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3.

Demografia política e
políticas de segurança
Teresa Rodrigues
Aline Santos

O conhecimento das dinâmicas populacionais torna possivel monitorizar as


rápidas mudanças a que estão sujeitas as sociedades atuais, ajuda a com-
preender e antecipar riscos e ameaças e deve ser considerado como um ins-
trumento incontornável de apoio à tomada de decisão. Com efeito, os volumes,
as carateristicas etárias e por sexo de determinado universo demográfico, tal
como as suas formas de distribuição no espaço e comportamentos coletivos
representam um vetor estratégico no âmbito da segurança e defesa, introdu-
zindo-lhe algumas mais-valias que decorrem da previsibilidade associada a
alguns desses comportamentos. A análise demográfica confere de algum
modo uma base de relativa “segurança” em termos de informação sobre dada
sociedade. Este capítulo discute os diferentes contornos da relação entre
Demografia e Segurança, apelando à literatura existente, nomeadamente no
âmbito da Demografia Politica, e dando especial destaque aos vetores de
segurança mais diretamente ligados às politicas públicas. Tem como objetivo
demonstrar as diferentes formas como a ciência demográfica pode representar
uma maisvalia no apoio à tomada de decisão, com vista à criação de politicas
de segurança mais racionais e sustentáveis.

Introdução

A s questões populacionais figuram com crescente regularidade nos


debates e nas agendas políticas e pela sua diversidade e originalidade
exigem uma reflexão que envolva académicos, atores e decisores
políticos, o que ainda continua a não acontecer com a necessária frequência.
No caso específico da segurança, não parece difícil entender o quanto as
questões decorrentes do sentido, dinâmicas e caraterísticas de dado universo

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MODELOS PREDITIVOS E SEGURANÇA PÚBLICA

populacional devem ser tomadas em consideração, quer no gizar de políticas


e decisões no quadro da segurança pública ou privada, quer no entendimen-
to e previsão do contexto e especificidades da população a que se dirigem.
Assim, a Demografia, ciência que estuda as populações, suas característi-
cas e dinâmicas, e as políticas públicas estão ligadas e influenciam-se mutua-
mente1. O valor acrescentado que advém da análise demográfica em sede de
tomada de decisão política apresenta-se a dois niveis, numa mesma procura de
racionalidade e sustentabilidade. O primeiro pelo facto de que conhecer as
populações permite a adequação/otimização de cada medida às necessida-
des do universo de “utentes”em termos de género, idade, estado de saúde e
nível de informação; o segundo porque, mau grado as atuais e profundas
mudanças e os fatores de imprevisibilidade que marcam de forma inédita a
atualidade, conhecer as populações possibilita a monitorização do modo e
das direções geográficas de crescimento e distribuição no território e permite
prever com razoável segurança o que irá suceder a curto e médio prazo, dado
o fator de inércia e razoável previsibilidade a que continuam a obedecer os
comportamentos coletivos (Rodrigues, 2016).
Analisar o presente e identificar os fatores que podem ser curciais e porta-
dores de estabilidade ou mudança é um passo fundamental para saber como
otimizar recursos e fazer opções estratégicas para o futuro. E prever o futuro
próximo é determinante para os decisores e agentes de segurança, mesmo que
o impacto dessas transformações lentas possa ser diferenciado e efetuar-se em
tempos distintos. Falamos de impactos diretos imediatos, como sejam os
decorrentes da redução e variação do local de residência do total de beneficiá-
rios ou de alterações no volume e horários dos movimentos pendulares em
dada região; ou mais indiretos e de médio prazo, como as resultantes do enve-
lhecimento das estruturas etárias e consequente alteração do perfil dos agen-
tes de segurança e daqueles a quem devem garantir segurança, estes últimos
com novas e diversas vulnerabilidades, nomeadamente físicas e psíquicas, mas
com níveis médios superiores de informação, embora variável entre grupos de
um mesmo universo.
Embora sem pretensões de exaustividade, este capítulo procura contri-
buir para alertar as entidades responsáveis na esfera da segurança sobre a
relação estreita e vantajosa entre conhecimento demográfico e políticas de
segurança. Para tanto está estruturado em três partes. Na primeira parte fala

1
Este texto é baseado em Rodrigues, T., 2015 e Rodrigues, T., Dinâmicas demográficas e Segu-
rança. Jogo de Espelhos, Proelium, Academia Militar, 2018 (no prelo).

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DEMOGRAFIA POLÍTICA E POLÍTICAS DE SEGURANÇA

da ciência demográfica, dos seus ramos de especialidade e objeto de estudo.


Na segunda aborda a questão da turbulência que hoje define as dinâmicas
demográficas a nível mundial e da importância que, apesar desse facto, as
mesmas podem ter como um instrumento de apoio à tomada de decisão, com
vista à formulação de políticas de segurança consistentes e eficazes. Por último
propõe-se discutir os contornos da relação entre demografia e segurança, ape-
lando à literatura existente, nomeadamente no âmbito da Demografia Politica
(DP), uma disciplina recente, que surge em inícios do século XXI e se interessa
pelo modo como as dinâmicas e alterações demográficas em termos de estru-
tura etária, origens étnicas, competências educativas e características socioe-
conómicas afetam o contexto político a diferentes níveis, condicionam a
relação entre crescimento populacional e recursos naturais e não naturais e
influenciam o contexto de segurança colectiva e desse modo, alteram as
necessidades e objectivos a alcançar em termos de atuação no sector da segu-
rança pública.
Em última análise, queremos saber de que forma as características e
dinâmicas populacionais devem ser tidas em conta na formulação de políticas
públicas e contribuem para a sua adequação ao contexto VUCA2 e em cons-
tante mudança que hoje caracteriza a realidade mundial.

A Demografia, uma ciência social dinâmica

A Demografia é a ciência da população. O seu objeto, inicialmente foca-


do na descrição das populações humanas e respetivos comportamentos cole-
tivos, evoluiu a partir da segunda metade do século XX de uma problemática
inicial simples para uma crescente complexidade de temas e objectivos,
suportados por técnicas e métodos rigorosos e específicos. Fazendo jus às
suas potencialidades nas vertentes de reflexão e ação sobre os comporta-
mentos coletivos das populações, a Demografia passa gradualmente a incluir
outras componentes e a responder a algumas inquietações das sociedades
contemporâneas, o que a legitima como ciência relevante no apoio à tomada
de decisão em diferentes áreas de interface político, social e económico e,
por maioria de razões, na esfera das políticas públicas.

2
VUCA é o acrónimo de Volatilidade, Incerteza, Complexidade e Ambiguidade. O U.S. Army War
College utilizou esse conceito para explicar o mundo no contexto pós-Guerra Fria nos anos 90, mas
só recentemente começou a ser usado em vários setores, nomeadamente estatais e empresariais.

