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Psico

v. 45, n. 4, pp. 502-512, out.-dez. 2014

Identiicação de Sinais Precoces de Autismo Segundo um


Protocolo de Observação Estruturada: um Estudo de Seguimento
Felipe Alckmin-Carvalho
Universidade de São Paulo
São Paulo, SP, Brasil
Maria Cristina Triguero Veloz Teixeira
Décio Brunoni
Vanessa Godoy Strauss
Cristiane Silvestre Paula
Universidade Presbiteriana Mackenzie
São Paulo, SP, Brasil

RESUMO
Intervenções precoces, intensivas e de longo prazo estão associadas a impacto positivo no prognóstico de crianças com
Transtornos do Espectro do Autismo-TEA. Os objetivos deste estudo foram: acompanhar crianças de 16-24 meses
até atingirem três anos a im de conirmar/refutar o diagnóstico de TEA e veriicar se um protocolo estruturado de
observação desenvolvido no Brasil seria capaz de discriminar crianças de alto/baixo risco para TEA. Instrumentos:
Modiied Checklist for Autism in Toddlers-M-CHAT, Autism Behavior Checklist-ABC, Protocolo de Observação
Estruturada para Rastreamento de Autismo-OERA, Escalas Vineland e Bayley. Dos 11 casos acompanhados, nenhum
conirmou diagnóstico de TEA de acordo com avaliação médica-DSM-IV. O OERA discriminou todos os casos
negativos de TEA. Conclusões: veriicou-se que M-CHAT foi sensível a atrasos no desenvolvimento, mas pouco
especíico para TEA sendo necessárias outras avaliações para o diagnóstico; OERA mostrou-se de baixo custo, bem
aceito e importante para a discriminação entre atrasos de desenvolvimento e TEA.
Palavras-chave: Transtornos do espectro do autismo; Diagnóstico precoce; Desenvolvimento infantil.

ABSTRACT
Identiication of Early Signs of Autism According to a Structured Observational Protocol: a Follow-up Study
Early, intensive and long-term interventions are associated with a positive impact on the prognosis of children with
Autism Spectrum Disorders-ASD. The objectives of this study were to follow children with 16-24 months until three
years of age in order to conirm/refute the diagnosis of ASD and verify if a structured observation protocol developed
in Brazil would be able to discriminate children at high/low risk for ASD. Instruments: Modiied Checklist for Autism
in Toddlers-M-CHAT, Autism Behavior Checklist-ABC, Structured Observation for Autism Screening-OERA, Bayley
and Vineland Scales. Of the 11 participants, none conirmed ASD diagnosis according to DSM-IV. The OERA was
able to discriminate all negative cases of ASD. Conclusion: it was veriied that M-CHAT was sensitive to identify
developmental delays, but not speciic regarding to ASD, being necessary other assessments to conirm the diagnosis;
OERA was considered low cost, well accepted and important to discriminate developmental delays from ASD.
Keywords: Autism spectrum disorders; Early diagnosis; Child development.

RESUMEN
Identiicación de Señales Tempranos de Autismo de Acuerdo con un Protocolo de Observación Estructurada: un
Estudio de Seguimiento
Intervenciones tempranas intensivas y de largo plazo están asociadas a un impacto positivo en el pronóstico de niños
con Trastornos del Espectro del Autismo (TEA). Los objetivos de este estudio fueron: acompañar niños de 16-24 meses
hasta alcanzar tres años con la inalidad de conirmar o rechazar el diagnóstico de TEA y veriicar si un protocolo
estructurado de observación desarrollado en Brasil sería capaz de discriminar niños de alto/bajo riesgo para TEA.
Instrumentos: Modiied Checklist for Autism in Toddlers (M-CHAT), Autism Behavior Checklist (ABC), Observación
Estructurada para Despistaje de Autismo (OERA), Escalas Vineland y Bayley. De los 11 casos acompañados, ninguno
conirmó diagnóstico de TEA de acuerdo con la evaluación médica (DSM-IV). El protocolo OERA discriminó todos
los casos negativos de TEA. Conclusión: se veriicó que el M-CHAT fue sensible a atrasos en el desarrollo, pero poco
especíico para TEA siendo necesarias otras evaluaciones para el diagnóstico; OERA se mostró de bajo costo, bien
acepto e importante para la discriminación entre atrasos del desarrollo y TEA.
Palabras clave: Trastornos del espectro del autismo; Diagnóstico precoz; Desarrollo infantil.

A matéria publicada neste periódico é licenciada sob forma de uma


Licença Creative Commons - Atribuição 4.0 Internacional.
http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/
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INTRODUÇÃO Autism Diagnostic Observation Schedule (ADOS),


