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Transgressões e Adolescência:
Individualismo, Autonomia e
Representações Identitárias
Transgressions and Adolescence:
Individualism, Autonomy and Identity Representations

Transgresiones y Adolescencia:
Individualismo, Autonomía y Representaciones de Identidad

Carolina Esmanhoto
Bertol & Mériti de Souza

Universidade
Federal de
Santa Catarina
Artigo

PSICOLOGIA CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2010, 30 (4), 824-839


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PSICOLOGIA
CIÊNCIA E PROFISSÃO, Carolina Esmanhoto Bertol & Mériti de Souza
2010, 30 (4), 824-839

Resumo: No presente artigo, problematizamos a adolescência a partir do pressuposto de que se trata de um


conceito construído ao longo da modernidade que passou a ocupar um lugar central nas ciências humanas.
Assim, no cenário contemporâneo, esse conceito é compartilhado socialmente, produzindo saberes e
delimitando práticas que exercem influência na configuração subjetiva daqueles que compartilham dessa
rede social. Referenciais psicanalíticos e psicossociais são utilizados para analisar as representações de
adolescência predominantes nas sociedades ocidentais e modernas e as relações entre essas representações
e a realização dos ideais de liberdade e de autonomia da sociedade individualista. De forma específica,
analisa-se a atribuição da transgressão e da rebeldia como características inerentes à adolescência e as
incidências desses atributos na realização desses ideais.
Palavras-chaves: Adolescência. Identificação. Individualismo. Transgressão.

Abstract: This work attempts to approach adolescence as a concept constructed throughout modern age
and that has now gained great importance in human sciences. Thus, in a contemporary background, this
concept is shared socially, producing knowledge and delimiting practical processes that exert influence in the
subjective configuration of those who share this social net. Psychoanalytical and psychosociological references
are used to analyze the predominant representations of adolescence in western and modern societies and
the relations between these representations and the accomplishment of the ideals of freedom and autonomy
of the individualistic society. Specifically, it analyzes the attribution of transgression and revolt as inherent
characteristics of adolescence and the incidences of these attributes in the accomplishment of these ideals.
Keywords: Adolescence. Identification. Individualism. Transgression.

Resumen: En el presente artículo, problematizamos la adolescencia a partir del presupuesto de que se trata
de un concepto construido a lo largo de la modernidad que pasó a ocupar un lugar central en las ciencias
humanas. Así, en el escenario contemporáneo, ese concepto es compartido socialmente, produciendo saberes
y delimitando prácticas que ejercen influencia en la configuración subjetiva de aquellos que comparten
esa red social. Referenciales psicoanalíticos y psicosociales son utilizados para analizar las representaciones
de adolescencia predominantes en las sociedades occidentales y modernas y las relaciones entre esas
representaciones y la realización de los ideales de libertad y de autonomía de la sociedad individualista. De
forma específica, es analizada la atribución de la transgresión y de la rebeldía como características inherentes
a la adolescencia y las incidencias de esos atributos en la realización de esos ideales.
Palabras clave: Adolescencia. Identificación. Individualismo. Transgresión.

No cenário das sociedades ocidentais e é relacionada a mudanças na vida social e


modernas, a adolescência e suas manifestações pessoal ligadas à demanda pela entrada no
são foco de inúmeras análises e preocupações mundo adulto.
nos diversos setores da população civil e do
poder público. Nessa perspectiva, tanto pais O contexto desenhado acima nos possibilita
e familiares, que se vêm envolvidos com as afirmar que a adolescência é considerada
atitudes e as escolhas de seus filhos, quanto por grande gama de profissionais, instituições
a sociedade em geral, que se preocupa em públicas e pais como importante fase da vida.
criar políticas públicas, consideram que seja Não obstante, nas inúmeras análises e estudos
necessário investir na adolescência e nos realizados sobre a adolescência, encontramos
adolescentes para produzir cidadãos éticos múltiplas formas de entendê-la. A mais
e úteis para a sociedade. Para muitos pais, conhecida caracteriza-a como uma etapa de
educadores e profissionais de diversas áreas, transição à qual todos os sujeitos do mundo
a preocupação em torno da adolescência é ocidental moderno estariam destinados, um
legítima e necessária devido à multiplicidade período durante o qual o sujeito, devido
de modelos identificatórios ofertados ao ao processo de evolução biológica rumo à
adolescente, que geram uma liberdade maturidade, vivencia a reconstituição de suas
de escolha com a qual ele não sabe lidar referências identitárias, que são localizadas
e que demandam orientação para formar entre a infância e o mundo adulto. Esse sujeito
laços sociais. Essa preocupação também vivencia situações de mudança no corpo

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em decorrência da manifestação de suas de características inerentes a essa etapa da