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Interessa saber qual a importância que um conhecimento rigoroso e


científico sobre as dinâmicas próprias das populações humanas pode ter para
explicar as dinâmicas do nosso mundo global. Na verdade, o estudo das
populações pode ser considerado um fim em si mesmo, quando as olhamos
como sistemas fechados com dinâmica endógena. Mas também o podemos
entender como a forma científica e objetiva de entender o modelo dinâmico
e aberto que caracteriza os comportamentos coletivos das populações, onde
cada variável é causa e consequência da envolvente política, económica, cul-
tural e identitária, numa teia de relações societais e numa visão holística do
sistema internacional onde se inserem em determinado momento. É clara-
mente nesta segunda perspetiva que se enquadra a maisvalia dos estudos
demográficos na esfera dos Estudos Políticos (Rodrigues, 2014a).
A Demografia é uma ciência instrumental de análise, de reflexão e de
ação. Após uma fase longa de claro predomínio da vertente quantitativa, que
lhe permitiu autonomizar-se como ciência social, a afirmação da dimensão
qualitativa no seio da ciência demográfica concretiza-se ao longo da segunda
metade do século XX. Tal evolução vai permitir e justificar o aparecimento de
diferentes ramos de especialidade, embora a diversidade das perspetivas e
metodologias autónomas criadas a partir de então nunca coloque em causa a
sua unidade intrínseca, que é garantida pela preocupação com a medida
rigorosa e elaboração e tratamento quantitativo dos fenómenos, respetivas
tendências de evolução e comportamentos coletivos, ou seja, pelo ramo
conhecido por Análise Demográfica (AD) (Rodrigues, 2014b).
A Demografia Social (DS) ou Estudos de População é outro ramo particu-
larmente relevante na perspetiva dos Estudos Politicos e das Relações Inter-
nacionais. A DS preocupa-se com a medida das dinâmicas de crescimento e
dos indicadores microdemográficos (natalidade, mortalidade e migrações)
que permitem levantar hipóteses sobre os determinantes não demográficos
e justificam determinadas mudanças de comportamento e seus impactos a
diferentes níveis da realidade. Privilegia deste modo uma abordagem inter-
pretativa, porque não lhe interessa apenas medir os comportamentos e ten-
dências populacionais, mas sobretudo saber como e porquê se verificam
certas mudanças e quais as consequências das mesmas para a realidade em
estudo. Este ramo de especialidade socorre-se de indicadores nem sempre
demográficos e apela à interdisciplinaridade com outras ciências sociais (geo-
grafia, economia, sociologia, antropologia, ciência política), mas também
recolhe contributos da medicina, arquitetura e outras. A preocupação em
compreender os fenómenos, as causas que lhe deram origem, a sua influên-

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DEMOGRAFIA POLÍTICA E POLÍTICAS DE SEGURANÇA

cia e respetivas consequências, inclusive a nível não demográfico (ambiental,


social, político, económico) é permanente.
Simultaneamente, a passagem gradual da Demografia de uma perspetiva
analítica para uma sistémica, levou-a a desenvolver uma área designada Ecolo-
gia Humana (EH) (Rodrigues, 2013). Em termos genéricos podemos dizer que a
EH analisa as interações entre as populações humanas nos seus diferentes
ambientes. Ao olhar o homem como um ser biocultural, dando igual importân-
cia às suas componentes biológicas e de capacidade de organização social, a EH
permite uma nova forma de ver os comportamentos coletivos. Tem uma área
de estudo mais vasta do que a AD, mas não pode existir sem ela, uma vez que é
a AD que garante o pano de fundo para as suas investigações, que são as dinâ-
micas das populações. A contribuição dos estudos ecológicos para o conheci-
mento dos comportamentos humanos assume três formas distintas: usa os
índices demográficos como reflexo do ajustamento da população ao seu
ambiente; vê esses índices como resultado das transformações de uma dada
sociedade; utiliza os indicadores demográficos como índices da estrutura
comunitária ou do processo ecológico. A EH acrescenta-lhe a análise dos fato-
res externos envolventes (a organização social, a distribuição no espaço, a pre-
disposição genética…). As migrações, a globalização do envelhecimento das
estruturas etárias, as alterações no modelo de fecundidade são indicadores das
formas diferentes e mutáveis como o homem lida com o meio.
Com particular interesse na interface com as políticas públicas existe o ramo
das Políticas Demográficas (PD), as quais mantêm ligações estreitas de caráter
nacional e internacional com o setor político. As PD propõem-se atuar sobre os
modelos de comportamento das populações, com vista a obter um equilíbrio
entre totais, tendências de crescimento, distribuição no espaço, recursos dispo-
níveis e qualidade de vida. Para cumprir esse objectivo elaboram propostas de
atuação que, uma vez implementadas sob a forma de políticas ou de sensibiliza-
ção colectiva, poderão contribuir para alterar os níveis de fecundidade, mortali-
dade e esperança média de vida, movimentos migratórios. Falamos, por
exemplo, de criar incentivos ao aumento ou ao controle da fecundidade, de
reduzir os níveis de mortalidade infantil, juvenil e materna, de adaptar os volu-
mes de emigração ou imigração às necessidades de cada universo populacional.
Outro ramo com interesse no âmbito da relação entre Demografia e
Estudos Políticos é o da Análise Prospetiva (AP), cujas técnicas de estimativa
se desenvolveram na sequência dos efeitos de ordem demográfica provoca-
dos pela Segunda Guerra Mundial. Os exercícios que procuravam encontrar
tendências aplicadas a previsões de futuro (projeções demográficas) foram

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evoluindo em termos metodológicos e hoje fala-se sobretudo de AP, cujo


foco consiste em olhar o presente à luz do futuro, numa ótica de racionalida-
de e sustentabilidade. O exercício prospetivo baseia-se em cenários alternati-
vos ou jogos de hipóteses coerentes, que se destinam a obter uma visão
global, qualitativa e múltipla e fornece um panorama dos futuros possíveis ou
cenários de evolução não improváveis de determinado universo populacio-
nal, tendo em conta os determinismos do passado e o que se entende como
plausível num determinado horizonte temporal em termos de conjuntura
económica, social e política. A AP tem fortes ligações com o planeamento e
tenta conciliar uma atitude prospetiva destituída das incertezas do senso
comum, interrogatória e oposta a determinismos mecanicistas, com os
mecanismos correntes da decisão política. Apresenta como áreas de aplica-
ção privilegiada a gestão do território, o planeamento urbano e de equipa-
mentos e as políticas públicas (Rodrigues, 2014b).
E por último devemos falar de uma nova área de estudo, a Demografia
Política (DP), que Kaufmann e Toft (2011) definem como “the study of the
size, composition, and distribution of population in relation to both govern-
ment and politics”. No fundo, a DP é fruto de dois ramos, a geopolitica e a
geodemografia: analisa as mudanças observadas na relação entre espaço e
população, com vista a compreender os efeitos geopolíticos das mudanças
observadas (Dumont, 2010).
A DP surge em inícios do século XXI e fala-nos do modo como as alterações
demográficas afetam o contexto politico a diferentes escalas, estabelecendo
uma relação entre crescimento demográfico e recursos naturais e não naturais
e analisando o modo como os diferentes atores têm tentado gerir as assime-
trias que enquadram esse binómio (PoliticalDemography.org). Avalia, entre
outros, os efeitos que podem advir das mudanças sociais e perfis de certos
subgrupos, ou o impacto do aumento da idade média das populações em ter-
mos de perceção de segurança, níveis de democracia e tendências de voto.
Nesse sentido, introduz um novo nível de análise à Demografia, porque lhe
adiciona variáveis não demográficas pouco ou não consideradas até hoje e com
propostas também distintas. Quando aplicada ao futuro, a DP traduz-se em
conhecimento de caráter geopolítico (ordens de poder) (Cincota, 2017).
A DP utiliza o método experimental para observar as interações entre
realidades demográficas e geopolíticas. Esta opção permite-lhe compreender
melhor a situação e evolução geopolítica, mas também lhe permite enunciar
leis que constituem referenciais precisos para o conhecimento e compreen-
são do mundo (Dumont, 2010: 30). Em termos globais, recorre à procura de

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DEMOGRAFIA POLÍTICA E POLÍTICAS DE SEGURANÇA

“regularidades” para obter um entendimento geopolítico de determinada


realidade. Não existe análise geopolítica válida sem o conhecimento dos efei-
tos das leis da geopolítica das populações, que Dumont (2010:47) designa os
10 Mandamentos (Tabela 3.1).
Jack Goldstone é considerado o pai desta nova área científica, cujo obje-
to de estudo chamou desde logo a atenção de decisores políticos e jornalis-
tas, mas que pouco interesse tem gerado na academia internacional (Null,
2015). A razão para tal tem dois tipos de justificação. Por um lado, a resistên-
cia de muitos para optar por explicações sobre determinados contextos ou
fenómenos políticos que não sejam predominantemente focados nas rela-
ções entre Estados e as diferenças de temporalidade entre demografia e
geopolítica (esta mais conjuntural que a primeira). Por outro, porque não se
pode dar valor ao que não se conhece. Ou seja, quando falamos de termos
específicos da ciência demográfica (como coorte ou idade média de uma
população), a falta de familiaridade e formação em AD pode constituir um
obstáculo, uma vez que a ótica da DP obriga a utilizar de forma não conven-
cional indicadores estatísticos demográficos (Dumont, 2010; Cincotta, 2017).

