérios de diagnóstico, segundo o DSM-5:

A. Cinco (ou mais) dos seguintes sintomas, durante pelo menos duas
semanas. Pelo menos um dos sintomas é (1) humor deprimido ou (2)
perda de interesse ou prazer:

1. Humor deprimido
2. Interesse ou prazer acentuadamente diminuídos
3. Perda de peso significativa ou diminuição ou aumento do apetite
4. Insónia ou hipersónia
5. Agitação ou lentificação psicomotora
6. Fadiga ou diminuição de energia
7. Sentimentos de inutilidade ou culpa excessivos ou desadequados
(que podem ser delirantes)
8. Dificuldade de concentração ou indecisão
9. Pensamentos recorrentes de morte (não apenas medo de morrer),
ideação suicida recorrente ou tentativa de suicídio ou plano espe-
cífico para cometer suicídio
174 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

B. Os sentimentos causam um sofrimento clinicamente significa-


tivo ou prejuízo no funcionamento social, ocupacional ou noutras áreas
importantes do funcionamento.

C. O episódio depressivo não é atribuível aos efeitos fisiológicos dire-


tos de uma substância ou a outra doença médica.

D. A ocorrência do episódio depressivo não é mais bem explicada


por perturbação esquizoafetiva, esquizofrenia ou outras perturbações psi-
quiátricas.
Os pontos C e D são também aplicáveis aos episódios maníacos e
hipomaníacos, ou seja, não são atribuíveis aos efeitos fisiológicos dire-
tos de uma substância ou a outra doença médica e não são mais bem
explicados por uma perturbação esquizoafetiva ou outras perturbações
psiquiátricas.

Episódios maníacos ou hipomaníacos com características mistas


Cumprem todos os critérios para mania ou hipomania e pelo menos
três dos seguintes sintomas:
• Humor deprimido;
• Diminuição do interesse ou prazer na maioria das atividades;
• Lentificação psicomotora;
• Diminuição da energia;
• Culpa excessiva ou pensamentos de inutilidade;
• Pensamentos recorrentes sobre morte ou suicídio ou tentativa de
suicídio.

Episódios depressivos com características mistas


Preenchem todos os critérios para a depressão e pelo menos três dos
seguintes:
• Humor elevado ou expansivo;
• Autoestima elevada ou grandiosidade;
PERTURBAÇÃO BIPOLAR 175

• Pressão do discurso;
• Taquipsiquismo ou fuga de ideias;
• Aumento da energia ou da atividade;
• Envolvimento excessivo em atividades prazerosas com alto poten-
cial de consequências nefastas;
• Diminuição da necessidade de dormir.

DIAGNÓSTICO
Episódio maníaco
No episódio maníaco, a colheita da história clínica e a realiza-
ção do exame psiquiátrico do estado mental são frequentemente um
desafio (pelo aumento da atividade, agitação, dificuldade em fixar a
atenção, taquipsiquismo, ideação delirante, alterações da perceção,
entre outros).
Existem algumas alterações comuns no exame do estado mental num
doente com síndrome maníaca:
• Aparência e comportamento – Inquietação, ativação, movimen-
tos amplos e rápidos, vestuário exuberante, colorido, desinibição,
contacto próximo;
• Atenção – Difícil de manter;
• Discurso – Taquifémico, hiperfonia, associações por consonância,
jogos de palavras;
• Humor e afetos – Em elação ou euforia, labilidade emocional;
• Conteúdo do pensamento – Ideofugitivo e, nos casos mais graves,
ideias delirantes;
• Insight e juízo crítico – Grau variável de juízo crítico (inexistente
nos casos graves), insight comprometido durante episódio.
Na avaliação da mania/hipomania, devemos prestar particular
atenção a:
• Ideação/risco de suicídio;
• Agressividade dirigida a terceiros ou a bens patrimoniais;
• Agitação psicomotora exuberante;
176 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

• Presença de sintomas psicóticos (ideação delirante, alterações da


perceção);
• Presença de sintomas catatónicos;
• Confusão;
• Compromisso marcado do insight/recusa de tratamento.

Estes podem constituir indicação para internamento.


Se o doente recusar observação, deve ser considerada a comunicação
ao delegado de saúde pública e consequente emissão de um mandado de
condução a um serviço de urgência.
Em episódios hipomaníacos ou maníacos sem critérios de gravidade,
deve ser recomendada, de qualquer forma, a observação em serviço de
urgência.

Episódio depressivo
No episódio depressivo, podemos verificar:
• Distorções cognitivas – Visão pessimista de si, do futuro e de tudo
o que o rodeia (tríade cognitiva de Beck);
• Ruminações depressivas – Insegurança, medo, fracasso, ruína,
inutilidade, culpa, doença grave, desespero, morte;
• Alterações cognitivas – Dificuldades de concentração e de memória.
Podemos observar adicionalmente na consulta:
1. da autoestima
2. Sentimentos de inutilidade, culpa e desesperança
3. Ideias de morte/ideação suicida
4. da concentração e da atenção
5. Lentificação/agitação psicomotora
6. / do apetite
7. Insónia ou hipersónia
Na avaliação do episódio depressivo, devemos prestar particular
atenção a:
• Ideação/risco de suicídio;
PERTURBAÇÃO BIPOLAR 177

• Agressividade dirigida a terceiros ou a bens patrimoniais;


• Presença de sintomas psicóticos (ideação delirante, alterações da
perceção);
• Presença de sintomas catatónicos.
Podem constituir indicação para internamento.
Devemos avaliar sempre possíveis precipitantes de um episódio
maníaco, hipomaníaco, depressivo ou com características mistas:
• Má adesão ao tratamento;
• Dose inadequada do tratamento em curso;
• Interações medicamentosas;
• Uso de substâncias;
• Uso de fármacos que causem instabilidade do humor: antidepres-
sivos, corticosteroides, etc.;
• Eventos adversos de vida considerar referenciação a psicoterapia;
• Disfunção tiroideia (++ em doentes medicados com lítio).

Como proceder à abordagem da doença em consulta?


Nos casos de episódios hipomaníacos ou maníacos sem critérios de
gravidade, em que outros recursos especializados não estejam disponíveis
no imediato, na consulta com o médico de família poder-se-á:
• Colher história clínica, incluindo hábitos, doenças físicas e medi-
cação habitual;
• Realizar exame sumário físico e do estado mental;
• Pedir avaliação analítica para excluir outras causas para a apre-
sentação sindromática e contraindicações para o tratamento com
determinados fármacos;
• Pedir ECG;
• Ponderar início de tratamento farmacológico;
• Envolver contactos próximos no plano terapêutico;
• Informar a família dos sinais de alerta e qual o serviço de urgência
ao qual devem dirigir-se em caso de agravamento do quadro;
• Referenciar para consulta de Psiquiatria.
178 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

Desafios ao diagnóstico
Na perturbação bipolar, o primeiro episódio é:
• Depressivo, na maior parte dos casos: 54%;
• Maníaco ou hipomaníaco: 22%;
• Misto (coocorrência de sintomas de depressão e mania): 24%.

Depressão bipolar vs. unipolar

CARACTERÍSTICAS BIPOLAR UNIPOLAR


Mania ou hipomania Sim Não
Rácio M:H Semelhante Mulheres > Homens
Mais precoce Mais tardio
Idade de início
(aprox. 30 anos)
Início do episódio Abrupto Insidioso
Número de episódios Numerosos Menos frequente
Duração 3-6 meses 3-12 meses
Início pós-parto Mais comum Menos comum
Sintomas psicóticos Mais comum Menos comum
Atividade Lentificação > agitação Agitação > lentificação
psicomotora
Sono Hipersónia > insónia Insónia > hipersónia
História familiar de Mais frequente Menos frequente
perturbação bipolar
História familiar
de perturbação Mais frequente Mais frequente
depressiva
PERTURBAÇÃO BIPOLAR 179

TRATAMENTO
Comecemos por discutir o tratamento da mania por linhas gerais até
chegar aos detalhes da terapêutica farmacológica; e de seguida discutire-
mos também o tratamento da depressão (bipolar).

Tratamento da mania
Orientações terapêuticas gerais
• Suspender os antidepressivos;
• Em doentes já medicados:
Avaliar adesão
Dosear lítio ou valproato ou carbamazepina
No caso dos antipsicóticos, otimizar a dose, se existir margem
para tal.
Principais fármacos (em monoterapia ou em combinação): lítio, anti-
convulsivantes, antipsicóticos de 2.ª e 3.ª geração.
Na mania aguda, a taxa de resposta (redução dos sintomas em > 50%)
do lítio ou valproato em combinação com aripiprazol, olanzapina, que-
tiapina ou risperidona é 20% superior face ao uso de lítio ou valproato
em monoterapia.
Tendo em conta a eficácia e a taxa de descontinuação do tratamento,
boas escolhas de primeira linha são:
• Lítio;
• Ácido valpróico;
• Aripiprazol;
• Olanzapina;
• Quetiapina.
Outros fatores a considerar:
• Historial de resposta a psicofármacos;
• Efeitos adversos e contraindicações;
• Comorbilidades;
• Interações medicamentosas;
• Adesão do doente ao tratamento;
• Custo e via de administração.
180 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

Lítio
Iniciar com 400 mg, per os, em toma única ou dividida. A dose pode
ser ajustada com incrementos de 400 mg a cada 1-5 dias, de acordo com
a resposta clínica e o doseamento. O objetivo é atingir níveis séricos entre
0,8 e 1,2 mEq/L. Acima desta janela terapêutica, existe um risco elevado
de toxicidade.
Os níveis de lítio podem ser medidos 5-7 dias após o último ajuste
terapêutico, 12 horas após a última toma; e de preferência de manhã,
antes da toma seguinte.
Possíveis efeitos adversos agudos são a náusea, tremor, poliúria e sede,
diarreia e alterações cognitivas.
É importante vigiar a função renal, ionograma, função tiroideia e
paratormonas (PTH). É teratogénico.

Ácido valpróico
Geralmente iniciado com 500 mg por dia per os, em duas tomas, com
incrementos de dose de 250-500 mg a cada 1-3 dias, até ao máximo de
2500 mg/dia, de acordo com:
• Eficácia;
• Tolerabilidade;
• IMC.
A janela terapêutica situa-se entre 50-125 mcg/mL, acima da qual
existe elevado risco de toxicidade.
Os níveis séricos podem ser medidos 5-7 dias após o último ajuste,
12 horas após a última toma.
Preferível se episódio com características mistas, disforia ou ciclos
rápidos. É também teratogénico.

Outros psicofármacos
Aripiprazol: iniciar com 10-15 mg por dia, toma única de manhã.
Efeitos adversos comuns são a acatisia, cefaleias, insónia, náuseas, vómitos
e obstipação. Pouco sedativo.
PERTURBAÇÃO BIPOLAR 181

Olanzapina: iniciar com 5-10 mg/dia em toma única ao deitar,


ou em doses repartidas durante o dia quando há necessidade de sedação.
Os efeitos secundários mais comuns são a sedação, obstipação, xerosto-
mia, aumento do apetite e hipotensão ortostática.
Quetiapina: iniciar com 100 mg/dia em duas tomas per os e titular
até aos 400-800 mg duas vezes por dia ou em toma única, consoante a
resposta terapêutica, esta última à noite, com recurso a formulação de
libertação prolongada.

Tratamento da depressão
Tratamento da depressão bipolar – doentes SEM tratamento
antimaníaco em curso
1.ª linha: Quetiapina (300 mg slow release à noite, iniciar com 50 mg)
2.ª linha:
• Olanzapina + fluoxetina (5-15 mg + 20-40 mg);
• Quetiapina + estabilizador do humor (lítio ou ácido valpróico);
• Ácido valpróico;
• Lítio + anticonvulsivante (ácido valpróico ou lamotrigina) (lamo-
trigina: 100-200 mg/dia, em tomas separadas).
3.ª linha:
• Monoterapia com olanzapina, lítio ou lamotrigina;
• Monoterapia com carbamazepina (indutor CP450) ou cariprazina
(1,5-3 mg);
• Olanzapina + estabilizador do humor (lítio ou ácido valpróico);
• Lítio ou ácido valpróico + antidepressivo (SSRI ou bupropiom);
• Outras combinações de antipsicótico e antidepressivo.
Em doentes refratários: ECTs.
182 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

Tratamento da depressão bipolar – doentes COM tratamento


antimaníaco em curso
Avaliar possíveis precipitantes do episódio depressivo:
• Má adesão ao tratamento;
• Dose inadequada do tratamento em curso;
• Interações medicamentosas;
• Uso de substâncias;
• Uso de fármacos que causem instabilidade do humor: antidepres-
sivos, corticosteroides, etc.;
• Eventos adversos de vida encontrar psicoterapia;
• Disfunção tiroideia (++ em doentes medicados com lítio).
Devemos otimizar sempre a dose de fármacos doseáveis (lítio, ácido
valpróico, carbamazepina) e otimizar a dose de fármacos não doseáveis
(p. ex., lamotrigina, quetiapina).

Estratégias add-on, dependem do tratamento em curso:


• Se o doente estiver a tomar antipsicótico de 2.ª ou 3.ª geração:
Lamotrigina
Lítio
Ácido valpróico
• Se o doente estiver a tomar lítio, ácido valpróico, lamotrigina ou
carbamazepina:
Quetiapina
Olanzapina
Outras combinações a considerar:
Lítio + lamotrigina
Ácido valpróico + lamotrigina (administrar metade da dose
da lamotrigina, durante a titulação; a dose alvo também será
metade)
Lítio + ácido valpróico
Lítio + carbamazepina.
PERTURBAÇÃO BIPOLAR 183

No que diz respeito a resposta ao tratamento com antidepressivos


(AD), existem algumas considerações importantes:
• Hipomania/mania associada a ADs: 5 a 20% PB II; 20 a 50% PB I;
Perda de eficácia de AD: 60% nas PBs; 20% nas PDM (perturbação
depressiva major).Recaída depressiva após suspensão de AD: 20%
nas PBs; 60% nas PDM.

COMORBILIDADES
A função cognitiva na perturbação bipolar pode estar alterada, em
eutimia, bem como durante os episódios de humor.
Realizou-se uma meta-análise de 45 estudos observacionais (doentes
em eutimia: n=1423/controlos: n=1524) e foram observadas alterações
de:
• Atenção;
• Memória verbal;
• Funções executivas;
• Velocidade de processamento.
Estas alterações:
• Ocorrem na PB I ou II;
• São ligeiras a moderadas;
• Podem ter um início precoce;
• São persistentes;
• Permanecem estáveis.
A maioria dos doentes com perturbação bipolar tem pelo menos uma
perturbação psiquiátrica concomitante:
• Perturbações de ansiedade;
• Perturbação de uso de substâncias;
• Hiperatividade e défice de atenção;
• Perturbações do comportamento alimentar;
• Perturbação do controlo do impulso;
• Perturbação da personalidade;
• Perturbação de stress pós-traumático.
184 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

Perturbação bipolar e comorbilidades: a regra e não a exceção


A mortalidade na perturbação bipolar é igual ou superior à mortali-
dade de um grande fumador. Cerca de 2/3 das mortes ocorrem por cau-
sas naturais (doenças cardiovasculares, diabetes, HTA, infeções, doenças
respiratórias).
A prevalência de síndrome metabólico atinge quase 1/3 dos doentes.
A probabilidade de indivíduos com síndrome metabólico virem a desen-
volver uma doença bipolar é 1,58 vezes maior do que na população em
geral. Assim, vemos que o suicídio não é a única causa de excesso de
mortalidade.
São muitos os fatores que contribuem para a associação entre a per-
turbação bipolar e as suas comorbilidades.
Estilo de vida:
• Tabagismo;
• Sedentarismo;
• Hábitos alimentares.
Fatores de risco psicossocial:
• Situação laboral;
• Nível socioeconómico:
• Escolaridade.
Medicação:
• Estabilizadores do humor;
• Antipsicóticos;
• Inflamação sistémica e autoimunidade.
Sabe-se ainda que a maioria dos doentes com perturbação bipolar tem
pelo menos uma comorbilidade médica:
• Síndrome metabólico;
• Diabetes tipo 2;
• Hipertensão arterial;
• Doenças cardiovasculares;
• Doenças autoimunes;
• Obesidade.
PERTURBAÇÃO BIPOLAR 185

O suicídio
Cerca de 10-15% dos doentes morrem por suicídio, uma taxa de mor-
talidade significativamente superior à verificada na população geral, em
vários estudos.
Num estudo de base populacional sueco, nas mulheres a mortali-
dade por suicídio foi 22 vezes superior, e nos homens a mortalidade foi
15 vezes superior do que a taxa na população geral.
Noutro estudo de follow-up durante 40 anos, em 220 doentes, a taxa
de suicídio consumado foi 12 vezes maior do que a taxa na população
geral.
Existem indicadores clínicos/sociodemográficos de risco de tenta-
tiva de suicídio?
Sim, existem. Uma meta-análise de 23 estudos observacionais (2213
doentes com história de tentativa de suicídio e 5120 doentes sem ante-
cedentes de tentativa de suicídio) identificou os seguintes indicadores:
• Início precoce da doença;
• História de abuso físico ou sexual;
• Estado civil solteiro;
• Sintomas de depressão;
• Características mistas;
• Trajetória de agravamento progressivo dos episódios depressivos e
maníacos;
• Comorbilidade psiquiátrica: perturbações de ansiedade, abuso de
substâncias ou de álcool;
• História familiar de suicídio.
Outros fatores associados, a suicídio consumado, são a história pessoal
de tentativas de suicídio e sentimentos de desesperança.
Para terminar, importa ressalvar que o foco da abordagem e trata-
mento da perturbação bipolar deve ser adaptado às várias fases da
doença e às necessidades do doente. Convém, portanto, ser adotada
uma abordagem multidisciplinar e em equipa, sendo a psicoeducação e
a psicoterapia aspetos cruciais da terapêutica pelo papel importante que
186 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

têm na desmistificação da doença mental, na crítica para o patológico,


na ligação à equipa terapêutica, na deteção precoce de sintomas, na pro-
moção da adesão à terapêutica e na prevenção de recaídas.

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11. ESQUIZOFRENIA
HENRIQUE PRATA RIBEIRO

OBJETIVOS DA AULA

Nesta aula, que agora passa à forma escrita, foram abordados conceitos bási-
cos acerca da esquizofrenia. Estes conceitos pretendem que haja, por parte dos
médicos de Medicina Geral e Familiar, capacidade para conseguir identificar os
principais sintomas da doença, fazendo a imediata triagem dos doentes para
os cuidados especializados, iniciando medicação antipsicótica.
A esquizofrenia é uma doença caracterizada por sintomas positivos – delírios
e alucinações –, mas também negativos – avolia, alogia, embotamento afe-
tivo e anedonia –, devendo ser tratada com antipsicóticos. A referenciação por
parte da Medicina Geral e Familiar deve ocorrer de imediato para os cuidados
especializados de Psiquiatria e deve ser iniciada medicação com antipsicótico.

PERGUNTAS RELEVANTES PARA CHEGAR AO DIAGNÓSTICO

– Há alguém que lhe queira fazer mal? – Esta pergunta é relevante porque a
maior parte dos delírios são persecutórios;
– Tem a certeza absoluta do que está a dizer, ou é apenas uma sensação?
Como tomou conhecimento dessa informação? – Estas questões são impor-
tantes porque nos ajudam a saber se estamos ou não perante um delírio.
Quando se trata de um delírio, o doente tem a certeza absoluta do que está
a afirmar, não cede a argumentação lógica e muitas vezes infere essa certeza
de um facto que não permitiria que tal acontecesse;
– As pessoas costumam falar mal de si ou comentar as suas ações nas suas
costas? Como é que as consegue ouvir? Acontece ouvi-las quando está em
casa ou a caminhar na rua ou num supermercado? – A relevância desta
terceira pergunta é a de compreender se o doente apresenta também
alterações da sua perceção, sob a forma de alucinações acústico-verbais.
194 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

As mais frequentes são vozes relacionadas com o delírio que se encontrar pre-
sente, que, no caso de ser persecutório, se vê com frequência acompanhado
de vozes que insultam, ameaçam ou comentam atitudes do doente ao longo
do dia.

A esquizofrenia é, provavelmente, a doença mais estigmatizante e, na


maior parte dos casos, a mais grave da área da Psiquiatria. Neste capítulo,
vamos abordar a doença de um ponto de vista generalista – para que este-
jam presentes os conceitos básicos que lhe estão associados. Além disso,
queremos alertar para os sinais que merecem a nossa atenção no sentido
de, em alguns casos, ter de se diagnosticar e referenciar (caso de MGF),
possivelmente introduzindo uma primeira atuação terapêutica. Noutros
casos, é necessário diagnosticar e tratar, ou diagnosticar e internar (caso
de internos de Psiquiatria ou psiquiatras).

CONCEITOS CHAVE
É importante começar com alguns conceitos relevantes quando
falamos de esquizofrenia. Na área da Psiquiatria é essencial que se saiba
fazer um Exame do Estado Mental para comunicar entre pares, e apro-
veito para expor alguns conceitos, que são aqueles que mais frequente-
mente estão presentes na doença.
Como referido no início do capítulo, a esquizofrenia é uma doença
maioritariamente associada, de uma forma genérica, aos seus sintomas
positivos – delírios e alucinações. Contudo, existem também os sinto-
mas negativos, que fazem parte da doença, e que acabam por ser fatores
bastante importantes, até mesmo em questões relacionadas com o prog-
nóstico.
ESQUIZOFRENIA 195

CONCEITOS ÚTEIS

Delírio – Uma crença falsa, inabalável, que não cede à argumentação lógica
e que contrasta com o contexto cultural do doente.
Alucinação – Perceção sensorial que não tem uma fonte externa correspon-
dente, ou perceção sem objeto. Exceção feita às alucinações reflexas, que
ocorrem em resposta a estímulos externos reais. Diferenciam-se também das
ilusões, que são perceções distorcidas de objetos reais.
Sintomas positivos – delírios e alucinações – São os sintomas clássicos da
esquizofrenia e que com mais frequência servem para o seu diagnóstico dife-
rencial.
Sintomas negativos – Têm este nome por representaram uma perda de função.
Comummente referenciados como os “4 As”:
– Alogia – Discurso espontâneo diminuído;
– Abulia – Perda de motivação/vontade;
– Embotamento afetivo – Afetos são aquilo que é observável, na nossa inte-
ração com o exterior, acerca de como nos sentimos (incluindo emoções e
sentimentos);
– Anedonia – Perda de prazer em atividades que anteriormente o proporcio-
navam.
Estes sintomas são muito importantes, uma vez que podem condicionar de
forma marcada o prognóstico, mesmo que consigamos tratar os sintomas
positivos.
Desorganização de comportamento – São, no contexto da esquizofrenia,
manifestação de alterações formais do pensamento. É bastante relevante pes-
quisar causas não psiquiátricas para este tipo de quadros.
Sintomas cognitivos – Extensão e peso das alterações da memória e a atenção
na esquizofrenia.
Afrouxamento de associações – Diminuição da capacidade de associar deias
de forma lógica e adequada a uma regular interação ao longo do discurso –
doente faz associações, muitas vezes entre palavras que compõe o discurso,
não se mantendo no trajeto que se consideraria normal para uma resposta ao
tema perguntado.
Respostas ao lado – Resposta totalmente inadequada à pergunta, embora se
infira, pelas respostas subsequentes, que o doente compreendeu a pergunta
que se lhe colocou.
196 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

Metonímias – A metonímia consiste em empregar um termo no lugar do outro,


havendo entre ambos estreita afinidade ou relação de sentido.
Insight/Crítica – Perceção que o doente tem do próprio processo patológico
(do qual padece).
Salada de palavras – O doente comunica de forma que impossibilita que se
retire qualquer lógica do seu discurso, proferindo palavras sem qualquer asso-
ciação entre si.
Verbigeração – Repetição anárquica de palavras ou frases que tendem a inva-
dir todo o discurso composto de estereotipias verbais sem sentido comunica-
tivo, com repetição incessante das mesmas, por vezes durante períodos muito
longos. Não é exclusivo de quadros psiquiátricos.
Neologismos – Novas palavras construídas pelo doente – típico da esquizo-
frenia.
Embotamento afetivo – Dificuldade do indivíduo em expressar emoções ou
sentimentos – como atrás descrito, com as manifestações observáveis das suas
emoções e sentimentos.

EPIDEMIOLOGIA
• Prevalência: sete por 1000 habitantes (estudo em Portugal aponta
para 0,57% da população, numa estimativa);
• Idade de início:
• Entre 15 e 45 anos
Incidência de sintomas psicóticos tipicamente entre os 20-24
anos, em homens
Incidência cerca de cinco anos mais tarde, em mulheres
• Género: mais frequente nos homens (1,4:1) e os sintomas têm
maior gravidade;
• Fertilidade: reduzida; amenorreia e disfunção sexual iatrogénica;
• Genética: há um peso grande da genética (risco de 80% de here-
ditariedade).
ESQUIZOFRENIA 197

Fatores ambientais
Pode haver maior ou menor predisposição genética para o desen-
volvimento da doença, mas os fatores ambientais são também relevan-
tes para esta se manifestar. Há vários exemplos de fatores ambientais
relevantes, sendo que estes são de forma mais regular: complicações
obstétricas e infeções pré-natais; malnutrição materna; nascimento no
inverno; idade paterna avançada; atrasos no desenvolvimento infantil
e o uso de substâncias (atenção para o peso da canábis: estima-se que,
atualmente, seja responsável por uma percentagem bastante relevante
de todos os casos de psicose, sendo um trigger para o aparecimento de
sintomas psicóticos).

Fatores sociais
Contribuem para o desenvolvimento da doença um baixo estrato
socioeconómico, nascer e crescer num ambiente urbano, pertencer a
uma minoria étnica, traumas e abusos na infância.

Neurobiologia
Há diminuição do volume cerebral – embora o diagnóstico se man-
tenha, à data, clínico. Existem ainda outras alterações estruturais que,
embora não sejam observáveis in vivo, podem ser também encontradas
(como a redução do peso cerebral).

Bioquímica
A dopamina e a via da recompensa – a via mesolímbica – estão
envolvidas nos processos dos sintomas positivos, e, portanto, os fármacos
antipsicóticos têm quase todos uma forma de atuação similar, através de
antagonismo D2. Estão igualmente disponíveis em Portugal dois fárma-
cos que atuam através de agonismo parcial nestes recetores: cariprazina
– ainda que com maior afinidade para os D3 – e aripiprazol. Isto quer
dizer que mesmo que toquem outros recetores, todos os antipsicóticos
disponíveis em Portugal no presente tocam os recetores D2. A maior parte
198 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

dos estudos de neuroimagem funcional revela uma hiperdopaminergia


na fase aguda da doença. Há um aumento de síntese e libertação de
dopamina estriatal e transmissão deficiente de dopamina. Aqui, uma
das teorias que se coloca é que a desregulação dopaminérgica possa ser
secundária à desregulação glutamatérgica. Também ligados à disfunção
dopaminérgica – noutras vias, como a mesocortical – encontramos os
sintomas negativos e cognitivos da doença, reforçando o envolvimento
deste neurotransmissor na doença.
Na teoria ligada ao glutamato, temos o facto de alguns antagonistas
NMDA induzirem ou exacerbarem sintomas psicóticos e de os co-ago-
nistas dos recetores reduzirem esses sintomas. Observaram-se também
alterações dos marcadores e recetores do glutamato.
Existem ainda teorias na área da neurobiologia que englobam GABA
e serotonina.
Os marcadores inflamatórios aumentados e a ativação da microglia
são igualmente relevantes.

EXAME DO ESTADO MENTAL


O Exame do Estado Mental compreende várias análises de diferentes
áreas:
• Apresentação e comportamento geral do indivíduo; contacto
(muitas vezes estes doentes não apresentam um contacto sintó-
nico);
• Consciência, orientação, atenção, memória.
• Discurso – Débito, ritmo;
• Perceção – Alucinações, que podem ser de vários tipos;
• Pensamento – Curso, forma, conteúdo, posse;
• Vivência do Eu;
• Humor e afetos;
• Vontade; motricidade;
• Vida instintiva; inteligência;
• Consciência da doença.
ESQUIZOFRENIA 199

O Exame do Estado Mental é uma forma de orientarmos a análise


que fazemos do doente e de a podermos registar, com termos técnicos e
de forma sistematizada, para que qualquer outro médico possa, através do
nosso registo, compreender de imediato aquilo que observámos.

A ESQUIZOFRENIA
É uma doença complexa, com expressão fenotípica variável e uma
etiologia multifatorial, como atrás descrito, com uma importante conju-
gação de fatores genéticos com fatores ambientais. Estima-se que cerca
de 1% da população padeça desta doença à escala mundial. É bastante
limitante e caracterizada por sintomas positivos e negativos, também já
descritos atrás. No Oxford Textbook of Psychiatry, há a distinção entre
esquizofrenia aguda (predomínio de sintomas positivos) e esquizofrenia
crónica (predomínio de sintomas negativos). Uma vez que esse foi o livro
utilizado como base para a preparação desta aula, optou-se por seguir a
mesma divisão, ainda que no formato escrito.