funções reprodutivas e, em consequência, vida levou-nos a questionar a trajetória que
experimenta mudanças subjetivas e a culmina na designação de atributos como a
reelaboração da sua representação identitária transgressão e a rebeldia aos adolescentes.
(Muuss, 1969). Outras análises abordam Para trabalhar essas questões neste ensaio,
a adolescência não como fase inerente abordamos a trajetória histórica e social
ao humano, mas antes, como criação da que produz um específico ideário moderno
era moderna, surgida com o ideário do calcado nos preceitos de liberdade, de
individualismo, da autonomia, do tempo autonomia e de progresso, concomitante à
linear e causal e do progresso. Essa leitura construção da estrutura subjetiva apoiada
afirma que a adolescência constitui uma em fases de desenvolvimento configuradas
relação estabelecida com outros grupos por características específicas. Trabalhamos
etários e que as características atribuídas a com o pressuposto de que uma das estratégias
um grupo são construídas culturalmente e encontradas pela civilização moderna para
mudam de sociedade para sociedade. Assim, preservar os fundamentos de liberdade,
o denominado adulto, criança ou velho existe autonomia e progresso se encontra no
em função da comparação estabelecida entre deslocamento desses ideais para a fase da
os membros dessas faixas etárias. adolescência, com a designação desses
atributos ao sujeito que vivencia esse período.
Acreditar ser a adolescência uma fase Assim, a liberdade e a autonomia presentes
de construção identitária possibilita a na contestação e na rebeldia atribuídas
representação do adolescente como rebelde, ao adolescente podem ser idealizadas e
em constante oposição aos valores da preservadas nesse momento mítico que
sociedade e às tradições. Por um lado, ele é deverá ser abandonado em prol da vida
visto com apreensão, e, por outro, é encarado adulta. A adolescência prepara para a vida
como alguém que deve ser orientado através adulta, e espera-se que aquele que vivencia
da contenção de seus impulsos. Entretanto, essa fase a abandone para inserir-se como
perguntamos se essas características igual na sociedade dos adultos.
atribuídas aos denominados adolescentes
são naturais e constitutivas dessa fase da Adolescência, adolescências:
organização subjetiva ou se são produzidas diferentes leituras
por esse sujeito como resposta ao lugar
que a sociedade lhe destina. Perguntamos, A origem da palavra adolescência pode
ainda, se muitas das características ser localizada no verbo adolescere, do
apresentadas pelos adolescentes também latim, que significa crescer em direção à
não podem ser encontradas nos demais maturidade. Esse crescimento é entendido
sujeitos não adolescentes constituídos sob como desenvolvimento inevitável, e
a égide do ideário moderno marcado pelo implica transformações sociais, biológicas
individualismo. e psicológicas. Entretanto, é importante
mencionar a discordância relacionada à
Os impasses relacionados aos estudos do definição da adolescência, já que podemos
conceito de adolescência e do processo encontrar tanto aqueles que aceitam a
de adolescer entendidos como construção perspectiva desenvolvimentista da qual
cultural bem como aqueles vinculados aos decorre a concepção da adolescência como
estudos que problematizam a existência etapa do desenvolvimento humano como

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aqueles que não adotam essa perspectiva Dentro dessa visão cartesiana racionalista-
e trabalham a constituição do subjetivo a desenvolvimentista, além da crença em
uma identidade adolescente, também
partir de referências históricas e sociais. Entre se acredita que é nesse período que se
aqueles que trabalham com a perspectiva constrói a identidade do sujeito. Por isso,
desenvolvimentista, é grande a divergência tal etapa seria o momento inaugural da
personalidade que definiria o sujeito para
acerca das etapas e da sua sequência, o que o resto de sua vida. A identidade do sujeito
implica desacordos acerca da idade que estaria, então, inevitavelmente atrelada à
marcaria a adolescência, por exemplo. chegada a um determinado alvo: o nível
de racionalidade madura. É a própria
primazia da razão que produz a noção/
A leitura denominada desenvolvimentista necessidade dessa identidade do sujeito
entende a adolescência como etapa da individual e, conseqüentemente, do seu
desenvolvimento. (Coimbra, Bocco, &
vida que, como tal, possui características
Nascimento, 2005, p. 5)
biológicas e psicológicas específicas. Esse rol
de características descrito nessa abordagem,
entre elas a insegurança, a rebeldia, a A ideia de evolução até a maturidade,
impulsividade e a agressividade, passam regida pelo desenvolvimento biológico, é
a ser sinônimos de ser adolescente. Essas alvo de uma das principais críticas feitas à
características seriam consequência das perspectiva desenvolvimentista, pois, a partir
dela, o adulto seria entendido como ideal
mudanças biológicas e hormonais que
Erikson (1976) de completude a ser alcançado (Calligaris,
ocorrem nessa fase, e que fixam o adolescente
afirmou ser a 2000; Coimbra et al. 2005; Endo, 2007;
adolescência
em um período de transição entre a infância e
Ramírez, 2007). A crítica também é dirigida
“um momento a fase adulta. Nesse processo, o adolescente
crucial, quando o ao entendimento do adolescente como
assumiria uma posição de confrontamento
desenvolvimento ser incompleto (no sentido de imperfeição
tem de optar por e de oposição aos valores, tradições e leis
subjetiva), sendo necessária a formação de
uma ou outra da sociedade como forma de consolidar
direção, escolher uma identidade estável, fixa e madura para o
ou este ou aquele
sua identidade e sua autonomia frente
seu reconhecimento na rede social. Diversas
rumo, mobilizando aos adultos. Erikson (1976) afirmou ser a
recursos de
teorias, porém, como a psicanálise freudiana,
adolescência “um momento crucial, quando
crescimento, entendem que a subjetividade é constituída
recuperação o desenvolvimento tem de optar por uma ou
através de identificações, como operações
e nova outra direção, escolher ou este ou aquele
diferenciação” (p. dinâmicas e imprevisíveis que outorgam ao
rumo, mobilizando recursos de crescimento,
14). sujeito a plasticidade associada ao devir. Para
recuperação e nova diferenciação” (p. 14).
Freud, a identidade existe somente como
uma fantasia para o sujeito, isso porque o eu,
A visão desenvolvimentista aborda a responsável por esse engodo, é formado e está
adolescência como fenômeno universal destinado a modificar-se continuamente pelas
e generalizado, baseando-se na razão múltiplas identificações.
como principal mecanismo de aprensão
e de vivência no mundo. Através do A discussão sobre os processos de identificação
amadurecimento e do predomínio da razão, atravessa praticamente toda a obra freudiana.
o sujeito conseguiria aprender cada vez mais De forma geral, para Freud (1921/1973),
coisas sobre si mesmo e sobre o mundo a identificação se refere a um processo
que o cerca. Esse processo ocorreria até a psicológico complexo que envolve diferentes
maturidade, quando o indivíduo já se teria momentos. Esse processo possibilita às
formado, com todas as suas capacidades em pessoas elaborar sua constituição subjetiva
funcionamento. pautada na ficção identitária de uma unidade

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psíquica que se mantém estável no tempo. opera em termos da constituição do eu,