Tabela 3.1. As leis da geopolítica da população

Fonte: Adaptado de Dumont, 2010:47

A DP agrega na sua génese quatro grandes propósitos (Weiner e Russell,


2011; Leuprecht e Goldstone, 2013):
a) avaliar as consequências políticas das alterações populacionais (pres-
são sobre os governos, controle da sua atuação, distribuição do
poder politico);

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MODELOS PREDITIVOS E SEGURANÇA PÚBLICA

b) identificar os determinantes políticos das dinâmicas da população


(especialmente as causas políticas da circulação de pessoas, os efei-
tos das estruturas etárias nas funções do Estado e no tipo e formula-
ção de políticas públicas adequadas e mais urgentes face ao volume,
composição e distribuição demográfica);
c) utilizar indicadores demográficos para identificar as grandes preocu-
pações das sociedades em termos de população versus recursos no
quadro de segurança humana;
d) avaliar o modo e intensidade como alterações na distribuição dos recur-
sos e do poder político podem surgir das alterações absolutas e relativas
na dimensão de vários subgrupos (populações urbanas/rurais, grupos
religiosos, fações partidárias, etnias, grandes grupos etários).
Embora ainda pouco estudada no âmbito da Ciência Politica e pouco
considerada pelas Relações Internacionais, a DP ajuda a compreender e pre-
venir certos riscos de segurança. Com base no quadro teórico que lhe está
inerente, a DP torna possível avaliar a relação ambígua e polivalente entre
demografia e segurança sob dois prismas distintos, embora não estanques, e
perceber 1) de que modo as dinâmicas e características de composição etá-
ria, por sexos e origem étnica influenciam a identidade, coesão e estabilidade
interna de uma sociedade (exemplo dos desequilíbrios entre sexos, assimetrias
de crescimento entre grupos religiosos ou étnicos, várias línguas oficiais) e 2)
de que modo uma sociedade é influenciada na sua composição, características
e perceções de segurança pelo contexto exógeno (níveis de integração de imi-
grantes e refugiados, dificuldades em gerir uma sociedade em mosaico, escas-
sez de recursos vitais). Qualquer deles influencia as probabilidades de
estabilidade ou tensão dentro das fronteiras políticas, não necessariamente
estatais e ambos devem ser considerados no momento da formulação de polí-
ticas públicas, nomeadamente de segurança (Rodrigues, 2016).
Na era da turbulência demográfica a que assistimos, a DP pode ser vista
como um instrumento analítico com um potencial ainda por descobrir, sobre-
tudo na parte da formulação de politicas que visem o médio e longo prazo,
podendo representar um papel de importância incontornável para os policy-
makers e constituir uma ferramenta analítica e preditiva essencial para o
apoio à análise política e à tomada de decisão (UNPD, 2017; NIC, 2017).

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População e segurança. Fatores de contexto

A população de um Estado ou região é classicamente considerada como


um elemento para aferir do seu poder. As fórmulas usadas para calcular o
poder nacional incluem o volume total de residentes e respetiva variação no
tempo, mas até há poucos anos poucos investigadores atribuíram a devida
importância às condicionantes relacionadas com as características desses efeti-
vos humanos, em termos de repartição por sexo, idade, distribuição geográfica,
atividade, habilitações, nacionalidade. Esta omissão era pouco relevante no
passado próximo, num espectro em que todas as sociedades cresciam a ritmos
moderados, apresentavam o mesmo tipo de estrutura etária (muitas crianças,
poucos idosos) e a produção económica, tendo como unidade predominante o
agregado familiar mais ou menos alargado, se concentrava maioritariamente
em atividades ligadas ao sector primário. Nesse contexto, a medida do poder
do Estado e as relações entre Estados podiam ser diretamente relacionadas,
e comparáveis com base no número total de efetivos humanos.
Mas nas sociedades contemporâneas e do futuro são as características
desses recursos humanos que fazem da população um vetor estratégico na
governança pública. Nos atuais paradigmas do sistema internacional, os con-
tingentes populacionais e as suas dinâmicas, pautadas pela desigualdade em
ritmo e características resultantes de ecossistemas distintos, representam
uma espécie de pano de fundo incontornável. Veja-se como os desequilíbrios
demográficos, as assimetrias de rendimento e bem-estar e em geral as desi-
gualdades de Desenvolvimento Humano potenciam ameaças e riscos, agra-
vam a instabilidade social, política, económica e financeira e estão na base
dos tão temidos fluxos migratórios não controlados, do tráfico de seres
humanos, do crime organizado e do terrorismo (Rodrigues, 2014a). Falamos
de novas populações e também de novas realidades, onde coexistem múlti-
plos atores e se reequacionam os equilíbrios de poder e de responsabilidade
num mundo global, porém assimétrico. Assumem-se os conceitos de segu-
rança, liberdade e justiça, agora reestruturados em função do cidadão e de
um novo paradigma, a segurança humana, fundada numa nova ordem inter-
nacional marcada por novas alianças geográficas e noções de territorialidade.
Os contributos teóricos sobre o tema optam entre considerar o capital
humano como fator fundamental da equação do poder nacional ou olhar os
equilíbrios entre população e recursos como potenciais preditores de confli-
tos. Predomina a visão clássica influenciada pela Escola Realista, que centra a

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MODELOS PREDITIVOS E SEGURANÇA PÚBLICA

segurança nacional na defesa contra ameaças diretas à sobrevivência do


Estado, de natureza maioritariamente militar. Com o fim da Guerra Fria
vários autores enfatizam a proteção dos direitos humanos e a auto-limitação
do poder coercivo do Estado e no início dos anos 80, Barry Buzan e Richard
Hulman introduzem a distinção entre hard e soft security3, defendendo que o
estudo das populações deve ser visto em termos dinâmicos e não apenas
macrodemográficos4, centrado na rede de interações e não apenas em volu-
mes. Acrescem à dimensão militar os vetores de estabilidade interna e de
proteção de segurança humana. Gradualmente a análise demográfica torna-
se um instrumento central das políticas de soft security. Envelhecimento ver-
sus crescimento, imigração internacional indesejada, emergência de ameaças
globais são alguns dos temas afetam os domínios da segurança e exigem
respostas concertadas, onde coexistem e se complementam as componentes
militar e civil (Lindley-French, 2004).
Em termos de investigação académica a reflexão sobre a importância das
dinâmicas demográficas para a segurança surge em finais dos anos 60, inicia-
da com o livro de The Population Bomb de Paul Elrich (Rodrigues, Xavier,
2013). Entendia em larga medida a insegurança, maioritariamente expressa
em conflitos entre Estados, como consequência da má articulação entre cres-
cimento demográfico, recursos vitais e desenvolvimento económico. Defen-
dia que os equilíbrios hierárquicos entre Estados no sistema internacional
dependiam do volume da sua população, que representava um fator de afir-
mação de poder, embora existissem outros determinantes a considerar, os
quais poderiam (ou não) reforçar esse poder. Entre eles figuravam aspetos
tão diferenciados como o nível médio de educação e estado de saúde, o mer-
cado de emprego e o nível de bem-estar e qualidade de vida em termos de
habitação, alimentação e lazer (Meadows, 1975).
A segunda linha de reflexão, de cariz mais histórico e economicista, está
ligada à International Studies Association, à American Political Science Associa-
tion e ao Environmental Change and Security Program (Nafeez, 2015). Marcada
pela obra de Weiner e Russell de inícios do século XXI (Weiner, Russell, 2001) e
com perfil ecológico, discute as implicações de segurança decorrentes dos

3
A primeira engloba respostas a ameaças militares, a segunda representa desafios de cariz politica,
social económica ou cultural e identitária, que poderão constituir futuras ameaças à sobrevivência
do Estado. A demografia assume uma posição de fundamental relevância para a equação do poder
relativo ao sistema internacional e para a definição da estratégia securitária e de defesa nacional.
4
Entende-se por macrodemográfico o estudo do volume, idade, sexo e distribuição espacial de
dado universo populacional.