Síndrome aguda
Predomínio de sintomas positivos (delírios e alucinações). Pela pre-
sença desses sintomas positivos, que têm maior dinamismo e que inter-
ferem mais na vida diária do doente, muitas vezes os sintomas negativos
não são tão facilmente detetáveis. Com frequência, nesta fase da doença
– aguda – estão presentes: delírios, alucinações, afrouxamento de associa-
ções, alogia, metonímias e paráfrases, pensamento vago, perda de capa-
cidade de abstração, dificuldades no trabalho/estudos, isolamento social,
respostas ao lado.
Apesar de não haver nada que seja patognomónico do diagnóstico
da doença, se observarmos um doente que apresente risos imotivados,
alterações da forma ou alienação do pensamento, salada de palavras ou
verbigeração, devemos suspeitar de imediato de que estamos na presença
de uma esquizofrenia.
200 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

As alucinações acústico-verbais são as alterações da perceção mais


frequentes, usualmente na forma de vozes imperativas que dão ordens ao
doente ou que comentam a sua atividade ou que o ameaçam ou insultam.
As alucinações costumam estar relacionadas com a temática delirante.
Alucinações de outros tipos podem estar presentes:
• Táteis;
• Olfativas;
• Somáticas;
• Gustativas;
• Visuais.
Apesar de as alucinações visuais serem possíveis, são extremamente
raras – pesquisar exaustivamente eventual causa não-psiquiátrica. Num
doente com alucinações visuais, a causa quase nunca é psiquiátrica!
Outras características clínicas:
• Os delírios são, em grande parte dos casos, de natureza perse-
cutória, podendo igualmente ser de outros tipos, como de controlo;
religiosos ou místicos; erotomaníacos; podendo igualmente ser de
ruína ou de grandeza – usualmente mais compatíveis com psicose
em doenças da linha do humor – ou de ciúme (mais comuns na
perturbação delirante persistente);
• Ausência de insight/crítica para a doença – Ausência, por parte
dos próprios doentes, da perceção de que sofrem de uma doença;
• Orientação preservada;
• Normalmente, ausência de alterações sustentadas do humor;
• Embotamento afetivo;
• Afetos incongruentes.
Os sintomas de primeira ordem de Kurt Schneider eram conside-
rados os sintomas cardinais da esquizofrenia e continuam a ser bastante
relevantes na prática e para compreender os sistemas de classificação
de doenças, sendo estes: alucinações comentadoras na terceira pessoa;
alucinações somáticas (corporais, táteis); roubo, inserção ou difusão do
pensamento; perceção delirante e experiências de passividade.
ESQUIZOFRENIA 201

Síndrome crónica
Depois das fases agudas, a doença progride para uma predominân-
cia de sintomas negativos (com abulia, inatividade crónica, isolamento
social, comportamento social inadequado, casos de hoarding, etc.).
Nesta síndrome, os delírios e alucinações podem estar igualmente pre-
sentes, mas, quando isso acontece, tem impacto diferente nos doentes
– por apresentarem menor dinamismo. Por uma questão de sistemati-
zação da aprendizagem em relação à apresentação dos quadros, man-
tém-se neste livro a lista dos subtipos de esquizofrenia de acordo com
a Classificação Internacional de Doenças (CID) na sua 10.ª edição.
Na mais recente versão, a 11.ª, a abordagem destes critérios não é
baseada em subtipos, como forma de facilitar a procura de classificações
mais personalizadas a cada doente, com base no impacto funcional da
doença no seu dia-a-dia.

Subtipos de esquizofrenia – versão CID-10


• Paranoide – Mais comum; delírios sistematizados, geralmente per-
secutórios; alucinações, geralmente acústico-verbais; não são proe-
minentes alterações dos afetos e da forma do pensamento, sintomas
negativos nem catatonia; personalidade preservada;
• Hebefrénica – “Esquizofrenia desorganizada”; proeminentes as alte-
rações do pensamento e dos afetos; comportamento desorganizado
e pueril; delírios e alucinações flutuantes e não sistematizados;
maneirismos frequentes; discurso incoerente; sintomas negativos
com aparecimento precoce; pior prognóstico;
• Catatónica – alterações motoras são proeminentes (sintomas cata-
tónicos); oscilações entre excitação e estupor; estados oniroides;
subtipo muito raro em países desenvolvidos;
• Simples – Desenvolvimento mais lento, também caracterizado por
isolamento social, comportamento bizarro, sem sintomas positivos
durante o curso da doença. Raro;
202 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

• Indiferenciada;
• Residual – Forma crónica da doença com sintomas negativos per-
sistentes.

A esquizofrenia é uma doença que tem impacto em todas as áreas


de vivências do indivíduo e, portanto, temos de referir, também,
sintomas cognitivos: défices na aprendizagem, atenção, memória.
Quanto mais marcados forem os sintomas cognitivos, pior o prognós-
tico.
Muitas vezes, as pessoas já têm estes défices antes daquilo que
consideramos desenvolvimento da doença. Atualmente, tem sido
questionado qual o momento em que se instala a doença – questiona-se
se o início da doença diz respeito ao aparecimento dos défices cogni-
tivos e dos sintomas negativos, ou apenas ao aparecimento dos sin-
tomas positivos propriamente ditos (que, na maior parte dos casos,
são os que estão presentes quando os doentes chegam aos cuidados
de saúde).
Os sintomas depressivos são também muito frequentes – cerca de
25% dos doentes podem desenvolver sintomas depressivos aquando do
início do tratamento (o que piora o prognóstico, devendo ser tratado).
A existência de sintomas neurológicos é igualmente comum e estes sin-
tomas estão, geralmente, relacionados com disfunção cognitiva e pertur-
bações do neurodesenvolvimento.
Existem ainda fatores modificadores da apresentação clínica, como
o background cultural, social, idade, inteligência e estimulação social.
Tudo isto acaba por ter influência, quer no acesso ao tratamento, quer na
forma como os doentes conseguem chegar aos cuidados de saúde. Com
base nisso, cada vez mais se tem considerado a possibilidade de prever o
desenvolvimento da esquizofrenia através de um high-risk state e at-risk
state. Porém, mesmo quando se identificam estas pessoas em risco a
partir da história familiar, resultados escolares ou outros traços comuns
de comportamento e relação presentes nos doentes com esquizofrenia,
ESQUIZOFRENIA 203

menos de 25% progride para a psicose em dois a três anos. Este fenómeno
demonstra que não tem havido sucesso na abordagem preventiva e na
identificação dos doentes, já que o indicador não alcança grande êxito
na prática. Tem havido também pesquisa a nível da prevenção na área da
imagiologia e de biomarcadores, áreas nas quais tenho grande esperança,
mas das quais, até ver, ainda nada que possamos aplicar à prática de forma
consistente chegou.
A esquizofrenia tem outra questão importante relacionada com o
prognóstico – a duração da psicose não tratada. Quanto mais tempo
esta durar, pior é o prognóstico. Isto remete-nos para a importância de
uma intervenção precoce na doença e, portanto, para o efeito neuro-
tóxico de uma psicose ativa. É algo bastante deletério a longo prazo
para o funcionamento dos indivíduos. Da mesma forma, quanto mais
rápido chegarem aos cuidados de saúde e for instituído o necessário
tratamento, melhor o seu prognóstico. Ainda que estes doentes devam
sempre ser encaminhados para os cuidados especializados, está aqui um
dado que revela a importância de uma primeira abordagem eficaz nos
Cuidados de Saúde Primários (CSP).

Classificações
Em termos de classificação, há dois sistemas de classificação (DSM-5,
CID-11). Existem algumas diferenças entre estes, mas os mesmos sin-
tomas são tidos em conta. Ainda que a DSM-5 faça uma abordagem
descritiva dos sintomas e a CID-11 uma abordagem com um sistema
de pontuação para avaliar a gravidade dos mesmos – procurando uma
abordagem mais ligada ao funcionamento do indivíduo, como atrás refe-
rido –, os sintomas considerados são os mesmos que foram abordados ao
longo desta aula.

Outras perturbações esquizofrenia-like:


• Perturbações delirantes (paranoia) – Característica em fases
mais avançadas da vida, não tem tanto impacto no normal
204 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

funcionamento do indivíduo e apresenta, muitas vezes, delírios


“enquistados”, aos quais é difícil chegar, pelo baixo impacto que
têm nas outras esferas da vida do doente;
• Perturbações psicóticas breves – Duração inferior a um mês ou seis
meses (de acordo com as diferentes classificações);
• Perturbações psicóticas com sintomas afetivos proeminentes – Por
ex., perturbação bipolar;
• Perturbações psicóticas sem todos os sintomas necessários ao diag-
nóstico de esquizofrenia.

Dentro destas outras perturbações, em termos de apresentação similar


ou relacionada com a esquizofrenia, destacam-se:

Perturbações psicóticas breves (DSM-5)


Excluem-se casos secundários a drogas ou a outra condição médica
geral – importante porque, para as classificações, não pode haver efeito
de substâncias ou outras perturbações.
Perturbação psicótica breve
• Duração superior a um dia, inferior a um mês.
Perturbação esquizofreniforme
• Dura mais do que um mês e menos de seis meses.

Perturbação esquizoafetiva (DSM-5)


Deve haver, pelo menos, um período ininterrupto de doença em que
existiu um episódio depressivo major ou maníaco concomitante com o
critério A de esquizofrenia. Deverá igualmente haver outro período,
durante o qual os sintomas psicóticos agudos devem estar presentes, pelo
menos, duas semanas, na ausência de sintomas afetivos. Este diagnóstico
não é completamente consensual.
ESQUIZOFRENIA 205

Depressão pós-esquizofrénica
• Surge após a fase aguda de esquizofrenia;
• Sintomas depressivos proeminentes durante pelo menos duas
semanas;
• Afeta cerca de 1/4 dos doentes.

Os doentes que sofrem de esquizofrenia têm outras comorbilidades


importantes:
• Depressão (como doença concomitante) – 50%;
• Abuso de substâncias – 47%;
• Alcoolismo;
• Perturbação de stress pós-traumático;
• Perturbação obessivo-compulsiva;
• Perturbação de pânico.

DIAGNÓSTICOS DIFERENCIAIS
Quando fazemos um diagnóstico de esquizofrenia, a primeira coisa
que temos de excluir é uma síndrome confusional aguda, ou psicose de
causa não psiquiátrica. Existem também as psicoses induzidas por dro-
gas, perturbações do humor com características psicóticas, perturbações
delirantes persistentes e até perturbações de personalidade que devem
ser consideradas.
A exclusão de causa não psiquiátrica é algo obrigatório.

CURSO E PROGNÓSTICO
Relativamente à esquizofrenia, é estimado que:
• 20% dos doentes conseguem atingir remissão completa dos
sintomas;
• 35% mantêm sintomas com bom ajustamento social;
• 24% permanecem gravemente doentes.
206 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

Saúde física e mortalidade


• Os tratamentos muitas vezes são insuficientes para conseguir que
os doentes tenham um funcionamento social satisfatório e acabam
por ter mortalidade aumentada em relação ao indivíduo saudável.
No caso dos homens, falamos de uma perda de cerca de 20 anos
na esperança média de vida;
• A mortalidade agrava com o consumo de álcool e drogas;
• 60% das mortes devem-se a causas não naturais (suicídio e aci-
dentes);
• Os antipsicóticos têm contribuído para combater a mortalidade.
No entanto, alguns têm elevados riscos metabólicos;
• Ainda assim, estes doentes têm uma baixa incidência de cancro e
de doenças autoimunes (não relacionada com a diminuída espe-
rança média de vida).

Suicídio e esquizofrenia
Existe um risco aumentado de suicídio, especialmente nas fases iniciais
da doença e, depois, na fase de alta hospitalar recente. Muitas vezes, na fase
inicial de tratamento (quando os doentes ganham algum insight), existe
alguma tendência para que os doentes possam ser vítimas deste comporta-
mento. Os doentes que têm sintomas afetivos, tentativas de suicídio prévias
e maior número de internamentos encontram-se em maior risco.

Fatores de mau prognóstico na esquizofrenia


• Sexo masculino;
• Solteiro, separado, viúvo, divorciado;
• Idade de início precoce;
• Abuso de substâncias;
• Tempo de duração de doença sem tratamento;
• Sintomas negativos e cognitivos;
• Baixo insight/baixa adesão ao tratamento;
• Duração da psicose não tratada;
ESQUIZOFRENIA 207

• Isolamento social;
• Subtipo hebefrénico;
• Personalidade prévia disfuncional.

TRATAMENTO
• O tratamento é essencialmente farmacológico nesta doença, o que
não quer dizer que não possa haver fases nas quais a psicoterapia é
um bom complemento;
• Os antipsicóticos devem ser utilizados na dose mínima eficaz;
• A titulação deve ser feita progressivamente. Deve-se ir monitori-
zando os doentes e atentando aos efeitos secundários;
• A adesão à terapêutica é muito importante – Devemos estar em
contacto com os doentes, saber que efeitos secundários tiveram
e, de preferência, tentar que tragam algum familiar para consulta
e criar uma relação não só com o doente, mas com alguém que,
caso haja alguma alteração ou agravamento do estado do mesmo,
nos possa contactar;
• No tratamento de fase aguda é indicado medicar durante um ano
ou mais. Não obstante, aquando do diagnóstico, prefere-se um trata-
mento de continuidade (os doentes vão ser medicados a longo prazo);
• Os antipsicóticos podem estar disponíveis em diferentes tipos de for-
mulação. Alguns estão disponíveis em formulação não apenas oral,
mas também injetável, podendo ser administrados com periodicidades
diferentes – dependendo das características da molécula em causa.
A opção da via de administração intramuscular tem a vantagem de
reduzir as falhas terapêuticas e permitir às equipas sinalizar doentes
que se encontrem em incumprimento – algo que é importante
quando falamos de uma doença na qual há sintomas de quebra de
contacto com a realidade e ausência de insight;
• Atualmente, temos um grupo de antipsicóticos com eficácia
comprovada e similar entre si. Existe um único antipsicótico que
demonstra um efeito superior: clozapina;
208 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

• Cerca de 2/3 dos doentes vão apresentar respostas significativas.


Não há forma de prever se a resposta será positiva ou não, mas
também nesta área começa a haver esperança de que se venha a
poder identificar previamente os bons respondedores, utilizando
a clozapina de forma mais precoce nos restantes.
A clozapina é o único fármaco que tem superioridade de eficácia face
aos outros – então, por que razão não é usada em todos os doentes e tem
sido guardada para a “esquizofrenia resistente”? – a que não foi revertida
com o uso de dois antipsicóticos diferentes durante o tempo necessá-
rio. A justificação está ligada ao impacto metabólico deste fármaco, mas
também ao facto de ainda estar recomendada uma vigilância bastante
regular, aquando da sua introdução a um doente, através de hemogramas,
pelo risco acrescido de agranulocitose. Outros possíveis efeitos secundá-
rios do fármaco são a hipotensão, a sedação e convulsões.

Clozapina
• 30% dos doentes não respondem aos antipsicóticos ou são intole-
rantes aos seus efeitos secundários;
• A clozapina é o único fármaco com eficácia comprovada em
1/3 destes doentes, sendo que nenhum outro antipsicótico apre-
senta a mesma eficácia;
Quando não há resposta à clozapina, podemos utilizar a eletrocon-
vulsoterapia (ECT) como opção, ou temos também a hipótese de associar
outros fármacos – como o aripiprazol.

Comparação de antipsicóticos
Esta pequena comparação tem como base a metanálise publicada em
2019 por Maximilian Huhn. Serve apenas de referência para ajudar a uma
escolha informada de antipsicótico, mas não implica uma diferença esta-
tisticamente significativa em todos os parâmetros, entre todos os fármacos
– por exemplo, quanto à eficácia, já foi referido que apenas a clozapina se
destaca dos restantes, ainda que já existam recomendações a referir que,
ESQUIZOFRENIA 209

antes de se avançar para essa opção, deve ser tentado o tratamento com
dois antipsicóticos diferentes, mas que um desses deve ser a olanzapina.
Segue essa rápida comparação:

Mais eficazes: Melhores para funcionamento social:


• Clozapina; • Olanzapina;
• Amissulprida; • Paliperidona;
• Olanzapina; • Quetiapina;
• Risperidona. • Lurasidona.

Menor ganho ponderal: Maior ganho ponderal:


• Lurasidona; • Zotepina;
• Aripiprazol; • Olanzapina;
• Haloperidol; • Quetiapina;
• Brexpiprazol; • Clozapina;
• Cariprazina. • Paliperidona.

Não existe grande evidência de nenhuma outra classe de fármacos


para esta doença.
A eletroconvulsoterapia é guardada para casos de resistência à clozapina,
ausência de resposta a tratamento farmacológico ou estupor catatónico.

FASE AGUDA
É com frequência necessário internamento hospitalar. Nalguns casos,
quando o doente, por via da sua doença, apresente perigo iminente para
si, para outros ou para bens de relevante valor e rejeite o necessário tra-
tamento (simplificando o texto de lei, que deve ser consultado na Lei de
Saúde Mental), pode ser necessário acionar o seu internamento involun-
tário – uma modalidade de internamento na qual a pessoa é internada
e tratada contra a sua vontade e que é dependente de uma autorização,
solicitada pelo médico psiquiatra a um juiz, através de uma avaliação
clínico-psiquiátrica. É importante, nesta fase aguda, entrevistar o doente,
210 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

familiares e amigos, que muitas vezes nos conseguem dar uma melhor
noção dos bens jurídicos que vêm sendo postos em risco.
Também nesta fase devemos iniciar tratamento antipsicótico com
doses baixas a moderadas – dependendo do grau de agitação psicomotora.
Os exemplos de fármacos e doses que aqui listo têm como base a minha
prática clínica. Devem apenas servir como referência, uma vez que tanto
a escolha do fármaco quanto da dose a utilizar estão dependentes do
quadro clínico:
• Aripiprazol – 5 mg a 15 mg id;
• Cariprazina – 1,5 mg;
• Haloperidol – 0,5 mg a 5 mg;
• Olanzapina – 5 mg a 10 mg id;
• Paliperidona – 3 mg a 6 mg;
• Risperidona – 1 mg a 2 mg id;
A olanzapina encontra-se nesta lista porque é um fármaco essencial
para conter doentes agitados em fase aguda, mas deve ser evitada como
primeira escolha em tratamento prolongado devido ao seu impacto meta-
bólico. O que acontece com frequência é que se opta pela sua utilização
no contexto de urgência, mas se utiliza um fármaco com menos impacto
metabólico a longo prazo quando o doente se encontra em regime de
internamento. Tanto no internamento quanto na urgência, é igualmente
útil o recurso a benzodiazepinas nestes doentes – contribuindo para rever-
ter a sua agitação psicomotora.

Manutenção
• As taxas de recaída são muito elevadas quando os doentes abando-
nam a terapêutica – cerca de 65% no geral e cerca de 77% quando
os doentes abandonam a medicação ao fim de um ano de trata-
mento. Ainda que estudos recentes de um grupo de investigadores
do King’s College venham colocar em causa o tratamento antipsi-
cótico de forma continuada, esta ainda é a recomendação vigente;
• A taxa de recaída em doentes que cumpram a medicação é de 27%.
ESQUIZOFRENIA 211

Intervenções psicossociais e reabilitação:


• Terapia familiar e psicoeducação;
• Terapia cognitiva;
• Treino de competências sociais;
• Empregos protegidos;
• Exercício físico.

REFERENCIAÇÃO CSP – HOSPITAL


A esquizofrenia é uma doença que requer sempre um psiquiatra que
acompanhe o doente.
É expectável que a Medicina Geral e Familiar tenha capacidade para
identificar sintomas (primeiro passo diagnóstico) e referenciar imedia-
tamente para cuidados especializados. Os médicos de Medicina Geral
e Familiar deverão prescrever um antipsicótico – pela relevância de se
iniciar o tratamento da forma mais rápida possível – mas deverão sempre
referenciar o doente para cuidados de saúde especializados.

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manual of mental disorders (5.ª ed.)
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212 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

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of diseases and related health problems (10.ª ed.)
World Health Organization. (2019). International statistical classification
of diseases and related health problems (11.ª ed.)
12. EXCLUSÃO DE CAUSA
NÃO PSIQUIÁTRICA
FILIPA MOUTINHO

Na abordagem de um doente pela primeira vez em Psiquiatria, a sua


situação dependerá não só da sintomatologia apresentada, mas também
da forma como esta se instala. Na prática clínica existem três tipos de
“instalação”:

Aguda
• Geralmente rápida, com conotação mais grave;
• Evolução em poucos dias;
• Idade do doente fundamental para começar desde logo a colocar
hipóteses diagnósticas;
• Apresentação pouco frequente em doenças psiquiátricas (e quando
acontece é atípica);
• Pesquisar sinais/sintomas neurológicos e/ou sistémicos, muitas
vezes presentes;
• Exemplos: delirium, psicoses (“orgânicas” como as tóxicas), “crises
de pânico/ansiedade”, reações agudas ao stress, alterações do com-
portamento;
• Abordagem: enviar para o serviço de urgência (SU) ou consulta
urgente.

Subaguda
• Definições e gravidade variáveis;
• Impacto funcional geralmente leva à procura de ajuda;
• Evolução em semanas a poucos meses;
• Há que ter em conta idade, fatores de risco, doença prévia;
214 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

• Nem sempre psiquiátrica e nem sempre “orgânica”;


• Exemplos: delirium subagudo, demências rapidamente progressi-
vas, depressão/ansiedade, psicoses;
• Abordagem: dependente do quadro clínico e da gravidade, mas
enviar para o SU ou consulta prioritária.

Crónica
• Apresentação geralmente mais insidiosa, de gravidade variável e
com impacto funcional baixo ou não identificável;
• Evolução em meses/anos, estável (no sentido em que não evolui
por surtos);
• Frequente aquando do primeiro contacto com a Psiquiatria (sobre-
tudo na doença psiquiátrica grave);
• Exemplos: perturbações neurocognitivas, depressão/ansiedade, psi-
coses (quadros com pouco impacto comportamental e que ficam
por identificar mais precocemente);
• Implicações prognósticas (tempo de psicose não tratada, por exem-
plo);
• Abordagem: preferencialmente em consulta, a não ser que haja
agudização/alterações de comportamento.

DELIRIUM
Segundo a CID-10, o delirium é uma síndrome cerebral orgânica,
sem etiologia específica, caracterizada por perturbações na consciência,
atenção, pensamento, memória, comportamento psicomotor, emoções
e ciclo sono-vigia.
A duração é variável e a gravidade pode ser de ligeira a severa.
Segundo o DSM-5, tem como principal característica a perturbação
na atenção e vigília.
Desenvolve-se, geralmente, de forma aguda e tende a flutuar em
gravidade. Existe, pelo menos, perturbação de um outro domínio
cognitivo.
EXCLUSÃO DE CAUSA NÃO PSIQUIÁTRICA 215

As alterações não são explicáveis por demência ou doenças psiquiá-


tricas e existe evidência de causa orgânica de base.
Em termos de subtipos: o delirium hipoativo (o mais frequente) é
frequentemente confundido com síndrome depressiva, sofrendo de diag-
nóstico e tratamento tardios. O delirium hiperativo, por outro lado, é mais
fácil de diagnosticar pela frequente presença de agitação psicomotora,
sintomas psicóticos, que são mais exuberantes; no entanto, devido a estes
sintomas, tem frequentemente uma atribuição psiquiátrica. O subtipo
misto também é bastante frequente, em que o doente alterna entre os
dois anteriores.
Na avaliação de doente com hipótese diagnóstica de delirium, importa
ter em conta algumas mensagens importantes: trata-se de uma síndrome
frequente em urgências e enfermarias médico-cirúrgicas (10 a 31% das
admissões hospitalares, atingindo os 80% em Cuidados Intensivos),
ainda assim subdiagnosticado e prevenível em cerca de 30% dos casos.
A apresentação do delirium é maioritariamente aguda, mas também existe
instalação mais insidiosa, subaguda. A informação de terceiros é impres-
cindível para o diagnóstico e em quase todas as situações necessitará de
referenciação à urgência. No tratamento de delirium, a terapêutica diri-
gida à etiologia (que é a indicada) é frequentemente negligenciada em
prol da terapêutica sintomática, que é muitas vezes prejudicial (fármacos
com potencial anticolinérgico, sedativos, benzodiazepinas) e com riscos
associados. Em termos prognósticos, o delirium está associado a um risco
acrescido de desenvolver demência e tem uma mortalidade elevada, entre
os 10 e 26% nas admissões, com aumento até aos 76% naqueles que
desenvolvem delirium durante o internamento.

Fatores de risco
O desenvolvimento de delirium depende do equilíbrio entre os fato-
res de risco e os fatores predisponentes. Quer isto dizer que para que
alguém sem fatores de risco significativos desenvolva uma síndrome confu-
sional aguda, será necessário um insulto (fator precipitante) considerável
216 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

(por exemplo, um traumatismo cranioencefálico grave). Já em doentes


idosos, com múltiplas comorbilidades e polimedicados, fatores precipi-
tantes aparentemente não graves, como uma cistite ou obstipação, podem
causar delirium.
Dito isto, não é só o fator precipitante que conta, mas também a
vulnerabilidade de cada doente.
• Fatores predisponentes: idade, sexo masculino, demência, depres-
são e outras doenças neuropsiquiátricas, doença médica crónica
ou terminal, privação sensorial, polimedicação, desnutrição, status
funcional;
• Fatores precipitantes: praticamente qualquer doença médica ou
cirúrgica (metabólica, infecciosa, hipoxia, desidratação, desequi-
líbrios hidroeletrolíticos, lesões estruturais do sistema nervoso
central, etc.), retenção urinária/obstipação, dor não controlada,
mudança de ambiente/cuidador, estadia em determinados locais,
fármacos, privação de sono, etc.

Abordagem
A abordagem preferencial deverá ser no SU, pela especialidade
de Medicina Interna; como já anteriormente referido, é fundamental
entrevistar familiar ou cuidador, com especial atenção à evolução do
quadro clínico (cronologia) e sintomas associados, antecedentes médico-
-cirúrgicos, medicação habitual do doente e ajustes recentes. No exame
objetivo, que deverá ser dirigido aos “sintomas”, além de parâmetros vitais
e exame físico geral, deverá ser realizado exame neurológico e avaliação
cognitiva sumários em todos os doentes.

MCDTs
Se concluirmos, pela história clínica, que a causa é uma alteração
terapêutica, poderá nem vir a ser necessária a realização de meios com-
plementares de diagnóstico (ou quase nenhum), variando de caso para
caso. No geral, na abordagem do delirium, deve solicitar-se avaliação
EXCLUSÃO DE CAUSA NÃO PSIQUIÁTRICA 217

analítica, que será mais ou menos completa conforme a história clínica


e evolução do quadro clinico, mas deverá tentar excluir as causas mais
frequentes: hemograma, PCR, função renal e ionograma, transamina-
ses e função hepática, urina II, mesmo em “assintomáticos”, ponderar
marcadores de necrose miocárdica, função tiroideia, pesquisa de tóxicos/
/doseamento de fármacos, serologias em alguns doentes. A gasimetria
arterial é um exame de fácil acesso e rápido que poderá desde logo
também fornecer várias informações acerca da etiologia e gravidade do
quadro clínico (em casos de sépsis ou hipoxia, por exemplo). O eletro-
cardiograma é também um exame acessível, e que deverá ser solicitado a
todos os doentes com delirium – além de uma síndrome coronária aguda
se poder apresentar como delirium num doente idoso, serve para detetar
alterações da condução que contraindiquem o uso de alguns fármacos.
O radiograma torácico é também frequentemente solicitado, atendendo
à prevalência aumentada de infeções respiratórias entre doentes idosos.
Em alguns casos, poderão ponderar-se outros exames, tais como: TC-CE,
se suspeita de AVC (défices neurológicos focais ou de novo), ou doentes
jovens; punção lombar, se suspeita de meningite, encefalite ou se deli-
rium persistente ou doentes mais jovens; eletroencefalograma – ainda
é o gold standard no diagnóstico de delirium, permitindo a deteção de
encefalopatias, disfunção metabólica ou atividade epileptiforme.

CATATONIA
A catatonia é uma síndrome essencialmente psicomotora, caracteri-
zada por sinais/sintomas típicos, sendo necessários (em ambos os sistemas
de classificação – CID-10 e DSM-5) três dos seguintes: estupor, catalep-
sia, flexibilidade cérea, mutismo, negativismo, maneirismo, estereotipa,
agitação psicomotora, grimacing, ecolalia, ecopraxia.
Atendendo à associação entre a catatonia e a doença psiquiátrica ao
longo da História, ainda hoje existem alguns conceitos errados, o que traz
implicações diagnósticas e prognósticas. A catatonia não é voluntária,
e é mais frequente do que o que se pensa (existe uma falsa perceção de
218 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

ser rara), pode ser flutuante e ter períodos de aparente “normalidade”.


Clinicamente, é frequente a ausência de respostas a outras pessoas ou
ao ambiente, posições estranhas/bizarras mantidas, resistência na tenta-
tiva de reposicionar o corpo; pode existir agitação grave, com frenesim e
hipercinésia (movimentos não dirigidos, sem objetivo aparente). A evo-
lução para catatonia maligna é fulminante, muitas vezes idiossincrática
(mas também pode ser precipitada pelo uso de antipsicóticos), com risco
de vida. Se estivermos na dúvida acerca da presença de sinais/sintomas
catatónicos, deve ser administrada uma benzodiazepina e nunca antip-
sicóticos.
Em termos etiológicos, as causas psiquiátricas continuam a ser as
mais frequentes, embora com progressivo reconhecimento e aumento
das causas orgânicas. Entre as causas psiquiátricas, a mais frequente é a
depressão (especialmente a bipolar), a esquizofrenia, mania, mas tam-
bém autismo, perturbação obsessivo-compulsiva, síndrome de Tourette,
psicose puerperal. Esta última situação clínica deve ser abordada como
uma psicose orgânica. Entre as causas não psiquiátricas, correspondentes
a 20-46% dos casos de catatonia, encontram-se basicamente muitas das
mesmas etiologias do delirium, sendo que até 1/3 de doentes confusos
apresentam catatonia. Entre as causas mais frequentes estão as doenças
do SNC, doenças sistémicas, défices nutricionais, intoxicação e privação
de substâncias. Por exemplo, SARS-CoV-2, encefalites autoimunes (apre-
sentação psiquiátrica muito forte), descontinuação de clozapina.

