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Música renascentista ‘versus’ música barroca

Capítulo 1 de “La música en la época barroca – de Monteverdi a Bach”, de Manfred F.


Bukofzer.
Desintegração da unidade estilística
Quando Monteverdi em seu quinto livro de madrigais (1605) afirma não seguir os
preceitos da antiga escola, mas guiar-se pelo que ele chamava de ​seconda prattica –
segunda prática, fala com a segurança de um artista plenamente consciente de uma
mudança fundamental na concepção da música. Monteverdi replicava assim a um
ataque ofensivo de Artusi no qual este crítico conservador assinalava faltas em seu
tratamento da dissonância. Ao opor a segunda prática à primeira, dando a entender que
as normas da antiga escola não poderiam aplicar-se à nova, Monteverdi lançava um
desafio à base dessa discussão. Assim, a eterna controvérsia entre o artista e o crítico
sobre as normas da crítica de arte explodia violentamente, como costuma acontecer em
todos os períodos de transição.
Não seria essa a primeira vez, nem a última, em que a transição de uma época musical
para outra viria acompanhada por reivindicações do setor progressista em confronto
com as do conservador. A denominação ​Nuove Musiche – Nova Música que se
converteu no grito de batalha do período barroco equivale ao ​Ars Nova de finais do
período gótico (proclamado por Philip de Vitry); à ​Ars Nova do Renascimento (descrita
por Tinctoris); ao ​goût galant – gosto galante do primeiro período clássico; e à “música
moderna” de nossa própria época. Nos tempos de Monteverdi, a música antiga – ​stile
antico – era equivalente à música renascentista, e o novo ​stile moderno​, à música
barroca.
A palavra ​barroco no princípio teve um significado pejorativo, que refletia claramente
sob qual prisma as antigas gerações contemplavam as novas realizações artísticas do
século XVII. Se dava por estabelecido que o barroco era uma forma degenerada do
Renascimento, outra “idade Média” entre o transparente cinquecento e o classicismo do
século XVIII. Inclusive, Jacob Burckhardt definia ainda em seu ​Cicerone ao barroco
como um “dialeto corrupto”. Na atualidade, nossos conceitos têm mudado de maneira
radical. Se reconhece que o barroco é um período com pleno direito, com
desenvolvimento intrínseco próprio e normas estéticas próprias. O período abarca mais
ou menos o século XVII e a primeira metade do século XVIII. Os indícios de
transformação estilística se fazem patentes em finais do século XVI, e durante certo
tempo os traços renascentistas e barrocos coexistiram. Do mesmo modo, as novas forças
que ao final do período barroco nos conduziriam definitivamente à época clássica,
apareceram em princípios do século XVIII de forma simultânea às manifestações mais
monumentais e duradouras da música barroca.
Os termos música “renascentista” e música “barroca” figuram na história da arte como
designações cômodas para certos períodos e são igualmente utilizáveis na história da
música e de outros campos do saber humano. A transposição para a história da música
de termos criados na história da arte, apresenta riscos se aplicada com rigor, ou seja, de
forma demasiadamente literal. Desde os dias em que Wölfflin deu a conhecer seus
Principios de la historia del Arte​, se tem intentado aplicar a sua terminologia à música
de forma global. Os conceitos de Wölfflin, a forma linear, a fechada, etc., são abstrações
derivadas da evolução viva da arte, muito úteis em realidade, porém de natureza tão
geral que se podem aplicar a todos os períodos de maneira indiscriminada, embora sua
origem tenha surgido da comparação do Renascimento com o Barroco. Todavia, se
aplicados como princípios inamovíveis, se voltam contra si mesmos: a interpretação
histórica de um período nunca é válida com toda exatidão, nem na história da arte nem
na da música. Somente uma terminologia histórica capaz de reconhecer a unidade de
cada época estilística pode ampliar tal explicação. A aplicação da palavra “barroca’ à
música vem sendo alvo de muitas críticas, já que as qualidades do barroco não se podem
dar em notas musicais. Em realidade, todo aquele que espere descobrir as qualidades do
barroco na música, como se tratasse de uma substância química misteriosa, confunde o
significado da palavra, que em essência se refere à unidade estilística e profunda do
período.