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DEMOGRAFIA POLÍTICA E POLÍTICAS DE SEGURANÇA

moldes da relação entre população, recursos naturais e desenvolvimento, e


destaca os riscos para a estabilidade que representa a competição por recur-
sos essenciais, como a água ou os alimentos. Concentra-se na forma como as
condições ambientais, as tendências demográficas, as doenças, a tecnologia e
a globalização económica criam soluções, mas também problemas, para a
guerra e a paz, a soberania, o desenvolvimento económico, os níveis de bem-
estar coletivo. Os mais otimistas defendem as vantagens militares e econó-
micas de populações numerosas e sublinham que o desenvolvimento eco-
nómico induz inevitavelmente ao aumento de segurança.
A terceira linha de entendimento da ligação entre dinâmicas de popula-
ção e ambiente de segurança avoca uma ótica geoestratégica, geopolítica e
prospetiva. Considera o dinamismo demográfico como um vetor estratégico
de segurança e defesa e a população como uma potencial ameaça não con-
vencional (Sciubba, 2011). Defende que a conflitualidade atual e futura será
influenciada pelas tendências e níveis diferenciais de mortalidade, fecundi-
dade e migrações, porque o aumento populacional ocorre sobretudo em
países em desenvolvimento, interferindo com o poder político, a paz social e
as capacidades de arranque económico e desenvolvimento humano. Não
obstante, sublinha o modo como a população é polivalente nas suas conse-
quências. Se por um lado, a existência de uma população jovem aumenta o
risco de tensão social e conflito interno caso não existam respostas do mer-
cado de emprego, de rede educativa ou de saúde, certo é que algumas enti-
dades politicas podem ter nos ativos jovens a sua janela de oportunidade.
Qualquer que seja a nossa postura face à população, parece claro que os
volumes e dinâmicas populacionais representam um vetor estratégico no âmbito
da segurança e defesa e a Demografia, ciência social atenta às alterações do
volume, da composição e da distribuição espacial da população, assume uma
posição relevante para a equação do poder no quadro da segurança interna. As
dinâmicas demográficas são aceleradoras de mudança e devem ser lidas como
um indicador, um recurso e um multiplicador de poder, o que não significa que
devam ser consideradas ameaças, mas antes como desafios a ter em conta.
A constatação deste facto explica a forma como as questões demográfi-
cas constam cada vez mais a diferentes níveis de decisão nas agendas políti-
cas dos múltiplos atores deste mundo em processo de globalização. Não
obstante, a complexidade de alguns dos instrumentos e técnicas de análise
da ciência demográfica ergue, como referimos atrás, e numa primeira fase,
algumas dificuldades à sua correta utilização, limitando as suas potenciais
maisvalias no apoio à tomada de decisão racional e sustentada. Essa dificul-

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MODELOS PREDITIVOS E SEGURANÇA PÚBLICA

dade potencia o desconhecimento e com ele fomenta, num segundo


momento, uma visão tendencialmente pessimista quanto à ligação entre
população e segurança, que explica, nomeadamente, a securitização de
alguns vetores, como sucede com os fenómenos migratórios.
E, no entanto, existem alguns aspetos que tornam interessante a utiliza-
ção da ciência demográfica no contexto da segurança coletiva, nomeadamente
como instrumento de apoio à decisão politica. Desde logo os que decorrem do
facto de todas as populações em todos os tempos históricos e em todos os
locais obedecerem a um mesmo modelo de comportamento coletivo, variando
apenas as caraterísticas e pesos relativos das variáveis microdemográficas
(natalidade, mortalidade, migrações). Com efeito, as características de dada
população em matéria de volume, estrutura etária, equilíbrios de género e
distribuição no território permitirem detetar e prevenir fatores de risco de
(in)segurança, embora elas exijam sempre, forçosamente, o conhecimento da
conjuntura especifica a que se reportam (Rodrigues, 2016).
É assim incorreto olhar as dinâmicas demográficas como potenciais fato-
res de conflitualidade ou insegurança de per si, porque os efetivos populacio-
nais podem constituir em si mesmos fatores de risco potencial, mas também
podem representar janelas de oportunidade. Daí a necessidade de ter sem-
pre em vista e procurar estimar os impactos possíveis e mutáveis que podem
resultar das suas dinâmicas e caraterísticas específicas.
Mais do que reconhecer a importância que pode ser atribuída aos volumes
da população, importa monitorizar o modo e as direções geográficas da sua
dinâmicaA relativa inércia e previsibilidade de tendências de evolução dos
volumes demográficos permite adiantar cenários prospetivos com razoável
grau de certeza, embora menor no caso das migrações (Rodrigues, 2012).
Nenhuma parte do Mundo está imune aos efeitos das das alterações demográ-
ficas que terão lugar nas próximas décadas. Trata-se de gerir, sem colocar em
risco a segurança global, o envelhecimento sem precedentes das populações
nos países ricos e de enfrentar o ainda rápido crescimento e juventude das
populações nos restantes. Além disso, todos, independentemente do seu grau
de desenvolvimento, serão obrigados a lidar com o volume crescentes das
migrações internacionais, sejam de caracter económico ou motivadas por cri-
ses ambientais locais, instabilidade ou conflito (Goldstone, 2015) (Tabela 3.2).
De que população falamos, que ameaças, de que segurança, como se
relacionam e interagem estes vetores? Poderá o vetor demográfico representar
um fator de instabilidade e tornar-se uma ameaça? Para quem e sempre, ou
apenas em determinado contexto especifico demográfico e não demográficas?

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DEMOGRAFIA POLÍTICA E POLÍTICAS DE SEGURANÇA

Será correta a tendência predominantemente negativa de olhar o link Demo-


grafia-Segurança?

Tabela 3.2. Vetores de índole demográfica a considerar na ligação população-segurança


Nas regiões menos desenvolvidas os fatores de inércia demográfica provo-
cam o aumento rápido da população, o que só é uma oportunidade a) se for
acompanhado de estabilidade interna e b) caso exista capacidade endógena
Um mundo a duas do Estado envolvido para rentabilizar a vantagem do número de efetivos.
velocidades Nas sociedades com melhores indicadores de desenvolvimento humano
o acentuado envelhecimento das estruturas etárias fá-las perder capaci-
dade militar e força humana (hard power). Só a aposta em alianças e
investimento tecnológico poderá suprir a desvantagem do número.
Todas as regiões se tornam emissoras e recetoras de migrantes. Aumen-
ta a percentagem de estrangeiros nas sociedades e também a variedade
de nacionalidades, perfis e expectativas dos migrantes.
A globalização das
Confrontamo-nos com migrações mais sensíveis e rápidas na sua reação
migrações
a conjunturas económicas, políticas e ambientais, que geram transfor-
mações de identidade, de equilibrios de poder interno e regional e
podem provocar conflitos e insegurança.
As direções privilegiadas pelos fluxos migratórios podem reduzir a quali-
dade de vida em locais muito procurados e aumentar a probabilidade da
ocorrência e intensidade de desastres humanitários. A pobreza está a
tornar-se cada vez mais urbana.
Urbanização e Nas cidades residem as populações mais vulneráveis e são maiores as
migrações internas desigualdades sociais. A escala e complexidade das comunidades urba-
assimétricas nas exige soluções específicas para o seu desenvolvimento e segurança
(Blair, 2015). O crescimento urbano desordenado em locais de tensão
social e exclusão económica aumenta o risco de episódios de violência.
O anonimato é facilitado nos bairros de construção clandestina, tornan-
do-os safe havens para ações subversivas e terrorismo.
Trata-se em alguns casos de saber o que fazer a tantos jovens e noutros que
fazer com tão poucos (Population Action International, 2013). A alteração da
estrutura etária influencia a capacidade económica, militar e de governança.
A juventude etária tende a acentuar a reivindicação social contra o poder
Envelhecimento
instituído. A descida da idade média da população pode retardar o apa-
e/ou juventude
recimento da democracia e dificultar a estabilidade de sistemas demo-
cráticos (Urdal, 2011).
Nas sociedades com muitos idosos o isolamento e vulnerabilidade fazem
aumentar as situações de insegurança, real ou percecionada.
Fonte: Rodrigues, 2014.