Abordagem
A catatonia deverá ser sempre abordada em contexto urgente, prefe-
rencialmente em urgência, com presença de Medicina Interna, Neurolo-
gia e Psiquiatria. A extensão da investigação depende das circunstâncias
clínicas apuradas na anamnese. A mortalidade aumenta quando se
“aguarda” consentimento, pelo que a ausência da capacidade para con-
sentir não deve impedir o avanço na investigação e implementação de
tratamento.
EXCLUSÃO DE CAUSA NÃO PSIQUIÁTRICA 219

MCDTs (igual para a maioria dos doentes)


• Extensa avaliação analítica: hemograma completo; TP, aPTT,
D-dímeros, fibrina; eletrólitos; função renal e hepática; meta-
bolismo ósseo; glicose; função tiroideia; níveis de folato, B12, nia-
cina; ferro; CK; anticorpos antinucleares e anti-NMDA; serologias
HIV e sífilis.

Outros
• Urina – Pesquisa de corpos cetónicos (baixa ingesta); toxicologia,
se clinicamente justificável.
• ECG (sempre, se ponderada eletroconvulsivoterapia);
• Neuroimagem – No primeiro episódio de doença neuropsiquiá-
trica, em apresentações atípicas e exclusão de lesões estruturais do
SNC para eletroconvulsivoterapia.
• EEG – Exame de excelência na catatonia; mesmo nas catatonias
“psiquiátricas”, mostra frequentemente alterações e pode fazer
diagnóstico diferencial com estado mal epilético não convulsivo,
por exemplo.

PERTURBAÇÕES NEUROCOGNITIVAS
As perturbações neurocognitivas são aquelas que em consulta
suscitam mais frequentemente uma investigação.
Segundo o DSM-5 existem dois tipos de perturbação neurocognitiva,
a minor (antigo défice cognitivo ligeiro) e a major (demência).
A diferença entre elas reside, sobretudo, na gravidade.
Qualquer domínio cognitivo (linguagem, funcionamento execu-
tivo, aprendizagem e memória, função percetiva/motora, cognição
social, atenção complexa) pode ser afetado, em exclusivo ou mais do
que um.
Para o diagnóstico de perturbação neurocognitiva, são importantes a
preocupação manifestada pelo próprio, a informação de terceira pessoa
ou a deteção de declínio cognitivo por parte do médico assistente.
220 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

No caso de défice cognitivo ligeiro, existe uma perturbação modesta


na performance cognitiva que, normalmente, está documentada por ava-
liação neuropsicológica ou escalas quantitativas. Esta perturbação não
interfere significativamente nas atividades da vida diária (as atividades
instrumentais complexas são realizadas com maior esforço, e existe fre-
quentemente alguma acomodação e implementação de estratégias pelo
doente para a realização de algumas tarefas.
No caso da demência, existe já uma perturbação substancial da per-
formance cognitiva (documentada por avaliação neuropsicológica ou
escalas quantitativas), com interferência nas atividades da vida diária,
mesmo que apenas nas instrumentais.
Quer na perturbação neurocognitiva minor, quer na major, os défices
cognitivos não ocorrem exclusivamente no contexto de delirium e não
são explicados por outra doença mental. Qualquer uma das apresenta-
ções pode cursar ou não com alterações comportamentais.

Demência
O diagnóstico de demência pode ser feito geralmente a partir dos
40 anos, sendo a causa mais frequente a doença de Alzheimer. Além
desta, existem outras demências como a doença de corpos de Lewy,
demência frontotemporal, demência vascular, e como causas menos
frequentes, as demências associadas ao álcool (induzida pelo álcool,
s. Wernicke-Kosakoff), síndromes genéticas (d. Huntington), traumatis-
mos cranioencefálicos e hidrocefalia de pressão normal, doenças infec-
ciosas (Creutzfeldt-Jacob, HIV, sífilis), metabólica, entre outras.
Existem algumas causas potencialmente reversíveis/tratáveis de
demência, nomeadamente neurológicas (lesão ocupante do espaço,
hidrocefalia de pressão normal, hematomas intracranianos, doenças
inflamatórias/imunomediadas do SNC), metabólicas (insuficiências
renal e hepática), nutricionais (défice de B12, de ácido fólico ou tiamina),
infecciosas (neurossífilis, HIV), endócrinas (hipo/hipertiroidismo, hipo-
paratiroidismo, insuficiência adrenal, d. Cushing), sistémicas (doenças
EXCLUSÃO DE CAUSA NÃO PSIQUIÁTRICA 221

autoimunes, vasculites do SNC), tóxicas (intoxicação por metais pesados,


uso de alguns fármacos, substâncias psicoativas), psiquiátricas (pseudode-
mência depressiva, esquizofrenia de aparecimento tardio) e outras (por
exemplo, síndrome de apneia obstrutiva do sono).

Abordagem
A abordagem das perturbações neurocognitivas inicia-se geralmente
em consulta de Medicina Geral e Familiar, com eventual referenciação
posterior a consultas de Neurologia, Psiquiatria Geriátrica ou Neuropsi-
quiatria. Como exceção, estão as demências rapidamente progressivas,
cuja avaliação urgente pode ser necessária.

MCDTs
• Avaliação analítica com hemograma, PCR, provas de função
hepática, função renal, ionograma alargado, homocisteína, perfil
lipídico, função tiroideia, níveis de vitamina B12 e ácido fólico,
tiamina, serologias de sífilis e VIH;
• Neuroimagem – TC-CE ou RMN-CE (a ressonância é preferível
em doentes mais jovens ou em declínio rápido, ou com apresen-
tação subcortical);
• Medicina nuclear – PET-FDG (por exemplo, suspeita de DFT,
doença inflamatória, etc.), DatScan (quando suspeita de parkinso-
nismo degenerativo);
• Biomarcadores – -amilóide, proteína Tau; neurofilamento;
• Outros: EEG, testes genéticos – Suspeita clínica.

PSICOSES
Os sinais/sintomas principais ou nucleares da psicose são as aluci-
nações (que podem ser em uma ou mais modalidades – acústico-verbal,
visuais, tácteis, somáticas/viscerais, odores, paladar), os delírios, e altera-
ções do pensamento e discurso. Existem também sinais/sintomas acompa-
nhantes, importantes no estabelecimento de diagnóstico, como sintomas
222 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

negativos, (embotamento afetivo, anedonia, avolia, alogia, apatia), alte-


rações motoras, comportamento desorganizado, agitação psicomotora,
agressividade, sinais/sintomas catatónicos.
Existem alguns fatores a ter em conta perante um quadro psicótico
inaugural e diagnóstico diferencial entre uma psicose orgânica e uma
psicose primária: a apresentação tardia (depois dos 40 anos) deve levar a
investigar outras causas; a apresentação hiperaguda (horas-dias) continua
a ser rara na psicose primária; o curso clínico é mais estável na psicose
primária; as alucinações visuais quase sempre correspondem a doença
orgânica; na psicose primária não existem alterações do estado de cons-
ciência; um quadro clínico muito sugestivo de esquizofrenia raramente
corresponde a doença orgânica; a presença de perturbação cognitiva,
deterioração rápida do quadro clínico e de sinais/sintomas neurológicos
ou sistémicos (como perda ponderal, febre, cefaleia, convulsões, astenia
marcada, etc.) devem fazer equacionar uma psicose orgânica.

Etiologias
Em termos etiológicos, a investigação dependerá da apresentação
e evolução do quadro psicótico em questão. As causas não são muito
diferentes daquelas que estão na base das síndromes confusionais agu-
das ou das catatonias, podendo também ter origem em doenças neu-
rodegenerativas e havendo maior frequência de etiologia tóxica (uso de
substâncias psicoativas). Apesar das diferenças entre a psicose primária
(maior frequência de alterações formais do pensamento, alucinações em
várias modalidades, sintomatologia persistente no tempo, apesar da des-
continuação do tóxico, menor crítica para o estado mórbido, presença
de sintomatologia, ainda que subtil, anterior ao início dos consumos) e a
psicose induzida por tóxicos, existe uma tendência ao sobrediagnóstico
da segunda, com consequente subdiagnóstico das psicoses primárias,
acompanhamento deficitário e irregular destes doentes, subtratamento da
psicose primária e respetivas implicações prognósticas. Mesmo que a psi-
cose seja induzida por tóxicos, a relação com posterior desenvolvimento
EXCLUSÃO DE CAUSA NÃO PSIQUIÁTRICA 223

de psicose primária está bem estabelecida (até 33%), com maior risco
de conversão para os canabinoides e pelo seu uso em idades cada vez
mais precoces. A comorbilidade é o mais frequente na prática clínica,
e na dúvida entre ambas, o doente deverá ser tratado como tendo uma
psicose primária.

Abordagem
Na abordagem dos quadros psicóticos, o médico de família tem um
papel fundamental, pelo conhecimento privilegiado das histórias pes-
soal e familiar do doente. O tipo de referenciação/encaminhamento do
doente depende do impacto global dos sintomas, independentemente
da etiologia; se existir risco para o próprio ou terceiros, deverá ser feita
referenciação ao SU. Devem ser abordados em consulta quando a ins-
talação é insidiosa, face à ausência de sinais/sintomas de alarme e ao
baixo impacto funcional. Se o quadro for agudo/subagudo, com sinais de
alarme, agitação psicomotora, impacto funcional importante, risco de
suicídio, psicose puerperal, deve ser encaminhado para o SU, se neces-
sário utilizando os mecanismos da Lei de Saúde Mental.

MCDTs
Quando o quadro psicótico é de instalação insidiosa-crónica, na
ausência de sinais/sintomas de alarme e com baixo impacto funcional,
a pesquisa de causas orgânicas é semelhante àquela realizada nas pertur-
bações neurocognitivas (mas adequada à idade), podendo ser realizada
em consulta. Quando a instalação é aguda/subaguda, existem sinais/
/sintomas de alarme, agitação psicomotora, sinais/sintomas catatónicos e
impacto funcional significativo, a pesquisa de causas secundárias deverá
ser semelhante àquela realizada em contexto de delirium, com adequa-
ção à idade. Em qualquer das situações, deverá ser solicitado eletrocar-
diograma para eventual introdução de antipsicótico.
224 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

DEPRESSÃO
Os critérios de depressão, segundo o DSM-5, consistem nos seguintes
(≥ 5, com ponto 1 ou 2 presente):
1. Humor depressivo > parte do dia, quase todos os dias.
2. interesse ou prazer em todas/quase todas as atividades,
> parte do dia, quase todos os dias.
3. peso (s/ dieta) ou peso; / apetite quase todos os dias.
4. Lentificação do pensamento e movimentos (objetivado por
outros, não só subjetivamente).
5. Fadiga ou perda de energia quase todos os dias.
6. Sentimentos de desesperança ou culpa inapropriada/excessiva
quase todos os dias.
7. capacidade de pensar ou concentrar, indecisão, quase todos
os dias.
8. Pensamentos recorrentes de morte, ideação suicida recorrente
c/ ou s/ plano, TS.

As perturbações depressivas são muito prevalentes e, aquando do diag-


nóstico, nem sempre pensamos nas causas secundárias que lhes possam
dar origem. No entanto, existem sinais e sintomas que podem estar asso-
ciados a outro tipo de doenças e a relação da depressão com outras doenças
médicas é complexa. A instalação dos quadros depressivos é geralmente
insidiosa, nem sempre sendo necessário um fator precipitante. As causas
secundárias deverão ser equacionadas em casos resistentes ao tratamento,
quando se trata de uma depressão no idoso (diagnóstico diferencial com
demência, delirium hipoativo, efeitos adversos de fármacos, doença sis-
témica), em casos com perda ponderal acentuada, com sinais/sintomas
sistémicos ou constitucionais, sinais/sintomas neurológicos e perturbação
cognitiva significativa.
O tratamento deve ser iniciado mesmo na suspeita de doença médica
como causa da depressão.
EXCLUSÃO DE CAUSA NÃO PSIQUIÁTRICA 225

Abordagem
A abordagem preferencial da depressão é feita em consulta. Em casos
particulares, como a depressão na gravidez, pós-parto, quando existe risco
suicidário, auto/heterolesivo ou sintomas psicóticos ou catatónicos, a ava-
liação deverá ser realizada em urgência.

MCDTs
• Semelhante à pesquisa realizada nas perturbações neurocognitivas,
com a perspetiva de excluir doenças/fatores agravantes;
• Havendo lugar à introdução de fármacos antidepressivos – moni-
torização de segurança.

PERTURBAÇÕES DE ANSIEDADE
As perturbações de ansiedade mais relevantes na prática clínica são a
perturbação de ansiedade generalizada (PAG) e a perturbação de pânico.
Segundo o DSM, a PAG cursa com: A. Ansiedade e preocupações exces-
sivas sobre algumas atividades/eventos, a > parte dias por ≥ 6m; B. O indi-
víduo tem dificuldade em controlar as preocupações; C. As preocupações
estão associadas a ≥ 3 dos seguintes: sensação de nervosismo, não conse-
guir relaxar, cansaço fácil, dificuldades de concentração, irritabilidade,
tensão muscular, alterações do sono (insónia inicial ou intermédia, sono
não reparador). D. A ansiedade, preocupação ou sintomas físicos causam
disfunção significativa.
Na perturbação de pânico, segundo o DSM -5: A. Ataques de
pânico recorrentes e inesperados. Ataque de pânico – paroxismo
abrupto de medo ou desconforto intensos, com pico em minutos,
e durante o qual 4/+ dos seguintes sintomas ocorrem: palpitações ou
FC acelerada, sudorese, tremores, sensação de falta de ar, sensação
de asfixia/sufoco, dor ou desconforto torácico, náusea ou desconforto
abdominal, tonturas, sensação de desequilíbrio, lipotimia, calafrios/
/calores, parestesias, desrealização ou despersonalização, medo de
perda de controlo ou de “ficar louco”, medo de morrer; B. Pelo menos
226 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

um dos ataques seguido de ≥ 1 mês de 1/+ dos seguintes: preocupação


persistente com a ocorrência de outros ataques de pânico e conse-
quências; alteração desadaptativa do comportamento relacionado com
os ataques de pânico.
Em qualquer uma das perturbações, não existe explicação por outra
doença psiquiátrica, por doença médica ou efeito fisiológico de subs-
tância.

Etiologias
As causas secundárias ou comórbidas de perturbações de ansiedade
devem ser excluídas, sobretudo quando existem paroxismos. Entre as
etiologias mais relevantes estão as doenças cardiovasculares (cardiopatia
isquémica, tromboembolismo pulmonar, arritmias, etc.), mas também
endócrinas (disfunção tiroideia, feocromocitoma, d. Cushing, síndrome
carcinoide, disfunção suprarrenal, etc.), doenças neurológicas e outras
doenças sistémicas (asma, doenças infecciosas, etc.), para além do uso de
tóxicos (fármacos e/ou substâncias psicoativas).

Abordagem
A abordagem destas perturbações de ansiedade é preferencialmente
em consulta, sobretudo quando o quadro é muito sugestivo, idade jovem
sem fatores de risco, ausência de sinais de alarme no exame físico.
No caso de crise/ataque refratário ou que não melhora com ansiolítico,
presença de antecedentes médico-cirúrgicos relevantes para doença
súbita/grave, independentemente da idade e/ou na presença de sinais
de alarme no exame físico, o doente deverá ser avaliado em contexto
de urgência.
A terapêutica sintomática ansiolítica pode ser introduzida precoce-
mente, mesmo com investigação em curso.
EXCLUSÃO DE CAUSA NÃO PSIQUIÁTRICA 227

MCDTs
O pedido de MCDTs deverá ser adequado ao contexto. Se em con-
sulta, os MCDTs deverão ser dirigidos às causas mais frequentes e pro-
váveis (como ECG, função tiroideia, toxicologia). Quando em urgência,
os MCDTs deverão ser dirigidos às causas mais frequentes/prováveis face
aos sinais e sintomas mais exuberantes – ECG, marcadores de necrose
miocárdica, D-dímeros, função tiroideia, toxicologia, etc.

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13. CONSUMO DE SUBSTÂNCIAS
SAMUEL POMBO

BREVE CONTEXTO HISTÓRICO


Portugal tem uma relação com o consumo e adição de substâncias
psicoativas distinta. Durante as décadas da ditadura do Estado Novo,
o país viveu isolado e oprimido, sendo o consumo de qualquer substância
psicotrópica ilícita residual ou inexistente. A dependência do álcool era
(e continua a ser) o principal problema aditivo do país. Aquando da Revo-
lução de Abril, tudo mudou de figura. Ocorre uma entrada massificada
de substâncias psicoativas – que não o álcool – numa sociedade ávida de
liberdade, mas impreparada para lidar com problemas aditivos. Deu-se
o chamado “boom da experimentação”. Tudo mudou de cenário com
o aparecimento da heroína, que rapidamente se tornou, pela sua forma
de consumo nociva (endovenosa), num problema bastante grave de
saúde pública (overdoses, HIV, SIDA, hepatite C). Perante tal “flagelo”,
o sistema político e de saúde viu-se forçado a tomar medidas, à altura
controversas para uma sociedade conservadora, nomeadamente, a descri-
minalização dos consumos e a assunção do paradigma de diminuição de
danos. Era indispensável reclamar uma posição muito mais humanista.
A perspetiva da redução de danos encerra uma atitude realista e menos
ideológica do fenómeno das “drogas”, assumindo que, se não consegui-
mos erradicar totalmente os consumos, tentaremos, então, reduzir os
danos, os quais também possibilitam ganhos importantes para a saúde.

EPIDEMIOLOGIA
Em termos de experimentação, na população portuguesa, o álcool é
a substância com a qual há maior contacto. Depois segue-se a nicotina,
canábis (10 a 15% tem contacto), ecstasy, cocaína, LSD, anfetaminas e,
230 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

por fim, heroína (a baixa popularidade da heroína entre os jovens poder-


-se-á dever, entre outros fatores, ao preconceito associado ao heroinó-
mano). As substâncias apresentam diferentes nocividades. Por exemplo,
a probabilidade de transitar para uma dependência (potencial aditivo)
é diferente entre as diferentes substâncias. De entre as substâncias de
consumo mais comum, a nicotina é a que tem maior potencial aditivo,
seguindo-se o álcool, cocaína e, por último, a canábis. O álcool tem uma
grande nocividade orgânica (problemas hepáticos, etc.), enquanto a
heroína tem comportamental (forma de consumo).
Reconhece-se que a experimentação deriva essencialmente de fato-
res do ambiente (disponibilidade da substância, curiosidade, pressão dos
pares), ao passo que a transição para a adição depende mais de fatores
biológicos (sensibilidade à recompensa, tolerância).

EXPRESSÃO CLÍNICA DO CONSUMO DE SUBSTÂNCIAS


Atualmente é vasto o grupo de substâncias psicoativas com poten-
cial de abuso. Embora gozem de diferenças quanto ao mediatismo,
importa perceber os indicadores que são verdadeiramente relevantes
na esfera da saúde: a morbilidade e mortalidade. Em 2017, o jornal
científico Addiction coligiu dados de três importantes referências epide-
miológicas no âmbito do consumo de substâncias: as Nações Unidas,
OMS e o Observatório Europeu da Droga e Toxicodependência.
O estudo verificou que o álcool e o tabaco são de longe a maior ameaça
ao bem-estar humano, quando comparados com todas as substâncias
ilícitas agregadas. Conclusão completamente paradoxal, o facto de
as substâncias legais serem as que têm maior impacto na saúde da
população. Outro importante indicador de saúde é definido pelos anos
de vida perdidos por incapacidade, isto é, morte prematura! Também
aqui o álcool supera, em termos de impacto, todas as denominadas
drogas ilícitas. Além disso, os problemas relacionados com o álcool
são os que têm maior expressão clínica em termos de procura de ajuda
nas estruturas hospitalares ou centros de saúde (embora aquém do
CONSUMO DE SUBSTÂNCIAS 231

desejado). Nesse sentido, os médicos devem estar especialmente aptos


a tratar a dependência do álcool.

EVOLUÇÃO DO DIAGNÓSTICO
Utilizamos para a categorização nosológica das dependências (ou adi-
ções) o manual diagnóstico e estatístico – DSM (The Diagnostic and
Statistical Manual of Mental Disorders). Este manual concebe um
conjunto de critérios predeterminados extensível a todas as substâncias
psicoativas. O valor clínico do diagnóstico de dependência, que hoje
encontra significado descritivo no termo “adição”, tem passado por várias
transformações ao longo dos anos. Nas suas primeiras edições, (1952-
-1968), a “adição a drogas” estava enquadrada na categoria de “Pertur-
bação de personalidade”, o que reforçava a conceptualização da adição
enquanto desvio de personalidade. Só na década de 1980 se assume a
autonomia comportamental do diagnóstico com as entidades “Abuso” e
“Dependência”. De uma maneira geral, o abuso caracterizava um padrão
recorrente de problemas relacionados com os consumos, enquanto a
dependência descrevia a perda de controlo e as dimensões fisiológicas da
tolerância e síndrome de privação. A inexistência de validade científica
na distinção entre os diagnósticos de abuso e dependência conduziu à
fusão numa entidade única, graduada por gravidade clínica, com a deno-
minação de “Perturbações de adição e de uso de substâncias”. Definiu-se
um diagnóstico de perturbação de uso de substâncias, com quatro níveis
de gravidade clínica (sem diagnóstico, ligeiro, moderado, grave),
constituído por 11 critérios. A novidade nesta nova classificação foi a
introdução do conceito craving (impulso, ânsia para o consumo) como
critério clínico formal.
Uma vez que a adição envolve normalmente a negação ou ambiva-
lência face a problema (as pessoas fogem, tentam resolver o problema
sozinhas), o diagnóstico não deve ser feito em forma de inquérito, mas
sim em modo de conversação. Se o doente se sentir avaliado, vai retrair-se
e reforçar as suas defesas.
232 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

Em suma, o paradigma do diagnóstico da adição evoluiu da síndrome


privação para o craving, sendo a essência psicopatológica a perda de con-
trolo.

Perturbação de uso do álcool ou drogas/adição (DSM-5)


Segundo o DSM-5, o uso recorrente da substância remete para o
comprometimento ou alterações em vários âmbitos:

No estilo de vida
• Abandono de atividades do quotidiano;
• O uso representa perigo para a integridade física;
• Verifica-se uso continuado, apesar de problemas despoletados pela
adição (incapacidade de mudar face a consequências);
• Muito tempo despendido em atividades necessárias à obtenção;
• Fracasso no cumprimento de obrigações.

Fisiológicas
• Tolerância;
• Abstinência.

Comportamentais
• Consumo em quantidades superiores ou por um período mais
longo do que o pretendido;
• Perda de controlo (não é linear, em algumas situações podendo
existir a capacidade de controlo) – desejo ou esforços para diminuir
ou controlar;
• Craving – sintoma clínico de adição.

Consumo do álcool
O consumo do álcool tem uma ampla variação individual e contex-
tual. Na verdade, relacionamo-nos com o “objeto” álcool de várias formas
e é nessa relação que pode radicar o comportamento-problema. Ao longo
CONSUMO DE SUBSTÂNCIAS 233

do desenvolvimento, é possível distinguir diferentes padrões de consumo


do álcool, nem todos irremediavelmente patológicos. A experimentação
ocorre por regra na adolescência. Difere da pré-iniciação, que geralmente
implica um simulacro (“ritual de prova”) sob supervisão de um adulto.
Embora a primeira experiência possa ser desagradável, pois o álcool é
uma substância estranha ao organismo (xenobiótica), o tempo e a pressão
social dos pares encarregar-se-ão de criar mais chances de consumo, num
padrão ocasional de oportunidade. O consumo é ainda errático nesta fase,
mas tornar-se-á regular com a continuidade em que já é possível identifi-
car regras e tendências na ingestão de bebidas alcoólicas. A sistematização
dos consumos do álcool, bem como as primeiras experiências de embria-
guez, ocorrem na clandestinidade da família, onde a aceitação, ausência
de julgamento e de condenação dos comportamentos entres pares atuam
como facilitadores. Os jovens testam experimentalmente os seus limites
biológicos e narram orgulhosamente as proezas alcoólicas. Regista-se o
binge drinking, isto é, o consumo excessivo do álcool num curto espaço
de tempo para rapidamente atingir a intoxicação. Para este beber com-
pulsivo, parametriza-se o valor de cinco ou mais bebidas alcoólicas para
o homem e quatro ou mais para as mulheres, numa dada ocasião. Estes
episódios de consumo excessivo do álcool podem ser precedidos por um
“aquecimento”, ou pre-drinking, uma nova cultura de intoxicação estra-
tégica e economicista.
Sabendo a importância de diagnosticar para prevenir, a Organização
Mundial de Saúde (OMS) estabeleceu o conceito de consumo de risco
(Hazardous). Significa que o indivíduo está a beber acima dos limites
recomendados e que por via disso terá possibilidade de vir a ter algum
dano no futuro. Abaixo dos limites indicados, neste caso 40g/dia para o
homem e de 20g/dia para a mulher, a OMS propõe o consumo de baixo-
-risco ou relativamente isento de riscos.
No que se refere ao consumo moderado (ou de baixo-risco, “seguro”),
surgiram várias investigações recentes a agitar a comunidade científica no
que se refere ao denominado efeito cardioprotetor do consumo moderado
234 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

do álcool. Um estudo de grande dimensão publicado na revista The Lan-


cet, em 195 países, de 1990 a 2016, além de determinar que o consumo
do álcool foi o principal fator de risco associado à morte prematura e
incapacidade em pessoas entre 15 e 49 anos, os autores também concluí-
ram que, ao avaliar todos os riscos relativos associados ao uso de álcool,
verificou-se que consumir zero bebidas padrão diariamente minimiza o
risco global para a saúde. Melhor dizendo, a conhecida recomendação
de que “um copo à refeição não faz mal à saúde” não tem suporte pelas
mais recentes evidências científicas.

Uso experimental Baixo risco Problemas associados


(pré-iniciação) ≤ 3 bebidas para homem (Uso Nocivo)
Precocidade ≤ 2 bebidas para mulher.
Exploração meio (Exceção: gravidez)

Risco moderado
3-4 bebidas para homem
Uso ocasional 2-3 bebidas para mulher Perturbação do uso
Pressão social (Benefícios?*) Substâncias
Tolerância
Risco alto
> 4 bebidas para homem
> 3 bebidas para mulher.
Uso regular Adição
Regras Binge-drinking
Mimetiza adulto ≥ 5 bebidas para homem
pares ≥ 4 bebidas para mulher
1.ª alcoolização (em menos de 2h)
Aglutina grupo (Vulgo pre-drinking)

Níveis de consumo, segundo a OMS: 1 bebida = 14 gramas de álcool

*
Consumo compulsivo num curto período (normalmente duas horas)
CONSUMO DE SUBSTÂNCIAS 235

CONTEXTO PSICOLÓGICO DA ADIÇÃO


A fase da adição proporciona diferentes estados mentais no indi-
víduo. É da movimentação desses diferentes estados mentais que o
indivíduo dependente procura a ajuda, ou seja, tratamento. Normal-
mente os doentes comparecem no contexto clínico hospitalar ou de
cuidados de saúde primários em registo psicológico de ambivalência
face à mudança, num duelo motivacional interno entre os custos e
os benefícios de mudar. Por exemplo, o doente até pode aceitar que
tem um problema, mas… existe a crença de o problema é contro-
lável. Outros doentes aparecem no contexto clínico em negação do
problema. A consciência do problema apresenta-se como um aconte-
cimento demasiado ameaçador para o indivíduo, levando-o à rejeição
da realidade. Na negação, o doente recusa e nega veementemente
quaisquer problemas na sua vida. No seu ponto de vista, nada está
errado. Fica defensivo sempre que é focado o tema do álcool. O passo
seguinte no processo de mudança é a aceitação. Aqui já se reconhece
que as coisas estão fora do controlo devido ao consumo descontrolado
de álcool. Aparece ansiedade, culpa ou vergonha. A sobriedade a curto
termo traz, geralmente, bem-estar. Alguns doentes sentem-se ótimos e
particularmente entusiasmados na fase inicial da abstinência. Período
caracterizado como a fase de “lua-de-mel” da recuperação. Contudo,
outras pessoas sentem-se péssimas e especialmente miseráveis quando
decidem parar o álcool. Têm dificuldade em desfrutar da vida sem o
álcool.

GUIDELINES DA NICE PARA O USO


PROBLEMÁTICO/DEPENDÊNCIA
(National Institute of Health and Clinical Excellence)
Embora as expetativas da sociedade em relação aos indivíduos depen-
dentes do álcool se alinhem na abstinência completa, como se isso fosse
o verdadeiro marcador da motivação, a verdade é que as guidelines atuais
236 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

de intervenção clínica defendem uma posição terapêutica muito mais


flexível e orientada para as necessidades do doente.
Assim, são princípios gerais de todas as intervenções:
• Realizar uma intervenção motivacional como parte da avaliação
inicial. A intervenção deve conter os elementos de entrevista moti-
vacional;
• Disponibilizar intervenções para promover a abstinência ou beber
“moderadamente” (quando apropriado) e prevenção da recaída –
não devemos ter como objetivo unilateral a abstinência absoluta;
não impor o que consideramos que deve ser o outcome;
• Para as pessoas com dependência ligeira, propor uma intervenção
psicológica (p. ex., terapias cognitivo-comportamentais);
• Para as pessoas com dependência que tenham um parceiro regular
que está disposto a participar no tratamento, sugerir terapia de casal
ou englobar o companheiro no tratamento;
• Para pessoas com dependência que não tenham respondido às
intervenções psicológicas, considerar a introdução de fármacos
em combinação com uma intervenção psicológica;
• Para pessoas com dependência grave, considerar tratamento
médico especializado.