ambos considerados padrão ouro para o diagnóstico
Os Transtornos do Espectro do Autismo (TEA) de TEA. Não há estudos sobre evidências de validade
estão entre os problemas de saúde mental que mais da ADOS, enquanto que um estudo piloto apontou
prejudicam o desenvolvimento infantil. Trata-se de um ótimas propriedades psicométricas da versão brasileira
transtorno que compromete, em diferentes níveis, duas da ADI-R (Becker et al., 2012).
áreas especíicas do desenvolvimento: comunicação- Sabe-se que para a identiicação de TEA é
social e comportamento (American Psychiatric fundamental considerar o relato de múltiplos
Association, 2013). informantes, somado à observação direta dos com-
Pesquisas evidenciam que os primeiros sinais portamentos da criança (Ozonoff et al., 2008). Entre
e sintomas de TEA começam a surgir entre seis e as ferramentas de observação do comportamento
doze meses, tornando-se mais perceptíveis e estáveis infantil, destaca-se a técnica de análise de ilmagem
entre os 18 e 24 meses, período em que já é possível da criança em situações padronizadas e eliciadoras
fazer a identiicação precoce dos casos (Belini & de comportamentos apontados como marcadores
Fernandes, 2007; Clifford, Young, & Williamson, para o transtorno (ex. prejuízos no contato visual, na
2007; Ozonoff, 2008). Os sinais que podem ser notados orientação para o chamado ao próprio e em aspectos
precocemente são aqueles diretamente relacionados de receptividade) (Baranek, 1999). Uma vez que
aos TEA, como prejuízo no contato visual e na atenção sinais de TEA já estavam presentes em gravações
compartilhada, reduzido interesse social e em jogos caseiras realizadas no primeiro ano de vida de crianças
de compartilhamento de prazer, modo de brincar posteriormente diagnosticadas com TEA, a análise de
incomum, alterações nos padrões comportamentais de vídeos em situações estruturadas tem sido utilizada
respostas sensoriais (Ozonoff et al., 2010; Tamanaha, como uma estratégia auxiliar eicaz para a avaliação
Perissinoto, & Chiari, 2008), assim como outros sinais do transtorno (Clifford, Young, & Williamson, 2007).
globais de atraso, incluindo irritabilidade, alterações no A ADOS foi construída a partir desses preceitos, sendo
nível de atividade e déicits no desenvolvimento motor atualmente o instrumento com melhores evidências
grosso (Cardoso & Fernandes, 2006). para o estabelecimento de TEA, segundo a perspectiva
Estudos recentes apontam que quando o de observação direta da criança (Gotham, Pickles,
diagnóstico de TEA é realizado nos primeiros três anos & Lord, 2009). Contudo, trata-se de uma medida de
de vida da criança, intervenções precoces intensivas alto custo, que exige conhecimento clinico prévio e
e de longo prazo estão associadas a um impacto treinamento bastante complexo, sendo praticamente
positivo no prognóstico, especialmente nas áreas inviável para ser utilizado em larga escala. Assim,
de adaptação psicossocial e familiar, desempenho enquanto a ADOS é considerada o padrão ouro para o
cognitivo, comportamento adaptativo, habilidades estabelecimento do diagnóstico de TEA, instrumentos
de comunicação e de interação social (Bosa, 2006; de rastreamento, mais breves e simples são essenciais
Carvalho et al., 2013; Eldevik et al., 2009). No entanto, para a triagem de casos suspeitos.
mesmo com a constatação sobre a possibilidade de Diversas pesquisas posteriores conirmaram que
rastreamento do transtorno ainda na primeira infância falhas na habilidade de orientar-se pelo próprio nome,
e do impacto positivo no prognóstico quando há por volta de um ano de idade, apresentam-se como um
intervenções precoces, apenas uma minoria dos casos marcador precoce importante, associado ao desfecho
é diagnosticada antes do período pré-escolar (Bosa, positivo para TEA (Ozonoff et al., 2010). A orientação
2006). e sustentação da atenção para objetos, assim como
Instrumentos padronizados são de grande im- particularidades na forma de brincar, exploração em
portância para a triagem e o diagnóstico de indivíduos menor frequência e menor lexibilidade de brinquedos
com TEA, que é realizado basicamente por critérios e responsividade e comunicação social também têm
clínicos (Teixeira et al., 2010). Dentre os instrumentos sido relatadas como marcadores precoces associados
de triagem mais utilizados em pesquisas brasileiras, aos desfechos de TEA (Kalb et al., 2010). Esses dados
destacam-se: Modiied Checklist for Autism in Toddlers apontam para a necessidade de uma avaliação mais
(M-CHAT), Autism Behavior Checklist (ABC), Autism acurada do desenvolvimento infantil, especialmente
Screening Questionnaire (ASQ) e Childhood Autism nos casos em que as habilidades e comportamentos
Rating Scale (CARS), questionários destinados aos pais descritos estiverem deicitários ou prejudicados.
ou cuidadores, de fácil aplicação e baixo custo. Para Na Europa, Estados Unidos e Japão os estudos
o diagnóstico do transtorno, destacam-se a entrevista apontam um progressivo aumento das taxas de
Autism Diagnostic Interview-Revised (ADI-R) e a prevalências de TEA na população, que segundo

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pesquisas recentes variam entre 0,6% e 1%, sendo o Para avaliação destes sintomas, foram utilizados o
transtorno muito mais prevalente do que se imaginava Modiied Checklist for Autism in Toddlers (M-CHAT)
há algumas décadas (Fombonne, 2009). Estudos (Robins, Fein, Barton, & Green, 2001) e a Pictorial
epidemiológicos de outras regiões do mundo fornecem Infant Communication Scales (PICS) (Delgado,
dados menos robustos, mas que apontam na mesma Mundy, & Block, 2001), ambos preenchidos pelas
direção (Elsabbagh et al., 2012). No Brasil, até o cuidadoras das creches que as crianças frequentavam.
presente momento, foi realizado um único estudo O principal resultado da pesquisa foi a identiicação
(piloto) estimando a prevalência de TEA em 0,3% de cinco crianças com idades entre 16 e 24 meses com
(Paula, Ribeiro, Fombonne, & Mercadante, 2011), suspeita de TEA (fase 1).
portanto, novas pesquisas nacionais seriam de grande O presente estudo baseou-se numa reavaliação de
relevância no sentido de veriicar de forma mais acurada parte da amostra anteriormente investigada, incluindo
a prevalência do transtorno na população brasileira todas as crianças de alto risco e um grupo de crianças
(Bosa, 2006). A partir destes estudos, é possível estimar de baixo risco para TEA (fase 2). Na 2ª fase, as crianças
que aproximadamente 1,5 milhões de brasileiros consideradas de alto risco para TEA (segundo M-CHAT
tenham TEA (Paula et al., 2011), o que aponta para aplicado na fase 1) foram pareadas com crianças
a relevância do tema, assim como para a necessidade que haviam sido consideradas de baixo risco para o
de estudos que contribuam para a identiicação de transtorno e passaram por uma protocolo de avaliação
casos, a im de consolidar conhecimentos que possam que será descrito abaixo. Após um período de seis a
sustentar a elaboração de políticas públicas para assistir nove meses todas as crianças já tinham completado três
adequadamente essa demanda. anos e foram novamente avaliadas pela mesma equipe
Paralelamente, uma recente revisão sistemática de pesquisadores, compondo a 3ª fase da pesquisa. O
brasileira sobre TEA mostrou um aumento signiicativo organograma abaixo apresenta as três fases do estudo
da produção acadêmica sobre o tema, especiicamente com os correspondentes instrumentos de cada uma
nos estados de São Paulo e Rio Grande do Sul. No delas (Figura 1).
entanto, a maior parte das publicações apresenta
fragilidades metodológicas, como amostras reduzidas
e intervenções sem controle de variáveis, enquanto que Fase 1 Fase 2 Fase 3