69
MODELOS PREDITIVOS E SEGURANÇA PÚBLICA

As assimetrias de crescimento populacional e a globalização do envelhe-


cimento e das migrações constituem os três grandes pontos de incerteza
fundamental no link demografia e segurança. Todos decorrem do processo
de evolução da transição demográfica e são eles os três fatores de contexto
em termos do sistema de segurança global.
A Teoria da Transição5 e a inevitabilidade que parece acompanhar a evo-
lução de todos os universos populacionais nas suas diferentes fases (Figura
3.1) pode ser a chave para compreender as questões de segurança demográ-
fica, previstos no conceito de soft landing, que avalia probabilidades diferen-
ciais em termos de insegurança e conflitualidade (Cincotta, 2003). Trata-se de
saber como gerir a passagem gradual de todas as sociedades de um ciclo de
vida curto e instável, com muitos jovens e poucos idosos (fase 1), para um
ciclo de vida longo e estável, com poucos jovens e cada vez mais idosos (fase
4). Cincotta et al. (2004) considera que a recorrência dos conflitos decresce a
par da descida dos níveis de fecundidade e da transição para uma economia
de mercado (como sucedeu com a Coreia do Sul, Taiwan, Tailândia, Singapura
e Malásia). Assim, países como o Iraque, o Paquistão e a Nigéria, que hoje se
encontram nas fases 2 e 3, têm maior probabilidade de conflito interno, mas
poderão ver este risco reduzir-se quando avançarem no processo de transi-
ção demográfica. A Europa, que se encontra em transição para a fase 5, tem
dado mostras de preocupação com as implicações de segurança decorrentes
do generalizado envelhecimento das estruturas etárias e do aumento da
percentagem de população residente não europeia. Simultaneamente, as
Nações Unidas têm tentado combater as causas das migrações forçadas pela
escassez alimentar e a pobreza, que parecem aumentar as probabilidades de
conflito (UN-Habitat, 2003).
A previsibilidade relativa conferida pela Teoria da Transição Demográfica
permite saber qual será, como será, onde estará e quais as características da
população mundial hoje e nas próximas décadas. Mas quando passamos à

5
A origem da Teioria da Transição Demográfica é atribuída a W. Thompson (1929), mas só ganha
força nos anos 40 do século XXl, quando Frank Notestein e Kingsley Davis definiram as fases de
transição por que parecem passar todas as populações do mundo: após um período milenar de
natalidade relativamente estável e mortalidade sujeita a grandes variações, inicia-se a primeira fase
de transição. A mortalidade diminui, a fecundidade permanece alta e o crescimento populacional é
rápido. Mas de seguida a fecundidade começa a descer também, a par da mortalidade e o aumento
populacional torna-se mais lento. No final fecundidade e mortalidade estabilizam a níveis baixos e
são os níveis de fecundidade que determinam o ritmo de crescimento populacional, que em muitos
casos é nulo ou negativo. Hoje são as diferentes fases em que se encontram as populações que
explicam as assimetrias regionais de crescimento (Rodrigues e Henriques, 2009).

70
DEMOGRAFIA POLÍTICA E POLÍTICAS DE SEGURANÇA

análise de tipo regional ou local (aquela em que é correto situar qualquer refle-
xão sobre esta matéria) é impossível garantir o modo como as alterações espe-
radas poderão representar uma mais-valia ou um constrangimento em termos
de segurança. Ou seja, não basta uma caracterização demográfica simples: a
correta rentabilização das vantagens da AD exige uma análise crítica e a passa-
gem para os niveis de contextualização e interpretação que são específicas à DS
e à AP, esta última no caso de introduzimos uma ótica prospetiva na análise.

Figura 3.1. As fases do modelo de transição demográfica

Fonte: Roser, 2017.

Na interface com a segurança, a população sofre mutações continuas, pro-


vocadas por fatores exógenos. Cada variável (fecundidade, mortalidade e migra-
ções) é causa e consequência das condições políticas, económicas, culturais e
identitárias vigentes em determinado contexto. A população está ligada à segu-
rança nacional como um indicador de desafio e oportunidade, multiplicador de
conflito e de progresso e recurso de poder e prosperidade (Sciubba, 2012). Reco-
nhecemos que as disparidades de crescimento populacional num contexto de
desigualdades económicas, culturais e identitárias agravam as tensões sociais e
potenciam riscos e ameaças, de que os fluxos migratórios não controlados, o
crime organizado, o tráfico de seres humanos ou o terrorismo são exemplo
(Rodrigues, 2014). Do mesmo modo, certas características das estruturas etárias
aumentam ou reduzem a probabilidade de tensão e instabilidade social, o dina-
mismo económico e condicionam a vontade de afirmação de um Estado, povo
ou etnia, as tentativas de expansionismo, o conflito étnico, o radicalismo, terro-
rismo, fundamentalismo religioso, degradação ambiental.

71
MODELOS PREDITIVOS E SEGURANÇA PÚBLICA

Dos pressupostos teóricos à decisão

Mais do que reconhecer a importância que pode ser atribuída aos volumes
da população, importa monitorizar o modo e as direções geográficas da sua
dinâmica. As tendências demográficas influenciam a segurança humana e a
estabilidade política de todas as sociedades. Em termos práticos, os efetivos
populacionais podem constituir uma janela de oportunidade ou um fator
desestabilizador e é necessário ter sempre em vista o impacto das suas dinâmi-
cas e caraterísticas, embora estas não desencadeiem de per si conflitualidade
aberta. São as dinâmicas da população uma ameaça à segurança coletiva ou
uma maisvalia para essa mesma segurança?
Um dos objetos de estudo da Demografia Politica toca precisamente no
ponto que mais nos importa neste texto: a identificação dos determinantes
políticos das dinâmicas da população, sobretudo as causas políticas da circu-
lação de pessoas e os efeitos das características e alterações das estruturas
etárias nas funções do Estado. Falamos, designadamente, das regras que
permitem construir políticas públicas que se preocupam em adequar e otimi-
zar os recursos humanos e materiais das forças publicas de segurança ao
volume, composição e distribuição demográfica dos cidadãos a que se diri-
gem. Falamos das opções e prioridades assumidas para responder eficazmen-
te às necessidades mais urgentes. E falamos ainda de uma postura que olhe o
presente para além dele, ou seja, à luz do futuro, única forma de garantir a
promulgação de medidas sustentáveis e simultaneamente ajustáveis ao con-
texto de mudança rápida, que caracteriza as sociedades contemporâneas. Ou
seja, que considere os futuros possíveis e atue não apenas ou sobretudo
numa lógica reativa, mas sim numa lógica preventiva e pró-ativa.
No caso especifico da segurança, a relação ambígua e polivalente entre as
duas partes da equação pode ganhar objetividade se a olharmos sob três pris-
mas distintos, embora não estanques (Figura 3.2). Os dois primeiros determi-
nam as probabilidades de estabilidade ou conflito, na dupla asserção de paz e
coesão dentro das fronteiras políticas (não necessariamente estatais).
Em termos gerais, o primeiro remete-nos para o modo como as dinâmicas e
características de composição etária, por sexos ou origem étnica influenciam a
identidade, coesão e estabilidade interna de dada sociedade; o segundo para a
forma como uma sociedade é influenciada na sua composição, características e
perceções de segurança pelo contexto exógeno, porque não existem universos

72
DEMOGRAFIA POLÍTICA E POLÍTICAS DE SEGURANÇA

populacionais fechados. O último explica os (re)equilíbrios do sistema internacio-


nal, suscitados pelo modo como cada universo populacional consegue gerir e ser
reconhecido pelos seus parceiros. Ou seja, avalia o modo como as dinâmicas e
características populacionais determinam o poder de influência de dada socieda-
de ou estado no sistema internacional, na dupla aceção de hard e soft power.
Basta pensar como a falta de dinamismo demográfico explica alguma perda de
projeção dos países europeus, enquanto o mundo multipolar desliza geografica-
mente para os BRICS e emergem novos polos hegemónicos regionais, como
sucede com a Indonésia, a Nigéria, a Turquia ou o Vietname, países que conti-
nuam e continuarão a ter acentuados ritmos de aumento populacional.