ENTREVISTA CLÍNICA
• Avaliar o valor percebido da substância – qual a função que a
substância ocupa no funcionamento da pessoa;
• Perceber que efeitos procura o doente (embriaguez, lidar com
depressão, ansiedade);
• Pedir que descreva alguns dos efeitos “positivos” da substância; e
levar a pessoa a pensar nas consequências negativas, mostrando que
não a vamos condenar;
• Perguntar diretamente: “Quando para de consumir por uns dias,
a sua condição melhora ou piora?”, “Quando não bebe por uns
meses, o que o ajudou a manter-se abstinente?”;
CONSUMO DE SUBSTÂNCIAS 237

• Avaliar o grau de dependência: “Quanto tem de consumir para


aliviar o desconforto?”;
• Testar a capacidade de autoeficácia da pessoa: “Se tomar medi-
cação para os seus sintomas, considera-se capaz de reduzir ou de
parar o seu consumo?”
Se não for capaz de reduzir o consumo, “quais serão as razões
para isso (privação, problemas psicológicos ou sociais)?”.

O ÂMBITO DA ENTREVISTA MOTIVACIONAL


Os princípios da entrevista motivacional são de utilização manda-
tória na prática clínica das adições. Define um conjunto de orientações
para a construção da relação terapêutica nas perturbações aditivas, obe-
decendo a um estilo relacional centrado no doente, o qual privilegia a
aceitação incondicional, o respeito e a expressão empática. A empatia
traduz-se num processo de escuta reflexiva que clarifica e amplia a expe-
riência individual do doente, sem impor a opinião pessoal do clínico.
Permite a compreensão fundamental da experiência vivencial do doente,
respeitando a sua autonomia e liberdade de escolha. Por exemplo, ser
empático é ter uma atitude de validação das emoções negativas que nor-
malmente aparecem num encontro terapêutico com uma pessoa depen-
dente, que pode ser marcado pela zanga, humilhação, ressentimento ou
ansiedade. A posição terapêutica na relação centrar-se-á igualmente na
gestão da contra-atitude. Para o efeito, é de evitar a crítica e o confronto.
A argumentação é nitidamente contraproducente e conduz o doente a
um estado defensivo de maior intensidade, com inevitável aumento das
“resistências”. Em casos de negação marcada ou ambivalência sedimen-
tada, importa não forçar de uma forma explícita a mudança, deixando
espaço para que seja o doente a apresentar e verbalizar as suas inten-
ções. Uma atitude relacional desajustada por parte do terapeuta interfere
negativamente no processo relacional, podendo até amplificar a sinto-
matologia incapacitante do indivíduo, produzindo “paradoxalmente”
nocividade. Nessa medida, devem ser abertamente prevenidas pedagogias
238 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

do medo sob a forma de ameaças objetivas ou veladas num estilo pater-


nalista (“Se continuar assim, vai-lhe acontecer...”). A argumentação e
confronto imprimem uma luta de poder na relação que reverterá numa
eventual subalternização do self, ou do doente ou do clínico. Quando
cabe ao doente, podem aparecer atitudes relacionais de submissão, que
podem significar abandono, ou de antagonismo face ao recrudescimento
das “resistências”. Naturalmente, a rutura na relação está mais próxima.
Se o clínico se sente vencido, incorre-se num risco de entrar em acção
mecanismos contratransferenciais de “retaliação”, seja esta passiva, em
que o clínico adota uma postura de desistência e indiferença face ao pro-
blema do doente, ou então diligente, em que se insurge manifestamente
de uma forma hostil contra o doente. No sentido de prevenir ou rever-
ter esta interação potencialmente danosa, o médico deve saber tolerar e
compreender as “resistências” dos doentes, trabalhando terapeuticamente
com elas. É de um ambiente acrítico e de apoio que se proporciona um
espaço seguro na relação. Se por acaso entrar numa zona de confronto
ou conflito no espaço relacional, reduza-o por meio de uma validação
empática ou mude estrategicamente o teor do diálogo. A confrontação
até pode ser um objetivo terapêutico, mas nunca um estilo relacional. São
as respostas empáticas que reduzem as “resistências” e não os processos
musculados de imposição de uma realidade ideal.

TÉCNICAS COMPORTAMENTAIS DE MOTIVAÇÃO


Embora os tratamentos tradicionais orientados para a abstinência
possam ser úteis para muitos dependentes do álcool, outros parecem não
obter qualquer tipo de ajuda, na medida em que o proposto não se ade-
qua aos seus objetivos terapêuticos. Efetivamente, a intervenção com-
portamental deve respeitar o ritmo individual de mudança do doente,
acolhendo “onde o doente está” e não pressionando para onde “ele supos-
tamente deveria estar”.
Porque a prática clínica médica vai muito além da noção simplista
de que tudo o que é preciso fazer é prescrever, no tratamento das adições
CONSUMO DE SUBSTÂNCIAS 239

preconiza-se uma abordagem farmacológica combinada com uma inter-


venção comportamental estruturada. A seguir enumeram-se alguns
métodos comportamentais que permitem repensar radicalmente os trata-
mentos tradicionais, os quais se propõem ser menos intrusivos, restritivos
e dispendiosos, mais apelativos aos doentes e naturalmente também com
um efeito protetor para a saúde.
• Intervenção comportamental para “controlo” do consumo;
Experiência de abstinência – “Experimente parar um mês e
depois decide se quer continuar” (por regra, temos uma mudança
de vida considerável; o objetivo é baixar o peso da decisão e do
fracasso; encarar como experiência);
• Intervenção comportamental para preparação da abstinência –
Quando a pessoa quer parar o consumo totalmente;
• Intervenção comportamental para redução de consumo – Planea-
mento para redução de consumo.

MENSAGENS-CHAVE
Para concluir, gostaria finalmente de expor aqueles que consideramos
os pontos essenciais quando se fala de adição, ou adições, e que vale a
pena ressalvar:
• É, fundamentalmente, um problema que se relaciona com o com-
portamento compulsivo – A adição é definida pela incapacidade
de controlar o comportamento;
• O comportamento compulsivo ativa-se fora da consciência – Exis-
tem fatores (estímulos condicionados) que ativam os cravings;
• Componente hereditário explica até 50% dos fenómenos, com
padrão de herança bastante complexo;
• Comorbilidade psiquiátrica é a regra – Uma adição muitas vezes
instala-se numa doença psiquiátrica já existente (pode até mascarar
o quadro psiquiátrico);
• Perturbação crónica recidivante – Necessidade de vigilância a
longo prazo;
240 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

• Tratável – Farmacoterapias e psicoterapias (médico-psicológico);


a complementaridade é a chave;
• Ausência de motivação não pode ser condição para não obtenção
de resposta terapêutica;
• O tratamento individualizado importa – Dependente de tipologias
clínicas;
• A mudança leva tempo.

REFERÊNCIAS
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for 195 countries and territories, 1990-2016: a systematic analysis
for the Global Burden of Disease Study 2016. Lancet (London,
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line no. 115). Obtido de: https://www.nice.org.uk/guidance/cg115
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Marsden, J., Ferrari, A. J., Grebely, J., Farrell, M., & Degenhardt, L.
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status report. Addiction (Abingdon, England), 113(10), 1905-1926.
https://doi.org/10.1111/add.14234
14. PSIQUIATRIA DE LIGAÇÃO
LUCAS MANARTE

HISTÓRIA
Vários fatores contribuíram para o surgimento da Psiquiatria de Liga-
ção, também conhecida como “Liaison Psychiatry”. O seu desenvolvi-
mento centra-se sobretudo no século xx, mas nos últimos 30 anos teve um
grande crescimento. Olhando um pouco para trás no tempo e referindo o
caso português, é relevante mencionar que a história da Psiquiatria portu-
guesa ficou marcada indelevelmente pela fundação do primeiro hospital
psiquiátrico, em 1848, o Hospital Miguel Bombarda. Neste, os doen-
tes psiquiátricos viram a sua mortalidade reduzir-se significativamente,
sobretudo graças à melhoria das condições de higiene e de transmissão
da tuberculose, então uma importante causa de morte.
Depois de muitos anos sem meios eficazes e seguros para conter o
comportamento dos doentes mais agitados, em particular os que sofriam
de psicose (quer sofressem de esquizofrenia, quer de doença bipolar), a
meio do século xx, em 1953, surge a cloropromazina e inicia-se um longo
desenvolvimento da chamada Psiquiatria “biológica”. Foi Henri Laborit,
cirurgião francês, quem trouxe a cloropromazina da anestesia cirúrgica,
no pós-Segunda Guerra Mundial. Contudo, o uso deste e de outros anti-
psicóticos arrastou consigo efeitos secundários (como as hepatites tóxicas,
pneumonias de aspiração a sedação excessiva e, até, arritmias e enfartes
agudos do miocárdio) que fizeram os doentes psiquiátricos necessitar de
cuidados médicos gerais.
É importante perceber que, nesta época, se por um lado os neuro-
logistas se dedicavam cada vez mais às causas orgânicas das doenças e
davam, portanto, menos atenção ao tratamento e estudo do comporta-
mento humano, por outro era crescente o movimento psicanalítico e a
242 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

compreensão dos fatores psicológicos para o aparecimento de sintomas


somáticos (medicina psicossomática). Recordo que Sigmund Freud, o pai
da psicanálise, havia morrido em 1939 em Londres, para onde fugira do
nazismo alemão.
Havendo então mais psiquiatras biológicos a trabalhar em hospitais
gerais e crescendo a compreensão de que havia aspetos do comporta-
mento humano e da sua psicologia que contribuíam para a expressão dos
sintomas, por volta dos anos 70 do século xx foi criada a subespecialidade
de Psiquiatria de Ligação nos EUA e no Reino Unido. Em Portugal,
a Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental era, até 1979,
chamada Sociedade Portuguesa de Neurologia e Psiquiatria, e só depois
disso a Psiquiatria foi definitivamente separada da Neurologia.
Se, como vimos no início, o afastamento da Psiquiatria se deveu em
grande parte ao surgimento dos “asilos psiquiátricos”, e que este foi mau
para todos – para a Psiquiatria, mas também para a Medicina no geral –,
tendo aumentado o estigma em relação à Psiquiatria e também o seu iso-
lamento enquanto corpo de conhecimento, o surgimento da Psiquiatria
de Ligação deu frutos positivos, pois veio recuperar essa relação.

INTRODUÇÃO
• A Psiquiatria de Ligação é uma especialidade de contexto – Não é
especializada em nenhuma patologia;
• Todos os diagnósticos e todos os doentes podem passar pela Psi-
quiatria de Ligação;
• Não se define pelo tipo de patologia;
• Inclui a adaptação à doença crónica grave (DPOC grave; ICC;
diabetes; doenças muito incapacitantes, como fibrose quística ou
doenças desmielinizantes, amputações, etc.);
• Ao mesmo tempo, qualquer doente psiquiátrico pode ter uma
pneumonia, EAM ou outra doença que necessite de cuidados
hospitalares – e continuam a necessitar de acompanhamento
enquanto internados por essa patologia não psiquiátrica.
PSIQUIATRIA DE LIGAÇÃO 243

Dito isto, qual é o papel da Psiquiatria de Ligação?


• Consulta ao doente internado em qualquer especialidade;
• Consulta externa ao doente acompanhado noutra especialidade;
• Avaliação do doente em urgência geral;
• Consultoria sistemática em unidades hospitalares especializadas:
transplante, obesidade, etc.;
• Ensino, formação e investigação.
A divulgação de más notícias é uma competência do médico em
geral, não é uma competência exclusiva da Psiquiatria de Ligação.

NO HOSPITAL GERAL
Como já comentado, a Psiquiatria de Ligação é a “embaixadora” da
Psiquiatria junto das outras especialidades – os psiquiatras de Ligação
são quase sempre o único psiquiatra que os colegas conhecem. São os
que vêm “resolver problemas”: para tal, é necessário estar disponível, ser
prático, assertivo e atencioso.
O psiquiatra de Ligação pode e deve ser fonte de informação psiquiá-
trica para todos os outros profissionais: médicos, mas não só. Isto porque
pode haver outros médicos com ideias acerca do que deve ser o trata-
mento psiquiátrico que nem sempre coincidem com as da psiquiatria.
Numa primeira avaliação, é fundamental que o doente saiba e
aceite que vai ser observado por um psiquiatra, devendo esses médicos
identificar-se como tal.
Devemos, inicialmente, recolher informação prévia acerca do doente.
De seguida, deve-se consultar a equipa médica, trocar ideias e avaliar
as necessidades de quem pede a observação.
É fundamental incluir a equipa de enfermagem e perceber quais as
principais preocupações quanto ao doente em concreto.

Nota: nem sempre é possível a privacidade – é a área da Psiquiatria


em que são colocados mais obstáculos à entrevista, pois há ruídos, difi-
culdades de comunicação dos doentes, interrupções, procedimentos…
244 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

Após uma visão abrangente do nosso trabalho e da nossa especiali-


dade, gostaria de tratar algumas áreas mais específicas. Não descreverei
os critérios diagnósticos de cada patologia, mas farei uma abordagem ao
que considero mais importante de cada uma no nosso âmbito.

Ansiedade
A ansiedade pode, muitas vezes, ser vista como apropriada à situa-
ção clínica geral, e nem sempre todos os doentes têm critérios para uma
perturbação. No entanto, isto não significa que a ansiedade que o doente
sente não possa interferir com procedimentos médicos e/ou com os tra-
tamentos.
É fundamental estarmos atentos às diversas causas: resposta de adap-
tação à doença, ausência de substâncias consumidas em ambulatório
(benzodiazepinas, tabaco, álcool e outras), expressão do humor depres-
sivo.
Pesquisar causas não psiquiátricas, como: iatrogenia, endócrinas, car-
díacas, pulmonares (hipoxia), intoxicação com substâncias.

Depressão
Uma das causas mais frequentes de pedido de observação. É importante
não confundir com delirium hipoativo.
Pode ser uma resposta à patologia não psiquiátrica, sendo comum,
e pode ser apropriada. É muito frequente nos doentes com AVC (sobre-
tudo quando o doente começa a melhorar e a ter consciência da sua
situação).
Devemos atentar nalgumas causas não psiquiátricas: corticoides,
endócrinas, doença cardíaca.
É importante deixar o doente descrever subjetivamente o seu humor:
a entrevista pode ser terapêutica.
É essencial explorar a sintomatologia cognitiva da depressão. Seria
importante, se possível, fazer uma comparação com o humor anterior à
doença atual.
PSIQUIATRIA DE LIGAÇÃO 245

Psicose
Motivo menos frequente de pedidos de observação na Psiquiatria de
Ligação, mas mais difícil de avaliar por outras especialidades.
Há muitos tipos diferentes de “psicose”: pode ser um doente com
esquizofrenia que é internado por outro motivo (p. ex., neoplasia da
mama...); pode ser uma resposta ao contexto hospitalar (o doente com
vulnerabilidade individual que reage de forma paranoide e que se sente
perseguido no internamento); pode ser no contexto de resposta a procedi-
mentos muito invasivos; pode resultar do esvaziamento das vesículas pré-
-sinápticas de dopamina após trauma cranioencefálico ou neurocirurgia;
ou pode ainda ser uma reação adversa como a corticoides ou levodopa
(alucinações vs. pseudoalucinações).
Não devemos confundir com síndrome confusional agudo hiperativo.
Devemos fazer sempre uma história clínica em pormenor: verificar data
de início, relacionar com procedimentos e medicação, avaliar status prévio
ao contacto com o serviço de saúde, verificar se há flutuações temporais.
O tratamento normalmente exige medicação e deverá, em geral, ser
reavaliado em 15 dias a um mês, no máximo.

Suicídio
É um motivo de pedido que mais ansiedade gera nos médicos das
outras especialidades. No entanto, devemos ter em mente que não há
nenhuma forma absoluta de prever o comportamento suicida de um ser
humano. Pode-se, sim, avaliar o risco geral e, com isso, tomar decisão
quanto ao procedimento a adotar.
Há que distinguir entre comportamentos autolesivos (caráter de regu-
lação de emoções), vontade em desaparecer e vontade de morrer – têm
riscos diferentes. Os manipuladores levantam desafios à decisão clínica,
pois se, por um lado, se deve reconhecer o papel manipulador, por outro,
o risco suicidário não deve ser negligenciado.
Há que avaliar o risco com base no conhecimento atual (através de
fatores de risco: idade 15-25 ou mais de 65; sexo masculino; antecedentes
246 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

familiares de suicídio; consumo de substâncias; antecedentes pessoais de


doença mental; tentativas anteriores; recurso fácil a meios letais; rituais de
despedida; plano estruturado), registar essa avaliação, informar o doente
e decidir o que fazer. Por vezes, pode-se fazer um “pacto antissuicidário”,
pois este permite uma ponte temporal até novo contacto com o doente.
É muito importante trabalhar em equipa e comunicar com os colegas.

Delirium
É um motivo muito frequente de pedido de apoio. Existe ainda uma
falta de treino das equipas médicas neste diagnóstico e tratamento.
Nunca se deve esquecer de avaliar e verificar as causas não psiquiátricas.
Não devemos esquecer que a simples saída de casa e permanência
numa enfermaria hospitalar pode ser motivo de síndrome confusional em
pessoas com pouca reserva cognitiva – não se deve deixar de falar com o
doente e manter o contacto, pois reduz os níveis de ansiedade/agitação.
Evitar benzodiazepinas e também doses sedativas de antipsicóticos:
será melhor fracionar em pequenas doses. Há que ter paciência com o
início da melhoria e saber tranquilizar as equipas médicas que querem
respostas imediatas.
Nunca subestimar as medidas “higiénicas”: luz natural, calendários,
relógios, pessoas familiares próximas.
Pode ser necessária a contenção física, que, apesar de mais aparatosa,
tem menos efeitos orgânicos sistémicos.

CONSENTIMENTO
A Lei de Saúde Mental não se aplica a outras áreas da Medicina.
Este é um tema de gestão complexa, com dimensões éticas, sociais e
legais que geram dilemas.
A situação mais frequente na prática clínica é o doente que recusa
um procedimento invasivo ou um tratamento demorado no tempo com
efeitos secundários. O simples abandono do doente à sua sorte é contrain-
tuitivo para a vocação da profissão médica.
PSIQUIATRIA DE LIGAÇÃO 247

Algumas pistas para resolução de problemas:


• Ganhar tempo pode fazer desaparecer o problema em questão;
• Pode ser útil medicar o doente para a ansiedade/desconfiança;
• Devemos distinguir a recusa consciente da ansiedade face a um
procedimento;
• É sempre aconselhável incluir a família ou cuidadores, seja qual
for a decisão a tomar;
• É fundamental registar com cuidado tudo o que é feito e decidido
e trabalhar em equipa;
• Não se deve aceitar tabus/segredos.
Em última análise, caberá ao doente decidir sobre a sua saúde.
Se houver uma mudança de decisão, evitar qualquer ressentimento
na relação médico-doente.

SINTOMAS INEXPLICÁVEIS
É um situação muito frequente na Psiquiatria de Ligação, sendo
motivo de perplexidade nos profissionais de saúde e abala a crença na
ciência médica.
Nunca devemos saltar passos no diagnóstico de um caso concreto,
mesmo que já tenham sido dados anteriormente. Tal implica o conheci-
mento do conceito de conversão e das teorias do inconsciente.
A Psiquiatria de Ligação aparece como a área final destes quadros – os
doentes podem sentir-se “ofendidos”, ou sentir que as suas queixas foram
desvalorizadas por estarem “em Psiquiatria”. Nestas situações, é impor-
tante trabalhar a relação médico-doente e os significados da doença.
A ausência de causa não psiquiátrica não tem de implicar a alta da
consulta respetiva: deve-se trabalhar em equipa com os médicos que
referenciam.
É importante envolver a família e conhecer a experiência de médicos
e doentes noutras partes do mundo.
248 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

HIPOCONDRIA
É muito frequente e exigente. Trata-se da preocupação com a exis-
tência de uma doença letal ou grave que permanece, apesar de tudo;
e relaciona-se com ruminações e pessimismo.
É importante reconhecer os aspetos da personalidade e do tempera-
mento envolvidos.
Exige trabalhar o significado da doença e avaliar possíveis “ganhos
secundários”.
Nunca se deve subestimar a iatrogenia de exames complementares.
Há que recolher informação acerca do percurso do doente e formar uma
visão global: normalmente, o doente já passou por muitos colegas e está
sempre pronto para “mais um exame”. Assim, trabalhar em articulação
entre colegas permite poupar tempo e meios.
Tratamento: reconhecer as necessidades subjetivas e identificar os
mecanismos de defesa do doente e/ou terapia cognitivo-comportamental.
Pode usar-se medicação. Pode haver codiagnóstico com depressão, ansie-
dade ou POC.

ASPETOS PRÁTICOS
De seguida exponho algumas linhas de orientação para o ajuste de
medicação a diferentes quadros e patologias.

Recomendação de bibliografia: Federação Mundial das Sociedades


da Psiquiatria Biológica (resumo de todas as orientações).
PSIQUIATRIA DE LIGAÇÃO 249

AJUSTE FACE A QUADRO DE FIBRILHAÇÃO AURICULAR (FA)


Perturbação Medicamentos sugeridos A evitar
Aripiprazol. Foi reportada FA com
Evitar efeitos no ECG, como a clozapina, olanzapina e
pimozida e os que aumentem quetiapina.
Esquizofrenia a FC. Atenção aos que afetam o
Haloperidol é dos que menor intervalo Q-T: quetiapina >
risco tem no prolongamento olanzapina > aripiprazol.
Q-T.

Lítio. Os estabilizadores do humor


Perturbação
Valproato. têm pouco potencial de
bipolar
provocar FA.

Inibidores seletivos da Tricíclicos (perigo da doença


recaptação da serotonina coronária e FA).
(ISRS) podem interferir
Depressão
com a aspirina e varfarina.
A venlafaxina não afeta a
condução atrial.

P. Ansiedade Benzodiazepinas e ISRS. Tricíclicos.

Inibidores da Evitar inibidores da


acetilcolinesterase (cuidado acetilcolinesterase na FA
Doença de com os efeitos bradicárdicos). paroxística.
Alzheimer A rivastigmina tem menor
potencial de interação.
Memantina.
250 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

AJUSTE POR INSUFICIÊNCIA RENAL


Grupo Recomendações
Nenhum é claramente superior.
Evitar o sulpirido/amissulprida.
Antipsicóticos Evitar anticolinérgicos devido à retenção urinária.
Usar haloperidol 2-6 mg.
Antipsicóticos de segunda geração, como a olanzapina.

Nenhum é claramente superior.


Antidepressivos
O escitalopram e a sertralina são escolhas razoáveis.

Nenhum é claramente superior.


Estabilizadores Evitar o lítio.
de humor Começar com doses pequenas de: valproato, carbamazepina
e lamotrigina.

Ansiolíticos Monitorizar as doses.


e hipnóticos O lorazepam é a escolha mais razoável.

INSUFICIÊNCIA HEPÁTICA
Grupo Recomendações
Imipramina com aumento gradual da dose, ou paroxetina
Antidepressivos
e citalopram, cujas doses devem subir muito gradualmente.

Haloperidol: dose baixa. Ou amissulprida, se a função renal


Antipsicóticos
estiver bem.

Estabilizadores Lítio. Usar a litemia plasmática para titular a dose.


de humor

Lorazepam, oxazepam e temazepam, cujas doses devem ser


Sedativos as mais baixas possíveis.
Zopliclone: 3,75 mg na insuficiência hepática moderada.
PSIQUIATRIA DE LIGAÇÃO 251

FÁRMACOS RECOMENDADOS NA AMAMENTAÇÃO


Grupo Recomendações
Antidepressivos Paroxetina ou sertralina (primeira linha).

Antipsicóticos Sulpirida ou olanzapina.

É melhor mudar para um dos antipsicóticos estabilizadores


Estabilizadores
do humor.
de humor
Atenção ao risco de hepatotoxicidade nos recém-nascidos.

Sedativos Lorazepam para a ansiedade, zolpidem para a insónia.

FÁRMACOS RECOMENDADOS NA GRAVIDEZ


Grupo Recomendações
Antidepressivos Nortriptilina, amitriptilina, imipramina, fluoxetina.

Muitos antipsicóticos convencionais foram usados, embora


a sua segurança não esteja confirmada. Há mais experiência
com cloropromazina, haloperidol e trifluoperazina.
Antipsicóticos Não há nenhuma evidência de que os antipsicóticos sejam
teratogénios significativos; contudo, a informação relativa
a outros antipsicóticos que não olanzapina e clozapina
é escassa.

Usar de preferência os antipsicóticos que são estabilizadores


do humor.
Estabilizadores
Evitar os anticonvulsivantes como o valproato e
de humor
carbamazepina; caso isso ocorra, administrar ácido fólico
de forma profilática.

As benzodiazepinas não são teratogénicas, mas convém


Sedativos evitar devido ao risco de síndrome de abstinência, sobretudo
no fim da gravidez.
252 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

CONCLUSÕES
• A Psiquiatria de Ligação, em alguns hospitais, foi o início do surgi-
mento do Serviço de Psiquiatria;
• Será a subespecialidade da Psiquiatria com a qual a generalidade
dos médicos irá contactar mais;
• Os doentes são comuns: as pessoas circulam entre cuidados de
saúde, não há doentes “puros”. Os doentes com esquizofrenia tam-
bém morrem de enfarte agudo do miocárdio, por exemplo;
• A saúde mental é fundamental para a melhoria da restante saúde:
não há saúde sem saúde mental;
• As equipas médicas também precisam de trabalhar questões na sua
relação com a doença e com o doente, através da Psiquiatria de
Ligação;
• A Psiquiatria também precisa de uma Medicina de Ligação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Lishman's Organic Psychiatry: A Textbook of Neuropsychiatry (4.ª ed.).
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Schatzberg A., & DeBattista C. (2019). Schatzberg's Manual of Clinical
Psychopharmacology (9.ª ed.). Amer Psychiatric Pub Inc.
Semple D., & Smyth R. (2013). Oxford Handbook of Psychiatry
(3.ª ed.). Oxford: Oxford Medical Handbooks.
15. PERTURBAÇÕES
DE PERSONALIDADE
CÁTIA MOREIRA

INTRODUÇÃO – A PERSONALIDADE
A Personalidade define-se pelo conjunto de características indivi-
duais e relativamente estáveis ao longo do tempo (traços de personali-
dade) que determinam padrões de perceção, de relação e de pensamento
acerca do próprio e do seu meio envolvente e que, naturalmente, se expri-
mem numa grande variedade de contextos sociais e pessoais.
• Por que razão a personalidade é tão importante nas doenças mentais?
Por um lado, a personalidade pode ser um fator patoplástico de uma
doença, ou seja, pode influenciar a expressão clínica, a evolução e a
resposta ao tratamento de uma doença psiquiátrica. Por outro, a perso-
nalidade pode representar um fator de vulnerabilidade para o desenvol-
vimento de determinadas patologias.
• Perturbações da personalidade – A partir de quando se classificam?
Classificam-se quando temos traços de personalidade que são infle-
xíveis e desadaptativos e, por isso mesmo, causam sofrimento e impacto
funcional bastante significativo.

PERTURBAÇÕES DA PERSONALIDADE
As perturbações da personalidade (PP) caracterizam-se por um
padrão de comportamento e experiência interna:
• Pouco flexível;
• Persistente e estável ao longo do tempo, tendencialmente com o
início na infância tardia, adolescência ou idade jovem adulta;
• Que se desvia marcadamente daquilo que são as expectativas da
sua cultura;
254 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

• Que provoca sofrimento pessoal e/ou condiciona défices no fun-


cionamento social, ocupacional ou noutras áreas importantes do
funcionamento.

Tem três grandes dimensões: afetiva, cognitiva e comportamental.


• Afetiva – Caracterizada por instabilidade emocional ou alterações
da gama ou intensidade de afetos;
• Cognitiva – Quando existe instabilidade ou inflexibilidade em
crenças e valores ou imprecisão na avaliação de situações e relações
interpessoais (especialmente em situações de stress);
• Comportamental – Quando existem alterações do controlo do
impulso e modulação do comportamento com base na situação e
potenciais consequências.
Embora digamos que o diagnóstico de perturbação da personalidade
implica um padrão relativamente estável e persistente, sabemos que exis-
tem fases da agudização onde pode haver exacerbação ou presença de
sintomas que não existiam antes. Estas fases podem surgir no contexto
de eventos “stressores” ou aquando do desenvolvimento/agudização de
doenças psiquiátricas comórbidas.

ESTADO MENTAL
O diagnóstico de perturbações da personalidade é um desafio na prática
clínica, tendo em conta que abrange um grupo muito heterogéneo de sin-
tomas. Esta heterogeneidade levanta questões diagnósticas, pelo que nem
a CID-10, nem a CID-11, nem o DSM-5 têm concordância nas mesmas.
De facto, há algumas perturbações de personalidade que só existem no
DSM-5 e não na CID-10 (perturbação narcísica, por exemplo). Por outro
lado, existem algumas variantes, nomeadamente da perturbação da persona-
lidade esquizotípica, que a CID-10 já não considera como uma perturbação
de personalidade, mas sim como fazendo parte do espectro da esquizofrenia.
A divisão por clusters só acontece no DSM-5. Os novos manuais
provavelmente já virão com outro tipo de classificações, isto porque o
PERTURBAÇÕES DE PERSONALIDADE 255

modelo que utilizam, que é essencialmente o modelo categórico, tende


a estar desatualizado. Tal acontece porque nas perturbações de perso-
nalidade existe uma elevada sobreposição de sintomas, e a maioria dos
doentes com determinada perturbação de personalidade cumpre também
critérios para outra. Uma vez que a CID-11 é construída por uma abor-
dagem dimensional e não tanto de requisitos sintomatológicos estritos,
ainda que essa abordagem possa ser benéfica para a avaliação individua-
lizada de cada doente na clínica, para os efeitos desta aula considerou-se
mais vantajoso utilizar as classificações da CID-10 e DSM-5, por serem
categóricas, tornando os conceitos mais fáceis de apreender.
Assim, ainda há um longo caminho a percorrer no que diz respeito à
classificação destas perturbações.

DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
O diagnóstico diferencial das perturbações da personalidade é bas-
tante amplo, incluindo-se não só nas perturbações não-psiquiátricas,
como em outras doenças psiquiátricas.
• Perturbações não-psiquiátricas – Estas podem ocorrer frequen-
temente porque existem doenças que, de uma forma insidiosa, se
apresentam com sintomas de alterações do comportamento passí-
veis de mimetizar uma perturbação da personalidade. No entanto,
a grande diferença prende-se com o facto de nas perturbações médicas
(ou não-psiquiátricas) estas alterações surgirem de forma concomi-
tante (ou pouco antes) do aparecimento dos sintomas físicos/primei-
ros sinais/alterações analíticas. Os sintomas regridem, também, com
o tratamento da doença não psiquiátrica de base.
• Iatrogenia – Os medicamentos, tanto em mono como em polite-
rapia, podem causar efeitos secundários, entre eles as alterações do
comportamento, do humor ou do pensamento. Quando tomados
de uma forma crónica, esses efeitos podem mimetizar uma pertur-
bação de personalidade. No entanto, no caso da iatrogenia, os ditos
efeitos cessam aquando da interrupção farmacológica;
256 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

• Substâncias – À semelhança da iatrogenia medicamentosa,


a ingestão crónica de substâncias toxifílicas pode causar alterações
do comportamento e simular uma perturbação da personalidade.
No entanto, os efeitos cessam aquando da suspensão dos consumos.
Neste âmbito, ressalva-se que, se as alterações do comportamento
apenas ocorrerem quando há a procura do consumo ou aquando
da abstinência do mesmo, é mais provável que este se deva a uma
perturbação de uso de substâncias, e não a uma perturbação de
personalidade;
• Doenças psiquiátricas – As perturbações da personalidade
relacionam-se intimamente com alterações do comportamento e
da expressão dos afetos. A sua heterogeneidade de sintomas (que,
embora raramente, pode incluir sintomatologia psicótica) muitas
vezes pode mimetizar sintomas característicos de outras doenças
psiquiátricas. Mais uma vez, ressalva-se que as perturbações de
personalidade podem ser um diagnóstico primário, mas também
podem coexistir com estas condições, daí a grande dificuldade na
avaliação e diagnóstico diferencial deste tipo de doentes.

TRATAMENTO
Não existe uma evidência robusta sobre qual é o tratamento mais
adequado nas perturbações da personalidade. Por um lado, o número de
estudos existentes é escasso e de fraca qualidade, havendo um número
limitado de estudos de follow-up a longo prazo do tratamento. Por
outro, quando estes estudos existem, a maioria foca-se na perturbação
de personalidade borderline (e, em menor medida, na perturbação de
personalidade antissocial). Além disso, existe também uma elevada hete-
rogeneidade da população com perturbações de personalidade.
Não obstante, as intervenções psicoterapêuticas e sociais devem consti-
tuir a base do tratamento, devendo reservar-se o tratamento farmacológico
para situações sintomáticas agudas (com interrupção do mesmo após a reso-
lução de sintomas) e para o tratamento das comorbilidades psiquiátricas.
PERTURBAÇÕES DE PERSONALIDADE 257

PROGNÓSTICO
O prognóstico depende da gravidade dos sintomas e da presença (ou
não) de doença mental associada. Estudos demonstram que existe uma
morbilidade e mortalidade mais elevadas, com uma redução na espe-
rança média de vida de 20 anos e uma maior incidência de suicídio.
Além disso, é notório um maior risco de mortalidade por doenças não
psiquiátricas (cardiovascular e respiratórias), parcialmente explicado por:
elevadas taxas de consumo de tabaco, álcool e substâncias ilícitas; e a pre-
sença de dificuldades relacionais, com impacto na relação médico-doente
e, consequentemente, na redução da qualidade do acompanhamento.
A comorbilidade psiquiátrica (incluindo o diagnóstico de duas ou
mais perturbações de personalidade em simultâneo) está particularmente
associada com um prognóstico negativo.
No entanto, e ao contrário do que se assumia inicialmente, as per-
turbações de personalidade não são completamente estáveis ao longo da
vida, podendo verificar-se, ao longo da evolução da doença, um agrava-
mento, mas também uma melhoria ou mesmo remissão dos sintomas.
Realça-se que as intervenções psicoterapêuticas existem, precisamente,
para tentar alterar estes padrões classicamente considerados inflexíveis.

TIPOS DE PERTURBAÇÃO DE PERSONALIDADE


Perturbação de personalidade paranoide
Tem alguma prevalência na população geral (2,09%) e uma elevada
prevalência na população prisional (23%).
Caracteriza-se por um padrão estável e generalizado de desconfiança
e suspeição em relação às intenções dos outros.
As ideias de desconfiança são sobrevalorizadas, não assumindo um
caráter delirante, exceto em situações de stress extremo (a assumir sinto-
matologia psicótica, esta é breve e com duração de poucas horas).
Apresenta três grandes dimensões:
• Afetiva – Sensibilidade exagerada à crítica (real ou percecionada
como tal) e hipervalorização desta; presença frequente de senti-
mentos de ansiedade, raiva, ciúme e ressentimento;
258 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

• Cognitiva – Tendência para a atribuição de intenções malévolas e


autorreferenciais aos outros, sem grande fundamento;
• Comportamental – Inibição e afastamento nas relações sociais ou
comportamentos de hostilidade (geram frequentemente contra-
-atitude, resultando em respostas igualmente hostis), querulência
e litígio, em reação às ofensas percecionadas.

Principais diagnósticos diferenciais


As perturbações do espectro da esquizofrenia podem cursar com
ideias de conteúdo persecutório e autorreferencial. A grande diferença
consiste no facto de a perturbação de personalidade paranoide não assu-
mir o caráter delirante, nem se verificar a presença de outros sintomas
psicóticos muito frequentes na esquizofrenia.
• Perturbação de personalidade esquizotípica;
• Perturbação de personalidade esquizotípica esquizoide;
• Perturbação de personalidade esquizotípica evitante;
• Perturbação de personalidade esquizotípica borderline.

Tratamento
• Psicoterapêutico – Terapia cognitivo-comportamental (a única
com alguma evidência de eficácia, baseada em estudos de caso);
terapia focada na mentalização; psicanálise; terapia de grupo (deve
ser evitada, os doentes não colaboram);
• Farmacológico – A evidência não é suficiente para recomendar
algum tipo de tratamento farmacológico na perturbação de per-
sonalidade paranoide, exceto em situações sintomáticas agudas,
durante o menor tempo de utilização possível.

Perturbação de personalidade esquizoide


Prevalência muito semelhante à perturbação de personalidade anterior e
com uma forte associação aos diagnósticos de perturbações de pânico, agora-
fobia, mania, ansiedade social e perturbação da ansiedade generalizada.
PERTURBAÇÕES DE PERSONALIDADE 259

A principal característica da perturbação da personalidade é o des-


preendimento das relações sociais e uma restrição da expressão emocional,
com desinteresse em estabelecer relações de proximidade. Assim sendo, os
interesses em geral estão, normalmente, reduzidos. Os objetivos de vida
também são mal definidos ou ausentes.
Frequentemente, existe um aplanamento afetivo, uma expressão
emocional diminuída; do ponto de vista comportamental, estes doentes
são pessoas muito isoladas, passam despercebidos e não têm um verda-
deiro respeito pelas convenções sociais. Isto leva a um isolamento que não
é sentido pelos próprios como algo negativo.
Há desprendimento das relações, mas não há um sofrimento grande
relativamente ao mesmo – diferença importante relativamente a outros
diagnósticos.
São, normalmente, pessoas que não conseguem desenvolver um tipo
de trabalho que exija interação social. Preferem atividades ocupacionais
mais solitárias (trabalhar no computador sem a necessidade de relacio-
namento com outras pessoas, por exemplo).

Diagnóstico diferencial
• Perturbação do espectro do autismo – Dificuldade na interação
social e restrição de interesses. No entanto, ao contrário da PP
esquizoide, estes apresentam, também, alterações da linguagem
e da psicomotricidade. Da mesma forma, normalmente, são diag-
nosticadas no início da infância, enquanto a perturbação de perso-
nalidade tem início na adolescência/idade adulta;
• Esquizofrenia – Afetos mais restritos, atividades solitárias. No
entanto, numa perturbação de personalidade a sintomatologia psi-
cótica não é frequente (apenas perante eventos de maior stress).
Na esquizofrenia, os sintomas negativos tendem a agravar progres-
sivamente e representam um corte claro perante o funcionamento
pré-mórbido;
• Fobia social – Interação social evitada. Contudo, na fobia, esta é
motivada por ansiedade extrema, sendo que a pessoa sofre com isso.
260 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

Na perturbação de personalidade esquizoide há desinteresse com-


pleto, mas não há sofrimento;
• Outras perturbações de personalidade do cluster A;
• Perturbação de personalidade evitante.

Tratamento
Não existem estudos de qualidade sobre o tratamento da perturbação
de personalidade esquizoide, não sendo possível fazer recomendações
baseadas na evidência. Aplicam-se os princípios gerais do tratamento de
uma perturbação de personalidade.

Perturbação de personalidade esquizotípica


Padrão estável e generalizado, caracterizado por experiências perce-
tuais incomuns, crenças bizarras, discurso peculiar e ideias de descon-
fiança ou autorreferência.
A maioria dos estudos que analisam sintomas desta perturbação de
personalidade insere as suas alterações em três grupos distintos:
• Cognitivas – Experiências percetuais pouco usuais, ideias de refe-
rência, desconfiança, crenças incomuns;
• Desorganização/excentricidade – Bizarria do comportamento,
discurso e pensamento;
• Disfunção interpessoal – Afetos inadequados ou restritos, dificul-
dade em estabelecer relações interpessoais, ansiedade social.
Uma proporção substancial dos doentes com perturbação de perso-
nalidade esquizotípica apresenta défices cognitivos importantes, particu-
larmente a nível da função executiva, memória de trabalho e atenção.
A CID-10 entende que esta perturbação de personalidade é uma
forma atenuada de uma doença psiquiátrica com sintomas psicóticos,
considerando que este diagnóstico se insere na perturbação do espectro
de esquizofrenia (existe uma taxa de conversão muito elevada).
PERTURBAÇÕES DE PERSONALIDADE 261

Diagnóstico diferencial
• Esquizofrenia – Pela presença de ideias de autorreferência, pensa-
mento mágico e bizarrias do comportamento e discurso.
No entanto, a perturbação de personalidade é relativamente estável
e persistente ao longo da vida, não se verificando um corte claro
do funcionamento, como é comum na esquizofrenia. Os sintomas
psicóticos, a existirem, surgem no contexto de reação aguda ao
stress, com uma duração breve. Outra característica distinta é a
ausência de sintomatologia negativa franca, que condicione declí-
nio progressivo;
• Perturbação de personalidade paranoide;
• Perturbação de personalidade esquizoide e perturbação de perso-
nalidade evitante;
• Perturbação de personalidade borderline.

Tratamento
• Psicoterapêutico – Não existe psicoterapia com evidência compro-
vadamente superior às restantes alternativas;
• Farmacológico – A evidência atual não permite recomendar a uti-
lização de psicofármacos no seu tratamento.
Não obstante, a risperidona e a olanzapina podem ser usadas e têm
alguma evidência (ainda que limitada).
Antidepressivos: todos os estudos com antidepressivos utilizaram
amostras de doentes com perturbação de personalidade esquizotí-
pica comórbida com perturbação obsessivo-compulsiva ou pertur-
bação de personalidade borderline, não permitindo tirar conclusões
em relação ao seu benefício no tratamento desta patologia.

Perturbação de personalidade antissocial


Tal como na perturbação de personalidade paranoide, esta PP tem
uma elevada prevalência na população prisional, sendo mais prevalente
nos homens.
262 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

Caracteriza-se por um padrão de indiferença ou desrespeito pelos


direitos e sentimentos de terceiros, apresentando falta de empatia e ausên-
cia de remorsos.
As alterações podem dividir-se em:
• Cognitivas – Ausência de padrões internos pró-sociais; irresponsa-
bilidade; egocentrismo; ambições e objetivos baseados em ganho
pessoal;
• Afetivas – Baixa tolerância à frustração, com irritabilidade fácil
e desproporcional ao estímulo; ausência de empatia, culpa ou
remorso;
• Comportamentais – Baixo controlo do impulso, agressividade,
manipulação.
É normalmente associada a relações pessoais superficiais, motivadas
por ganho pessoal e estabelecidas através de intimidação e coerção; ou atra-
vés de comportamentos sedutores e charmosos, de caráter manipulatório.
Possui um distintivo caráter ocupacional, com grande instabilidade
profissional e, por conseguinte, baixo sentido de responsabilidade, difi-
culdade em cumprir normas e baixa tolerância à frustração.
Têm uma impulsividade elevada e uma busca constante de novidade,
o que coloca os indivíduos com perturbação de personalidade antissocial
em situações de elevado risco, tanto para o próprio como para terceiros
(por exemplo, conduzir sob a influência de álcool ou substâncias ilícitas).
Como consequência do desrespeito pela Lei, impulsividade e tendên-
cia para a violência, a taxa de detenção de indivíduos com perturbação de
personalidade antissocial é superior à população normal.

Diagnóstico diferencial
Não existem perturbações psiquiátricas que façam diagnóstico dife-
rencial com esta perturbação de personalidade.
• Perturbação de personalidade narcísica;
• Perturbação de personalidade histriónica;
• Perturbação de personalidade borderline.
PERTURBAÇÕES DE PERSONALIDADE 263

Tratamento
• Psicoterapêutico – Focado na prevenção de novos delitos; com
possível benefício de intervenções cognitivo-comportamentais,
especialmente em contexto de grupo e em doentes com uso de
substâncias comórbido. A intervenção precoce poderá ser benéfica;
• Farmacológico – A evidência científica atual não é suficiente para
recomendar qualquer tipo de tratamento farmacológico.
No caso de perturbações psiquiátricas comórbidas, deverá ser ofe-
recido tratamento farmacológico indicado, habitualmente, para a
patologia em causa.

Perturbação de personalidade narcísica


Não existe na CID-10. No DSM-5, é caracterizada por presença de
um padrão persistente e generalizado de ideias de grandiosidade, auto-
conceito elevado e necessidade de admiração.
Alterações de âmbito:
• Cognitivas – Ausência de padrões internos pró-sociais; irresponsa-
bilidade; egocentrismo; ambições e objetivos baseados em ganho
pessoal; esquema de crenças e valores centrados do “Eu”, ideias
grandiosas e fantasias de sucesso. Ambições, objetivos e planos
condicionados pela necessidade de suscitar reconhecimento,
admiração e inveja. Autoestima flutuante e dependente de valida-
ção externa, condicionando grande vulnerabilidade. Autoconceito
idealizado e desvalorização de terceiros;
• Afetivas – Sentimentos de inveja, superioridade, desvalorização e
desprezo. Em períodos de autoestima diminuída, o humor pode ser
disfórico, com sentimentos de irritabilidade, ansiedade ou depres-
são. Dificuldade em reconhecer sentimentos, desejos e necessida-
des dos outros. Hipersensibilidade a ações que sejam interpretadas
pelo próprio como insultuosas;
• Comportamentais – Comportamentos de manipulação, superio-
ridade, condescendência ou desdém. Impaciência perante os pro-
blemas ou preocupações de terceiros.
264 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

Diagnóstico diferencial
O diagnóstico diferencial mais importante a ter em conta é a doença
afetiva bipolar.
Um episódio hipomaníaco no contexto de uma doença afetiva bipolar
pode cursar com ideias de grandiosidade e autoestima aumentada, que
também se observam numa perturbação narcísica. No entanto, as altera-
ções descritas, no contexto de uma perturbação afetiva bipolar, surgem ape-
nas durante um episódio agudo, não persistindo nos períodos intercríticos;
estas alterações associam-se também a outros sintomas, como aumento de
energia, diminuição da necessidade de dormir e impulsividade.
• Perturbação de personalidade histriónica;
• Perturbação de personalidade antissocial;
• Perturbação de personalidade borderline.

Tratamento
A ausência quase total de estudos de tratamento de perturbação de
personalidade narcísica não permite fazer recomendações em relação ao
tratamento, devendo ser seguidas as recomendações daquilo que constitui
o consenso para qualquer perturbação de personalidade.
O caráter egossintónico e as suas características nucleares de grandio-
sidade, autoconceito elevado e necessidade de admiração dificultam a
aceitação de necessidade de tratamento e o processo terapêutico, levando
a elevadas taxas de abandono de seguimento.
O diagnóstico comórbido de perturbação de personalidade narcísica
condiciona o tratamento de outras perturbações psiquiátricas, aumen-
tando a probabilidade de desistência e o tempo até à remissão sintomática.
Na abordagem ao doente com perturbação de personalidade narcí-
sica, particularmente na presença comórbida de traços antissociais/para-
noides, é importante:
• Monitorizar e gerir contra-atitude;
• Estabelecer limites, particularmente na suspeita de ganhos secun-
dários.
PERTURBAÇÕES DE PERSONALIDADE 265

Perturbação de personalidade histriónica


A característica central desta perturbação é um padrão persistente e
generalizado de emotividade excessiva e procura de atenção.
Alterações:
• Cognitivas – Elevada sugestionabilidade e dependência de tercei-
ros para regulação do autoconceito e autoestima;
• Afetivas – Superficialidade de afetos, expressão emocional exage-
rada e labilidade emocional;
• Comportamentais – Comportamentos de teatralidade e drama-
tismo, motivados por procura de atenção, que são particularmente
exagerados quando o foco da atenção não se encontra dirigido para
o próprio. Comportamentos motivados pela procura de novidade e
recompensa, com diminuição da tolerância à frustração.
O impacto interpessoal é significativo, resultando em relações super-
ficiais e instáveis, que são frequentemente obtidas com recurso à aparên-
cia física e comportamentos de sedução e/ou provocação.
Os comportamentos de teatralidade e dramatismo podem surgir em
situações marcadamente descontextualizadas, como no local de trabalho,
condicionando disfunção a nível ocupacional.
À semelhança da generalidade das perturbações de personalidade,
as alterações características da perturbação de personalidade histriónica
podem não ser aparentes para o próprio.

Diagnóstico diferencial
Também não existe nenhum diagnóstico psiquiátrico primário como
diagnóstico diferencial.
• Perturbação de personalidade borderline;
• Perturbação de personalidade antissocial.

Tratamento
A ausência quase total de estudos de tratamento de perturbação de
personalidade histriónica não permite fazer recomendações em relação
266 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

ao tratamento, devendo ser seguidas as recomendações daquilo que cons-


titui o consenso para qualquer perturbação de personalidade.

Perturbação de personalidade borderline


É a mais estudada e tem uma prevalência ao longo da vida de 5,9%.
Na população clínica, a prevalência é maior em mulheres (3:1) – i.e.,
são tratadas mais mulheres.
Na população geral, a prevalência é semelhante nos dois sexos.
A perturbação de personalidade borderline tem uma elevada expres-
são na população em seguimento psiquiátrico, superior a todas as outras.
Comorbilidade muito frequente com outras perturbações psiquiá-
tricas, especialmente: perturbações (P.) depressivas, P. do espectro da
ansiedade, P. de uso de substâncias, P. de stress pós-traumático, P. do com-
portamento alimentar e outras perturbações da personalidade.
Caracteriza-se por um padrão generalizado de emotividade intensa e
volátil, instabilidade do sentido do “Eu” e impulsividade marcada.
Relativamente às dimensões:
• Cognitiva – Sentido de identidade e de autoimagem instáveis e
pouco desenvolvidos; inconsistência de valores, objetivos, aspi-
rações e planos; autocrítica e baixa autoestima; em situações de
elevado stress, podem ocorrer episódios dissociativos ou ideação
paranoide transitória;
• Afetiva – Labilidade afetiva; ativação emocional intensa e despro-
porcional; expressão frequente de emoções disfóricas; sentimentos
crónicos de “vazio”; os doentes podem apresentar alexitimia;
• Comportamental – Impulsividade marcada, com comportamen-
tos de risco; comportamentos autolesivos, com ou sem intenção
suicida (mais em crises emocionais e de forma impulsiva);
• Interpessoal – Relações instáveis e conflituosas; alternância de
extremos entre idealização e desvalorização; medo do abandono
(real ou imaginado) com recurso a comportamentos extremos; difi-
culdade em reconhecer as necessidades e sentimentos dos outros.
PERTURBAÇÕES DE PERSONALIDADE 267

Diagnóstico diferencial
• Perturbação afetiva bipolar.
Podem envolver sintomas de instabilidade afetiva (depressão, irritabi-
lidade), impulsividade aumentada e gestos suicidas.
No entanto, os episódios de labilidade afetiva são, geralmente, espo-
letados por eventos de vida adversos; nos períodos intercríticos da per-
turbação afetiva bipolar (e na ausência de um diagnóstico comórbido
de perturbação de personalidade borderline), não se mantém o padrão
de impulsividade e instabilidade afetiva/comportamental.
O diagnóstico diferencial entre estas duas patologias é frequente-
mente difícil, particularmente quanto à distinção entre perturbação de
personalidade borderline com episódio depressivo comórbido e doença
bipolar tipo II.
Quando temos esta dificuldade, podemos perguntar: “No próprio,
está bem e está mal?” Se sim, é muito mais a favor de uma perturbação
da personalidade.
• Perturbação de personalidade histriónica;
• Perturbação de personalidade narcísica e paranoide;
• Perturbação de personalidade antissocial;
• Perturbação de personalidade dependente.

Tratamento
Psicoterapêutico
• Terapia comportamental-dialética (TCD) – Psicoterapia baseada
na terapia cognitivo-comportamental, desenvolvida especifica-
mente para perturbação de personalidade borderline e focada na
redução de sintomas, nomeadamente comportamentos autolesi-
vos e regulação emocional;
• Terapia baseada na mentalização (TBM) – Terapia psicodi-
nâmica estruturada em manual e de duração definida, que
promove a melhoria e desenvolvimento da capacidade de
mentalização;
268 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

• Terapia focada na transferência (TFT) – Terapia de orientação psi-


canalítica, que pretende trabalhar nas representações que o doente
faz de si próprio e dos outros, à medida que estas surgem na inte-
ração com o terapeuta;
• Good psychiatric management (GPM) – Terapia menos estruturada,
menos intensiva (uma sessão semanal) e generalista, tendo por base
um gestor de caso, esta terapia foca-se na resolução de problemas
de vida, com objetivo de melhorar o funcionamento social. Indi-
cada para doentes com perturbação de personalidade borderline
pouco severa e para intervenções precoces.

Farmacológico
Reservado para tratamento de doenças psiquiátricas comórbidas ou
tratamento sintomático de situações agudas. Não existe consenso quanto
ao tratamento farmacológico.
Princípios gerais:
• Evitar a polifarmácia;
• Evitar fármacos com toxicidade elevada em sobredosagem;
• Evitar fármacos com potencial de abuso ou dependência;
• Ter em conta o perfil de efeitos adversos na escolha do fármaco;
• Usar o fármaco escolhido na menor dose possível, enquanto houver
benefício clínico; apesar de as recomendações da NICE (2009)
desencorajarem a sua manutenção por mais de uma semana, a revi-
são sistemática mais recente da Cochrane (2015) conclui que há
evidência para manter tratamento farmacológico por mais tempo,
se benéfico;
• Na ausência de benefício terapêutico, descontinuar fármaco em
curso.

A revisão sistemática da Cochrane (2010) sugere que existe bene-


fício de alguns psicofármacos no tratamento de algumas dimensões
PERTURBAÇÕES DE PERSONALIDADE 269

sintomáticas específicas da perturbação de personalidade borderline,


nomeadamente:
• Alterações cognitivo-percetuais; antipsicóticos – Olanzapina e ari-
piprazol;
• Desregulação afetiva – Antipsicóticos: aripiprazol e olanzapina;
estabilizadores de humor (+++): topiramato, lamotrigina e ácido
valpróico;
• Baixo controlo do impulso e alterações comportamentais – Anti-
psicóticos: aripiprazol; estabilizadores do humor (+++): lamotri-
gina e topiramato.
Nota: a olanzapina demonstrou efeito desfavorável no tratamento
de comportamentos autolesivos e suicidários;
• Disfunção interpessoal – Antipsicóticos: aripiprazol; estabilizado-
res do humor: topiramato e ácido valpróico.

Por outro lado, a revisão sistemática mais recente conclui que a evi-
dência disponível não é suficiente para motivar a atualização de guidelines
de tratamento desta perturbação de personalidade, nem para recomendar
nenhuma classe de fármaco específica.
• Antidepressivos, incluindo a classe dos SSRI – Não existe evidên-
cia atual do seu benefício no tratamento da perturbação de perso-
nalidade borderline (não invalidando o seu uso em perturbações
comórbidas que assim o justifiquem);
• Benzodiazepinas e anti-histamínicos – As guidelines da NICE (2009)
admitem a sua utilização, pelo efeito sedativo, em contexto de crise
e numa duração não superior a uma semana – vai um pouco contra
o que se faz na prática.

Perturbação de personalidade dependente


Muito menos frequente na clínica.
Caracteriza-se por padrão de comportamento estável e generalizado,
caracterizado por uma necessidade e procura de cuidados.
270 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

Relativamente à esfera afetada:


• Cognitiva – Baixa autoestima; crenças de inadequação e inaptidão.
Objetivos mal definidos, dependentes da aprovação de terceiros;
• Afetiva – Medo de abandono e sentimentos de ansiedade ou
depressão, especialmente na ausência de figura de referência; ini-
bição da expressão de emoções negativas, como raiva, de forma a
evitar conflitos e/ou abandono;
• Comportamental – Inibição e submissão do comportamento,
motivados por medo de abandono; evitamento de situações que
exijam algum grau de autonomia; dificuldade em tomar decisões
sem ajuda de terceiros;
• Interpessoal – Relações caracterizadas por comportamentos de
submissão e apego excessivo (na adolescência, com incapacidade
de sair de casa dos pais, por exemplo);
• Ocupacional – A dificuldade em iniciar tarefas de forma inde-
pendente, motivada por sentimentos de incapacidade – resultando
em situações de evitamento/recusa de cargos de responsabilidade.

Diagnóstico diferencial
• Perturbação de personalidade borderline – Medo de abandono;
de resto, muito diferente;
• Perturbação de personalidade evitante.

Tratamento
Psicoterapêutico
Reestruturar distorções cognitivas de incapacidade e ineficiência do
“Eu” e estimular autonomia.
• Terapia comportamental;
• Terapia cognitivo-comportamental;
• Terapia psicodinâmica;
• Treino de competências sociais.
PERTURBAÇÕES DE PERSONALIDADE 271

Farmacológico
A evidência científica atual não é suficiente para recomendar qual-
quer tipo de tratamento farmacológico na perturbação de personalidade
dependente. Devido à falta de evidência científica, o recurso a psicofár-
macos deve ser evitado.

Perturbação de personalidade evitante


Tem uma prevalência estimada de 2,3%.
A perturbação da ansiedade social é a comorbilidade mais comum
(40 a 80% dos doentes com perturbação de personalidade evitante).
A perturbação de personalidade evitante caracteriza-se por um padrão
estável e generalizado de evitamento e inibição social, motivado por sen-
timentos de inadequação, medo de rejeição social, embaraço e hipersen-
sibilidade à crítica.
Observa-se uma afetação nos âmbitos:
• Cognitivo – Baixa autoestima, com crenças de inferioridade/ina-
dequação, elevada autocrítica e tendência a desvalorizar as suas
qualidades/sucessos; hipervigilância;
• Afetivo – Sentimentos de ansiedade e preocupação marcados,
relacionados com medo de rejeição e hipersensibilidade à crítica;
dificuldade em sentir prazer e interesse em diversas experiências de
vida, devido ao evitamento constante de situações potencialmente
causadoras de stress;
• Comportamental – Inibição e evitamento de situações sociais,
relações interpessoais e experiências novas.

Diagnóstico diferencial
• Perturbações de ansiedade social.
Ansiedade relacionada com situações sociais, com medo de rejeição e
embaraço, que levam a evitamento. No entanto, na PP evitante, os compor-
tamentos de evitamento são, habitualmente, mais frequentes e difusos a mais
áreas de vida/situações sociais, com maior restrição de relações interpessoais.
272 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

Pode ser bastante diferente fazer este diagnóstico diferencial;


• Perturbação de personalidade dependente;
• Perturbação de personalidade esquizoide;
• Perturbação de personalidade paranoide.

Tratamento
Psicoterapêutico
Os dois tipos de psicoterapias que demonstraram mais benefício são
a terapia cognitivo-comportamental (TCC) e a terapia focada nos esque-
mas.

Farmacológico
A evidência científica atual não é suficiente para recomendar qual-
quer tipo de tratamento farmacológico na PP evitante, embora possa ser
medicada com, por exemplo, SSRI.

Perturbação de personalidade anancástica


Também conhecida como PP obsessivo-compulsiva.
Caracteriza-se por um padrão estável e generalizado marcado por
perfecionismo rígido, motivado por uma conscienciosidade excessiva,
inflexibilidade e expressão emocional restrita.
Estão alteradas as esferas:
• Cognitiva – Esquemas de valores e crenças rígidos e inflexíveis;
conceito de identidade excessivamente ligado ao grau de produti-
vidade e expectativas altas e pouco realistas;
• Afetiva – Restrição da gama de afetos e expressão emocional;
• Comportamental – Modulação/inibição excessiva do comporta-
mento e dificuldade de adaptação a diferentes situações;
• Interpessoal – Dificuldade em manter relações afetivas estáveis,
o que resulta da existência de expectativas irrealistas acerca do
comportamento dos outros e de uma dificuldade em compreen-
der as motivações, ideias e necessidades dos outros. Estes doentes
PERTURBAÇÕES DE PERSONALIDADE 273

sentem desconforto em expressar emoções e em lidar com a expres-


são emocional dos outros, mantendo um contacto interpessoal
excessivamente formal, mesmo nas relações mais próximas;
• Ocupacional – Extremamente dedicados ao trabalho, mas o seu
rendimento profissional pode ser muito inferior ao esperado – difi-
culdade em cumprir prazos (devido a preocupações excessivas com
detalhes e/ou a dúvidas em relação à melhor abordagem a adotar)
e em trabalhar em equipa e aceitar ideias e modos de trabalhar
diferentes dos seus. Tendem a dedicar a maioria do seu tempo ao
trabalho, negligenciando (ou excluindo por completo) o tempo
dedicado a atividades de lazer.