As identificações operam a partir de modelos porém o sujeito vivencia a ilusão identitária
parentais e sociais que funcionam como de possuir uma identidade integrada e estável.
referências para as pessoas elaborarem a
ficção sobre sua constituição subjetiva. É Ao acompanhar as pesquisas de Ariés (1986),
importante ressaltar que, para o autor, o é possível observar que, até o século XVIII,
processo de identificação opera inicialmente no mundo ocidental e moderno francês,
de forma similar à incorporação de objeto ocorria o uso indistinto do termo enfant
e, dessa forma, precede a relação de tanto para aquele que hoje denominaríamos
objeto. Posteriormente, no seu processo de adolescente quanto para aquele que hoje
constituição, o eu consegue representar- denominaríamos criança. Em outras palavras,
se como diferenciado do objeto, o que até o século XVIII, os discursos e as práticas
possibilitará à criança realizar investimentos sociais que conceituam e produzem a
nas figuras parentais e localizar uma adolescência e a infância se encontravam
figura como objeto de amor e outra como sobrepostos e não discriminavam essas etapas
rival na conquista desse objeto de amor. do desenvolvimento humano e
Evidentemente, trata-se aqui da descrição
idealizada e generalizada do processo de a longa duração da infância, tal como
identificação nos primórdios da vida infantil. aparecia na língua comum, provinha da
indiferença que se sentia então pelos
Esse processo é singular, e as pessoas se
fenômenos propriamente biológicos:
encaminham para várias direções, podendo a ninguém teria a idéia de limitar a infância
criança escolher como modelo identificatório pela puberdade. A idéia de infância estava
tanto a pessoa amada quanto a pessoa com ligada à idéia de dependência. Só se saia
da infância ao sair da dependência. (Áries,
a qual rivaliza, o que significa que a ficção 1986, p. 46)
identitária se forma independentemente
da sobreposição ao suporte biológico
Calligaris (2000) também discorre sobre a
corporal. Também é necessário ressaltar que
construção do conceito de adolescência,
a identificação se pauta por movimentos
e afirma que somente de 50 anos para cá
inconscientes, os quais possibilitam que as
esse tema ganhou importância e passou a
pessoas se identifiquem com traços do objeto.
ser foco de preocupação como grupo social.
Para Freud (1921/1973),
Para o autor, a adolescência seria inventada
1º A identificação é a forma primitiva de devido a um prolongamento da infância,
enlace afetivo a um objeto; 2º seguindo também inventada na modernidade, como
uma direção regressiva, se converte em
substituição de um enlace libidinoso a um demonstrou Ariés (1986). A infância surge
objeto, como por introjeção de objeto com a mudança no sentido da morte,
no eu, e 3º pode surgir sempre que o proporcionada pela mudança da sociedade
sujeito descobre em si uma característica
comum com outra pessoa que não é
tradicional para o individualismo, e passa a
objeto de seus instintos sexuais. Quanto ser o momento idealizado de felicidade, no
mais importante seja tal comunidade, mais qual a criança está protegida pelos adultos das
perfeita e completa poderá chegar a ser a
disputas sociais. Essa criança surge também
identificação parcial e constituir assim o
principio de um novo enlace. (p. 2586, como uma forma de os adultos perpetuarem
tradução nossa) sua existência e realizarem os sonhos que,
devido a sua mortalidade, não puderam
Nessa perspectiva, é possível entender que realizar. Calligaris se pergunta, então, como
a identificação é o processo psicológico que preparar as crianças para realizar esses desejos

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sem estragar o ideal de felicidade, pois, ao direta com a razão e com Deus, necessitando
ser encarregada de preparar o futuro e “de da fé somente para exercitar sua religiosidade.
se preparar para alcançar um (impossível) Para o autor, as bases do individualismo
sucesso que faltou aos adultos, tanto mais são os princípios de igualdade e liberdade,
ela se prolonga. Isso inevitavelmente força a segundo os quais o homem é visto como
invenção da adolescência, que é um derivado possuidor de propriedades e qualidades
contemporâneo da infância moderna” inerentes e considerado como ser autônomo
(Calligaris, 2000, p. 67). e independente de todo e qualquer vínculo
social. Segundo Dumont, o termo indivíduo
A concepção do sujeito constituído no significa tanto um objeto, que é o ser concreto,
emaranhamento do biológico com a cultura o modelo individual de ser humano, quanto
possibilita avaliar a constituição subjetiva na um valor, que é o ser moral independente
relação com a alteridade, representada por um e autônomo, representante da ideologia
outro encarnado ou pelos próprios modelos moderna. Na leitura desse autor, com
de se constituir determinados e impostos o individualismo, todos os homens são
pela rede social. Interessa-nos agora abordar considerados iguais e livres perante o Estado,
a adolescência como formação cultural da e as posições sociais que determinavam
modernidade e as relações estabelecidas com funções a cada indivíduo são abolidas,
esse ideário, particularmente nos aspectos do supostamente impedindo a intervenção e o
individualismo, da liberdade e da autonomia. controle direto do Estado nas ações e na vida
dos indivíduos. O indivíduo rompe todo um
Adolescência e modernidade sistema de crenças e tradições em busca da
liberdade de consciência e passa a primar
A hegemonia alcançada pelo ideário da por sua satisfação pessoal, sendo que, nesse
modernidade nas sociedades ocidentais percurso, a existência do outro varia conforme
possibilitou o entendimento do conceito sua necessidade ou não de obtenção da
de adolescência como uma fase do satisfação pessoal. Nessa perspectiva, o
desenvolvimento humano, uma continuação homem prevalece sobre a sociedade e o
da infância. Coutinho (2005) afirma que Estado, não se submetendo a ninguém, sendo
“só é válido falar em adolescência se nos sua existência regida por regras pessoais.
referimos a um contexto sociocultural
individualista, onde a cada indivíduo é O termo autonomia foi primeiramente
delegada a responsabilidade de administrar introduzido por Kant para designar “a
seu próprio destino, encontrando seu lugar independência da vontade em relação a
no social da maneira que lhe for preferível qualquer desejo ou objeto de desejo, e a sua
ou possível” (p. 18). capacidade de determinar-se de acordo com
uma lei própria que é a da razão” (Abbagnano,
O individualismo é entendido por Dumont 2007, p. 111). O indivíduo autônomo seria
(1993) como o valor fundador das sociedades aquele que é constituído e guiado pelas leis da
ocidentais modernas. O individualismo surgiu sua razão. Nesse termo está implícita a ideia
quando o homem passou a ser entendido de sujeito e, mais ainda, a de um sujeito que
como o valor supremo, mudança que foi se determina pela sua vontade, pois esta não
proporcionada pelo humanismo e pelas depende dos seus desejos e do seu contexto
mudanças nas concepções religosas. O social, mas unicamente da razão. A relevância
homem passou, então, a ter uma relação da liberdade e a hegemonia da razão frente às