estudos sobre a identiicação precoce de TEA incluindo 4 crianças – identiicadas


com alto risco de TEA
3 crianças – identiicadas
com alto risco de TEA (1 perda)

dados de observação direta da criança e o seguimento Instrumentos: ABC, OERA,


Vineland, Bayley
Instrumentos: ABC, OERA,
Vineland, Bayley e avaliação

de casos no decorrer do tempo são praticamente


104 crianças clínica
instrumentos: M-Chat
e PICS 8 crianças – grupo controle 8 crianças – grupo controle
inexistentes (Teixeira, et al., 2010). Instrumentos: ABC, OERA,
Vineland, Bayley
Instrumentos: ABC, OERA,
Vineland, Bayley e avaliação
Considerando a relevância do assunto, o grande clínica

número de indivíduos com TEA e a necessidade de


novas pesquisas em cenário nacional, os objetivos Figura 1. Organograma das atividades realizadas
deste estudo foram: acompanhar crianças que tiveram discriminadas por fases.
sinais precoces de TEA rastreados, em uma pesquisa
anterior, a im de conirmar ou refutar o diagnóstico
do transtorno e veriicar se um protocolo estruturado Amostra
de observação desenvolvido no Brasil seria capaz de O grupo de crianças que compõem a amostra do
discriminar crianças de alto e de baixo risco para TEA. presente estudo é proveniente de cinco das 21 creches
públicas do município de Barueri, que oferecem 700
MÉTODO vagas por ano para novas crianças, permitindo seu
ingresso aos 12 meses de idade (Prefeitura Municipal
Este projeto seguiu o desenho quantitativo obser- de Barueri, 2012).
vacional, em que um grupo de crianças de creches A amostra da segunda fase do estudo era ini-
públicas do município Barueri-SP foi avaliado e cialmente composta por cinco crianças consideradas de
acompanhado por um período de seis a nove meses. alto risco para TEA, provenientes das 104 avaliadas no
Primeiramente faz-se necessário descrever breve- estudo de 2009 rastreadas a partir da escala M-CHAT,
mente uma pesquisa concluída em 2009 (Carvalho no entanto, uma criança mudou de cidade e a mãe
et al., 2013), a qual o estudo atual dá continuidade. se recusou a participar das outras fases do estudo,
O principal objetivo daquela pesquisa foi identiicar sendo considerada uma perda. Assim, a amostra de
sinais precoces de TEA em uma amostra de 104 crianças de alto risco para TEA (casos) passou a ser
crianças ingressantes em creches públicas de Barueri. constituída de quatro sujeitos. Para formar o grupo