Diagnóstico diferencial
• Perturbação do espectro do autismo – É frequente quem sofre de
autismo ter rigidez e inflexibilidade do pensamento;
• Perturbações do humor – Podem cursar com pensamentos rumina-
tivos. No entanto, numa PP obsessivo-compulsiva, as preocupações
excessivas não são necessariamente acompanhadas de depressão
do humor;
• Perturbações de ansiedade;
• POC – Apesar das semelhanças na nomenclatura, a POC distingue-
-se facilmente da PP obsessivo-compulsiva pela presença de verdadei-
ras obsessões e/ou compulsões, e caráter habitualmente egodistónico.

Tratamento
Psicoterapêutico
Terapia cognitivo-comportamental.

Farmacológico
A evidência científica atual não é suficiente para recomendar
nenhum tipo de tratamento farmacológico na PP obsessivo-compulsiva.
274 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

REFERÊNCIAS
American Psychiatric Association. (2013). Diagnostic and Statistical
Manual of Mental Disorders (DSM-5) (5.ª ed.). American Psychia-
tric Publishing.
Henrique Prata Ribeiro e André Ponte. (2018). Urgências Psiquiátricas.
Lidel.
Maria Luísa Figueira e Daniel Sampaio et al. (2014). Manual de Psiquia-
tria Clínica. Lidel.
Shorter Oxford Textbook of Psychiatry, P. Cohen, P. Harrison et al.
World Health Organization. (2019). ICD-10 - International Classification
of Diseases 10th Revision, version: 2019. Obtido de https://icd.who.int/
browse10/2019/en
16. ENVELHECIMENTO E
DECLÍNIO COGNITIVO
MANUEL GONÇALVES PEREIRA

INTRODUÇÃO – COMO USAR ESTES APONTAMENTOS


As notas que se seguem abordam o declínio cognitivo no contexto do
envelhecimento. Incluem questões ligadas ao envelhecimento “normal”,
ao defeito cognitivo ligeiro e à demência. A DSM-5 adota a terminologia
“perturbação neurocognitiva minor” e “major”, mas mantenho aqui a
nomenclatura mais habitual.
Está prestes a ser publicada a atualização da Norma Clínica da DGS
sobre esta área. Aconselho a sua leitura como referência fundamental:
inclui explicações detalhadas sobre assuntos que são apenas aflorados
aqui. Com efeito, estes apontamentos pouco valem por si próprios.
Pretendem orientar para documentos abrangentes e atualizados (a come-
çar pela Norma…), acessíveis ao clínico sobrecarregado. Comece pelas
sugestões principais, em baixo.

BIBLIOGRAFIA RECOMENDADA:

– DGS – Direção Geral de Saúde. Abordagem Terapêutica das Alterações


Cognitivas; norma de orientação clínica n.º 53/2011. https://www.dgs.pt/
directrizes-da-dgs/normas-e-circulares-normativas/norma-n-0532011-de-
27122011-jpg.aspx (acesso em 20/3/2023); a atualização da Norma (2023)
está em vias de publicação em https://normas.dgs.min-saude.pt/
– de Mendonça A, Verdelho A. Declínio cognitivo e demência. in Neurologia
Fundamental. Ferro J e Pimentel J (Eds.) 3.ª Ed. 2022. Lisboa.
– Gonçalves-Pereira M & Marques MJ (2022). Programas de intervenção psi-
cossocial validados na demência. Coordenação Nacional das Políticas de
276 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

Saúde Mental, Administração Central do Sistema de Saúde, I.P., Ministério


da Saúde. Portugal. https://doi.org/10.34619/oir0-2pba

PARA SABER MAIS – TEXTOS GENÉRICOS:

– Livingston G, Sommerlad A, Orgeta V, Costafreda SG, Huntley J, Ames D, et al.


Dementia prevention, intervention, and care. Lancet. 2017;390(10113):2673–
734. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(17)31363-6
– Livingston G, Huntley J, Sommerlad A, Ames D, Ballard C, Banerjee S,
et al. Dementia prevention, intervention, and care: 2020 report of the Lancet
Commission. Lancet. 2020; 396(10248):413-446. https://doi.org/10.1016/
S0140-6736(20)30367-6
– Verdelho A, Gonçalves-Pereira M (Eds). Neuropsychiatric symptoms of
cognitive impairment and dementia. Series: Neuropsychiatric Symptoms
of Neurological Disease. Springer; 2017. ISBN: 978-3-319-39136-6;
https://doi.org/10.1007/978-3-319-39138-0

Cada secção inclui, especificamente: 1. pontos fundamentais ou tópi-


cos para refletir; 2. referências bibliográficas para complementar, nesse
campo, as sugestões principais acima.
No final do capítulo, o leitor encontrará ainda uma lista de conteúdos/
recursos, em papel ou formato digital, com utilidade na clínica quotidiana.

CLÍNICA DAS PERTURBAÇÕES NEUROCOGNITIVAS


NO ENVELHECIMENTO
Envelhecimento normal e defeito cognitivo ligeiro
O envelhecimento das populações é uma realidade à escala mun-
dial. Os processos normais de envelhecimento devem ser distinguidos dos
quadros patológicos, nomeadamente quanto às perturbações cognitivas.
Numa pessoa de idade mais avançada, a “inteligência cristalizada”
(relacionada com competências desenvolvidas e sedimentadas ao longo
da vida) está, à partida, preservada ou mesmo otimizada. Por outro lado,
ENVELHECIMENTO E DECLÍNIO COGNITIVO 277

podemos esperar alguma diminuição da capacidade de aprender e recor-


dar informação nova, da fluência verbal (incluindo lembrar espontanea-
mente certas palavras), da velocidade de processamento e do tempo de
reação. Ocorrem queixas cognitivas (subjetivas por definição, frequentes
na depressão mas não circunscritas a ela). Quando alguém saudável em
termos cognitivos passa a apresentar défices objetivos (comprováveis por
informadores e mediante avaliação clínica), o diagnóstico poderá ainda
ser “defeito cognitivo ligeiro” (não “demência”) se mantiver autonomia
funcional. Esta entidade não evolui, necessariamente, para demência:
menos de 20% dos casos por ano.

Diagnóstico sindromático e etiológico de demência


A síndrome demencial manifesta-se por declínio em múltiplos
domínios cognitivos (incluindo memória, pensamento, linguagem,
aprendizagem, cálculo, orientação ou juízo crítico), com compromisso
do funcionamento social ou ocupacional, determinando incapacidade
relevante. No geral, corresponde à perturbação neurocognitiva major da
DSM-5, sendo tipicamente crónica e irreversível. A disfunção cognitiva
é acompanhada (ou mesmo precedida) por alterações emocionais, moti-
vacionais ou do comportamento social.
Existem diferentes tipos de demência (diagnóstico etiológico), dos
quais o mais frequente (40-80%) é a doença de Alzheimer, pura ou em
combinação. A causalidade cerebrovascular é também frequente, mas não
esqueçamos a doença de corpos de Lewy e as degenerescências lobares
frontotemporais. Para uma revisão, ver as sugestões principais de leitura.
É responsabilidade de qualquer médico: avaliar clinicamente, colocar
hipóteses e estabelecer um diagnóstico sindromático presuntivo. Serão
necessários exames imagiológicos (TAC ou RMN CE) e avaliação analí-
tica (incluindo hemograma, função tiroideia e renal, calcemia, níveis de
B12 e ácido fólico, serologia da sífilis e VIH) para excluir causas rever-
síveis/patologia secundária. Contudo, o estabelecimento do diagnóstico
etiológico implica uma avaliação neurológica e a realização de exames
278 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

complementares mais especializados. A referenciação para especialistas


impõe-se sobretudo em casos menos típicos, por exemplo em quadros de
início precoce ou com alterações psicopatológicas marcadas, dúvidas no
diagnóstico diferencial ou na intervenção terapêutica.

PARA SABER MAIS NESTE CAMPO, COMPLEMENTANDO


AS SUGESTÕES PRINCIPAIS:

Sobre questões gerais de diagnóstico e gestão da doença, com quadros-síntese


sobre as características do defeito cognitivo ligeiro e da demência (caixa 1),
fases iniciais versus avançadas de demência (quadro 1), avaliação clínica e exa-
mes complementares na suspeita de demência (caixa 2), diagnóstico diferen-
cial, clínico e patológico, das diferentes causas – Alzheimer, cerebrovascular,
doença de corpos de Lewy e demência frontotemporal (quadro 2) e – secção
seguinte – diferentes abordagens farmacológicas (quadro 3):
– Arvanitakis Z, Shah RC, Bennett DA. Diagnosis and Management of Demen-
tia: Review. JAMA – J Am Med Assoc. 2019;322(16):1589–99. doi:10.1001/
jama.2019.4782

Sobre escalas e testes validados em Portugal, para avaliação/rastreio e moni-


torização:
– GEECD-Grupo de Estudos de Envelhecimento Cerebral e Demência. Escalas e
Testes na Demência. 3.a. (Simões MR, Santana I, eds.). Novartis & GEECD; 2015.

Para além das alterações cognitivas: os “sintomas psicológicos


e comportamentais na demência” ou “neuropsiquiátricos”
Estes sintomas e alterações do comportamento ocorrem frequen-
temente e incluem: apatia, depressão, ansiedade, sintomas psicóticos
(delírios, alucinações), agitação, comportamentos sexuais inapropriados e
alterações do sono. O clínico deverá sempre tentar precisar (por exemplo,
apatia não é depressão) e intuir o seu eventual significado (por exemplo,
um “delírio” de roubo pode radicar em problemas mnésicos; um “delírio”
de prejuízo pode ter base (pelo menos parcial) na realidade.
ENVELHECIMENTO E DECLÍNIO COGNITIVO 279

PARA SABER MAIS NESTE CAMPO, COMPLEMENTANDO


AS SUGESTÕES PRINCIPAIS:

– Cerejeira J, Lagarto L, Mukaetova-Ladinska EB. Behavioral and psycho-


logical symptoms of dementia. Front Neurol. 2012; May:1–21. https://doi.
org/10.3389/fneur.2012.00073
– Martins S, Fernandes L. Delirium in elderly people: A review. Front Neurol.
2012; June:1–12. https://doi.org/10.3389/fneur.2012.00101

As relações complexas entre depressão e demência


A expressão “pseudo-demência” ainda é usada informalmente.
Designa alguns doentes com depressão “inibida” e dificuldades cogniti-
vas, incluindo de concentração, mas sem défice marcado numa avaliação
cuidadosa. Pontos sugestivos: 1) as queixas mnésicas parecem exageradas
face ao relato dum informador; 2) os sintomas de depressão assumem
maior relevância e precedem as dificuldades de memória; 3) tendência
para responder “não sei”, com menor empenho nos testes cognitivos. Veja
Birrer & Vemuri (quadro 4), em baixo, para um esquema simplificado do
diagnóstico diferencial depressão-demência.
As relações entre depressão e demência são complexas: a depres-
são pode ser reativa à situação psicossocial que a demência representa,
tal como resultar do processo orgânico cerebral (por vezes sem que o
défice cognitivo esteja ele próprio patente, ou seja, manifestando-se a
depressão como pródromo de demência); a depressão pode ainda ser
fator de risco para demência, como a investigação tornou claro nas
últimas décadas; note ainda que muitos doentes com depressão recor-
rente podem voltar a ter episódios depressivos após desenvolverem um
processo de demência.
280 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

PARA SABER MAIS NESTE CAMPO, COMPLEMENTANDO


AS SUGESTÕES PRINCIPAIS:

Sobre diagnóstico diferencial e relações entre depressão e demência:


– Alves da Silva J, Gonçalves-Pereira M, Xavier M, Mukaetova-Ladinska EB.
Affective disorders and risk of developing dementia: Systematic review.
British Journal of Psychiatry, 2013; 202: 177-86. https://doi.org/10.1192/bjp.
bp.111.101931
– Birrer & Vermuri. Depression in later life: A diagnostic and therapeutic chal-
lenge. Am Fam Physician, 2004; 004; 69(10):2375-2382. https://www.aafp.
org/pubs/afp/issues/2004/0515/p2375.html
– Gonçalves-Pereira M. Depresión y demencia: Relaciones complejas. Informa-
ciones psiquiátricas, 2020; 239(1): 83-90. http://informacionespsiquiatricas.
com/informe239/files/assets/basic-html/page-83.html

DADOS EPIDEMIOLÓGICOS COM RELEVO NA PRÁTICA CLÍNICA


A prevalência da demência aumenta claramente após os 60 anos.
Os dados diferem na comunidade, em cuidados primários ou estruturas
residenciais. O World Alzheimer Report 2015 apresentou dados muito
relevantes. Na maioria das regiões do mundo, a prevalência em pessoas
com 60+ anos situa-se entre 5,6 e 7,6%. Independentemente do debate
sobre as tendências na evolução temporal da incidência e prevalência,
o número de pessoas com demência deverá continuar a aumentar devido
ao envelhecimento das populações.
Em Portugal, a FCM-UNL conduziu um estudo de base comunitária
sobre doenças neuropsiquiátricas do idoso, no Sul do país. Foram estu-
dadas duas amostras, uma urbana e outra rural (n=1405), segundo crité-
rios DSM-IV e 10/66 para demência, e critérios ICD-10 e EURO-D para
depressão geriátrica. Está disponível uma estimativa da prevalência pelo
método 10/66 Dementia Research Group (consulte Gonçalves-Pereira
et al, 2017). Havendo outros dois estudos de campo, no Norte, as discrepân-
cias nos resultados destes trabalhos devem-se em grande parte a diferenças
metodológicas (p. ex.: desenho, amostragem, critérios diagnósticos).
ENVELHECIMENTO E DECLÍNIO COGNITIVO 281

Para os nossos resultados sobre a depressão geriátrica e o papel da


demência como fator de risco, veja Gonçalves-Pereira et al (2019).
A prevalência de depressão clinicamente significativa foi 18.0 (IC95%
16.0-20.1), sendo os episódios ICD-10 menos frequentes. Deve notar que
estes resultados não são generalizáveis à população portuguesa, ainda que
importantes para planeamento dos serviços.
Existem atualmente em Portugal mais de 200 mil pessoas com
demência na comunidade, excluindo os residentes em lares ou noutras
instituições (veja Gonçalves-Pereira et al, 2021 ou Nichols et al, 2022).
Prevê-se que este número seja de 350 mil pessoas em 2050.

PARA SABER MAIS NESTE CAMPO, COMPLEMENTANDO


AS SUGESTÕES PRINCIPAIS:

Sobre epidemiologia da demência e carga global de doença em Portugal e


no mundo:
– Costa J, Borges M, Encarnação R, Firmino H, Gonçalves-Pereira M, Lindeza P,
et al. Custo e Carga da Doença de Alzheimer nos Idosos em Portugal. Sinapse.
2021;21(4):201–11. https://doi.org/10.46531/sinapse/ao/210055/2021
– Gonçalves-Pereira M, Cardoso A, Verdelho A, Alves da Silva J, Caldas de
Almeida M, Fernandes A, et al. The prevalence of dementia in a Portu-
guese community sample: a 10/66 Dementia Research Group study. BMC
Geriatrics. 2017;17(1):261. https://doi.org/10.1186/s12877-017-0647-5
– Gonçalves-Pereira M, Prina M, Cardoso AM, Alves da Silva J, Prince M,
Xavier M. The prevalence of late-life depression in a Portuguese commu-
nity sample: A 10/66 Dementia Research Group study. J Affect Disord. 2019;
246:674–81. https: //doi.org/10.1016/j.jad.2018.12.067
– Gonçalves-Pereira M, Verdelho A, Prina M, Marques MJ, Xavier M. How many
people live with dementia in Portugal? A discussion paper of national estima-
tes. Port J Public Health. 2021;39(1):58-67. https://doi.org/10.1159/000516503
– Nichols E, Steinmetz JD, Vollset SE, Fukutaki K, Chalek J, Abd-Allah F, et al.
Estimation of the global prevalence of dementia in 2019 and forecasted pre-
valence in 2050: an analysis for the Global Burden of Disease Study 2019.
Lancet Public Health. 2022;7(2):e105–25. https://doi.org/10.1016/S2468-
2667(21)00249-8
282 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

ABORDAGEM TERAPÊUTICA E DE CUIDADOS


Pontos genéricos, com importância para qualquer médico:
• O trabalho deverá ser desenvolvido em equipa multidisciplinar e
implica avaliações e intervenções domiciliárias;
• A responsabilidade do clínico prende-se tanto com a prescrição
farmacológica como com a não farmacológica – em regra, a inter-
venção não farmacológica é prioritária;
• A prescrição farmacológica deve ser cautelosa (efeitos adversos,
interações; contraindicações, alterações da farmacocinética e
polifarmácia; a adesão aos tratamentos pode ser menor por défice
cognitivo ou visual, principalmente se a pessoa viver só). As prescri-
ções devem ser revistas regularmente e mantidas na dose mínima
possível;
• O caráter crónico da patologia e a idade por si não são razão para
desinvestimento em qualquer terapêutica, incluindo nas psicote-
rapias, intervenções familiares ou terapias cognitivas (e.g. reminis-
cência). A intervenção neuropsicológica é conjugável com outras
intervenções psicossociais (e.g. terapia ocupacional, apoio domi-
ciliário);
• Deverá informar-se da existência de programas de dia (para esti-
mulação/interação social; componente de alívio) e das possibili-
dades de transporte. É crucial a articulação entre serviços clínicos
e sociais (apoio domiciliário, cuidados continuados, estruturas
comunitárias), em colaboração com o terceiro setor/voluntariado.
Há também necessidade frequente de cuidados hospitalares/resi-
denciais a longo prazo;
• A propósito de todos os pontos seguintes, consulte a Norma da
DGS (atualização de 2023).
ENVELHECIMENTO E DECLÍNIO COGNITIVO 283

Fármacos de uso específico na demência


e intervenções não farmacológicas no campo cognitivo
Os fármacos “antidemenciais” específicos têm indicação, sobretudo,
na doença de Alzheimer, embora possam ser considerados noutras situa-
ções. Falamos dos inibidores das colinesterases (donepezilo, galantamina,
rivastigmina) e da memantina:
• Na demência vascular, proceder sobretudo ao controlo dos fatores
de risco vascular;
• Na demência de corpos de Lewy e da doença de Parkinson, consi-
derar inibidores das colinesterases (rivastigmina);
• Na demência frontotemporal, os inibidores das colinesterases não
têm efetividade documentada e podem até ser prejudiciais;
• No défice cognitivo ligeiro, não há evidência de efetividade para
estes fármacos.
O objetivo da terapêutica será diminuir a velocidade de progressão
do declínio cognitivo. É geralmente bem tolerada, mas convém conhe-
cer os efeitos adversos e contraindicações. Deve ser monitorizada, não
apenas pelo neurologista ou psiquiatra, mas também pelo médico gene-
ralista (por exemplo, alterações intestinais ou bradicardia no decurso
de terapêutica com colinérgicos). Consulte as sugestões principais de
leitura.
Existem também formas de intervenção não farmacológica com
foco nas funções cognitivas (estimulação, treino e reabilitação cogni-
tiva). Para terem resultados, devem ser conduzidas por profissionais
com formação específica e seguir as orientações dos manuais/estudos
de validação. Em Portugal, várias equipas têm desenvolvido trabalho
importante nesta área, como no caso do programa “Fazer a diferença”
(em baixo). Consulte também novamente: Gonçalves-Pereira & Mar-
ques (2022), ou “Cognitive and psychological interventions in neuro-
cognitive disorders” no livro Neuropsychiatric symptoms of cognitive
impairment and dementia (2017).
284 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

PARA SABER MAIS NESTE CAMPO, COMPLEMENTANDO


AS SUGESTÕES PRINCIPAIS:

– Álvares-Pereira G, Vicente S, Sousa I, Nunes MV, Meireles L. Fazer a dife-


rença | Making a difference. Manual para dinamizadores. Universidade
Católica Portuguesa, Lisboa, 2020. ISBN: 9789725406830.

Abordagem dos sintomas neuropsiquiátricos


e intervenções com famílias
Como vimos, as alterações neuropsiquiátricas na demência são múl-
tiplas, complexas e frequentes. Assim, nenhuma solução é perfeita ou
aplicável de forma indiscriminada. Qualquer abordagem deve adequar-se
ao doente, à sua situação e à família.
As intervenções não farmacológicas devem ser privilegiadas, embora a
intervenção farmacológica possa ser prioritária nalguns casos (por exemplo,
psicose ou agressividade com risco elevado, ou depressão major). Se for
necessário medicar, podem considerar-se antipsicóticos e antidepressivos
(além dos fármacos já descritos), sempre tentando a dose mais baixa pos-
sível, no tempo mais curto possível. Geralmente, estas terapêuticas têm
efeitos limitados e, no caso dos antipsicóticos, associam-se a morbilidade
(ou até mortalidade) considerável. De qualquer forma, antes de iniciar
qualquer tratamento farmacológico, é preciso:
• Proceder ao exame do estado mental: existe psicopatologia rela-
cionada com os sintomas (delirium, psicose, depressão)? Avaliar o
risco para o próprio e para outros;
• Despistar fatores causais, ou contribuintes, muitas vezes tratáveis
(ex.: infeção urinária/respiratória menos evidente, dor isquémica/
osteoarticular/escaras, obstipação/fecaloma, défices sensoriais,
desidratação, reações de frustração, outras necessidades somáticas,
psicológicas ou sociais não preenchidas);
• Considerar o relato dos cuidadores (formais e informais) e o
impacto dos sintomas sobre eles. Por vezes os sintomas representam
ENVELHECIMENTO E DECLÍNIO COGNITIVO 285

problema maior para o cuidador que para o doente, o que levanta


questões éticas e práticas;
• Tentar compreender o significado do sintoma/comportamento
para o doente: será uma forma de tentar expressar dificuldades?
Muitas vezes, o quadro neurocognitivo dificulta a verbalização, daí
advindo uma tradução comportamental para a qual a terapêutica
farmacológica imediata não é a melhor opção;
• Lembrar os princípios dos “cuidados centrados na pessoa”. Deter-
minados ambientes ou atitudes podem ser sentidos como agressivos
ou assustadores para o doente, muitas vezes de forma inadvertida
para quem está à volta;
• Tentar atuar no ambiente físico ou social (ex.: reduzir o barulho/
estimulação, controlar a temperatura ambiente, áreas livres para
andar de forma protegida); intervenções psicossociais, eventual-
mente combinadas: reforço diferencial, massagem, exercício,
música personalizada, trabalho com as famílias;
• Lembrar que os sintomas são geralmente flutuantes: monito-
rizar.
O “protocolo” DICE (Describe, Investigate, Create, Evaluate), de
Kales et al (em baixo) exemplifica um esquema útil para guiar o racio-
cínio clínico nestas situações. Ilustra também a impossibilidade de não
considerar a família a este propósito: entre as intervenções com maior
fundamento científico encontram-se as que envolvem as famílias e os
cuidadores informais.
Ter atenção aos familiares significa “ajudar a ajudar”, tendo em conta
as suas necessidades próprias, muitas vezes indissociáveis das do doente.
Os problemas relacionados com a demência (por exemplo, incontinência
ou alterações comportamentais) implicam risco de sobrecarga familiar,
objetiva e/ou subjetiva, sendo necessário equacionar: apoio geral, cuida-
dos de alívio, orientação para associações/grupos de entreajuda, suporte
psicoterapêutico, psicoeducação familiar e, nalguns casos, alguma forma
de terapia com a família.
286 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

No que toca ao papel do médico nestas intervenções, há que distinguir:


intervenções estruturadas (exigindo preparação específica, geralmente
conduzidas por outros profissionais – psicólogos, enfermeiros –
enquadradas na equipa multidisciplinar) e intervenções mais simples,
mas não menos importantes, possíveis com algum conhecimento e treino
ao nível de qualquer especialidade médica. Para ter uma ideia destas
últimas, consultar “Toward a Family-Sensitive Practice in Dementia”
em Neuropsychiatric symptoms of cognitive impairment and dementia
(uma das sugestões principais de leitura), que inclui a discussão de um
caso em Medicina Geral e Familiar e dicas sobre como avaliar e intervir.
Seguem-se questões levantadas nesse capítulo quanto à gestão das altera-
ções neuropsiquiátricas no contexto da família:
1. Precisar quais as alterações (e.g., depressão, apatia, sintomas
psicóticos, inquietação psicomotora). Necessário contextualizar
(e.g., duração, predisponentes, precipitantes, perpetuantes, con-
sequências) para tentar compreender um eventual significado.
2. Quem é o doente, enquanto pessoa com uma história de vida
particular?
3. Como é/está a família? Quem é o familiar cuidador principal?
Como é/está? Quem mais estará disponível ou em risco? Os fami-
liares não são apenas informadores ou cuidadores – são pessoas
com necessidades próprias, por vezes também doentes.
4. O que se pode/deve fazer em termos não farmacológicos?
• Dependendo directamente de mim, como médico? Depen-
dendo de outros médicos? Como articular?
• Dependendo de outros colegas, profissionais de saúde ou da
área social? Como articular?
• É impossível não considerar a família…
Informar não chega. É preciso compreender e ajudar a
desenvolver aptidões
As intervenções com famílias podem não ser apenas em gru-
pos psicoeducativos. O que será mais indicado?
ENVELHECIMENTO E DECLÍNIO COGNITIVO 287

Antes (e depois) de orientar um familiar para eventual apoio,


o que posso eu fazer?
5. O que se pode/deve fazer em termos farmacológicos?
6. Quando e como reavaliar?

PARA SABER MAIS NESTE CAMPO, COMPLEMENTANDO


AS SUGESTÕES PRINCIPAIS:

Sobre a abordagem geral dos sintomas neuropsiquiátricos:


– Kales HC, Gitlin LN, Lyketsos CG. Assessment and management of behavio-
ral and psychological symptoms of dementia. BMJ. 2015;350:h369-h369.
doi:10.1136/bmj.h369

Sobre intervenções psicossociais, com enfoque nas intervenções com famílias:


– Gonçalves Pereira M, Mateos R. A família e as pessoas com demência:
Vivências e necessidades dos cuidadores. In H. Firmino, J. Barreto, L. Cor-
tez Pinto, A. Leuschner (Eds): Psicogeriatria, 2006 (pp 541-560). Coimbra,
Edições Psiquiatria Clínica. ISBN: 989-20-0314-4. (acessível em Research
Gate)
– Gonçalves-Pereira M, Sampaio D. Trabalho com famílias em psiquiatria
geriátrica. Acta Med Port. 2011;24(Suppl.4):819-826. https://www.acta
medicaportuguesa.com/revista/index.php/amp/article/view/1589
– Zhang F, Cheng ST, Gonçalves-Pereira M. Factors contributing to protection
and vulnerability in dementia caregivers. In: Martin CR, Preedy V (editors).
The Neuroscience of dementia, Vol 2: Genetics, Neurology, Behavior, and
Diet in Dementia (first edition). Academic Press, Elsevier, London. 2020
(pp. 709-722).

Papel do médico não especialista em demências


e dos cuidados de saúde primários
A demência não é um assunto apenas para neurologistas e psiquiatras,
mas para qualquer clínico. Os motivos são óbvios e a leitura da secção
anterior reforça-os.
288 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

Acresce que, na prevenção primária, é também fundamental a inter-


venção de médicos de família, internistas e outros profissionais de saúde.
É necessário diminuir o risco em termos de: nível educacional, hiperten-
são, diabetes, obesidade, sedentarismo, tabagismo, álcool, depressão, isola-
mento social, défice auditivo, traumatismos cranioencefálicos, poluição.
Lembro as leituras aconselhadas, em especial a Norma da DGS.
Sobre as razões para melhor articulação entre especialidades e níveis de
cuidados, e sobre as dificuldades com que se confrontam os cuidados
de saúde primários a este nível, ver também em baixo.

PARA SABER MAIS NESTE CAMPO, COMPLEMENTANDO


AS SUGESTÕES PRINCIPAIS:

– Gauthier et al. World Alzheimer Report 2021: Journey through the diag-
nosis of dementia. London, England: Alzheimer’s Disease International.
https://www.alzint.org/resource/world-alzheimer-report-2021/
– Gauthier et al. World Alzheimer Report 2022. Life after diagnosis: Navi-
gating treatment, care and support. London, England: Alzheimer’s
Disease International. https://www.alzint.org/resource/world-alzheimer-
report-2022/
– Verdelho A, Gonçalves-Pereira M. Management of vascular risk factors in
dementia. In: Frideriksen KS, Waldemar G (Eds.). Management of patients
with dementia: The role of the physician. Springer, Cham; 2021 (pp. 155-
-178). https://doi.org/10.1007/978-3-030-77904-7_8

Especificamente sobre demência e cuidados de saúde primários:


– Balsinha et al. Healthcare delivery for older people with dementia in primary
care. In: de Mendonça-Lima C, Ivbijaro G, editors. Primary Care Mental
Health for Older People (pp: 311-329. Springer, Cham. 2019. ISBN: 978-3-
030-10812-0 (Print). https://doi.org/10.1007/978-3-030-10814-4_23
– Balsinha et al. Dementia and primary care teams: obstacles to the
implementation of Portugal’s Dementia Strategy. Primary Health-
care Research & Development. 2022; 23: e10. https://doi.org/10.1017/
S1463423621000876
ENVELHECIMENTO E DECLÍNIO COGNITIVO 289

PARA RECOMENDAR A DOENTES, FAMILIARES


E CUIDADORES FORMAIS OU PÚBLICO EM GERAL
Livros
Antunes A, Valverde A, Pombo C, Alvarez C, Gameiro C, Pimentel E,
Sousa I, Varandas P. Estimulação global da pessoa com demência –
um auxiliar para cuidadores informais. Câmara Municipal de Sintra,
2022.
Mota Pinto A, Veríssimo M, Malva J (Eds). Envelhecimento ativo e sau-
dável – Manual do Cuidador. Imprensa da Universidade de Coimbra;
Coimbra, 2019. https://doi.org/10.14195/978-989-26-1851-7
Nóbrega C, Morgado J, Ferreira J, Vitorino, ML. Manual do cuidador da
pessoa com demência. CNS – Campus Neurológico; Lisboa, 2022.
ISBN: 9789895475728.
Verdelho A, Santa-Clara H (Coords). Toca a mexer, o seu cérebro agra-
dece – Manual de exercícios para melhorar a sua saúde cerebral – o
projecto AFIVASC. LIDEL; Lisboa, 2021. ISBN: 9789897525469.