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tradições e aos dogmas religiosos fazem com Esse momento de crise, de conflitos e de
que o sujeito individual e suas leis prevaleçam rebeldia passa, então, a ser encarado como
sobre o contexto social. A autonomia passa um momento necessário para se atingir a
a ser não somente a forma de apreender o autonomia e para alcançar o status de adulto,
mundo mas também a forma de controlá- caracterizado como o ideal de completude
lo e de dominá-lo através do exercício da do sujeito moderno.
razão subjetiva e independente. O sujeito
autônomo é aquele que cria suas próprias A adolescência seria, portanto, uma figura
leis, ao mesmo tempo em que decide a identitária produzida por discursos e práticas
quais se submeter; em outras palavras, ele sociais presentes em determinado momento
é, simultaneamente, legislador e súdito. É histórico. Ao longo da modernidade, esse
aquele que exerce sua liberdade individual conceito foi ganhando hegemonia, e as
e que se constitui através da vontade própria. características psicológicas e biológicas da
adolescência foram sendo determinadas
Autores como Calligaris (2002), Endo e especificadas para enfim, através da
(2007) e Matheus (2008) revelam como hegemonização de pressupostos científicos,
foi o surgimento do ideal de um indivíduo tornar-se um objeto naturalizado (Ariés,
autônomo e livre que possibilitou a concepção 1986; Coimbra et al., 2005; Ramírez, 2007).
de adolescência. A partir desse ideal, o Entretanto, é necessário questionar a ideia
homem passa a ser considerado capaz de da adolescência como um processo natural
exercer a autodeterminação e responsável do desenvolvimento e criticar o uso do
pelas suas escolhas, ações, realizações e conceito como universal. De fato, os estudos
autossuperação. Isso significa que o destino do psicológicos e biológicos atrelados aos
homem não é mais definido pela sociedade, pressupostos modernos foram os responsáveis
pois ele não teria um papel predeterminado pela atribuição de características tidas como
a cumprir, e está pretensamente livre para inerentes à fase da adolescência, sendo que
se inventar, romper tradições e superar-se esse processo permitiu a classificação dos
para se realizar. Essa é a ideia do homem sujeitos em relação às fases estabelecidas
livre e igual a todos, supostamente capaz de (Coimbra et al., 2005).
construir sua realidade independentemente
de seu contexto social, único depositário É importante observar que, mesmo a
de todas as conquistas e derrotas que possa adolescência tendo sido construída e datada
alcançar. historicamente, ela também produz modos de
subjetivar que engendram práticas e discursos
Nesse contexto, a adolescência emerge como que levam as pessoas a se acreditarem e a
um momento para o sujeito se preparar para se representarem como adolescentes, ou
o reconhecimento na rede social e para seja, a hegemonia alcançada pelos discursos
partilhar essa rede através da constituição e pelas práticas da e sobre a adolescência
de uma identidade definida, que operaria passa a constituir a realidade social e
como marca de conclusão do processo de psíquica das pessoas que se reconhecem no
amadurecimento. Durante esse processo, postulado das etapas desenvolvimentistas. É
o sujeito enfrentaria os conflitos e desafios importante salientar, ainda, que as fases do
necessários para se tornar um indivíduo desenvolvimento passam a constituir focos
autônomo, capaz de se autodeterminar de interesse das áreas de saber modernas,
independentemente da organização social. como a Psicologia, a Medicina, a Pedagogia

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e o Direito, dentre outras. Essas áreas de essa individualidade se assenta na estabilidade


saber passam a legitimar sua existência identitária e na hierarquia temporal que o
devido, entre outros aspectos, às funções e às discrimina em relação a outras faixas etárias.
características que atribuem aos adolescentes
e às crianças concomitantemente ao A concepção de adolescência que predomina
conhecimento que produzem sobre eles. no contexto contemporâneo e que se
Tendo como principal foco de suas pesquisas encontra disseminada na e pela rede social
o modo como as pessoas são classificadas provém da abordagem desenvolvimentista e
e o efeito que isso lhes produz, Hacking é reforçada pelas práticas e discursos sociais
(2000) afirma: e científicos, isso porque a caracterização
desenvolvimentista da adolescência
o nosso conhecimento das pessoas, transforma-a em um fenômeno universal e
frequentemente expresso em nossas
classificações, tem um enorme efeito
atemporal, apagando a construção social que
sobre nós, e isso pode apenas aumentar sustenta esse conceito e fortalecendo-o como
no próximo século. Assim, a minha questão modelo e parâmetro de normatização e de
está profundamente relacionada com o que
classificação dos sujeitos de nossa cultura.
uma vez se chamou de natureza humana,
exceto por admitir que nossas naturezas são No caso específico da adolescência, esta
moldadas pelos nossos conceitos. É uma emerge marcada por características como
atitude altamente existencialista – nós não
rebeldia, conflito e transformação, associada
nascemos com essências, mas as formamos
no mundo social. (p. 10) a representações do adolescente como
rebelde que vive em constante conflito, o
Foucault (1977, 2003) mostra como a que facilitaria uma vertente criativa apta a
perspectiva assentada na continuidade e transformar a realidade.
na linearidade do desenvolvimento, do
progresso e do tempo histórico possibilitará A adolescência se mostra aos sujeitos como
que se naturalize a concepção do humano personagem imposto pela rede social a partir
calcado em essências e etapas. Assim, no de um cronograma que exerce influência não
processo de construção de saberes sobre somente na subjetividade daqueles que se
as fases do desenvolvimento humano, os reconhecem nesse personagem como também
estudos científicos produzem normatizações na forma como esse sujeito será posicionado
que operam no sentido de reiterar e na rede social e no estabelecimento dos laços
reproduzir essa conformação subjetiva sociais. A vivência dessa fase, as suas formas
conforme os atributos estipulados. Em de manifestação e até mesmo o seu início e o
outras palavras, os atributos designados seu fim são sustentados e impostos aos sujeitos
às crianças e aos adolescentes, ao mesmo pelos modelos de representação identitária
tempo em que são criticados ou elogiados presentes na rede social. Mais uma vez, é a
pelos adultos, sejam eles familiares ou relação com as alteridades e as identificações
profissionais, também são reproduzidos que aparece entrelaçada à subjetividade,
pelos discursos e práticas desses mesmos seja para mantê-la presa a um padrão seja
adultos na relação com esses sujeitos. Dessa para expressá-la em sua diferença, em sua
forma, o objeto adolescente nasce sob a singularidade, com as devidas consequências
égide do discurso e da prática científica que a fuga dos padrões pode ocasionar ao
moderna, que lhe atribui uma identidade sujeito.
marcada por um rol de características que
lhe conferem individualidade. Ato contínuo,