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controle, foram selecionadas oito crianças a partir dos ilmadas e posteriormente pontuadas por especialistas
99 casos identiicados como de baixo risco para TEA em TEA: (1) resposta ao nome; (2) iniciação da atenção
na fase 1 (dois controles para cada caso). A seleção do compartilhada; (3) resposta à atenção compartilhada;
grupo controle foi feita por pareamento com os casos (4) imitação funcional e simbólica; (5) resposta ao
da seguinte forma: cada caso foi pareado com duas sorriso; (6) nomear iguras; (7) compartilhamento
crianças do mesmo sexo, com idades aproximadas, de prazer em jogo de bolha de sabão e (8) apontar
que frequentavam as mesmas creches, mas que para objeto. Durante toda a prova, os avaliadores
apresentavam baixo risco de serem diagnosticadas também observam, registram e pontuam o peril
com TEA (crianças que não tiveram sinais precoces comportamental da criança considerando a presença/
de TEA rastreados por meio do M-CHAT e da PICS na ausência de outros 14 itens englobando os seguintes
avaliação de 2009). aspectos: (1) linguagem e comunicação (6 itens, como
por ex: quantidade e qualidade da vocalização dirigida
Instrumentos ao outro; presença de ecolalia); (2) interação social
Fase 1 recíproca (4 itens, como por ex: ausência de sorriso
Modified Checklist for Autism in Toddlers social espontâneo; adequação e intencionalidade
(M-CHAT): escala estruturada desenvolvida para da expressão facial); e (3) estereotipias motoras,
rastreamento de sinais de TEA, contendo 23 questões maneirismos, comportamentos de autoagressão e
do tipo sim/não, relacionadas à avaliação de Resposta comportamentos estereotipados (4 itens). Cada item
Social (interesse em outras crianças e imitação) e deve ser pontuado como SIM (para comportamento
Atenção Compartilhada (protodeclarativa e olhar presente = 1 ponto) ou NÃO (para comportamento
monitorado). A escala foi desenvolvida para ser aplicada ausente = zero pontos). Deste modo, a pontuação total
a pais de crianças com idades entre 16 e 30 meses no do OERA pode variar de zero e 22 pontos, sendo 8
formato autoaplicável (Kleinman et al., 2008). pontos relativos as provas estruturadas e 14 pontos
referentes a avaliação global do peril comportamental
Fase 2 durante toda a avaliação. Este protocolo permite
(a) Autism Behavior Checklist (ABC): Instrumento estabelecer o desfecho de “provável caso de TEA” ou
desenvolvido para o rastreamento de sinais precoces de de criança com desenvolvimento típico.
TEA, destinado aos pais e cuidadores. Abarca itens que (c) Escala Comportamento Adaptativo de Vineland:
investigam déicits em três domínios: sociabilidade, co- tem como objetivo avaliar a independência pessoal e
municação e comportamentos estereotipados e restri- social das crianças e adolescentes, desde o nascimento
tivos. Possui 57 itens que avaliam indivíduos com idades até 18 anos de idade, descrevendo, portanto, seu
entre 18 e 35 meses nas seguintes áreas: sensoriais, comportamento adaptativo. A Vineland tem três versões
relacionais, imagem corporal, linguagem, interação e no presente estudo foi utilizada a Versão Entrevista
social e autocuidado (Krug, Arick, & Almond, 1980). mais Formulário Expandido, que é baseada em uma
(b) Protocolo de Observação Estruturada para entrevista com pais e dura aproximadamente de 20
Rastreamento de Autismo (OERA): desenvolvido por minutos (Sparrow & Cicchetti, 1985). A avaliação do
nossa equipe com base nos principais sinais precoces nível de comportamento adaptativo das crianças com
de TEA relatados na literatura (Baranek, 1999; Belini TEA foi incluída no presente estudo, pois devido a
& Fernandes, 2007; Clifford et al., 2007; Ozonoff grande variabilidade nos quadros de TEA, esta tem
et al., 2008) e nas provas da The Autism Diagnostic sido considerada um dos melhores norteadores da
Observation Schedule-Generic (ADOS-G), instru- evolução individual, particularmente frente a sujeitos
mento internacional considerado padrão-ouro para o submetidos a intervenções.
diagnóstico de TEA (DiLavore, Lord, & Rutter, 1995). (d) Bayley Scales of Infant Development III
A partir deste material, foram selecionadas as provas (Bayley): é uma escala aplicável a crianças de 1 a
consideradas as mais relevantes teoricamente, ao mesmo 42 meses de idade, fornecendo um escore de desen-
tempo em que eliciavam comportamentos observáveis volvimento intelectual que é considerado equivalente
e que não necessitavam muito conhecimento clínico do ao futuro escore de índice de inteligência – QI. Os
avaliador, facilitando o uso do OERA por proissionais escores estabelecidos pela Escala Bayley têm se
pouco especializados. A OERA é composta por oito mostrado equiparáveis aos testes padronizados de
provas que eliciam comportamentos especiicamente inteligência destinados a crianças maiores de cinco
relacionados aos sintomas centrais de TEA. Durante anos, mostrando-se um bom preditor de QI (Eldevik
10 a 15 minutos o avaliador interage com a criança et al., 2009). Uma das áreas mais importantes para a
seguindo as seguintes provas estruturadas que são avaliação da independência e melhor prognóstico de

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crianças com TEA, se refere ao seu desenvolvimento mantendo-se o sigilo das informações e o anoni-
intelectual, por isso essa medida foi incluída no mato dos participantes. Além disso, um termo de
presente estudo. imagem foi assinado por todas as mães quando seus
ilhos ingressaram nas creches em que a pesquisa
Fase 3 foi realizada, sendo assim permitida a utilização das
Além dos instrumentos aplicados na fase 2, nessa imagens das crianças nas ilmagens desta pesquisa.
terceira fase foram realizadas também avaliações Esse estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética
médicas: uma avaliação clínica das 11 crianças por em Pesquisa com Seres Humanos da instituição
um médico geneticista e especialista em TEA, com de ensino em que foi realizado, sob o protocolo
base nos critérios do Manual Diagnóstico e Estatís- no 0005.0.272.000-09.
tico de Transtornos Mentais (American Psychiatric Ao inal da pesquisa foi realizada uma devolutiva
Association, 2000), com o objetivo de estabelecer o a comunidade, por meio de palestras sobre atrasos
diagnóstico de TEA ou descartar o transtorno. de desenvolvimento neuropsicomotor para os pro-
issionais das creches envolvidas. Para os pais das
Procedimentos quatro crianças com suspeita de TEA também foi feita
Em 2010, as famílias das quatro crianças que tiveram uma devolutiva individual de acordo com o desfecho
sinais precoces de TEA detectados segundo M-CHAT do estudo na terceira fase.
na pesquisa de 2009, assim como as famílias dos oito
controles, foram contatadas para novas avaliações RESULTADOS
por meio da Secretaria da Educação de Barueri. As
avaliações das crianças foram realizadas em salas Entre a 2ª e a 3ª fase do estudo foi possível localizar
privativas das creches (com exceção de uma criança 11 das 12 crianças da amostra, três com suspeita de
que havia saído da creche), enquanto as mães foram TEA e oito sem suspeita de TEA, já que uma das
entrevistadas em casa ou na própria creche dependendo crianças mudou de cidade neste período e por mais
de sua disponibilidade. As avaliações médicas foram que tivéssemos solicitado uma entrevista, os familiares
realizadas na creche, em sala previamente designada não aceitaram. Dos 11 casos avaliados nestas duas
pela coordenação, havendo o cuidado de minimizar o novas fases, veriicou-se que nenhum deles conirmou
impacto da presença dos pesquisadores na rotina das diagnóstico de TEA após completarem três anos de
crianças e dos funcionários de cada uma das creches. idade, segundo o diagnóstico médico realizado pelo
O OERA foi realizado por meio de gravações de geneticista da equipe, assim como de acordo com
vídeos estruturados de aproximadamente 10 minutos instrumento ABC.
que posteriormente foram analisados por duas Como esperado, o OERA foi sensível em identiicar
psicólogas especialistas na área de autismo, para avaliar o desenvolvimento típico das 11 crianças, ou seja,
o nível de risco para TEA dos casos. Considerando não houve diferenças na pontuação do protocolo
aspectos das provas especíicas em conjunto com a de observação estruturada entre os três casos com
avaliação geral, as crianças foram classiicadas pelas suspeita de TEA e os oito sem suspeita de TEA, tendo
especialistas como provável caso de TEA ou como todos eles pontuado entre zero e dois. Contudo, não
criança com desenvolvimento típico. As duas psicólogas foi possível estabelecer o ponto de corte do OERA,
eram completamente neutras (“cegas”) quanto: (i) aos já que todas as crianças negativaram para TEA.
objetivos do estudo, (ii) quanto a condição das crianças As observadoras independentes (duas psicólogas
avaliadas, ou seja, se eram de alto risco ou de baixo experientes na assistência a crianças com TEA)
risco para TEA, (iii) assim como quanto a pontuação concordaram em 100% quanto ao desfecho negativo
que estava sendo fornecida por sua colega. O critério das 11 crianças, enquanto sutis variações (de um a
de concordância entre examinadores foi dado em dois pontos) foram veriicadas no cômputo total do
relação à pontuação total do OERA, assim como em OERA.
relação ao desfecho inal fornecido pelo instrumento: A im de descrever mais detalhadamente o peril
provável caso de TEA ou desfecho negativo para TEA. clínico e comportamental de cada um dos casos
Assim, o critério de concordância entre examinadores classiicados como suspeitos de TEA segundo o
foi emitido por consenso. M-CHAT e aprofundar a compreensão dos aspectos
em que apresentavam atrasos no desenvolvimento
Considerações éticas (que futuramente se mostraram não especíicos para
Todas as avaliações foram realizadas após o os TEA), abaixo apresentaremos os resultados nos
consentimento por escrito das mães ou responsáveis, testes obtidos por cada um deles.