Recursos úteis na internet


ADI – Alzheimer’s Disease International: https://www.alzint.org/ (acesso
em 20/3/2023)
APFADA/Alzheimer Portugal: Manual do Cuidador (2.ª edição, 2006):
https://biblioteca.sns.gov.pt/artigo/manual-para-cuidar-da-pessoa-
com-demencia/ (acesso em 20/3/2023)
Alzheimer Portugal: https://alzheimerportugal.org/ (acesso em 20/3/2023)
iSupport – apoiar na demência: https://isupport.icbas.up.pt/home (acesso
em 20/3/2023)
Programa RHAPSODY de informação e suporte a cuidadores de pessoas
com demência (de Mendonça e col): https://www.young-dementia-
guide.pt/ (acesso em 20/3/2023)
WHO – World Health Organization: https://www.who.int/news-room/
fact-sheets/detail/dementia (acesso em 20/3/2023)
17. DOENÇA MENTAL PERINATAL
ADRIANA MOUTINHO

A saúde, conforme a definição da Organização Mundial de Saúde,


é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste
apenas na ausência de doença. Isto também é válido para a saúde mental
materna.
O período perinatal abrange o período que vai desde a conceção até
ao primeiro ano de vida da criança. A doença mental perinatal é muito
comum. Entre 10-20% das mulheres vão desenvolver uma doença men-
tal durante a gravidez ou no primeiro ano após o parto. A maioria das
mulheres desenvolverá doença ligeira a moderada, mas outras poderão
desenvolver doença mental grave ou ter uma exacerbação de uma doença
mental grave preexistente. Além de muito prevalentes, acarretam em si
um grande impacto e stress para a mulher, mas também para a família
e, sobretudo, para a criança nos primeiros anos da sua vida (que são os
pilares do seu desenvolvimento social e emocional). Está ainda associada
ao aumento do risco de suicídio, que é uma das principais causas de
morte materna.
Cerca de 90% das mulheres com o diagnóstico de doença men-
tal perinatal são tratadas nos cuidados de saúde primários e, mesmo
quando existe indicação para acompanhamento por Psiquiatria, na maio-
ria das vezes o seu primeiro contacto não é com o serviço de Psiquiatria e
Saúde Mental, mas sim com a Medicina Geral e Familiar, Ginecologia-
-Obstetrícia ou Pediatria.
Assim, é importante saber identificar, referenciar e tratar precoce-
mente, uma vez que isso melhora o prognóstico.
292 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

PROBLEMAS NA DETEÇÃO PRECOCE POR MÉDICOS


NÃO PSIQUIATRAS
• Pouco treino em doença mental;
• Falha em reconhecer sinais e sintomas;
• Separação “orgânico” vs. “mental”;
• Tendência para desvalorizar sintomas;
• Viés pessoal;
• Estigma;
• Mitos associados à doença mental, no geral, e à doença mental, na
fase da gravidez e do puerpério;
• Dificuldades na articulação entre serviços de cuidados de saúde
primários, maternidade e Psiquiatria e saúde mental;
• Manuais de classificação das doenças são confusos e pouco con-
sensuais.

Categorização própria; início dos sintomas até seis semanas após


CID-10 o parto; não inclui o período gestacional; utiliza a terminologia
pós-parto.
Agrupa num capítulo autónomo as “perturbações mentais e com-
CID-11 portamentais associadas à gravidez, gestação e puerpério”; pas-
sou a incluir a gravidez, aproximando-se da definição da DSM-5.
Sem categorização própria; aparece como especificador; início
DSM-5 dos sintomas da gestação até quatro semanas após o parto; utiliza
terminologia periparto.

Na verdade, na prática clínica e na maioria dos estudos que se fazem


nesta área, considera-se um período diferente, que se estende da gestação
até um ano após o parto, podendo os sintomas ter início além das 4-6
semanas após o parto. Desta forma, os manuais oficiais que norteiam a
prática clínica não refletem o que nesta se faz.
Por outro lado, tende-se a associar a maternidade a uma fase que
tem necessariamente de ser sinónima de felicidade. De uma forma geral,
as mulheres têm pudor em verbalizar que não estão bem e não estão a
DOENÇA MENTAL PERINATAL 293

vivenciar a gravidez e a maternidade como experiências positivas, pois


consideram que não é o expectável, que podem ser apontadas como
“falhadas” ou como “más mães”. Isto também contribui para o atraso no
diagnóstico e tratamento da doença mental perinatal.

EFEITOS DA GRAVIDEZ NO CÉREBRO MATERNO


A maternidade é um evento que altera a vida da mulher, afetando
as esferas social, psicológica e biológica. Como é sabido, durante a gra-
videz a mulher passa por uma série de adaptações biológicas que, na
sua maioria, são desencadeadas por uma cascata de hormonas sexuais.
Verificam-se níveis de estrogénio e progesterona muito elevados, mais
do que em qualquer outra fase da vida da mulher, e que influenciam a
neuroplasticidade, a neuroinflamação e o comportamento. Assim, não é
de estranhar que ocorram alterações no funcionamento cerebral durante
a gravidez e maternidade.
Existem estudos em animais que demonstraram que a reprodução
está associada a alterações neuronais a vários níveis, nomeadamente na
morfologia neuronal, na proliferação celular e na expressão génica. Estas
alterações parecem ser duradouras ao longo da vida, havendo evidência de
diferenças no cérebro e no comportamento entre nulíparas e fêmeas que
já tiveram crias. Outros estudos que compararam a anatomia do cérebro
humano em mulheres antes da conceção e no pós-parto documentaram
reduções consistentes do volume da substância cinzenta em determinadas
áreas cerebrais, o que levanta questões importantes: qual o impacto des-
sas alterações cerebrais no comportamento? Em que medida é que estas
alterações são transitórias? Se são duradouras, quanto tempo se mantêm?
Poderão ser irreversíveis? Ainda não é claro se o volume cerebral retorna aos
níveis prévios à gravidez, porque faltam estudos longitudinais a longo prazo.
Numa tentativa de dar resposta a algumas destas questões, Hoekzema
e colegas (Nature Neuroscience 2017) propuseram-se avaliar longitu-
dinalmente durante dois anos os cérebros de primíparas comparando-
-os com os cérebros de nulíparas. Os autores observaram uma redução
294 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

significativa de volume na substância cinzenta em determinadas áreas


cerebrais, sobreponível em todas as mulheres grávidas avaliadas e que
permitia identificá-las com uma precisão de 95,6% apenas com base nas
imagens cerebrais. As alterações cerebrais mais preditivas foram as dos
córtex temporal médio direito, frontal inferior e cingulado posterior. Estas
alterações não foram observadas nos pais, apenas nas mães, e foram asso-
ciadas a uma maior vinculação da mãe com o bebé. No follow-up aos dois
anos, os autores constataram que as alterações do volume da substância
cinzenta se mantinham e continuavam a ser preditivas de maior vincula-
ção materna pós-natal. Estas regiões cerebrais afetadas correspondiam ao
substrato neuronal da teoria da mente (papel na cognição social), o que
foi sugerido como uma vantagem adaptativa da maternidade, por facilitar
o reconhecimento pela mãe das necessidades da criança e se um determi-
nado estímulo social é perigoso ou ameaçador. Em 2021, o mesmo grupo
publicou um novo estudo para avaliar se estas alterações se mantinham
ao final de seis anos. Apesar de ser um estudo com muitas limitações,
nomeadamente pelo tamanho reduzido da amostra, foi possível observar
que a maioria das alterações persistia seis anos após o parto e continuava a
ser possível classificar as mulheres em nulíparas ou que já tinham estado
grávidas com uma precisão de 91,67%.
Por outro lado, evidência emergente sugere que o próprio processo
de envelhecimento da mulher pode ser influenciado pela gravidez e pela
maternidade. Isto porque se vê que uma maior paridade está associada a
um alongamento dos telómeros na mulher e aumento de neurogénese
do hipocampo em ratos de meia-idade. As alterações endócrinas indu-
zidas pela paridade também parecem influenciar a resposta cerebral às
hormonas sexuais em fases mais avançadas da vida.

STRESS MATERNO E NEURODESENVOLVIMENTO FETAL


Durante a gestação, o feto é sensível aos stressors do ambiente, que
podem ter impacto no desenvolvimento e maturação com consequências
ao longo da sua vida. Há evidência que o stress materno pode aumentar
DOENÇA MENTAL PERINATAL 295

o risco de a descendência desenvolver doenças cardiovasculares, meta-


bólicas e neuropsiquiátricas.

Hipóteses de vias de o stress materno afetar o desenvolvimento fetal:


1. Aumento dos níveis de citocinas, que atravessam a barreira pla-
centária e ativam a resposta imune fetal, levando a neuroinfla-
mação;
2. Alterações da homeostase do triptofano, que podem influenciar
a maturação cerebral;
3. Falência dos mecanismos enzimáticos da placenta, que normal-
mente protegem o feto de níveis elevados de cortisol materno;
4. O stress aumenta também os níveis de catecolaminas que, embora
não atravessem a placenta, parecem ter impacto através de meca-
nismos indiretos de vasoconstrição do útero e da placenta, com
redução da perfusão útero-placentária e consequente redução do
crescimento do feto e até parto prematuro;
5. O próprio stress oxidativo pode ter impacto no desenvolvimento
cerebral através de mecanismos de apoptose e neurotoxicidade
de radicais livres;
6. O stress altera a microbiota vaginal, que por sua vez pode alterar
o desenvolvimento do eixo intestino-cérebro do feto.

EPIDEMIOLOGIA
Estas alterações dinâmicas que afetam o cérebro da mulher durante a
gravidez e maternidade parecem ser, em certa medida, adaptativas. Para-
lelamente a uma vantagem adaptativa, parecem também conferir uma
maior vulnerabilidade para o desenvolvimento de uma doença mental.
O pós-parto imediato é um período de particular risco para novos epi-
sódios ou para a recorrência de doença mental, em especial de doença
mental grave.
• Estima-se que uma a duas em cada 1000 mulheres necessitem de
internamento nos primeiros meses após o parto;
296 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

• A probabilidade de internamento psiquiátrico nos meses após o


parto vs. antes da gravidez é 22 vezes superior, mesmo em mulheres
sem história de doença mental prévia;
• As revisões sistemáticas estimam uma prevalência global de doença
mental perinatal de 10% na gravidez e 13% no pós-parto (mais alto
nos países em desenvolvimento);
• As doenças mentais perinatais mais comuns são a depressão e a
ansiedade (com uma prevalência de 12 e 13%, respetivamente,
durante a gravidez e de 15-20% no pós-parto);
• Até cerca de 50% dos episódios depressivos no pós-parto tem início
antes do parto;
• As mulheres que têm história de depressão prévia têm um maior
risco depressivo durante a gravidez;
• Das mulheres que têm história de perturbação afetiva bipolar, 20%
terão um episódio agudo durante a gravidez, sendo que, durante a
gravidez, os episódios mais frequentes são os depressivos e mistos;
• A psicose é muito menos comum, mas há um risco maior nesta fase
da vida da mulher, sobretudo se a mulher apresentar um diagnós-
tico de perturbação afetiva bipolar tipo I, embora também possa
acontecer a uma mulher sem história psiquiátrica prévia. Estima-se
que a prevalência seja de uma a duas em cada 1000;
• O suicídio é uma importante causa de morte materna no período
perinatal, sendo drasticamente maior em mulheres com doença
mental grave.

IMPACTO ECONÓMICO
Um estudo conduzido por um centro de saúde mental no Reino
Unido em conjunto com a London School of Economics estimou que
os problemas de saúde mental perinatal acarretam um custo total de
8,1 mil milhões de libras por cada coorte de nascimento por ano no Reino
Unido, o que equivale a cerca de 10 mil libras por cada nascimento no
país. Curiosamente, destes custos, quase 3/4 estão relacionados com os
DOENÇA MENTAL PERINATAL 297

impactos na criança. Este estudo de impacto económico também repor-


tou que o NHS teria de gastar apenas 337 milhões de libras por ano para
elevar os cuidados de saúde mental perinatal para o nível recomendado
pelas orientações nacionais. Ou seja, o impacto económico é tão grande
que mesmo uma melhoria modesta como resultado do investimento em
melhores serviços seria o suficiente para justificar o dito investimento.

PERTURBAÇÕES MENTAIS PERINATAIS


• Perturbações depressivas
As perturbações depressivas são muito comuns durante a gravidez e
no pós-parto e de uma forma geral têm as mesmas características que as
perturbações depressivas fora do período perinatal. Uma particularidade é a
presença de sintomas somáticos, que apesar de poderem resultar de altera-
ções fisiológicas normais da gravidez e pós-parto, parecem ser mais comuns
em mulheres com depressão do que nas outras no período perinatal;
• Perturbações ansiosas
Existem poucos estudos acerca das perturbações de ansiedade isoladas
no período perinatal, visto terem elevada comorbilidade com outras per-
turbações, em particular com a depressão. Uma meta-analise reportou um
risco aumentado de perturbação obsessivo-compulsiva nas mulheres grávi-
das e no pós-parto. Existe também um aumento do reconhecimento de per-
turbação de stress pós-traumático perinatal, eventualmente desencadeado
por experiências traumáticas durante a gravidez e/ou parto ou por even-
tos traumáticos prévios à concepção. Ainda assim, a prevalência é baixa,
e aparentemente a maioria das mulheres experiencia sintomas subclínicos;
• Perturbações de comportamento alimentar
São perturbações raras durante a gravidez, excepto o binge eating, que
é relativamente comum. Numa mulher com história prévia, os sintomas
podem persistir durante a gravidez e aumenta o risco de depressão pós-
-parto;
• Perturbações da função sexual;
• Perturbações da personalidade;
298 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

Pouco estudadas no período perinatal. É relevante o facto de serem


frequentemente comórbidas com outras doenças mentais, tal como a
depressão. A evidência existente sugere que estão associadas a um risco
aumentado de resultados adversos e uma fraca resposta ao tratamento;
• Perturbações do uso de substâncias psicoativas;
• Perturbação afetiva bipolar;
• Esquizofrenia e outras perturbações psicóticas;

O “baby blues” não é classificado como uma doença mental, mas é


muito relevante por ser extremamente frequente. Caracteriza-se por um
conjunto de sintomas, normalmente ligeiros, transitórios e com pouco
impacto funcional (fadiga, ansiedade, irritabilidade, alterações do sono,
dificuldade em manter a atenção e concentração) que surgem nos pri-
meiros dias após o parto e têm uma duração inferior a 15 dias, na maior
parte das vezes apresentando remissão espontânea.
A doença mental grave pode ocorrer no período pós-parto como uma
continuação de uma perturbação psicótica crónica que começou antes
da gravidez ou como um episódio de novo, que normalmente tem início
rápido e pouco tempo depois do parto, que é o que se designa por psicose
pós-parto. Apesar de as classificações de doenças actuais (ICD e DSM)
não reconhecerem esta entidade clínica, o termo psicose pós-parto ou
psicose puerperal continua a ser usado amplamente na prática clínica.

Psicose pós-parto
Caracteriza-se por:
• Delírios;
• Alucinações;
• Perplexidade;
• Confusão;
• Flutuações de humor;
• Ansiedade;
• Insónia;
• Agitação/comportamento bizarro.
DOENÇA MENTAL PERINATAL 299

A maioria tem início até às duas semanas após o parto (> 50% tem iní-
cio 1-3 dias após). Apresenta normalmente um início súbito, com deterio-
ração rápida, sendo frequentes as flutuações na intensidade dos sintomas.
Há um maior risco associado nas mulheres com diagnóstico de
doença bipolar, se psicose pós-parto prévia (> 50%), história familiar de
psicose pós-parto.
Quando falamos de um quadro de psicose pós-parto, este pode ocor-
rer no contexto de várias doenças psiquiátricas: episódio maníaco, episó-
dio misto, depressão psicótica, etc. Da mesma forma, pode ocorrer em
doenças sistémicas ou do sistema nervoso central comuns no pós-parto e
que podem surgir acompanhadas com sintomas psicóticos, pelo que são
importantes de excluir, nomeadamente eclâmpsia, delirium, patologia
tiroideia, infeção, autoimune.
Como comentado previamente, o risco de suicídio é um fator de
preocupação e o período de maior risco parece ser entre o 9.º e 12.º mês
após o parto.

Fatores de risco para doença mental perinatal

• Idade jovem • Psicopatologia prévia (perinatal


• Suscetibilidade genética e hormonal ou não)
• Fatores neuroimunes • Abuso de substâncias psicoativas
• Doenças crónicas/não psiquiátricas • Baixa autoestima
• Complicações obstétricas (parto pré- • Traços vulneráveis de personalidade
-termo, baixo peso, multiparidade,
gravidez de risco e/ou não planeada...)
Biológicos (elevado neuroticismo)
• Falta de estratégias adaptativas
• História familiar de doença
psiquiátrica

Sociais Psicológicos
• Baixo nível socioeconómico
• Problemas conjugais/violência
doméstica
• Trauma/eventos de vida negativos
/stress
• Fraco suporte familiar e social
• Alteração de rotinas
300 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

Fatores de risco na psicose pós-parto


• História de doença bipolar ou episódio prévio de psicose pós-
-parto;
• Primiparidade;
• Interrupção terapêutica;
• Fatores imunológicos e neuroendócrinos;
• Fatores genéticos (possível marcador para forma familiar de doença
bipolar).

Os estudos são consistentes na não-relação de eventos de vida stres-


santes e psicose pós-parto.

Fatores protetores
• Baixos níveis de stress;
• Rendimento económico mais elevado;
• Elevada autoestima;
• Bom apoio social;
• Ser casada ou estar em união de facto;
• Elevada religiosidade;
• Gravidez planeada.

ABORDAGEM CLÍNICA E TERAPÊUTICA


Em primeiro lugar e sempre que possível, é importante apostar na
prevenção primária (identificar situações de risco, diminuindo os fatores
de risco e promovendo fatores protetores). Depois, é importante o ras-
treio (pesquisar sintomas, avaliar complicações obstétricas, avaliar uso de
álcool e/ou drogas, vigiar aparecimento de sintomas em mulheres com
risco elevado). Após identificação de um caso, será importante iniciar
tratamento ou referenciar, se necessário.
O tratamento em si depende de cada patologia, sendo as linhas de
orientação indicadas para a mesma patologia noutro período da vida.
DOENÇA MENTAL PERINATAL 301

Contudo, de uma forma geral, a abordagem destas situações deve con-


templar os seguintes pontos:
• Identificar e referenciar para unidades de saúde especializadas, se
necessário;
• Iniciar tratamento o mais precocemente possível;
• Avaliar se é necessário internamento;
• Ter atenção que o risco de recorrência de uma doença no final da
gravidez e no pós-parto imediato é maior, independentemente de
a doente estar ou não a fazer medicação;
• Esclarecer e educar relativamente às doenças, tratamentos e riscos;
• Numa mulher que sabemos que está em idade fértil e que pretende
engravidar, com diagnóstico prévio de doença psiquiátrica, atentar
para a evicção de fármacos contraindicados nesta fase da vida;
• Pode haver necessidade de ajustes terapêuticos ao longo da gra-
videz;
• Respeitar o princípio de começar terapêutica com dose mínima
eficaz;
• Ponderar riscos de alterar vs. parar vs. manter a terapêutica;
• Considerar também estratégias não farmacológicas;
• Envolver ambos os progenitores nas decisões;
• Articular com a Ginecologia-Obstetrícia e Pediatria/vigilância fetal
adequada/vigilância de síndrome de abstinência no recém-nascido.

Psicofármacos na gravidez
A gravidez afeta os níveis plasmáticos dos fármacos, e estes podem
causar potenciais prejuízos no feto/recém-nascido ao atravessarem a bar-
reira placentária ou passarem para o leite materno em graus variáveis.
Alguns fármacos podem estar associados a malformações, sobretudo se
utilizados no primeiro trimestre. Outros, se usados no terceiro trimestre,
podem acarretar toxicidade neonatal, podendo também implicar ris-
cos para a mãe (fármacos que aumentam a prolactina estão associados,
por exemplo, a amenorreia, infertilidade, galactorreia). Por outro lado,
302 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

a gravidez introduz algumas alterações às habituais condições farmaco-


cinéticas e farmacodinâmicas, o que pode alterar significativamente os
níveis dos fármacos no organismo. É por isso necessário ter um cuidado
redobrado com as doses dos fármacos, de forma a mantê-los na janela
terapêutica adequada (doses subterapêuticas favorecem a recaída e doses
supraterapêuticas potenciam a toxicidade). Contudo, é importante ter
presente que, por limitações óbvias aos estudos durante a gravidez,
a maior parte das não-recomendações não equivalem a contraindicações;
ou seja, a maior parte dos fármacos são relativamente seguros para uso
durante a gravidez e a sua não-recomendação taxativa deve-se principal-
mente à falta de estudos.
Se necessários, os fármacos mais seguros para uso na gravidez são os
seguintes:
• Quetiapina (150-300 mg), olanzapina (5-7,5 mg), risperidona
(2-4 mg), haloperidol (2-4 mg);
• Cloropromazina (25 mg IM; 25 mg-50 mg PO para sedação e náu-
seas/vómitos; 200-300 mg PO na psicose);
• SSRI – Sertralina (50-100 mg);
• Lamotrigina (50-200 mg);
• Prometazina (25-50 mg IM);
• Lorazepam (1-2 mg);
• Zolpidem (5-10 mg) e zopliclone.
Nota: As doses sugeridas são as doses mínimas eficazes, que devem
apenas servir como referência, uma vez que tanto o fármaco como a dose
a utilizar dependem do quadro clínico e da fase da gravidez.
São contraindicados na gravidez:
• Venlafaxina e paroxetina;
• Lítio;
• Ácido valpróico e carbamazepina;
• Benzodiazepinas (em particular de semivida longa);
• Formulações injetáveis de longa duração.
DOENÇA MENTAL PERINATAL 303

Psicofármacos e aleitamento
As mulheres são geralmente encorajadas a amamentar por pelo
menos seis meses. Um dos fatores que pode condicionar essa decisão é
a segurança da medicação durante o aleitamento materno. Com algu-
mas exceções, a maioria do psicofármacos deve ser mantida durante a
amamentação, por um lado pelos benefícios desta, e, por outro, pela
falta de evidência em relação a eventuais malefícios da maioria dos
fármacos. A segurança individual dos fármacos no aleitamento deve
ser um aspeto a considerar quando se iniciam tratamentos em mulhe-
res em idade fértil e que pretendem engravidar. Devem ser pesados
os benefícios do aleitamento vs riscos dos fármacos; normalmente,
é inapropriado suspender o aleitamento exceto quando a medicação
prescrita é absolutamente contraindicada durante a amamentação; nes-
tes casos, e sendo o tratamento da doença mental materna a prioridade,
a medicação não deve ser suspensa, mas a mulher deve ser informada
de que não deverá amamentar. A medicação não deve ser alterada no
fim da gravidez/pós-parto pelo elevado risco de recaída. Manter o tra-
tamento efetuado na gravidez durante o aleitamento é normalmente a
opção mais apropriada, até porque poderá minimizar o risco de sinto-
mas de privação no bebé. Devem ser preferidos fármacos com semivida
curta; fármacos com semivida longa podem acumular no leite materno
e consequentemente na circulação do bebé. Sempre que possível, deve
usar-se a menor dose eficaz e evitar polifarmácia.
Existem algumas exceções: lítio, clozapina e benzodiazepinas. Sobre-
tudo o lítio e a clozapina são contraindicados no aleitamento. Contudo,
mulheres que mantiveram estes dois fármacos durante a gravidez têm
especial risco de agudização da doença se suspenderem (portanto, o risco
de parar é maior). Assim, não devem suspender a medicação e, por-
tanto, não devem amamentar.
304 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

Medidas não-farmacológicas
Hábitos de vida:
• Dieta;
• Exercício físico;
• Abstinência de álcool e drogas;
• Medidas de higiene de sono.
Intervenções psicológicas:
• Terapia cognitivo-comportamental;
• Terapia interpessoal;
• Terapia familiar.
Eletroconvulsivoterapia – pode ser considerada em determinadas
situações clínicas, como:
• Doença mental grave;
• Catatonia;
• Risco de suicídio;
• Outras situações com risco de vida;
• Contraindicação para psicofármacos.

Riscos para a mãe e para a criança


O tratamento deve ser iniciado o mais precocemente possível para
almejar um melhor prognóstico, até porque a doença mental não tratada
tem também riscos para a mãe e para a criança.
Sabe-se que o não-tratamento está associado a maior risco de com-
plicações obstétricas e complicações do desenvolvimento fetal, a um
maior risco de baixo peso à nascença e de prematuridade, constituindo
um fator de risco independente para malformações congénitas e para a
mortalidade perinatal. Além disso, está associado, muitas vezes, à negli-
gência de cuidados à mãe e ao bebé, tendo ainda impacto na vinculação
entre estes dois seres. Há um risco aumentado de suicídio e infanticídio,
aumentando a morbilidade e mortalidade ao longo de vida do filho, e em
particular de psicopatologia futura.
Portanto, não tratar também tem riscos, e os riscos de não tratar são
maiores do que os riscos de o fazer.
DOENÇA MENTAL PERINATAL 305

O PAPEL DO PAI
O pai poderá ter um fator protetor na doença mental da mãe, dado
que o facto de ser casado, estar em união de facto, ter um bom ambiente
familiar e conjugal e ter um bom apoio social são fatores protetores da
doença mental materna.
Também existe doença mental perinatal paterna. Embora seja menos
prevalente no homem, sabe-se que a prevalência de depressão e pertur-
bações de ansiedade durante a gravidez e o pós-parto é maior do que
fora deste período; sobretudo em homens com história prévia de doença
mental, que têm maior perceção de stress, com pior saúde em geral,
desempregados e que têm níveis inferiores de satisfação com a relação.
Acontece sobretudo nas primeiras gestações e se a mãe tiver também
depressão perinatal.
A depressão paterna tem um impacto negativo na mulher e na criança,
por um lado por menor capacidade de suporte à mãe e por outro pelo
impacto negativo na saúde mental da criança e seu desenvolvimento.