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Psicanálise, adolescência e de sexualidade e de sujeito singular propostas


seus processos por Freud, e tendem a manter uma relação de
causalidade linear e direta entre as mudanças
Na perspectiva psicanalítica, Freud orgânicas e os processos subjetivos destinados
(1905/1973) não falava de adolescência, atualmente à adolescência.
e sim, de puberdade, que descrevia como
um segundo momento de manifestação da Salientamos que, não obstante o fato de
sexualidade que ocorre após um período ocorrerem mudanças biológicas devido ao
de latência. Nesse momento, o sujeito processo de maturação do corpo humano,
ressignifica sua sexualidade infantil e seus são as relações estabelecidas pelo sujeito
objetos primordiais, unindo esses últimos e com a alteridade que deflagram os caminhos
formando o objeto sexual que organizará suas da sexualidade e os processos subjetivos que
pulsões, unificando-as. O autor compreende delas decorrem. Freud (1921/1973), através
ainda que, em decorrência da manifestação de estudos sobre as mudanças subjetivas
dessa sexualidade, agora incrementada ocorridas quando o sujeito se encontra em
pulsionalmente, o sujeito se vê obrigado a um grupo, já afirmava a impossibilidade
passar pelo processo de destituição dos pais de separar o social e o individual. Com
como objetos sexuais devido à proibição esse estudo, ele desenvolve o conceito de
cultural do incesto. No entanto, Freud não identificação, demonstrando a importância
define uma cronologia para a ocorrência do outro na constituição subjetiva. Freud
dessa manifestação, mas associa-a com as (1921/1973) escreve:
manifestações pulsionais, que, antes de
serem determinadas pelo amadurecimento o outro está presente na constituição
do sujeito, seja como um modelo, um
dos aspectos biológicos, são constituídas e objeto, um auxiliar ou um oponente, de
transformadas na relação com o outro, pois maneira que, desde o começo, a psicologia
esse é o fator determinante na formação de individual, nesse sentido ampliado porém
inteiramente justificado das palavras, é,
objetos sexuais e de configurações subjetivas. ao mesmo tempo e desde o princípio,
também Psicologia social. (p. 91, tradução
No entanto, muitos psicanalistas entendem nossa)
que a vivência da puberdade estaria ligada
Nesse sentido, deve-se considerar que a
a uma maturação biológica, que provocaria
própria puberdade está sujeita à influência
uma nova manifestação da sexualidade que
da rede social, e que sua vivência dependeria
até então estava em estado de latência, e
do contexto cultural no qual o sujeito está
que faria surgir novas sensações. Porém,
inserido, e, mais ainda, de sua história
assim como Matheus (2008), acreditamos
singular, que envolve seus desejos e suas
que, com essa perspectiva, os conceitos
fantasias. Recorrendo a essa abordagem,
de pulsão e sexualidade seriam entendidos
Matheus (2008) afirma que o olhar do outro
como fatores dependentes somente do
faz surgir os processos subjetivos descritos
biológico. O autor apresenta uma crítica aos
para a adolescência, pois esse olhar insere
pensadores da psicanálise que reforçam a
no psiquismo do sujeito um elemento novo
visão desenvolvimentista da adolescência,
que não encontra registro entre os recursos
estabelecendo uma cronologia para
simbólicos já disponíveis:
sua ocorrência e configurando-a como
estado universal e transcendental. Essa
universalidade se choca com as concepções