O fato de que o desenvolvimento da música barroca é paralelo à da arte barroca e de que
a música não vá ficar em atraso com relação às demais artes, tal como costumam dizer,
só pode ser demonstrado mediante uma análise técnica que inclua até o último detalhe, e
não mediante abstrações de caráter geral e comparativo. Por outro lado, a teoria de que
o barroco se manifesta de forma tão uniforme em todos os campos e que toda obra de
arte da época é “caracteristicamente barroca”, deve ser submetida a exame em cada caso
individual. Existem corrente subjacentes de forças opostas que não estão de acordo o
“espírito do tempo”, o que por sua vez é outra abstração. A vida concreta de um período
encerra contradições internas, conflitos entre ideias que prevalecem e outras que
desaparecerão, relíquias dos períodos anteriores e anúncios dos que se seguirão. Apesar
de todas estas complexidades, as ideias que prevalecem de uma era, se destacam e
merecem a maior atenção. As pautas dominantes da música barroca se correspondem
com as da arte e da literatura barrocas e são um derivado inevitável de qualquer estudo
do período.
A mudança da música renascentista para a barroca difere de todas as transformações
estilísticas da história da música em um aspecto importante. De entrada, o estilo musical
da antiga escola caiu no esquecimento. O novo estilo ocupou seu lugar e transformou os
últimos vestígios das técnicas musicais anteriores, assegurando assim a unidade
estilística de cada período. Porém, ao começo da época barroca, o estilo antigo não foi
deixado de lado, sendo deliberadamente preservado como uma segunda linguagem,
conhecida como ​stile antico da música sacra. A unidade de estilo que até então não
havia sido ameaçada se desintegrou e os compositores se viram obrigados a ser
bilíngues. O estilo antigo se baseava no de Palestrina, que se converteu no ídolo dos que
seguiram o severo estilo à ​cappella da música barroca. À medida em que se foi
perdendo o conhecimento real da música de Palestrina, ganhou mais força sua lenda
como o suposto salvador da música sacra.
O domínio do estilo antigo se converteu em bagagem indispensável para a educação do
compositor. Isto lhe permitia escolher o estilo no qual deseja escrever, ou bem o
moderno, veículo de sua expressão espontânea, ou bem o severo antigo, que adquiria
mediante estudos acadêmicos especiais. Esta eleição de estilos foi o primeiro passo
significativo dado na direção do historicismo musical, causa de perplexidade
atualmente. Nossa tão discutida e amiúde amaldiçoada divisão da instrução musical
entre escrita ‘estrita’ e ‘livre’ remonta, em última análise, à distinção existente entre
estilo antigo e moderno. As regras do estilo antigo foram diligentemente codificadas por
teóricos como Bontempi e Fux, cujas obras constituem um exemplo drástico do
contraste existente entre o mundo antigo e o moderno. Todavia, investigações recentes
têm demonstrado que o “estilo de Palestrina” do barroco, difere, na realidade, do seu
modelo; os teóricos perpetuaram com suas normas um estrito estilo fictício que recorda
a música renascentista, embora na verdade sutilmente impregnado de licenças
modernas. Apesar dessa transformação involuntária ter se dado, por assim dizer, pelas
costas dos compositores, estes seguiram falando do “estilo de Palestrina”. A tensão
entre o estilo antigo – por mais fictícia que possa parecer, e o estilo moderno, haveria de
deixar sua marca na música barroca e em todos os períodos subsequentes. Se tem
procurado resolver este conflito de diversas maneiras, porém nunca se tem logrado
eliminá-lo por completo. Devido a isso, o renascimento se destaca como a última era de
unidade estilística, e por isso tem sido exaltado como o paraíso perdido da música. Esta
unidade estilística se expressa também na atitude confiante dos compositores
renascentistas ante o estilo musical, que o davam por estabelecido, enquanto que se
converteu em um problema para os compositores barrocos. A época é a era da
consciência do estilo.