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18. CRIANÇA E ADOLESCENTE
JOANA MESQUITA REIS e DANIEL SAMPAIO

As perturbações mentais são, atualmente, um dos principais problemas


de saúde pública, para todos os grupos etários.
No que se refere à infância e adolescência, segundo a OMS, cerca
de 20% das crianças e adolescentes apresentam, pelo menos, uma per-
turbação mental antes de atingir os 18 anos de idade, sendo que muitas
patologias psiquiátricas da idade adulta têm início antes dos 18 anos.
Sabemos, também, que os sintomas de algumas patologias psiquiátricas
mais graves têm início antes dos 14 anos.
Na infância e na adolescência, o diagnóstico e a intervenção podem
constituir um grande desafio. De facto, numa parte significativa dos casos,
os quadros clínicos não são tão lineares quanto parecem nas classificações
diagnósticas, sendo por vezes difícil enquadrar um determinado quadro
clínico num diagnóstico concreto.
É também importante termos em consideração que nestas faixas
etárias:
• Estamos perante um ser em desenvolvimento;
• Existe uma dependência do meio familiar;
• A maior parte dos quadros psicopatológicos têm uma apresentação
diversa e distinta da do adulto;
• A expressão sintomática de uma patologia pode manifestar-se de
forma diferente ao longo do desenvolvimento;
• As intervenções adequadas são dependentes das etapas do desen-
volvimento.
Outro aspeto que é necessário termos em consideração é que existem
manifestações que são normais em algumas etapas do desenvolvimento,
mas que podem ser sinais de patologia quando estão presentes em outras
310 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

faixas etárias (por exemplo, se pensarmos na ansiedade de separação,


é fácil compreendermos que uma manifestação que é expectável encon-
trar numa criança com uma idade compreendida entre os 12/24 meses
de idade poderá sinalizar algum problema quando presente numa fase
mais tardia).
Assim, de um modo geral, podemos dizer que os sintomas são tenden-
cialmente normais quando têm um caráter:
• Transitório;
• Pouco intenso;
• Sem repercussão sobre o desenvolvimento;
• A criança fala neles com facilidade;
• Não há disfunção familiar evidente;
• Restritos a uma área da vida da criança.
Por outro lado, são patológicos quando:
• Persistentes;
• Intensos e frequentes;
• Com repercussão sobre o desenvolvimento;
• Com impacto em diferentes áreas;
• Meio envolvente patológico;
• Desadequado em relação à idade.
Tendo em consideração as características decorrentes de cada etapa
do desenvolvimento, nomeadamente no que diz respeito à expressão sin-
tomática de uma determinada patologia, bem como à prevalência de
determinados diagnósticos e à natureza das intervenções, o desenvolvi-
mento pode ser dividido em três grandes períodos: a primeira infância
(dos zero aos três anos de idade), a segunda infância (dos quatro aos doze
anos de idade) e a adolescência.
CRIANÇA E ADOLESCENTE 311

PARTE I – A CRIANÇA
Joana Mesquita Reis

PRIMEIRA INFÂNCIA
A saúde mental da primeira infância constitui um campo de estudos
recente (trabalhos pioneiros de Spitz, Bowlby, Stern, Brazelton, Greenspan,
entre outros).
Neste período, a observação do comportamento e da interação na ava-
liação e intervenção é muito relevante (de facto, e uma vez que os bebés
ainda não conseguem utilizar a linguagem verbal, torna-se fundamental
atender às outras modalidades de comunicação). Adicionalmente, é uma
fase na qual é particularmente importante envolver os cuidadores e apoiar
a função parental, identificar situações de risco psicopatológico e intervir
precocemente em patologias com impacto no desenvolvimento.
Sabemos atualmente que a primeira infância constitui o período do
desenvolvimento mais determinante e em que o crescimento é mais ace-
lerado. Em nenhuma outra etapa teremos a capacidade de fazer tantas
aprendizagens como nesta, e nenhum outro período vai ser tão definidor
daquilo que seremos.
Nascemos com milhões de neurónios, e nestes primeiros anos o nosso
cérebro vai selecionar quais as ligações cerebrais que devem ser forta-
lecidas e quais as que devem ser eliminadas – processo conhecido por
pruning, sendo este processo fortemente influenciado pelas nossas expe-
riências precoces. Deste modo, o ambiente relacional em que nascemos
vai ter um impacto direto no desenvolvimento cerebral (a nível neuro-
químico, mas também a nível estrutural).
Apesar deste nosso imenso potencial ao nascer, quando nascemos
somos uma das espécies mais dependentes e imaturas do reino animal.
Se olharmos as outras espécies, só quando atingimos os 9-12 meses de
idade é que temos um nível de desenvolvimento próximo ao de outros
mamíferos quando nascem. Quando olhamos para outros animais,
312 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

a maioria deles, quando nasce, já tem a capacidade de se locomover e


consegue levar alimentos à boca, o que confere, por si só, algum grau de
autonomia.
Alguns antropólogos defendem que quando adotámos a posição
bípede houve uma modificação da estrutura da pélvis, havendo uma
diminuição do seu tamanho. Isto, aliado ao facto de, ao longo da evolu-
ção da espécie humana, ter havido um aumento do volume cerebral, fez
com que houvesse uma “antecipação” do nascimento, pois se a gestação
se mantivesse in utero, a passagem do bebé pelo canal vaginal tornar-se-ia
impossível.
Esta “antecipação” do nosso nascimento pode, à partida, parecer uma
desvantagem; contudo, constitui uma vantagem evolutiva, uma vez que
permite que o nosso cérebro seja exposto mais precocemente a interações
e estímulos sensoriais que vão favorecer o desenvolvimento – implicando,
em contrapartida, um grande envolvimento por parte de quem cuida de
nós.
Assim, a relação com os nossos progenitores é das experiências pre-
coces mais significativas. Deste modo, ela deve ser marcada por cuidados
parentais consistentes e constantes, por uma interação pais/criança posi-
tiva e pelo estabelecimento de uma vinculação segura. No seu conjunto
estes aspetos irão promover um desenvolvimento saudável do bebé, o qual
terá impacto ao longo de todo o ciclo de vida do indivíduo.
Há que salientar que, contrariamente ao que se pensava há uns anos,
sabemos hoje que os bebés quando nascem não são uma tabula rasa.
Os bebés são muito competentes e têm um papel ativo na interação e na
apreensão do mundo. Desde muito precocemente já são capazes de dis-
criminar expressões faciais e emocionais, decifrar padrões, sentir empatia,
seguir com o olhar, reconhecer a origem do som, agarrar por reflexo, etc.
Apesar destas competências, para que possamos desenvolver todo o
potencial de um bebé, necessitamos de adultos disponíveis. De facto,
a interação é um processo dinâmico, de regulação mútua e em que a
partilha afetiva é central.
CRIANÇA E ADOLESCENTE 313

Quando este processo interativo está comprometido, como acon-


tece, por exemplo, na depressão parental, isto condiciona um risco para
o desenvolvimento de psicopatologia no bebé.
Deste modo, os rastreios de depressão nas grávidas e puérperas (para
os quais pode ser útil o recurso a escalas, nomeadamente a Escala de
Depressão Pós-parto de Edimburgo [EPDS], ou outras), são muito impor-
tantes porque favorecem a deteção e intervenção precoce. Deste modo,
estaremos a prevenir as consequências negativas da depressão na gravidez,
nomeadamente:
• Complicações obstétricas e perinatais;
• Alterações neonatais;
• Atrasos de crescimento;
• Baixo peso à nascença;
• Pior saúde física em geral;
• Alterações emocionais e cognitivas;
• Psicopatologia.
O diagnóstico de depressão num cuidador deve conduzir a um olhar
atento sobre o bebé, tendo particular atenção à presença dos seguintes
sinais de alerta:
• Explora pouco o meio (os bebés são curiosos…);
• Tem pouco interesse nos outros;
• Evitamento do olhar;
• Pouco expressivo, ar triste;
• Choro frequente, irritabilidade, dificuldade em acalmar;
• Atividade excessiva, dificuldade em focar a atenção;
• Atraso do desenvolvimento;
• Alterações do sono ou do apetite.
Concomitantemente, é fundamental valorizarmos a preocupação
materna/paterna.
Adicionalmente, devemos também ter atenção aos comportamen-
tos do bebé que podem sugerir a existência de problemas relacionais,
nomeadamente:
314 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

• Ausência de busca ou procura inadequada de conforto junto do


cuidador quando se magoa, está assustado ou doente;
• Incapacidade para restabelecer relação após curta separação;
• Desinteresse total pelo cuidador quando explora o meio envolvente
ou incapacidade para se afastar dele;
• Excessiva familiaridade com estranhos.
Perante a presença destes sinais é fundamental estarmos atentos,
avaliar e, eventualmente, referenciar, diagnosticar e intervir.
Em relação ao diagnóstico, existe um sistema de classificação pró-
prio para esta faixa etária, publicado pela organização americana Zero to
Three, o Manual de Classificação Diagnóstica das Perturbações de Saúde
Mental e do Desenvolvimento da Infância (DC:0-5). Esta classificação
contempla os seguintes eixos:
Eixo I – Perturbações clínicas
Eixo II – Contexto relacional
Eixo III – Condições e considerações da saúde física
Eixo IV – Fatores de stress psicossocial
Eixo V – Competências do desenvolvimento
As perturbações clínicas contempladas no Eixo I são as:
• Perturbações do neurodesenvolvimento:
Perturbação do espectro do autismo
Perturbação do espectro do autismo atípica precoce
Perturbação de hiperatividade e défice de atenção
Perturbação de irrequietude da primeira infância
Atraso global do desenvolvimento
Perturbação do desenvolvimento da linguagem
Perturbação do desenvolvimento da coordenação
Outras perturbações do neurodesenvolvimento da primeira infância
• Perturbações do processamento sensorial;
• Perturbações de ansiedade;
• Perturbações do humor;
• Perturbações obsessivo-compulsivas e perturbações relacionadas;
CRIANÇA E ADOLESCENTE 315

• Perturbações do sono, da alimentação e do choro;


• Trauma, stress e perturbações de privação;
• Perturbações da relação.

Perturbação do espectro do autismo


A perturbação do espectro do autismo (PEA) é uma perturbação do
neurodesenvolvimento que se caracteriza fundamentalmente pela pre-
sença de um défice de comunicação, défice na interação social e com-
portamentos e interesses restritos, repetitivos e estereotipados.
A PEA é uma condição de natureza multigénica e multifatorial.
O diagnóstico é clínico (entrevista clínica e avaliação/observação
do comportamento e desenvolvimento). Contudo, existem alguns ins-
trumentos de avaliação que podem ser úteis, nomeadamente a Autism
Diagnostic Observation Schedule 2 (ADOS-2) e Autism Diagnostic Inter-
view – Revised (ADIR). Não existem exames laboratoriais que permitam
o diagnóstico e a grande maioria dos casos não apresenta alterações nos
exames complementares de diagnóstico.
A DGS lançou, em 2019, a norma “Abordagem Diagnóstica e Inter-
venção na Perturbação do Espectro do Autismo em Idade Pediátrica e no
Adulto”, a qual fornece orientações práticas e alerta-nos para os principais
sinais de alarme, nomeadamente:
Sinais de alarme – 6 meses
1. Ausência de contacto visual
2. Não sorrir em resposta
3. Passividade/baixo nível de atividade
4. Irritabilidade extrema
5. Tendência a fixar objetos
6. Ausência ou pouco interesse por pessoas
7. Pouca interação social
8. Mímica facial pobre
9. Não se orientar para a voz humana
10. Ausência de reações antecipatórias
316 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

Sinais de alarme – 12 meses, além dos referidos anteriormente:


1. Vocalização escassa ou monótona
2. Não usar gestos na comunicação
3. Não responder ao chamamento
4. Ausência de atenção conjunta
5. Não imita
6. Alteração da reatividade sensorial

Sinais de alarme – 2 aos 6 anos, além dos referidos anteriormente:


1. Perturbação na aquisição e desenvolvimento da fala
2. Uso idiossincrático e estereotipado de palavras ou frases
3. Tendência para o isolamento ou perturbação manifesta na
interação
4. Não apontar com o indicador para os objetos para dirigir a
atenção dos outros
5. Ausência de iniciativa na interação social
6. Dificuldade no jogo simbólico
7. Dificuldade em aceitar a mudança
8. Interesse obsessivo por determinadas texturas, materiais, pessoas,
objetos ou partes dos mesmos
9. Persistência de gestos ou comportamentos estereotipados ou repe-
titivos e posturas invulgares

Algoritmo clínico
Na suspeita de uma perturbação do espectro do autismo, pode ser
útil a utilização do M-CHAT (instrumento de rastreio). Em todo o caso,
deve ser realizado o encaminhamento para uma consulta hospitalar
e deve ser realizada referenciação para a equipa local de intervenção
precoce.
A nível hospitalar, a criança deve ter seguimento por uma equipa
multidisciplinar. Em termos de acompanhamento médico, deve ser
avaliada e acompanhada por um pedopsiquiatra e por um pediatra de
CRIANÇA E ADOLESCENTE 317

desenvolvimento e/ou neuropediatra. Em alguns casos, faz sentido enca-


minhar para Otorrinolaringologia (para despiste de défices auditivos) e
também para Genética Médica, entre outras. Para além da equipa médica,
a criança deve também beneficiar de apoio por uma equipa com psicólo-
gos, terapeutas ocupacionais, terapeutas da fala, professores de educação
especial, etc.
Embora não existam terapêuticas “curativas” para a perturbação do
espectro do autismo, a intervenção precoce demonstrou melhorar signifi-
cantemente o prognóstico. A abordagem terapêutica é, necessariamente,
multidisciplinar. A terapêutica farmacológica, podendo ser necessária,
não é dirigida aos sintomas nucleares do autismo, tendo como objetivo o
tratamento de comorbilidades, nomeadamente psiquiátricas, comporta-
mentais e neurológicas.

Perturbações do processamento sensorial


O processamento sensorial é o processo através do qual o sistema ner-
voso central recebe a informação sensorial (proveniente da visão, toque,
olfato, audição, paladar, proprioceção e sistema vestibular), a organiza e
a transforma numa resposta comportamental adaptativa. Cada indivíduo
tem um padrão único de apreensão e resposta à informação sensorial
proveniente do meio envolvente e do seu corpo – Perfil Individual.
Na presença de dificuldades do processamento sensorial, ocorrem
dificuldades ao nível da regulação comportamental, organização e manu-
tenção da atenção e dificuldades no relacionamento e socialização.
Todos nós temos um limiar neurológico (ponto a partir do qual existe
informação suficiente para que uma célula nervosa seja ativada).
O limiar sensorial é o ponto de início de resposta à informação
sensorial. Se imaginarmos um limiar padrão, existem pessoas que estão
abaixo desse limiar (hipersensíveis) e outras que estão acima do limiar
(hipossensíveis). Deste modo, as pessoas hipersensíveis tendem a ter um
excesso de reatividade a estímulos sensoriais podendo, por exemplo,
ficar muito incomodadas perante determinados sons, movimentos ou
318 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

toque. Por outro lado, as pessoas hipossensíveis apresentam uma subrea-


tividade a estímulos, pelo que necessitam de um grau de estimulação
mais forte.
A avaliação da criança é realizada através da:
• Observação direta da criança;
• Entrevista com os cuidadores;
• Aplicação de questionários e instrumentos standardizados
Perfil sensorial para crianças (Winnie Dunn)
Sensory Processing Measure – Preschool
Etc.
A intervenção passa por:
• Intervenção juntos dos pais ou cuidadores;
• Adequar o suprimento de estímulos ao perfil individual da criança;
• Integração sensorial.

Perturbações do humor
A perturbação depressiva da primeira infância constitui uma pertur-
bação do humor que, quando não tratada, pode ter um impacto muito
negativo ao nível do desenvolvimento.
O quadro clínico da depressão na primeira infância é muito seme-
lhante ao encontrado nos adultos.
Assim, são sinais de depressão no bebé:
• Afeto plano;
• Evitamento do olhar;
• Funcionamento em atraso do desenvolvimento;
• Choro frequente, irritabilidade;
• Ar triste, poucos sorrisos;
• Alterações do sono e alimentares;
• Perda de peso;
• Poucas vocalizações;
• Pouco interesse nos outros;
• Infeções frequentes.
CRIANÇA E ADOLESCENTE 319

Em termos etiológicos, são perturbações multifatoriais, mas, no caso


dos bebés, a depressão tem como fatores preponderantes os aspetos
relacionais e ambientais, com destaque para duas situações: a perda ou
rotura emocional brusca (1.º grupo) e a insuficiência crónica de cuidados
afetivos (2.º grupo).
De um modo geral, cada um destes grupos caracteriza-se por:

1.º grupo:
• Início mais precoce e agudo;
• Consequências de roturas relacionais bruscas;
• Ausência de patologia grave parental;
• Remissão rápida;
• Melhor prognóstico.

2.º grupo:
• Início insidioso;
• Insuficiência crónica dos cuidados;
• Patologia do meio;
• Recuperação lenta ou ausência de remissão dos sintomas.

Em termos de intervenção, na primeira infância o tratamento é fun-


damentalmente psicoterapêutico e assenta numa base relacional, sendo
fundamental fornecer ao bebé uma experiência relacional positiva e
continuada. Nos quadros resultantes de uma perda, o prognóstico tende
a ser bom, com uma remissão rápida dos sintomas, caso existam figuras
de referência substitutas que estejam disponíveis emocionalmente para o
bebé. Nos quadros de insuficiência crónica, é necessário avaliar o estado
emocional do cuidador, mobilizando intervenção caso haja um quadro
de depressão da mãe/pai. Muito frequentemente, também é realizada
uma psicoterapia pais-bebé.
320 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

SEGUNDA INFÂNCIA
Na segunda infância, a linguagem verbal emerge ou torna-se mais
fluente; o pensamento abstrato vai-se aprimorando e a autonomia vai
sendo conquistada.
Neste período, a criança vai-se descentrando dos seus cuidadores,
passando a estabelecer uma rede maior de interações, e com isto as exi-
gências sociais crescem e estabelecem-se as primeiras amizades. Para mui-
tas crianças, é a fase de entrada na escola, e começam os desafios com a
aprendizagem da leitura, da escrita e do cálculo, que exigem da criança
capacidades acrescidas de atenção, memorização e planeamento.
Esta é também a idade das perguntas: O quê? Porquê? Como? Quando?
Onde?, como forma de encontrar um entendimento para o funcionamento
das coisas e do mundo.
O jogo simbólico (ou faz-de-conta) tem um importante papel no
desenvolvimento psicoafetivo desta fase, permitindo à criança experi-
mentar, através do brincar, diferentes papéis e emoções (nomeadamente,
acontecimentos e emoções mais difíceis e negativas). O jogo serve tam-
bém para treinar a resolução de problemas e de conflitos, bem como
aprender a lidar com a derrota e com outras frustrações.
A criança passa a fazer parte de um leque mais vasto de contextos
(além do agregado familiar) e, portanto, na avaliação, é fundamental
explorar os novos ambientes (escola, atividades, etc.) e relações.
Em termos diagnósticos, surgem outras designações e classificações.
Assim, atualmente, a partir dos cinco anos, utiliza-se mais comumente
na prática clínica o Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos
Mentais (5.ª edição) – DSM-5.
Em termos psicopatológicos, é neste período que surgem, mais
frequentemente, as patologias com impacto no desempenho escolar,
nomeadamente as perturbações específicas da aprendizagem e as pertur-
bações de hiperatividade e défice de atenção. Há também uma prevalên-
cia crescente das perturbações de oposição e desafio e das problemáticas
do foro ansioso e depressivo.
CRIANÇA E ADOLESCENTE 321

PARTE II – A ADOLESCÊNCIA
Daniel Sampaio

ADOLESCÊNCIA
Conceito e fases
Há sempre uma construção social no conceito de adolescência, o que
significa que, quando intervimos no adolescente, temos, obrigatoria-
mente, de intervir no contexto.
Quando começa e termina a adolescência? Começa com a menarca
(primeira menstruação na rapariga e primeira ejaculação no rapaz) – há
já uma diferença contextual: a menstruação é frequentemente falada em
família e pouco se fala da ejaculação no rapaz.
A puberdade começa com essas manifestações e, depois, desenvol-
ver-se-á com outras, havendo a continuidade da maturação do cérebro.
A adolescência termina aos 20 anos, de acordo com a OMS (temos cada
vez mais dados de que a adolescência se começa a prolongar no tempo),
ao passo que estudos com base em ressonância magnética demonstra-
ram que o cérebro do adolescente se continua a desenvolver até aos
24 anos.
Do ponto de vista social, vemos o prolongamento da adolescência pela
permanência em casa dos pais e com a dependência emocional destes.
O final da adolescência caracteriza-se, então, por um projeto de
vida (estudos, profissionais), maturidade a nível social, identidade
sexual resolvida e pela saída de casa dos pais (socialmente marca a
idade adulta).
A adolescência é também bastante importante por marcar o início de
muitas doenças psiquiátricas. A saúde mental tem uma parte preventiva
crucial – se conseguirmos identificar e intervir, estamos a promover a
saúde mental.
322 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

Sinais de alarme de uma adolescência patológica


• A primeira coisa a fazer quando avaliamos um adolescente é olhar
para ele; perceber a forma como olha para nós, como se senta, se evita
o olhar, como coloca a cabeça (um adolescente deprimido tende a
colocar a cabeça no meio do peito e a não olhar em frente). Um ado-
lescente inquieto/ansioso tem o seu corpo muito agitado, com tremor.
Um adolescente psicótico dá-nos uma aparência de estranheza;
• Devemos verificar se há excesso de peso ou obesidade – É um
sinal de mal-estar muito importante, porque estes jovens, muito
frequentemente, são vítimas de bullying;
• Ao mesmo tempo, há que atentar também ao padrão de alimenta-
ção (anorexia, erros alimentares, etc.). As doenças de perturbação
do comportamento alimentar iniciam-se, maioritariamente, na
adolescência. Perguntar “O que pensa acerca do seu corpo/acerca
do seu peso?” (uma anorética, por exemplo, nunca admite);
• É também muito importante a dimensão do sono. Um adolescente
saudável, por norma, dorme bem e não tem sonolência durante o
dia. Quando vemos alterações do sono significativas, tal é um sinal
de alarme.
Os sintomas mais característicos de patologia mental na adolescên-
cia são mais frequentes, evidentemente, nas situações de ansiedade e
depressão; embora existam situações que geram ansiedade transitória e
compreensível – não requer intervenção (sintomas transitórios).
Quando temos um jovem que não dorme, com alterações do apetite,
com dores no corpo, com o coração a bater muito fortemente, trata-se de
um quadro de ansiedade que requer intervenção (sintomas persistentes).
De salientar que muitos adolescentes afirmam ter ataques de pânico,
mas na verdade não os têm.
A depressão na adolescência aparece de forma diferente da que no
adulto. Muitos jovens estão deprimidos e não o admitem – não dormem,
têm queda do rendimento escolar e incapacidade de sentir prazer em
situações que anteriormente os satisfaziam. A depressão pode estar ligada
CRIANÇA E ADOLESCENTE 323

à tentativa de suicídio (é muito importante estarmos atentos aos sinais


de alarme – a maior parte dos adolescentes “avisam” antes através de
conversas, pesquisas).
Há momentos depressivos na adolescência que são normais, relacio-
nados com momentos de mudança.
O aparecimento de um primeiro episódio psicótico constitui um
sinal de alarme, sendo essencial que este seja bem tratado. Nestas situa-
ções, o adolescente mais frequentemente isola-se em casa, aparece pouco
tempo à refeição e isola-se também na escola.
Os comportamentos autolesivos são também um sinal de alarme.
Os sintomas na adolescência distinguem-se pela persistência e pela
intensidade.

Como devemos avaliar o doente na globalidade?


• A avaliação familiar é fundamental na adolescência (principal-
mente a relação com os pais);
• A escola (perceber o rendimento escolar, a interação com amigos/
/colegas) e o emprego;
• Amor e sexualidade – Grandes variações individuais (não devemos
ser normativos);
• Relação com a internet (que sites vê, se vê pornografia em excesso,
se assiste a vídeos de conteúdo muito depressivo, etc.).

Como intervir nas situações clínicas mais frequentes


Ansiedade – Aparece sob a forma de fobias, ataques de pânico, ansie-
dade generalizada.
É muito importante não prescrever benzodiazepinas (geram depen-
dência e perturbações de memória).
• O exercício físico é fundamental (libertação de noradrenalina e
dopamina, endorfinas, serotonina, aumenta o fluxo sanguíneo ao
cérebro e tem grande importância no ritmo circadiano, regulando
o sono); muito benefício da corrida nos ataques de pânico – deve-
mos prescrever.
324 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

Se estivermos perante depressão ou ansiedade marcada:


• Prescrever SSRIs (escitalopram, sertralina, por exemplo);
• Abordagem da família.
Num primeiro episódio psicótico:
• Referenciar para Psiquiatria;
• Prescrever antipsicótico.
Perturbações do comportamento alimentar:
• Anorexia – Organizar refeições, perceber o significado da comida;
a medicação é muito pouco útil;
• Bulimia – A fluoxetina é bastante útil.
A nossa ação nos adolescentes é sobretudo preventiva e terapêutica.

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CRIANÇA E ADOLESCENTE 325

Guerreiro, D. F., Sampaio, D., Rihmer, Z., Gonda, X., & Figueira, M.
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Washington: ZERO TO THREE: National Center for Infants, Tod-
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REFERENCIAÇÃO CSP – PSIQUIATRIA

Continuando uma intenção de uniformização da referenciação entre


os Cuidados de Saúde Primários (CSP) e os serviços de Psiquiatria, optou-
-se por incluir neste livro de aulas os critérios de referenciação utilizados
de forma oficial na Região Autónoma dos Açores e que foram baseados
nos critérios do Hospital de Braga. Ainda que não sejam oficiais para
todo o território nacional, encontram-se consoante a melhor evidência
nacional e internacional.

OS PEDIDOS
Os pedidos de consulta de CSP para serviços de Psiquiatria são feitos
por médicos da área da Medicina Geral e Familiar. Esses pedidos devem
reunir determinados critérios, que se listam, de acordo com a patologia/
intervenção necessárias:

Perturbações depressivas
• Se ausência de resposta ao tratamento, i.e., dois esquemas com
diferentes antidepressivos (SSRI, SNRI) em doses terapêuticas
durante pelo menos quatro semanas cada um;
• Se sintomas graves (p. ex.: sintomas psicóticos, negativismo);
• Se antecedentes de episódios graves (depressão major com ou sem
sintomas psicóticos);
• Se existência de comorbilidades não psiquiátricas que dificultem
tratamento;
• Se risco de suicídio (mas se iminente encaminhar para o SU).
328 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

Perturbações de ansiedade
• Se ausência de resposta ao tratamento, i.e., dois esquemas com
diferentes antidepressivos (SSRI, SNRI) em doses terapêuticas
durante pelo menos quatro semanas cada um;
• Se existência de comorbilidades não psiquiátricas que dificultem
tratamento;
• Se risco de suicídio (mas se iminente encaminhar para o SU).

Perturbações bipolares
• Sempre que existir este diagnóstico já estabelecido e sem segui-
mento psiquiátrico;
• Sempre que existir suspeita fundamentada deste diagnóstico.

Perturbações psicóticas
• Sempre que existir este diagnóstico já estabelecido e sem segui-
mento psiquiátrico;
• Sempre que existir suspeita fundamentada deste diagnóstico.

Perturbações do espectro obsessivo-compulsivo


• sempre que existirem estes diagnósticos já estabelecidos, sem esta-
bilização clínica e sem seguimento ou orientação psiquiátrica;
• Sempre que existir suspeita fundamentada destes diagnósticos.

Perturbações do comportamento alimentar


• sempre que existirem estes diagnósticos já estabelecidos e cumpri-
rem critérios de anorexia nervosa, bulimia nervosa e/ou ingestão
compulsiva, sem estabilização clínica e sem seguimento psiquiá-
trico;
• Sempre que existir suspeita fundamentada destes diagnósticos.
REFERENCIAÇÃO CSP – PSIQUIATRIA 329

Demências
• Sempre que existirem suspeita deste diagnóstico se realizados pre-
viamente MCDT referidos para exclusão de causas reversíveis;
se o diagnóstico já estiver estabelecido e apresentarem-se com sin-
tomas comportamentais e/ou psiquiátricos não controlados.
TABELAS ÚTEIS

TABELA 1 – TRATAMENTO DA DEPRESSÃO

DOSE MÍNIMA
FÁRMACOS DOSE MÁXIMA
EFICAZ

Escitalopram 10 mg 20 mg

Fluoxetina 20 mg 60 mg

Sertralina 50/100 mg 200 mg

Duloxetina 60 mg 120 mg

Mirtazapina 15/30 mg 45 mg

Trazodona 150 mg 300 mg

Venlafaxina 75 mg 375 mg*

Vortioxetina 10 mg 20 mg

* Utilizar nesta dose apenas se experiência com o fármaco.


332 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

TABELA 2 – FÁRMACOS A USAR SE COMORBILIDADE

DOENÇA DOENÇA DOENÇA


PSICOFÁRMACOS
HEPÁTICA CARDÍACA* RENAL

Ansiolíticos Lorazepam Benzodiazepinas Benzodiazepinas


Oxazepam
Termazepam

Antidepressivos Citalopram SSRIs (exceto Não existe AD


Escitalopram citalopram claramente superior
Fluvoxamina e fluoxetina) a outro (fluoxetina
Paroxetina Vortioxetina é o que apresenta
maior evidência)

Antipsicóticos Amissulprida Aripiprazol Aripiprazol


Haloperdiol Cariprazina Cariprazina
Paliperidona Outros atípicos com Haloperidol
Sulpirida pouca interferência Olanzapina
no QTc (excepto Quetiapina
ziprasidona
e quetiapina)

Estabilizadores de Lítio Carbamazepina Carbamazepina


humor Lamotrigina Valproato
Valproato
* Para fármacos mais seguros na doença cardíaca, escolhemos aqueles com menos influên-
cia no QTc e menos risco de torsade de pointes.
TABELAS ÚTEIS 333

TABELA 3 – BENZODIAZEPINAS E Z-DRUGS

BENZODIAZEPINAS/ DOSE
ABSORÇÃO SEMIVIDA
/Z-DRUGS EQUIVALENTE

Clonazepam 0,25 mg – 0,5 mg Rápida Longa

Diazepam 5 mg Rápida Longa

Flurazepam 5 mg Rápida Longa

Mexazolam 1 mg --- Longa

Lorazepam 1 mg Média Intermédia

Oxazepam 15 mg – 30 mg Lenta Intermédia

Alprazolam 0,5 mg – 1 mg Média Intermédia

Estazolam 0,33 mg Rápida Intermédia

Midazolam 1,25 mg – 1,3 mg Rápida Curta

Zolpidem 2,5 mg Rápida Curta


334 PSIQUIATRIA – STEP BY STEP

REFERÊNCIAS
INFARMED
Lao, K.S.J., He, Y., Wong, I.C.K. et al. Tolerability and Safety Profile of
Cariprazine in Treating Psychotic Disorders, Bipolar Disorder and
Major Depressive Disorder: A Systematic Review with Meta-Analysis
of Randomized Controlled Trials. CNS Drugs 30, 1043–1054 (2016).
https://doi.org/10.1007/s40263-016-0382-z
Manual de Tratamento da Ansiedade, Pedro Morgado, Lidel, (2022)
Maudsley Prescribing Guidelines in Psychiatry, 12th Edition
Prata Ribeiro, H., & Ponte, A. (2018). Urgências Psiquiátricas (1.ª ed.).
Lisboa: Lidel.
Salagre, Estela, et al. “Vortioxetine: a new alternative for the treatment
of major depressive disorder.” Revista de Psiquiatría y Salud Mental
(English Edition) 11.1 (2018): 48-59
Título
Psiquiatria – Step by Step

Coordenação
Daniel Sampaio e Henrique Prata Ribeiro

Autores
Adriana Moutinho, André Ponte, Cátia Moreira, Daniel Sampaio, Diogo Guerreiro,
Filipa Moutinho, Gustavo Jesus, Henrique Prata Ribeiro, Joana Mesquita Reis,
José Luís Pio Abreu, José Oliveira, Lucas Manarte, Manuel Gonçalves Pereira,
Miriam Marguilho, Pedro Morgado, Rui Durval, Samuel Pombo e Tiago Duarte
Grafismo
Augusto Nunes
Desenvolvimento de conteúdos

Gestão de conteúdos
Miguel Sampaio Peliteiro

Impressão
Tipografia Lousanense, Lda.

ISBN
978-989-53666-8-2

Depósito Legal
514 412/23

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info@parsifal.pt

Os textos que integram esta obra


são da responsabilidade dos seus autores

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