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Esse olhar e essa imagem não estão presos responsável por regular a formação de
à concretude da realidade, uma vez que novos investimentos pulsionais e de novos
esta é sustentada pelo campo simbólico
que a fundamenta e acompanha. Da laços sociais. Laplanche e Pontalis (2001)
realidade, busca-se ao menos um grão ressaltam que o ideal de eu funciona como
que sirva de suporte para o real a ser um modelo ao qual as realizações do eu são
confrontado, disparado pela estranheza
do olhar do outro. São as imagens de um comparadas, para averiguar se elas estão ou
corpo transformado, produzidas em meio não em conformidade com esse ideal. Nesse
a esse ou a tantos outros, que instigam momento, o ideal também carrega as insígnias
o retorno do recalcado, inaugurando o
segundo momento da sexualidade. É por fálicas do ideal sexual e de escolha do objeto
esse motivo que o momento adolescente sexual.
independe imediatamente da puberdade,
pois está atrelado aos sentidos que aquele
corpo conquista nos laços nos quais se
Para formar o ideal de eu, o sujeito se
inscreve. (p. 622) baseia nas identificações oriundas das suas
relações objetais e nos ideais compartilhados
socialmente, os quais foram transmitidos
Assim, a entrada na puberdade, bem como
primeiramente pela família. Há uma leitura
a assunção ou não de um modelo de
dos ideais presentes na cultura, que são
adolescência imposto pela rede social, são
interpretados pelo sujeito a partir de seus
decorrentes de uma mudança no laço social
desejos e fantasias. Desse entrelace de
estabelecido entre o outro e o sujeito. Com
elementos, o sujeito faz um caminho referente
base nos discursos e nas práticas sociais, que
à posição que irá ocupar nessa rede social
estipulam uma forma, e em um cronograma
e que está relacionada a sua escolha sexual
para as vivências subjetivas ao longo do
frente às possibilidades que encontra na
desenvolvimento humano, esse sujeito
rede simbólica. É importante lembrar que
assume um novo status frente ao olhar do
a denominada escolha sexual implica a
outro e frente ao seu próprio olhar. Com essa
assunção de uma representação identitária
mudança frente ao olhar do outro e com a
referente ao masculino e ao feminino, e que
manifestação desse segundo momento da
esta também impõe ao sujeito um rol de
sexualidade, os pais são ressignificados como
características determinadas como naturais.
objetos sexuais. Mas, devido à interdição do
Em outras palavras, é no momento que o
incesto como lei fundadora da civilização,
sujeito tem que configurar seu caminho em
o sujeito é impelido a abandonar esse
relação a uma posição que entra em jogo
investimento, e, se aceita essa interdição
a imposição dos discursos dominantes e
e inscreve em sua subjetividade as leis e as
naturalizados sobre a subjetividade humana.
normas culturais necessárias para participar
desta civilização, deverá então processar um
luto – tanto pela perda dos pais como objetos Os discursos presentes na rede social que
sexuais quanto pela perda narcísica, sentida conseguem sua hegemonia são propostos
no eu ideal – o que culminará em uma como ideais de subjetividade, e podem ser
sublimação das pulsões e no estabelecimento relacionados ao que Freire Costa (2003)
de identificações com o que antes eram os denominou tipo psicológico ordinário. Esse
seus objetos pulsionais. É na tentativa de tipo define um perfil com características
processar o luto e de formar novos objetos idealizadas pela rede social e serve como
pulsionais que o sujeito se volta para a rede referência para os sujeitos com relação aos
social, constituindo, com esse movimento, seus comportamentos e sentimentos, através
um novo ideal (ideal de eu), que será o dos quais dão significado ao seu campo

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de experiências emocionais. O sujeito necessitando de escolhas do sujeito, mas são


que se identifica e que dá significado aos processos sempre singulares, constantes e
seus sentimentos e ações a partir desse inconscientes, não podendo ser entendidos
perfil partilha da norma e dos valores como universais e determinantes do destino
dominantes. Assim, se o sujeito reconhece do sujeito.
seus sentimentos e maneiras de vivenciar suas
experiências nas características postas pelo A descrição da adolescência como momento
grupo social no tipo psicológico ordinário, de constituição de uma identidade plena,
tende a sentir-se satisfeito e aceito pelo coesa, adulta e que compreende a conclusão
grupo. Entretanto, caso não se reconheça da constituição subjetiva esbarra na
nesse perfil, pode experimentar sofrimento, concepção da singularidade do sujeito e na
aflição e sentir-se excluído e discriminado irredutibilidade e mobilidade das pulsões,
pelo grupo ao qual pertence. Entretanto, que são vistas como fundamentais para a
é necessário salientar que não existe uma subjetivação no pensamento psicanalítico.
relação direta e causal entre corresponder ao Nessa perspectiva, se reforçamos a ideia
tipo psicológico ordinário e sentir-se satisfeito de manifestações naturais na adolescência,
e não corresponder a esse tipo e sentir-se dificultamos a possibilidade de o sujeito se
infeliz. De qualquer forma, as análises de expressar em sua singularidade, e, se ela se
Freire Costa possibilitam entender que o manifesta, corremos o risco de não escutá-la,
processo de constituição subjetiva ocorre via encaixando-a nos padrões de anormalidade
operações identificatórias, e que os ideais e normalidade consolidados pelos discursos
sociais presentes nos discursos dominantes e desenvolvimentistas e reforçados pelos ideais
entendidos como naturais são determinantes modernos.
nessas operações e nos caminhos identitários
que o sujeito percorrerá. Isso se dá porque A atribuição da rebeldia à
os ideais sociais orientam a configuração adolescência
do desejo na formação do ideal de eu e
das identificações, indicando ao sujeito o Interessa, neste momento, apontar algumas
necessário para ser reconhecido e valorizado especificidades do contexto social e histórico
pela sua rede social. –como o individualismo e seu ideal de
liberdade – no qual emerge o conceito de
No entanto, os processos de identificação e adolescência, e que permitiram caracterizá-la
de luto descritos acima não ocorrem somente como um período de conflito e de oposição às
em uma etapa da vida do sujeito, definindo normas sociais. As relações entre a atribuição
a sua constituição e tornando-o estanque, dessas qualidades e a contextualização
bem como denominada escolha sexual não desse conceito se mostram relevantes para o
segue caminhos ditados pela vontade e entendimento desse tema frente ao discurso
pela consciência. As identificações ocorrem social que se apresenta atualmente sobre
permanentemente, provocando mudanças o adolescente, principalmente frente às
subjetivas conforme novos objetos pulsionais manifestações de violência e de transgressão
vão sendo constituídos e abandonados. O das leis sociais.
processo de luto é enfrentado por qualquer
um que, em determinado momento da vida, Como já apontado anteriormente, o conceito
se depare com a perda do objeto amado. de adolescência emergiu juntamente ao
Esses processos podem ocasionar conflitos, de individualismo, que tem como um de