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Caso 1 – A., gênero feminino. É importante ressaltar que como A. saiu da creche
após a primeira fase do estudo, é provável que não
Aos 20 meses, foi aplicado o instrumento de tenha tido estimulações e contatos sociais com outras
rastreamento M-CHAT (tendo as cuidadoras das creches crianças de sua idade o que pode ter afetado a qualidade
como informantes) cujo resultado foi “risco elevado de sua interação social, justiicando seu comportamento
para TEA”, identiicado pela falha em um único ponto reservado diante de pessoas desconhecidas e de uma
crítico “<nome da criança> já usou o dedo indicador câmera de vídeo, bem como alguns indicadores de
dele para apontar, para pedir alguma coisa?”. Em atraso no desenvolvimento em relação às crianças de
contrapartida, aos 42 meses, foi aplicado o ABC, cujo mesma idade.
ponto de corte é 47, e apontou “negativo para TEA”, Em resumo, dado o desfecho negativo para
obtendo um total de 35 pontos, abaixo do esperado TEA avaliado pelo ABC, pode-se inferir que esses
para ser considerado como “leve probabilidade de comportamentos emitidos por A. podem ser mani-
Autismo”. Embora A. tenha pontuado positivo em festações de traços de personalidade associados à
alguns comportamentos indicativos de sinais para timidez, retraimento e a baixa qualidade de interação
TEA, como uso inadequado de pronomes e hábito de social em comparação com as crianças da mesma
repetir perguntas, o déicit no item “não apontar para faixa etária avaliadas em nossa pesquisa. Dessa
pedir alguma coisa”, anteriormente identiicado pelo, forma, percebe-se a importância da observação direta,
M-CHAT não se manteve com o passar do tempo, demonstrado por Baranek (1999) em seus estudos,
indicando falhas temporárias no desenvolvimento, para assim poder identiicar os traços de atraso de
o que não é compatível com o quadro de TEA. Na desenvolvimento característicos do TEA diferenciando-
primeira avaliação da Bayley, A. apresentou escore os das particularidades de cada criança e assim, analisar
médio inferior no domínio da linguagem. Ressalta-se a situação dado o seu contexto global.
que na segunda avaliação a criança já havia atingido a
idade máxima de 42 meses admitida pela escala, dessa Caso 2 – K., gênero masculino.
forma, fez-se uma leitura qualitativa dos resultados e K. falhou em apenas um item crítico do M-CHAT
embora A. tenha se apresentado globalmente dentro (respondido pelas cuidadoras das creches), a saber:
do desenvolvimento normal, manteve um atraso de “<nome da criança> alguma vez trouxe objetos para
linguagem expressiva. você (pais) para lhe mostrar este objeto?”. Neste caso,
Em relação à Vineland, a primeira aplicação foi o M-CHAT não foi capaz de discriminar sintomas de
feita quando A. estava com 40 meses e a segunda TEA de sintomas ligados a um atraso mais global.
com 46 meses, sendo que o domínio da linguagem, Essa criança tem uma limitação física particularmente
prejudicado na primeira avaliação manteve-se abaixo acentuada nos membros inferiores, tendo uma suspeita
do esperado para sua idade cronológica. O escore total de paralisia cerebral do tipo diparesia espástica.
da escala apontou para atraso no desenvolvimento nas As diiculdades motoras apresentadas pela criança
duas últimas fases do estudo, sendo que foi obtida uma acabaram levando, portanto, à identiicação de um caso
diferença de sete meses negativos em relação à primeira falso positivo.
avaliação e quatro meses negativos na equivalência Na segunda fase do estudo, quando tinha três
etária em relação à segunda aplicação, havendo ligeira anos e oito meses, K obteve pontuação baixa no ABC
melhora da primeira para a segunda avaliação. (sete pontos positivos), tendo sido classiicado como
Na aplicação do OERA, houve consenso entre “criança normal”. Por outro lado, mesmo com uma
as duas psicólogas avaliadoras tanto em relação ao baixa pontuação neste instrumento de rastreamento,
desfecho negativo para TEA, quanto para a identiicação K tinha alguns atrasos, como por exemplo, não
de diiculdades nos domínios de interação recíproca e conseguia se vestir sozinho, assim como problemas
de linguagem. No campo linguagem, os prejuízos mais de comportamento como destrutividade em relação
signiicativos foram veriicados nas questões relativas a objetos da casa, e ter o hábito de brincar girando e
à “vocalização dirigida ao outro” (baixa qualidade batendo os objetos várias vezes.
e frequência da vocalização dirigida socialmente) Já em relação à avaliação cognitiva, K. apresentou
e “entoação de vocalizações ou verbalizações” atraso em todos os domínios da escala Bayley na
(indicando anormalidades da fala, como discurso segunda fase da pesquisa: média baixa para domínio
lento e/ou hesitante). Ambos avaliadores destacaram a cognitivo e limítrofe para os domínios de linguagem
timidez excessiva de A. durante a gravação do vídeo, e motor. Na terceira fase, a criança continuou apre-
sendo que essa diiculdade, provavelmente prejudicou sentando atrasos nos domínios cognitivo, linguagem
seu desempenho durante as avaliações. receptiva e expressiva e atraso expressivo nos domínios