Figura 3.2. Jogo de Espelhos. As leis da geopolítica demográfica

Fonte: Rodrigues, 2016.

De dentro para dentro, de fora para dentro. Estabilidade ou conflito –

As teorizações clássicas sobre o poder do Estado convergem ao conside-


rarem o fator populacional como elemento central da imagem interna e
externa da sua força relativa. A demografia influencia três dos seus objetivos
principais: 1) a projeção do poder no sistema internacional anárquico; 2) a
proteção da soberania e dos interesses nacionais; e 3) a garantia de acesso da
população aos recursos disponíveis. Da capacidade de gerar o equilíbrio
demográfico e de preservar a coesão nacional depende, em larga medida, o

73
MODELOS PREDITIVOS E SEGURANÇA PÚBLICA

sucesso na redução das vulnerabilidades naturais e a implementação de uma


estratégia sustentável de segurança e de defesa.
No passado a população constituía um elemento para aferir o poder de
um Estado ou região. A questão era pouco complexa, já que todas as socie-
dades cresciam moderadamente, apresentavam uma estrutura etária idênti-
ca (muitas crianças, poucos idosos) e a produção económica tinha como
unidade predominante o agregado familiar e a agricultura. Hoje a questão
deixou de poder ser vista assim e nas sociedades atuais e do futuro são
sobretudo as características dos recursos humanos (em termos de sexo, ida-
de, competências e educação) que determinam a importância que assume a
demografia no quadro de segurança.
O volume e características da população podem ser entendidos como
elementos de soft e hard power e podem desencadear riscos reais e/ou per-
cecionados de insegurança (Soffer, 2008). É certo que existe uma vantagem
de partida para as grandes populações, já que um país pequeno, mesmo que
muito desenvolvido, terá maior dificuldade em se impor no sistema interna-
cional. Mas a avaliação das ameaças globais e os exercícios de cenarização
não devem esquecer as implicações de segurança que decorrem das caracte-
rísticas e tendências de vetores tão distintos como a repartição da população
por idades, o crescimento desigual de grupos étnicos e sociais, o nível de
densidade dos bairros clandestinos, a pobreza rural e urbana.
O estudo The Shape of Things to Come. Why Population Matters to Secu-
rity6 valida a importância da demografia como preditor de bem-estar e de
estabilidade das sociedades com base na evolução do peso relativo de jovens e
idosos em quatro grupos de países, relacionando-as com a sucessão de conjun-
turas politicas. O exercício permitiu identificar oito aspetos de indole demográ-
fica que parecem associados com instabilidade política ou conflito: proporções
elevadas de jovens em idade ativa (15-29 anos); acentuado crescimento urbano;
carência de solo e/ou água; níveis elevados de mortalidade na população ativa;
assimetrias de crescimento entre grupos étnicos e religiosos; migrações, enve-
lhecimento e redução de efetivos; mais homens que mulheres na população.
Porém, todos estes aspetos podem gerar oportunidades. Alguns exemplos:
quando os empregos são escassos, a existência de muitos adultos jovens pode

6
A pesquisa divide os países em quatro categorias: muito jovens (mais 67% da população com
menos de 30 anos e tempo de duplicação em anos menor de 35); jovens (60-67% da população
com menos de 30 anos, 35-50 anos de tempo de duplicação), em transição (45-60% abaixo dos
30 anos, 50-125 anos de tempo de duplicação) e maduro (30-45% abaixo dos 30, mais de 125
anos de tempo de duplicação) (Population Action International, 2014).

74
DEMOGRAFIA POLÍTICA E POLÍTICAS DE SEGURANÇA

fomentar o descontentamento e a tensão social e politica. Cientes deste facto,


os responsáveis politicos respondem de formas tradicionais, esquecendo que a
criação de emprego direcionado para as necessidades específicas da região
poderia originar o aumento das receitas de imposto sobre o trabalho. O mes-
mo pressuposto liga o aumento dos bairros clandestinos à subida dos níveis de
criminalidade urbana, esquecendo que algum investimento em infraestruturas
bastaria para mitigar ou resolver o problema.
Já Cincotta (2004) concluira que os países mais jovens apresentavam
mais episódios de guerra civil e de mobilização e recrutamento para organi-
zações extremistas, as quais oferecem uma identidade que os jovens não
encontram na sociedade. Quase todos os países a viverem conflitos intensos
possuem populações muito jovens (como o Iraque, Afeganistão, Sudão, a
Siria), mas muitos daqueles que no passado experimentaram este tipo de
situação evoluíram de seguida para outras configurações etárias e são hoje
estáveis (Vietname, por exemplo). Este facto traz alguma esperança sobre a
evolução da conflitualidade de dentro para dentro.
Acresce a esta imagem os imputs migratórios e o modo como a crescente
permeabilidade das sociedades contemporâneas altera o perfil étnico e religio-
so das sociedades atuais. A construção de uma identidade em mosaico nem
sempre é fácil e envolve alguma tensão acrescida de fora para dentro (migran-
tes, refugiados). O enriquecimento económico, humano e cultural que a globa-
lização das migrações permite nem sempre é fácil para quem chega e para
quem vê chegar (Requena, 2014). Também não devemos cair no erro de secu-
ritizar a questão dos refugiados, porque, e tal como sucede com a esmagadora
maioria dos imigrantes, o seu objetivo prioritário é o de sobreviver sem depor-
tação. A presença de refugiados em determinado país não cria riscos de segu-
rança elevados (vejam-se os libaneses na Jordânia ou na Siria) e o maior desafio
coloca-se nos moldes em que são recebidos nos países de acolhimento7.

De dentro para fora. Os (re)equilíbrios do sistema internacional –

Nas últimas décadas a agenda de segurança alargou-se, passando a


incluir para os Estados e as organizações internacionais novos dilemas não-
tradicionais e transnacionais, em parte decorrentes do processo de globaliza-

7
Os exemplos conhecidos de formação de grupos armados com base em população refugiada
tiveram apoio externo, como sucedeu nos anos 90 quando o Paquistão apoiou os afegãos
refugiados e viabilizou o aparecimento dos talibãs. (Carrion, 2015).