De diversas maneira se tem intentado reduzir o contraste entre a música renascentista e
a barroca a uma fórmula breve. Os primeiros teóricos do barroco são culpáveis
particularmente de haver criado simplificações excessivas e forçadas que serviam aos
seus tendenciosos propósitos de momento, e que infelizmente têm sido tomadas a sério
pelos historiadores modernos. Com o começo do barroco, ouvimos pela primeira vez
falar de classificações elaboradas de música segundo os estilos, o que indica que se
havia perdido a unidade de estilo. Já mencionamos a parelha fundamental de estilos na
qual se baseia esta nova consciência estilística: o estilo antigo e o moderno, também
conhecidos respectivamente como ​stylus gravis e ​luxurians​; ou ainda como ​prima e
seconda pratica​.
Outra distinção que surgiu mais adiante no século dividia a música em sacra, de câmara,
e teatral (musica ​ecclesiastica​, ​cubicularis e ​theatralis​). Outros termos classificam a
música segundo sua função sociológica e não implicam necessariamente diferentes
técnicas musicais. Resulta significativo que os principais termos estilísticos não se
excluíssem mutuamente. Por exemplo, a música sacra não podia classificar-se de
maneira categórica, já que podia ser composta tanto no estilo antigo quanto no moderno.
As numerosas distinções estilísticas da época têm ensejado muitas confusões; as
aparentes inconsistências só podem ser eliminadas se entendermos a palavra “estilo” em
um sentido mais amplo que o admitido pela interpretação moderna, meramente técnica.
Na ​Miscelanea musicale (1689) de Berardi, quando diz: “Os antigos mestres (do
renascimento) só tinham um estilo e uma prática; os modernos têm três, estilo sacro, de
câmara e teatral e duas práticas, a primeira e a segunda”, se faz patente até que ponto a
consciência do estilo havia aguçado o sentido do contraste existente entre o
renascimento e o barroco. Segundo Berardi e seu mestre Scacchi, a diferença essencial
entre a primeira e a segunda prática radica na mudança de relações entre música e letra.
Na música renascentista “a harmonia é a mestra da letra”; na barroca “a letra é a mestra
da harmonia”. Essa clara antítese, que se limita a parafrasear a distinção que fazia
Monteverdi entre a primeira e a segunda prática, assinala em verdade um aspecto
fundamental da música barroca: a expressão musical do texto, o que então se conhecia
como ​expressio verborum​.
Este termo não tem a conotação moderna de “de música expressiva” e sua tradução mais
exata seria “representação musical da letra”. Este meio de representação verbal da
música barroca não era nem direta, nem psicológica, nem emocional, mas tinha um
caráter indireto, ou seja, intelectual e pictórico. A psicologia moderna relativa às
emoções dinâmicas ainda não existia na época barroca. Os sentimentos se classificavam
e se convertiam em estereótipos, formando um conjunto dos chamados afetos, cada um
dos quais representava um estado mental que em si mesmo era inamovível. Era assunto
do compositor o fazer com que a tendência da música correspondesse ao sentido das
palavras. Conforme o racionalismo lúcido da época, o compositor dispunha de um
conjunto de figuras musicais classificadas, seguindo a pauta dos mesmos afetos e
pensadas para representar em sons musicais estes afetos.
O princípio da doutrina dos afetos e das figuras, contudo, já era conhecida no
renascimento, e um escritor desse período se refere aos Salmos penitenciais de Orlando
de Lasso como um exemplo notabilíssimo de uma representação carregada do
significado das letras. Com tal motivo usa o controverso termo ​musica reservata​, cujo
nome deriva provavelmente da fiel observância do texto. Os compositores italianos,
todavia, desenvolveram também uma técnica refinada de representação pictórica ao
criar o madrigal italiano. Dado que tanto na música renascentista como na barroca se
sabia como representar os textos na forma de música, Berardi simplificou
excessivamente este assunto ao considerar correto que o renascimento não conhecia tal
coisa. Na verdade, ambos os períodos trabalhavam seguindo o mesmo princípio, embora
diferissem fundamentalmente em sua forma de aplicação. No renascimento se
favoreciam os afetos de comedimento e nobre simplicidade, enquanto que no barroco se
priorizava os afetos extremos, que iam desde a dor violenta até a alegria exuberante. Se
faz claro que representação desses afetos violentos precisavam de um vocabulário muito
mais rico do que o necessitado até então.