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motores (ino e grosso), mesmo tendo excedido a idade siderada com risco para TEA devido à identiicação
limite das Escalas de Bayley. Esse atraso tão evidente se de problemas em três itens, sendo todos eles não
deu principalmente devido a sua limitação física global, graves: “O (a) <nome da criança> gosta de subir em
pois mesmo nas provas cognitivas e de linguagem, a coisas como, escadas ou móveis?”, “<O (a) nome da
escala Bayley exige movimentações e comporta- criança> já pareceu muito sensível ao barulho (ex:
mentos motores que provavelmente inluenciaram tapando os ouvidos)?” e “O (a) <nome da criança> faz
negativamente todos os domínios de avaliação. movimentos estranhos com os dedos perto do rosto
Em relação à Vineland, K. realizou a primeira dele”. Aos 50 meses, segundo o instrumento ABC,
testagem com 2 anos e 6 meses, sendo seu desempenho S. teve pontuação 15 sendo considerada sem risco
global correspondente ao de uma criança de 3 anos, para TEA. Porém, é interessante ressaltar, que os dois
e apresentou um desempenho equivalente a três anos sintomas anteriormente identiicados pelo M-CHAT
de idade para as áreas de comunicação, mesmo com foram conirmados no ABC: “Balança as mãos” e
sua diiculdade motora. Em contrapartida, K. teve “Tapa as orelhas para vários sons”. Estes sintomas são
um desempenho inferior ao da sua idade na terceira incomuns em crianças com desenvolvimento típico
fase do estudo quando ele tinha 3 anos e 7 meses. e mereceriam uma investigação mais criteriosa da
Na avaliação geral, ele apresentou um desempenho criança, a im de descartar um possível caso de TEA.
condizente ao de uma criança de 2 anos e 9 meses, Se por um lado sabemos que apenas três sintomas
obtendo escores bastante inferiores na área da co- não permitem a classiicação de TEA, por outro,
municação (equivalência etária de 2 anos e 5 meses) e diferentemente das outras duas crianças relatadas
de habilidades motoras (equivalência etária de 1 ano e acima, os sintomas de S. parecem mais ligados a este
9 meses). Faz-se necessário destacar esse retrocesso no quadro clínico, principalmente pelo fato destes terem
desenvolvimento de K. mesmo estando ele exposto às permanecido estáveis aos quatro anos de idade. Como
estimulações da creche. Uma possível explicação para S. foi avaliada por um médico especialista em TEA e
isso é que com o passar do tempo, o nível de exigência o diagnóstico deste foi excluído, é possível que estes
dos testes de avaliação ica maior, e uma criança como sinais sejam indicativos de outras condições ainda
K. que apresenta déicits motores, vai icando mais não explicadas pela avaliação do presente estudo.
atrasada em relação aos pares da mesma idade. Outra suposição é que um comportamento normal ou
No OERA, K. interagiu o tempo todo com o avaliador decorrente de outro aspecto do desenvolvimento tenha
e apesar de apresentar diversos lapsos na linguagem, sido superestimado pela mãe que foi quem respondeu o
buscou ativamente estabelecer diálogo na maior parte ABC. Por exemplo, ao analisar em detalhes o protocolo
da prova. Além disso, não apresentou déicits em provas de S. veriicamos que no item “Balança as mãos” do
bem signiicativas para o estabelecimento de TEA, ABC, havia uma observação do entrevistador de que
como iniciação e resposta a atenção compartilhada, apesar de presente, este sintoma se restringia apenas
tampouco na prova do chamado ao nome. Assim, o aos momentos, que segundo a mãe, S estaria fazendo
OERA realizado quando K. tinha 30 meses, deixou birra. De qualquer modo, S, pontuou negativamente na
evidente que não se tratava de uma criança com TEA, 2ª fase do estudo, em todos os instrumentos relativos
mas de uma criança com déicits motores. à TEA (ABC, OERA e avaliação médica segundo
Em resumo, dada a alta sensibilidade do M-CHAT critérios do DSM-IV).
para identiicação de transtornos globais do desen- Em relação ao teste Bayley, na primeira aplicação,
volvimento, pode-se dizer que nesse caso em particular, com 41 meses, a criança apresentou média baixa para o
mostrou-se pouco especíico na identiicação de TEA, domínio linguagem. Na segunda testagem, S conseguiu
pois os atrasos de K eram decorrentes de seus déicits realizar as provas propostas pela Bayley apresentando
motores que o M-CHAT não discriminou dos de TEA. algumas falhas nas provas de linguagem, contudo, sua
Essa limitação do M-CHAT vai de encontro com as idade havia ultrapassado o limite de 42 meses deste
orientações de especialistas em TEA que referem que teste. Por meio de uma análise qualitativa, é possível
dados informados pelos cuidadores devem ser aliados airmar que globalmente S. se encontra dentro da
à observação direta dos comportamentos da criança faixa da normalidade na avaliação da Escala Bayley
(Ozonoff et al., 2008), que o OERA captou bem na III, mesmo que aspectos da linguagem apareçam
presente pesquisa. moderadamente comprometidos.
Na primeira aplicação da Vineland, S. estava
Caso 3 – S., Gênero: feminino. com 38 meses e apresentou atrasos evidentes nos
O M-CHAT foi respondido pela cuidadora da domínios da comunicação (desempenho equivalente a
creche quando S. tinha 24 meses. A criança foi con- uma criança de 18 meses), sendo que este atraso foi