75
MODELOS PREDITIVOS E SEGURANÇA PÚBLICA

ção. Paradoxalmente, embora esta última seja olhada como um fator impul-
sionador para o aparecimento ou intensificação de novos problemas, a inves-
tigação académica pouco tem examinado a relação entre a nova agenda de
segurança e a economia política.
No mundo atual o desafio colocado pelas ameaças de conflito está a ser
profundamente transformado. O novo conceito de segurança acentua a
importância da modernização socioeconómica como garantia potenciadora
de segurança individual e coletiva e procura fomentar o papel da diplomacia
internacional e reduzir a intervenção externa, evitando formas tradicionais de
conflito entre Estados. Conceitos como os de governança global e de manu-
tenção da paz adquirem um destaque merecido no sistema internacional,
mesmo quando os seus resultados em termos de quotidiano das populações
sejam pouco evidentes. Segurança externa e segurança interna tornam-se
duas faces da mesma moeda, pelo que os responsáveis políticos tendem a
privilegiar a prevenção, recorrendo a modelos mais ou menos musculados.
O NIC (2013) dá como certo o declínio dos países ocidentais, em larga
medida causado pela redução do potencial humano. Até 2030 prevê a conso-
lidação do Mundo multipolar, baseado no pilar económico, cujo centro vital
desliza dos países tradicionais para os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e
África do Sul), que entram em concorrência direta com os antigos estados
dominantes (Japão, Alemanha, França e Reino Unido). Na segunda linha apa-
recem várias potências intermédias com demografias em alta e fortes taxas
de crescimento económico, chamadas a tornarem-se também pólos hege-
mónicos regionais com influência mundial (Colômbia, Indonésia, Nigéria,
Etiópia, Turquia, Vietname). As assimetrias intra e inter-regionais agudizar-se-
ão, caso não exista uma restruturação ao nível da segurança internacional e
da governança mundial.
As disparidades de desenvolvimento entre países e regiões, associadas
aos diferenciais demográficos impulsionam a mobilidade humana. Se esta for
potenciada e bem gerida poderá ajudar a resolver alguns dos dilemas demo-
gráficos que algumas regiões já enfrentam: na Europa temos uma população
envelhecida e escassez de mão-de-obra, enquanto no mundo em desenvol-
vimento temos uma população muito jovem, incapacidade de absorção do
mercado de trabalho de potenciais trabalhadores e falta de oportunidades
laborais. As migrações (emigração, imigração e migrações internas) são as
variáveis chave no futuro das dinâmicas demográficas, embora sejam as de
maior incerteza (Rodrigues, 2012).

76
DEMOGRAFIA POLÍTICA E POLÍTICAS DE SEGURANÇA

Compreender os impactos políticos de fatores demográficos torna-se


incontornável, porque sabemos que as mudanças serão significativas nas
próximas décadas (Goldstone, 2011). As disparidades de crescimento demo-
gráfico terão consequências políticas entre: (a) Estados-nação (o declínio
Rússia face ao Paquistão); (b) grupos etários (a crescente proporção de
jovens face aos idosos no Afeganistão); (c) relação entre residentes rurais e
urbanos (urbanização no Médio Oriente); e (d) grupos étnicos ou religiosos
intraEstados (hindus e muçulmanos na Índia, evangélicos e seculares nos
EUA). Cada tipo de diferença está associada a desafios políticos distintos:
alterações regionais no volume e estrutura populacional afetam o equilíbrio
de poder central; a variação dos ratios entre grupos de idade e sexo influen-
ciam o ritmo de crescimento económico, o desemprego, a instabilidade socia;
o processo de urbanização incentiva a mobilidade associada a insegurança; os
diferenciais de crescimento entre grupos etno-religiosos podem potenciar
episódios de violência étnica, religiosa e nacionalista, crises de identidade e
desafiar a unidade dos Estados mais frágeis.
Vejamos alguns exemplos em relação ao primeiro ponto, que é o que
mais nos interessa no contexto temático de segurança dita “interna” (Figura
3.3). Que tipo de fatores de índole demográfica podem gerar em dado uni-
verso geopolítico situações variáveis de instabilidade, falta de coesão ou crise
social e identitária?
É o caso, entre outros, das tensões entre gerações decorrentes do fenó-
meno de envelhecimento das estruturas etárias, designadamente quando pro-
vocam um acentuar da tributação dos economicamente ativos para garantir a
sobrevivência dos inativos mais velhos. Ou da forma como a escassez ou abun-
dância de adultos em idade ativa (sobretudo quando desempregados e sem
expetativas de futuro) pode fomentar situações de insegurança e levar ao
aumento dos episódios de criminalidade. Ou ainda ao modo como a existência
de muitos homens adultos jovens em dada sociedade potencia um grau acres-
cido de violência, sobretudo se coexistir com níveis de formação profissional
baixos, níveis elevados de desemprego ou subemprego, contextos de exclusão
social. Outros exemplos surgem, nomeadamente os originados por assimetrias
de crescimento de diferentes grupos no seio de uma mesma comunidade
explicados por diferentes comportamentos face à vida e à morte, à família e
emprego, coincidentes com diferenças religiosas, étnicas ou até linguísticas
(como sucede com os turcos na Alemanha ou em países onde a língua oficial
não corresponde ao grupo maioritário em termos numéricos.

77
MODELOS PREDITIVOS E SEGURANÇA PÚBLICA

Figura 3.3. A demografia como vetor para o equilíbrio, coesão e identidade social

Fonte: Elaboração própria

Porém, o equilíbrio e coesão/ identidade de um dado local pode ser afeta-


do internamente por fatores externos, embora em muitos casos sejam mais
perceções que realidades. O exemplo mais evidente relaciona-se com a securi-
tização de alguns vetores demográficos, sobretudo das migrações. Falamos de
migrantes e refugiados e da forma como a sua presença nas sociedades de
acolhimento propaga os receios quanto às alterações que produzem na socie-
dade de acolhimento. Os migrantes (“estrangeiros”) são olhados com descon-
fiança, tendo em conta que podem alterar a composição etária da sociedade
de acolhimento (são mais jovens), retirar emprego, aumentar a competitivida-
de e por essa via baixar os salários. As perceções de insegurança veem-se
acrescidas quanto maiores as diferenças étnicas, linguísticas e religiosas dos
migrantes e quanto mais visíveis estas forem na vida quotidiana da sociedade
de acolhimento, sobretudo em meios urbanos de maior atratividade e também
maior densidade populacional (Rodrigues, 2010). Falamos nesta vertente de
alterações potenciais dos níveis de tolerância e das dificuldades inerentes à
gestão de sociedades culturalmente diversificadas, embora também mais ricas
e plurais, que em certos contextos conjunturais económicos e políticos de crise
podem dar azo a atitudes xenófobas e racistas. Mas esta será uma realidade
incontornável nas próximas décadas, num número crescente de sociedades.
Também no âmbito das mentalidades muito está por fazer.
A estas valências poderemos acrescentar o modo como as alterações na
distribuição dos recursos e do poder político podem surgir das alterações
absolutas e relativas na dimensão dos vários subgrupos (populações urba-
nas/rurais, grupos religiosos, fações partidárias, etnias, grandes grupos etários)

78
DEMOGRAFIA POLÍTICA E POLÍTICAS DE SEGURANÇA

(Goldstone, 2015). Combinam-se assim duas perspetivas, a mais centrada nas


questões de poder nacional e equilíbrios clássicos de “segurança interna”, e
outra que avalia o poder de uma sociedade com base nos equilíbrios, vanta-
gens e desvantagens que dado universo populacional consegue obter no
xadrez internacional.

Desafios demográficos e decisão. Em jeito de conclusão…

“Demography must be considered a major driver of politics


alongside classic materialist, idealist, and institutional perspec-
tives. Just as no credible political scientist can afford to ignore the
role of economic incentives, institutions, or culture, […] political
scientists cannot afford to ignore demography in seeking to un-
derstand patterns of political identities, conflict, and change.”
KAUFMANN, TOFT, 2011

A interligação entre demografia e segurança exige um processo contínuo


de ajustamento, porque falamos de realidades dinâmicas. Dai o interesse que
pode resultar da monitorização do modelo de transição demográfica. O futu-
ro implica o redesenhar da sociedade global, garantindo a gestão sustentável
entre comunidades mais envelhecidas, complexas e distintas, fluxos migrató-
rios fáceis, rápidos e com novos perfis, necessidades em termos de progresso
económico a escalas local, nacional e global e direitos e garantias. O novo
conceito de segurança humana assente na dignidade do indivíduo implica
uma preocupação com o nosso espaço e com o que nos rodeia. A segurança
resulta sobretudo de atitudes e comportamentos proativos e preventivos.
A segurança assume-se, portanto, com uma configuração que exige
mudanças nos sistemas governamentais e alterações nas políticas públicas, as
quais devem ser capazes de dar resposta aos desafios de uma sociedade com-
plexa e globalizada. Ora, a questão da segurança na sociedade internacional
tem diretamente a ver com as novas ameaças transnacionais, precisamente
aquelas que têm origem em adversários múltiplos, não identificados e de difícil
localização (Canhoto, 2010). Em larga medida, poder-se-á, com plausibilidade,
elencar como principais ameaças à segurança neste milénio a proliferação das
armas de destruição maciça, os conflitos regionais, a criminalidade organizada
e o terrorismo. Num quadro mais micro, os movimentos migratórios, ao
aumentarem a pressão sobre os recursos naturais, surgem como um tema
incontornável na agenda política internacional (Rodrigues, 2010).