A pouco sutil distinção de Berardi se limita a repetir opiniões já expressadas desde 1590
por um inquieto grupo de homens de letras, que sob a liderança dos condes Bardi e
Corsi, apareceu em Florença com o nome de ​Camerata​. Este grupo baseava seus
ataques à música renascentista em seu modo de dispor os textos. Afirmavam que na
música contrapontística a poesia literalmente “quedava feita em farrapos” (​laceramento
della poesia​), pois que cada uma das vozes entoava palavras diferentes ao mesmo
tempo. Com frequência dispunham palavras como “firmamento’ e “onda” com notas
agudas e linhas musicais ondulantes. A Camerata se opunha sarcasticamente a “este
pedantismo” e insistia em que o sentido de toda uma passagem, em vez de uma só
palavra, é que devia ser objeto de imitação por parte da música. Como resultado destas
discussões teóricas nasceu o recitativo, no qual se abandonou completamente a
composição contrapontística. No estilo da fala entoada do recitativo, a música se viu
completamente subordinada ao texto, e este regia o ritmo musical e até o lugar onde
tinham de se estabelecer as cadências. Desde seu mesmo nascimento, o recitativo se
entoou com um ‘patetismo’ realista desconhecido até então e com uma violência afetiva
na qual o cantor fazia caras e bocas, atuava, imitava as inflexões da fala corrente,
dramatizava o choro e o quedar-se sem alento. Na opinião da Camerata era
precisamente a qualidade extremamente afetiva do recitativo o que lhe dava a sua
categoria de distinção e o fazia superior aos métodos “pedantes” da música
renascentista. Contudo, na opinião de um compositor renascentista, o recitativo não era
mais do que um experimento ridículo que demonstrava “que o seu autor não era um
bom músico”, empregando as palavras com as quais Schumann caracterizou a Wagner.
Desde o ponto de vista dos compositores renascentistas, nada havia mais fácil do que se
compor em recitativo, pois que não requeria mais do que apenas um superficial
conhecimento da técnica musical para fazê-lo. É sintomático que os líderes da
Camerata, Bardi e Corsi, foram na realidade aristocratas aficionados a compor. Os
aficionados se vêm menos constrangidos pela tradição, e menos paralisados pelos atos
quando pretendem moldar novas ideias. A influência dos diletantes foi um fator tão
decisivo na formação da música barroca quanto na do estilo clássico na época dos filhos
de Bach. Por conseguinte, a afirmação da Camerata segundo a qual a música do
renascimento era incapaz de imitar os sentimentos expressados pelo texto, é própria de
aficionados. Os teóricos renascentistas não perderam nem um segundo para rebater esta
teoria. A razão pela qual os defensores da antiga e nova escola não puderam chegar a
um acordo nem souberam entender-se, resulta evidente. Quando um compositor barroco
falava de afetos, se referia aos afetos extremados e violentos, considerados incorretos
pelo músico renascentista. Desta forma, a discussão se desenrolava em distintos níveis
que nem sequer se tocavam.
A invenção do recitativo teve a ver intimamente com ao nascimento da ópera, com a
qual a Camerata intentou dar nova vida à antiga tragédia grega. Dado que um
entusiasmo pela música antiga deu impulso à ópera e que a revitalização dos clássicos
se considera característica “típica do renascimento”, os historiadores de gerações
passadas consideraram a ópera como o último florescimento da música renascentista. Se
seguíssemos na lógica deste argumento enganoso, haveríamos que admitir que a ópera
surgiu com dois ou três gerações “demasiado tarde”, para fazer parte do panorama
renascentista. Tem sido este nascimento considerado “tardio”, o que resultou na
desafortunada teoria de que a música estaria atrasada com relação às demais artes. No
entanto, esta inclinação pela antiga música grega não é característica exclusiva do
renascimento. Nos tratados medievais abundam longas citações de autores antigos que
de maneira religiosa perpetuam os relatos sobre os poderes mágicos da música grega; da
mesma forma, aparecem tais citações em inúmeros livros barrocos sobre música. Se
podem observar estas ideias na música medieval, renascentista e barroca; só os diversos
métodos de plasmá-las nos dão a chave do caráter específico de cada período individual.