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Identiicação de sinais precoces de autismo ... 509

atenuado na terceira fase quando ele tinha 50 meses deste transtorno e citaram a timidez como um dos fatores
de idade e desempenho correspondente ao de uma que inluenciaram negativamente seu desempenho nas
criança de 44 meses. Na avaliação global da Vineland, provas. Ao analisar o vídeo, o padrão comportamental
a criança apresentou atraso, sendo seu desempenho de timidez é evidente, indicando que as falhas de S. são
correspondente ao de uma criança de 45 meses. predominantemente desta natureza e não reletem um
Assim, S continuou com algum atraso no domínio da peril apresentado por crianças com TEA.
comunicação, mas com melhoras expressivas entre Em resumo, essa criança apresenta déicits na área
as últimas duas fases do estudo. Conclui-se com isso, da comunicação que se mostram estáveis no decorrer
que S. apresenta certo atraso na linguagem que merece das fases da pesquisa, tanto segundo a informação
estimulação, mas quando analisado o comportamento dos pais quanto na observação da criança (OERA).
global da criança, percebe-se que este atraso não O domínio da comunicação é um dos comprometidos
se encaixa no peril de TEA, já que outras áreas do na área dos TEA e pode ter sido o motivo para que
desenvolvimento não estão comprometidas. essa criança tenha sido classiicada precocemente
Em relação ao OERA, realizada aos 34 meses como risco para TEA, mesmo que este diagnóstico
o avaliador 1, identiicou dois comportamentos não tenha sido comprovado. Neste caso, o instrumento
compatíveis com sintomas de TEA, ambos na área OERA foi o mais eicaz para discriminar timidez com
da linguagem e comunicação. A primeira delas foi déicits na linguagem de um quadro TEA, apontando
uma falha na “frequência da vocalização dirigida ao para a importância da observação direta dos casos
outro” a segunda, uma inadequação na “entonação de (Baranek, 1999; DiLavore, Lord, & Rutter, 1995),
vocalizações ou verbalizações”. Nota-se que ambas as assim como para mais uma evidência de eicácia do
provas apontam para uma limitação de S. em procurar OERA.
o examinador para estabelecer uma conversa, seja ela
amigável ou para exprimir suas necessidades, além Caso 4 – E., masculino.
de pouca variação do tom, com a fala tendendo a ser Mudou-se de cidade e a família se recusou a con-
lenta e monótona. Já o avaliador 2 não identiicou sinais tinuar a participar do estudo, por isso foi considerado
de TEA, pontuando um total de zero nesta avaliação. perda amostral.
Mesmo que o avaliador 1 tenha identiicado dois Os principais resultados do estudo encontram-se
sintomas de TEA, ambos refutaram o diagnóstico geral sintetizados na Tabela 1, a seguir.

TABELA 1
Caracterização de desempenho das crianças com alto risco de desenvolverem TEA,
segundo instrumentos de avaliação utilizados nas três fases do estudo.
M-CHAT ABC BAYLEY VINELAND OERA Especiicidades
Identiicação
Fase 1 Fases 2-3 Fases 2-3 Fases 2-3 Fases 2-3 do caso
Caso 1 Risco elevado Negativo Escore médio inferior Domínio da Diiculdades Indicadores
Feminino para TEA: para TEA no domínio de linguagem abaixo nos domínios de comportamentais
falhou em um linguagem expressiva do esperado para a interação recíproca de timidez e
item crítico idade e de linguagem. retraimento
Avaliadores
destacaram a timidez
excessiva
Caso 2 Risco elevado Negativo Atrasos nos domínios Déicits nas áreas da Sem déicits em Limitação física
Masculino para TEA: para TEA cognitivo, linguagem comunicação e de provas de TEA; evidente decorrente
falhou em um receptiva/ expressiva; habilidades motoras indicadores de de suspeita de
item crítico e motores ino/grosso déicits motores paralisia cerebral
Caso 3 Risco elevado Negativo Na faixa da Atraso no domínio Sem déicits em Indicadores
Feminino para TEA: para TEA normalidade; da comunicação, provas de TEA; comportamentais
falhou em um alguns aspectos da mais atenuado na indicadores de de timidez e
item crítico linguagem afetados fase 3 diiculdades retraimento com
emocionais e comprometimento
comportamentais na comunicação
como timidez
interferindo no
desempenho nas
provas
Caso 4
– – – – – –
masculino

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510 Alckmin-Carvalho, F., et al.

Um dos achados mais importantes do estudo mentas de avaliação em monitoramentos periódicos