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seus princípios norteadores a realização do só movimento necessário para a obtenção


sujeito independentemente da rede social. da autonomia mas também marca do
Se na sociedade tradicional se esperava que individualismo. Entretanto, essas mesmas
o sujeito cumprisse o destino que lhe era ações são condenadas pela civilização, que
assegurado socialmente, com o advento do as enxerga como uma ameaça para a ordem
individualismo, espera-se que o sujeito se social, entendendo ser necessária a sua
situe, crie o seu próprio destino, abstraindo repressão através de punições exemplares.
o que a tradição e o seu nascimento lhe Cria-se, então, um paradoxo, pois espera-
reservaram. Com isso, cria-se a ideia de uma se do sujeito individualista autônomo que
pretensa liberdade para o sujeito se situar e transgrida e supere as normas e vá além do
se realizar, sem considerar a rede social, com que lhe é destinado bem como se espera que
responsabilidade por suas escolhas e por suas ele cumpra as normas e respeite a tradição
conquistas. Assim, todos os homens passam a estabelecida. Esse paradoxo faz com que
ser considerados livres e iguais, dependentes a rede social procure conter e reprimir os
apenas da sua vontade e de suas capacidades atos transgressivos, obrigando o sujeito
individuais para realizarem seus objetivos, a se submeter às normas e às tradições
obterem o sucesso ou experimentarem o construídas pelas gerações precedentes,
fracasso. Essa leitura possibilita que seja concomitantemente ao elogio da capacidade
anulado e desresponsabilizado todo um de transgredir, de inovar e de mudar a ordem
contexto social e histórico que se relaciona estabelecida. Uma solução de compromisso
com a constituição subjetiva e com as ações que opera nesse cenário é a atribuição
das pessoas e dos grupos. (Calligaris, 2000; majoritária do individualismo e da autonomia
Coimbra et al., 2005; Matheus, 2008; à adolescência. Assim, essas aspirações e
Ramírez, 2007). características são definidas como atributos
da adolescência, e as ações e manifestações
Portanto, já encontramos implícitas na de contestação, rebeldia e transgressão são
concepção do individualismo embasado pela consideradas atributos naturais de uma fase
constituição e realização de um indivíduo da vida.
autônomo – que supera o lugar que lhe está
destinado socialmente através da quebra de Vestido com outras roupagens, o paradoxo
tradições – a necessidade da transgressão e descrito acima foi apontado por Freud
da rebeldia. Ao pesquisarmos os sentidos (1930/1973) como um dos principais desafios
dessas palavras, vamos descobrir que a do sujeito moderno. Para o autor, seria
transgressão, além do sentido de quebrar possível que as pessoas alcançassem a
e burlar normas, é definida também como satisfação pulsional apenas a partir da sua
o ato de ir além, de ultrapassar os limites, inserção social, mas, ao mesmo tempo, essa
e que a palavra rebeldia significa oposição, inserção impõe restrições à satisfação de suas
insurgir-se, e também a qualidade daquele pulsões, sendo necessários mecanismos de
que é obstinado. Assim, pode-se dizer que a sublimação, de identificação e de recalque
transgressão e a rebeldia são características para auxiliá-las nesse processo. Sobre esse
necessárias a qualquer sujeito que, formado paradoxo proposto pela ordem civilizacional,
nos princípios do individualismo, busca a Marin (2003) entende que a subjetivação é
realização do ideal de autonomia. Nessa um jogo de transgredir e de aceitar limites, no
perspectiva, a transgressão das tradições e de qual o sujeito precisa se inserir e compartilhar
uma ordem estabelecida é considerada não uma rede social e, de forma concomitante,

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manter sua autonomia. Em outras palavras, de forma problemática nos dias atuais, pois
ao mesmo tempo em que o sujeito necessita o conteúdo transmitido é paradoxal: “a
da rede social para satisfazer suas pulsões, ordem transmitida (quer dizer, a tradição)
também precisa conservar sua singularidade é de contradizer a tradição” (p. 64). Assim,
e autonomia como forma de satisfazer-se os sujeitos aprendem que, para se realizar e
narcisicamente. obter reconhecimento, é preciso se reinventar,
quebrar as tradições, criar, o que colide com
É nesse sentido que Marin (2003) entende a a demanda hierárquica e com as práticas de
adolescência – da forma como é representada normatização postas na e pela escolarização.
atualmente na rede social – como o
paradigma do sujeito moderno, pois, através Nessa perspectiva, é possível entender a
da descrição e da determinação dessa etapa construção da adolescência como esse tempo
da vida, está descrito também o paradigma de transição, transgressão e rebeldia que
de todos os sujeitos submetidos à civilização. funcionaria, portanto, como um espelho,
A autora entende, ainda, que todo processo um ideal identificatório através do qual os
de subjetivação implica lidar com a violência adultos poderiam almejar a felicidade através
interna, pois a própria natureza das pulsões da hipotética suspensão das normas que
é violenta, por ser uma força que irrompe regem a vida de todos no momento em que
no sujeito e o impele à ação. A adolescência se submetem às leis civilizacionais. Calligaris
é apenas o momento em que é permitida a reforça a ideia da constituição da adolescência
manifestação desse processo de subjetivação como o período no qual seria supostamente
presente em todos os sujeitos. Esse conflito, possível a satisfação dos desejos, deixando
que Freud descreve como o responsável pelo de lado os deveres e as obrigações que
mal-estar na civilização, não é vivenciado constrangem os adultos. Dessa forma, a
somente na etapa de vida descrita como rebeldia e a transgressão, como atributos
adolescência, mas é um conflito inerente à próprios do público adolescente, permitem
subjetividade moderna e que acompanhará a manutenção do desejo de liberdade dos
o sujeito durante toda a vida. adultos e, ao mesmo tempo, servem para
manter a coesão necessária à civilização
Calligaris (2000) afirma que a pretensa moderna:
rebeldia que caracteriza a adolescência
configura de fato a realização de um ideal
um mito, inventado no começo do século
de autonomia e de liberdade inscritos na
XX, que vingou sobretudo depois da Segunda
modernidade. A rebeldia se manifesta Guerra Mundial. A adolescência é o prisma
como forma de se opor às tradições e de se pelo qual os adultos olham os adolescentes
realizar de forma autônoma. Entretanto, para e pelo qual os próprios adolescentes se
o autor, essa rebeldia não é um privilégio contemplam. Ela é uma das formações
culturais mais poderosas de nossa época.
somente dos adolescentes, mas representa
Objeto de inveja e de medo, ela dá forma
um dos ideais que passaram a fazer parte aos sonhos de liberdade ou de evasão dos
da rede social a partir das transformações adultos e, ao mesmo tempo, a seus pesadelos
que se verificaram desde a sociedade de violência e desordem. (Calligaris, 2000,
tradicional até a sociedade moderna, que p. 9)

têm como princípio o individualismo.