Em realidade, a ópera constitui um dos exemplos mais notáveis da concretização dos
afetos extremos em música, e como tal deve ser considerada uma das mais destacadas
inovações do período barroco. Sabemos que no renascimento se representavam
tragédias gregas traduzidas, nas quais a música, de forma característica, se viu restrita
ao seu uso em corais polifônicos. Em nenhuma dessas representações se considerou a
ideia, inconcebível na época, de se pôr música em toda a tragédia, ou de recitá-la
apoiada na música. A Camerata justificou a introdução do recitativo contínuo
baseando-se na teoria de que a música devia imitar o discurso de um orador e sua
maneira de fazer vibrar os sentimentos do público. Embora Galilei tenha descoberto o
hino Mesomedes, primeiro original de música grega conhecida então, a natureza dessa
música antiga era um livro fechado para a Camerata, já que a sua notação não podia ser
decifrada. Na investigação do recitativo, a quimera da música antiga só serviu como
catalizador; o impulso primário surgiu do desejo barroco de representar fortes
sentimentos.
Os compositores da Camerata insistiram uma vez e outra na natureza retórica do
recitativo, por exemplo, Caccini o chamava “falar com música” e Peri admitia haver
intentado “imitar a pessoa que fala por meio do canto”. Também Galilei e Bardi
sustentavam que o músico deveria aprender do orador a maneira de despertar os afetos.
Na verdade, o recitativo fundiu em um todos os acentos estilizados da fala natural e os
da música. Esta tendência a unir elementos díspares da poesia e da música, encontra seu
exato paralelismo na assimilação mútua da arquitetura coma a pintura; assimilação da
qual a arquitetura barroca nos proporciona muitíssimos e surpreendentes exemplos.
Para os compositores renascentista resultava absurdo imitar os oradores, já que a canção
falada dependia de uma lei extramusical, a lei do discurso: para eles o recitativo era um
discurso cantado em vez de uma canção falada. Zarlino, o porta-voz autorizado da
antiga escola, se opunha precisamente à fusão da música e a poesia. E seus ​Sopplimenti
afirmava que o compositor devia trazer à tona os sentimentos contidos na letra, embora
insistisse em destacar a diferença fundamental entre o método do orador e o do músico.
Frisava o fato de que a poesia e a música contavam com distintos modos de imitação
que não deviam ser confundidos, e que o músico que emulasse a um orador se
converteria num histrião ou palhaço. É surpreendente saber que Marsilio Ficino, muito
antes que Zarlino, resumiu o ponto de vista renascentista em uma de suas cartas, na qual
afirmou que o orador e o poeta tomavam o músico por modelo, ou seja, exatamente o
contrário da atitude barroca.
Os conceitos da música próprios do renascimento e do início do barroco, neste aspecto,
de contrapõem. O artista renascentista via na música uma arte totalmente independente,
somente sujeita às suas próprias leis. Para o artista barroco a m´sucia era uma arte
heterogênea, subordinada ao texto e cuja única função era ser o meio musical de uma
finalidade dramática que transcendia a música. Não deve ser motivo de confusão para
nós que tanto os conceitos barrocos quanto os renascentistas se fundam na antiga teoria:
a arte imita a natureza; e que os defensores de ambas as escolas tenham reforçado seus
pontos de vista em citações tomadas de idênticas passagens de Platão e Aristóteles. A
imitação da natureza pelos textos, constituiu somente um trampolim de onde se
lançaram ambos os períodos. Isto confirma que o método sob o qual se pôs em prática a
teoria, constitui a diferença entre renascimento e barroco.