foi veriicar que os resultados do OERA analisados para esclarecer se os sinais/sintomas medidos por
por duas psicólogas foram 100% compatíveis com elas são ou não preditores do futuro diagnóstico
o instrumento de rastreamento ABC e da avalição de TEA (Hathorn, Alateegi, Graham, & O’Hare,
médica com o DSM-IV, ou seja, as 11 crianças da 2014).
amostra foram consideradas com desenvolvimento Um diagnóstico de TEA exige cautela em relação
típico. Este resultado indica que no grupo estudado ao uso de instrumentos e, posteriormente no que
o OERA mostrou-se eicaz para discriminar as concerne à devolutiva aos familiares e proissionais
crianças que não preencheram o diagnóstico de TEA envolvidos, deixando claro que atrasos precoces
de acordo com o DSM-IV (American Psychiatric devem ser avaliados mais acuradamente antes de
Association, 2000). Entretanto, pelo fato de nenhuma serem considerados problemas mais sérios compatíveis
delas ter fechado diagnóstico de TEA, ao inal do com TEA. Nesse sentido o presente estudo pode
estudo não foi possível conirmar se o instrumento ser tomado como modelo em unidades de educação
também é eicaz para identiicar casos positivos de infantil já que permitiu não só veriicar sinais de TEA
TEA. Essa é uma limitação da presente pesquisa, e como de outros atrasos de desenvolvimento, segundo
novos estudos com a participação de crianças com avaliações em momentos distintos do desenvolvimento
diagnóstico pré-conirmado de TEA são recomen- infantil. O estudo teve a limitação de trabalhar como
dáveis. um grupo amostral pequeno desde a primeira fase
O fato de nenhum dos casos ter fechado do estudo formado por 104 crianças, entretanto
diagnóstico de TEA indica que o M-CHAT mostrou-se considera-se expressivo que em quatro delas tenha
um instrumento sensível para identiicar precocemen- sido constatada a suspeita para TEA. Adicionalmente,
te atrasos globais do desenvolvimento, mas pouco aponta-se que os instrumentos de rastreamento de
especíico para identiicar TEA; ou seja, apesar sinais precoces de TEA foram preenchidos por
de ser um instrumento muito útil na avaliação de diferentes cuidadoras em cada uma das etapas do
atrasos globais do desenvolvimento, deve ser usado estudo, sendo esta uma fragilidade metodológica,
com cautela no rastreamento de sinais precoces de que procuramos minimizar, tendo como critérios de
TEA. inclusão cuidadoras que (i) tinham no mínimo um
ano de contato com a criança em avaliação e (ii) que
CONCLUSÕES se declararam capazes de responder às questões dos
questionários.
Se por um lado a identiicação precoce é uma A análise de vídeos tem sido uma ferramenta
medida de alta relevância, pois permite intervenções bastante utilizada internacionalmente para comparar
precoces, levando ao melhor prognóstico dos casos o desenvolvimento de indivíduos ao longo do tempo.
de TEA, por outro lado, é preciso cautela com um O protocolo estruturado para análise de vídeo,
diagnóstico errôneo baseado em um único instrumento OERA, desenvolvido por nossa equipe, mostrou-se
de rastreamento. Esse estudo mostrou que o M-CHAT uma técnica acessível do ponto de vista econômico,
identiicou atrasos globais e alguns sinais críticos. No bem aceita nas creches do município estudado e
entanto, a não conirmação do diagnóstico nas fases 2 importante para a discriminação entre timidez e dé-
e 3 mostra que o instrumento é sensível a determinados icits na sociabilidade/comunicação, apresentando-se
sinais do transtorno, mas pouco especíico no que como uma estratégia adequada para avaliação do
concerne ao TEA. desenvolvimento infantil adaptada à realidade bra-
Recomenda-se que o rastreamento de suspeitas sileira. Essas evidências preliminares indicam um
de atraso de desenvolvimento ou sinais de TEA em bom potencial do protocolo como uma estratégia de
crianças até aproximadamente três anos de idade triagem para descartar crianças com desenvolvimento
seja feito com a utilização de múltiplos informantes típico de apresentarem TEA. Entretanto, na amostra
concomitantemente à observação da própria criança, estudada, nenhuma das crianças com sinais precoces
a im de garantir maior acurácia na seleção para tomar fechou diagnóstico de TEA entre três e cinco anos
as providências necessárias e poder garantir melhores de idade, o que limitou a compreensão sobre os
diagnósticos e prognósticos (Gray & Tonge, 2005). alcances do OERA. Deste modo, recomenda-se
Estudos recentes que discutem o uso de diretrizes a realização de novos estudos, com amostras mais
clínicas para o diagnóstico de TEA recomendam robustas, incluindo crianças com TEA previamente
que, em crianças de um a sete anos de idade sob diagnosticado, o que permitirá a comparação dos
suspeita de TEA, sejam utilizadas múltiplas ferra- resultados com o de crianças com desenvolvimento

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Identiicação de sinais precoces de autismo ... 511

típico e consequentemente, o estabelecimento de Elsabbagh, M., Divan, G., Koh, Y. J., Kim, Y. S., Kauchali, S.,
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512 Alckmin-Carvalho, F., et al.

Teixeira, M. C. T. V., Mecca, T. P., Velloso, R. L., Bravo, R. B., Décio Brunoni – Professor Titular do Programa de Pós-Graduação em Distúr-
Ribeiro, S. H. B., Mercadante, M. T., & Silvestre, C. (2010). bios do Desenvolvimento da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Vanessa Godoy Strauss – Graduada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Literatura cientíica brasileira sobre transtornos do espectro
Cristiane Silvestre Paula – Professora Adjunta do Programa de Pós-Gra-
autista. Revista da Associação Médica Brasileira, 56(5), 607- duação em Distúrbios do Desenvolvimento da Universidade Presbiteriana
614. doi: 10.1590/S0104-42302010000500026. Mackenzie.
Zwaigenbaum, L. (2010). Advances in the Early Detection of
Autism. Current Opinion in Neurology, 23(2), 97-102. Endereço para correspondência:
Felipe Alckmin-Carvalho
Universidade de São Paulo
Autores: Instituto de Psicologia – Departamento de Psicologia Clínica
Felipe Alckmin-Carvalho – Mestre em Psicologia Clínica pela Universidade Av. Professor Mello Moraes, 1721
de São Paulo, Professor do Departamento de Saúde III – Universidade Nove CEP 05508030 São Paulo, SP, Brasil
de Julho.
Maria Cristina Triguero Veloz Teixeira – Professora Adjunta do Programa de
Pós-Graduação em Distúrbios do Desenvolvimento da Universidade Recebido em: 16/11/2013
Presbiteriana Mackenzie. Aceito em: 15/04/2014

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