79
MODELOS PREDITIVOS E SEGURANÇA PÚBLICA

O que subjaz a este enfoque é a incerteza e a imprevisibilidade em rela-


ção ao impacto, a médio e a longo prazo, dos fluxos migratórios. Neste con-
texto e perante a forte demanda de segurança por parte dos cidadãos, o
Estado necessita de adaptar os seus instrumentos tradicionais às necessida-
des populacionais, reconhecendo que não dispõe de informação e recursos
suficientes para solucionar unilateralmente os problemas. Por isso mesmo, o
Estado precisa de ajustar as tradicionais funções ao dever de garantir a inde-
pendência económica e identidade cultural, adotando decisões e ações
transversais e mais descentralizadas, assentes numa maior colaboração, coo-
peração e interdisciplinaridade (Canhoto, 2010; Idem).
Nesta época de profundas mudanças, o papel geopolítico que o vetor
demográfico pode assumir revela-se incontornável, influenciando as opções
em matéria de fiscalidade, os padrões de voto, as tensões e conflitos étnicos e
religiosos (Diamond, 2005; Goldstone 2015). As implicações futuras de segu-
rança que decorrem das tendências demográficas vão depender da capacidade
política (especialmente das instituições, governos e um conjunto crescente de
atores) para gerir a mudança sem sucumbir à tentação de securitizar o vetor
demográfico. A relação entre dinâmica demográfica e segurança não é unívoca
e um mesmo comportamento demográfico pode ter impactos diferentes, con-
soante o tempo, a realidade social e o contexto político a que se reporta. A
população pode criar insegurança, mas também as respostas e os volumes
populacionais são insuficientes em si mesmos para fomentarem tensões
sociais, mudanças políticas, disrupção económica ou conflitos. Tal sucede em
grande parte porque as ameaças assumem formas difusas, surgem como res-
posta a alterações de vário tipo, nomeadamente ambientais, e implicam
mobilidade e deslocação de populações, podendo mudar em semanas a
composição humana de uma região.
Tudo o que foi dito sobre a relação vantajosa entre conhecimento
demográfico e políticas públicas torna necessário refletir sobre o modo como
os politicos percebem as questões demográficas e como as integram nas
políticas nacionais. As questões demográficas não podem ser ignoradas no
gizar de políticas e decisões no quadro da segurança e defesa, porque as suas
variáveis permitem conhecer e estimar num futuro próximo totais e modo de
distribuição dos efetivos por sexo e idade, determinando deste modo volu-
mes de população ativa e idosa, número de eleitores, de militares, de imi-
grantes potenciais, grupos vulneráveis e de maior risco.
As PP são o campo privilegiado das relações da sociedade com a estrutura
que a governa e ganharam hoje uma abordagem cada vez mais pluridisciplinar,

80
DEMOGRAFIA POLÍTICA E POLÍTICAS DE SEGURANÇA

a qual funciona como garante de sustentação teórica e lhe confere espaço


científico. Se assumirmos o esquema proposto na Figura 3.4, fácil é confirmar
o peso incontornável do vetor demográfico em todas as opções tomadas em
todas as fases previstas no processo. Se é certo que a agenda política deter-
mina a ordem das prioridades, não é menos verdade que essa decisão é em
regimes democráticos supostamente tomada sempre no interesse da popu-
lação. As políticas públicas devem contribuir para mitigar e resolver proble-
mas, para garantir a melhoria da qualidade de vida dos cidadãos. Assim, ela
só parece ganhar legitimidade caso se adeque às características e resolva
vulnerabilidades existentes em termos de respostas.
A criação de politicas racionais e sustentáveis em sede de politicas de
segurança significa lidar com a face humana e com populações distintas entre
si, a exigirem soluções distintas de acordo com as condições climatéricas em
que se encontram, com o tipo de local de residência e respetiva dimensão e
dinâmica (rural, urbano, metropolitano, com IDH alto ou baixo), com o peso
diferenciado de ativos e inativos, de homens e de mulheres, a existência de
grupos vulneráveis (muitos jovens, muitos idosos, muitos pobres, comunida-
des migratórias mais ou menos integradas).
Uma vez decidido o modo e o momento de implementar a medida inicia-
se a fase da formulação, baseada em propostas que visam resolver o problema
identificado. E também esta fase pressupõe um diagnóstico demográfico da
sociedade em questão, garante incontornável da legitimação da política pública
a implementar, por via da obtenção de apoio para garantir que a proposta seja
aceite pelos cidadãos. Posteriormente seguem-se duas fases de extrema
importância: a implementação da medida, envolvendo todos os atores e pres-
supondo a coordenação entre eles (responsáveis políticos a diferentes graus de
supervisão, administradores, prestadores de serviços publicos). Sobre esta
matéria são várias as teorias quanto ao processo de articulação e competências
(top-down, bottom-up, middle-range) (Dye, 1998).

81
MODELOS PREDITIVOS E SEGURANÇA PÚBLICA

Figura 3.4. Políticas Públicas: ciclo de produção e tipologias de implementação

Fonte: Anderson, James E., Public Policymaking, Boston-Nova Iorque, 2006

Certo é que a territorialização das políticas públicas se efetua por via de


um conjunto de agentes que gravitam no cenário de implementação e que
podem ser divididas em três tipologias de coordenação, formal, não formal e
informal (Anderson, 2006): 1) um núcleo executivo presente do inicio ao fim
do processo; 2) um conjunto de atores que, embora não estando sempre
presentes, são essenciais para realizar determinada fase; 3) instituições e
agentes que gravitam no território da política pública e que embora possam
ser considerados transversais todo o processo, são necessárias ao núcleo
formal decisor para criar sinergias. A emergência dos policy networks vem
realçar a importância da coordenação e colaboração entre os atores envolvi-
dos no processo, numa relação de confiança e complementaridade. Ou seja,
exige uma combinação harmoniosa entre agentes e funções. Todos traba-
lham para o mesmo fim, mas todos têm competências claramente identifica-
das. Só a partir do momento em que a politica pública toma a forma de lei,
ela assume poder vinculativo.
As questões populacionais constam cada vez mais na agenda política e
pela sua diversidade e originalidade exigem a ligação entre académicos e
decisores. Mas o propósito deste texto não passa pela discussão, pressuposto
ou descrição evolutiva das políticas de segurança e suas respetivas caraterís-
ticas. Na verdade, o que nos importa apenas é lançar a discussão em tormo
da importância incontornável e mais-valias que o conhecimento rigoroso das
características dinâmicas de dado universo populacional pode representar no
momento da tomada de decisão em sede de opções politicas na esfera da

82
DEMOGRAFIA POLÍTICA E POLÍTICAS DE SEGURANÇA

segurança pública. Este conhecimento é um recurso que o Estado de Direito


não pode abdicar, por forma a cumprir o compromisso assumido com os
cidadãos que representa. No atual modelo de Estado de direito democrático
vigente no espaço europeu comunitário em que Portugal se insere, a segu-
rança assume-se como um direito fundamental dos cidadãos, ganhando a
dimensão de uma prestação essencial a que o Estado se encontra obrigado,
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