O autor ainda pontua que é o ideal de Conforme se explicita, embora a transgressão
autonomia que constitui o ato de ensinar e a rebeldia sejam características necessárias

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à realização do individualismo, elas são justamente por não dispor de uma a não ser
destinadas, pelo discurso social dominante, como fantasia elaborada pelo eu. A ilusão
ao adolescente. Esse processo possibilita acerca do controle de si mesmo e do outro
que o ideário moderno se sustente e não é reforçada pela leitura desenvolvimentista,
exponha suas entranhas configuradas por que entende que o processo evolutivo
discursos paradoxais. Mas a atribuição dessas seja sustentado pela razão, a qual iria
características aos adolescentes também adquirir capacidade e prevalecer sobre outras
ocorre devido ao ideal de completude formas de manifestação subjetivas, como
e de indivíduo autônomo (que tem sua os afetos. Assim, o adolescente, por não ter
representação na forma adulta), o qual, desenvolvido ainda toda a sua capacidade
por sua vez, destina o adolescente a uma cognitiva, estaria mais sujeito a transgredir
incompletude subjetiva e ao processo de as leis sociais em prol da satisfação de suas
construção de uma identidade. Por ser pulsões, sendo necessário reprimi-lo para
entendido como um sujeito ainda em melhor submetê-lo a essas leis.
formação, o adolescente é descrito como
um ser em busca de sua autonomia, e, Com a emergência e a consolidação do
dessa forma, encontrar-se-ia mais propenso conceito de adolescência e da descrição do
a transgredir e a se opor às tradições e seu rol de características, é possível que a
às normas culturais, constituindo, assim, sociedade moderna conviva com o parodoxo
potencial ameaça à ordem civilizacional. A que ela mesma fez surgir e que é responsável
forma adulta, por sua vez, seria o momento pelo mal-estar civilizatório. Freud já afirmava
no qual o sujeito já teria alcançado sua que tudo aquilo que é recalcado insiste em
autonomia, etapa na qual adquiriu o domínio retornar sob outras formas em busca de
de seus afetos, de suas pulsões, e conseguiu satisfação, exigindo continuamente do sujeito
controlá-las, submetendo-se às leis da uma força de repressão. Com a constituição
civilização. Já o adolescente se encontraria da adolescência, aquilo que é recalcado nos
nos meandros dos conflitos entre as pulsões sujeitos retorna sob a forma de uma etapa
e a civilização, tentando encontrar uma de vida na qual a transgressão é natural e
articulação possível entre as duas. possível. Mas, ao mesmo tempo, por essa
manifestação ir de encontro ao desejo dos
Neste ponto, revela-se imprescindível sujeitos, ela deve ser reprimida, como forma
apontar a ilusão presente no ideário moderno de manter o recalque e a ordem social. É
acerca da completude subjetiva e do dessa forma que a adolescência se torna um
domínio das pulsões como ponto final do personagem idealizado e, ao mesmo tempo,
desenvolvimento humano. Sabemos que a inoportuno, necessitando ser reprimida para
pulsão é definida exatamente como força também se submeter às leis sociais. Com
que surpreende o sujeito e que não se a assunção desse personagem e de suas
deixa controlar pelo eu, impelindo-o à ação. manifestações transgressivas e contestatórias,
Essa força dotada de grande mobilidade o sujeito encontra a possibilidade de assumir
propicia novas identificações e investe uma posição reconhecida socialmente
de forma continuada em novos objetos e até almejada pelos adultos, na qual
amorosos. Esses movimentos constituem supostamente alcança a autonomia. Essas
as operações constituintes da subjetividade manifestações rebeldes embasadas na
e levam o sujeito a buscar e a construir autonomia tornam-se, então, a maneira
constantemente uma suposta identidade, de os sujeitos superarem as práticas sociais

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reforçadoras do discurso desenvolvimentista, Com a adolescência, a civilização pode,


que acabam por desqualificar os adolescentes então, expor seus desejos e suas fantasias de
como seres que desejam e que são capazes agressão, na medida em que entende que a
de partilhar a rede social. agressividade e a punição constituem ações
necessárias na orientação e no disciplinamento
Enquadra-se uma faixa da população por dos sujeitos. Assim, a violência contra os
entender que ainda não são cidadãos formados adolescentes será continuamente exercida
e demandam orientação a fim de educar suas enquanto continuarmos a impor práticas,
pulsões e seus afetos através da razão. Com significados e modalidades de pensar e de
isso, acaba-se também por desresponsabilizar sentir estabelecidas como naturais e normais,
os sujeitos nessa fase da vida, por entender excluindo formas alternativas e ocultando o
que estão em um período de transição no jogo de forças e a persuasão presentes na rede
qual a transgressão é natural. Entretanto, ao social, aspectos fundamentais para as escolhas
mesmo tempo em que são desqualificados e do sujeito. E, enquanto continuarmos impondo
desresponsabilizados, exige-se uma punição à adolescência esse ideal de liberdade e de
para seus atos, explicitada na demanda social felicidade na tentativa de negar os conflitos
pelo estabelecimento de leis sociais cada vez que surgem no sujeitos a partir da constituição
mais rigorosas, como é o caso da discussão do individualismo e da ordem civilizacional
em torno da redução da maioridade penal. moderna.

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Carolina Esmanhoto Bertol


Mestre do Programa de Pós Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina, Santa Catarina –
SC – Brasil.

Mériti de Souza
Doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo – SP – Brasil.
E-mail: meritidesouza@yahoo.com

*Endereço para envio de correspondência:


Av. Afonso Pena, 4730, bloco Pássaros, apto 2502. bairro Chácara Cachoeira. Campo Grande, Mato Grosso do Sul
- MS- Brasil. CEP 79040-010.
E-mail: carolbertol@hotmail.com

Recebido 2/10/2009, Aprovado 30/3/2010.

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