Os violentos ataques da Camerata ao contraponto, em especial os de Galilei, constituem
outro exemplo no qual os autores barrocos intentaram estabelecer sua oposição ao
período renascentista. Os primeiros compositores de recitativos: Galilei, Peri e Caccini,
dão provas do estímulo que receberam em sua criação, do músico aficionado Bardi.
Caccini nos conta que nos poucos anos que passou ao lado desse homem, aprendeu
muito mais música do que “em trinta anos dedicados ao estudo do contraponto”. É certo
que em princípio Caccini não escreveu seguindo o novo estilo de recitativo e suas obras
deixam muito claro que este prolongado estudo do contraponto é exagerado. Por outro
lado, as composições de Galilei que nos chegaram demonstram que foi um hábil
compositor de madrigais e motetes, que não depreciou os deleites dos fogos de artifício
do contraponto tão agradável aos madrigalistas, e que a Camerata depreciava.
Baseando-se em suas próprias composições, o total desprezo demonstrado por Galilei
pelo contraponto, constitui uma pose acadêmica assumida sob a influência de Bardi.
Este também é responsável pela generalizada afirmação segundo a qual o renascimento
foi a época do contraponto e o barroco a do canto. Modificada, esta distinção tem
sobrevivido até a atualidade, na oposição entre contraponto e harmonia, ou polifonia e
homofonia.
A definição dada por Bardi do renascimento como a época do contraponto, ignora pura
e simplesmente uma parte essencial da literatura musical. O contraste entre composição
contrapontística e composição de nota por nota, existiu no renascimento com tanta força
quanto no barroco. Ademais, os teóricos renascentistas reconheceram esta oposição e
basta lançar uma mirada às missas de Josquin para comprovar até que ponto se utilizava
de maneira consciente estes princípios. Na verdade, ambas as épocas tiveram em
comum o conflito entre textura contrapontística e de acordes; no entanto, encontraram
soluções diferentes para tal impasse. O renascimento resolveu o problema mediante a
composição em partes independentes, ou seja, mediante um grupo de vozes equilibradas
e de importância quase igual, sem tomar em consideração a textura. Desta maneira, as
seções contrapontísticas e de acordes de uma composição renascentista jaziam unidas
pelo princípio fundamental de composição em partes. Do mesmo modo, não se pode
dizer que o barroco foi a idade da harmonia pura e simples. Este, encontrou a solução
para o conflito em uma nova trama de fios contrapontística e harmônica, que finalmente
resultou na fusão da harmonia funcional e do contraponto linear das obras de Bach,
cumes da música barroca.
Comparação estilística entre a música renascentista e a barroca
A análise crítica até agora exposta dos teóricos renascentistas e barrocos e seu intento de
formular em poucas palavras o contraste existente entre os períodos, deixa bem claro
por que as generalizações da época não nos dão uma imagem verdadeira da mesma. Os
defensores de ambas escolas necessitavam afiar-se as unhas e se ocuparam muito pouco
dos fatos que achavam inconvenientes. Entretanto, há de se admitir que suas
generalizações têm algo de verdade e podem ensejar fontes excelentes para a
compreensão das ideias prevalentes que precipitaram a mudança de um período a outro,
mas o estudo dessas fontes quase não teria valor se não viesse acompanhada de uma
análise estilística e rigorosa das composições. As conclusões às quais se chegue, após os
estudos teóricos e práticos, deverão contrastar-se entre si para se obter uma
compreensão autêntica dos traços inerentes a cada período. Nas páginas seguintes,
submeteremos a uma análise comparativa as características estruturais notáveis da
música renascentista e barroca.
A diferença mais surpreendente entre a música renascentista e a barroca se produz no
tratamento da dissonância, fato do qual Berardi se ocupou também em seus livros. O
tratamento da dissonância é, em verdade, a pedra angular do contraste estilístico, onde
as mudanças de harmonia e contraponto se manifestam de modo mais notável. Na
música renascentista, todas as dissonâncias se produzem: ou no tempo fraco dos
compassos, ou como suspensões nos tempos fortes. O resultado harmônico de se
combinar as vozes era concebido como uma conjunção de intervalos ao invés do
desenvolvimento de um acorde. Esta harmonia de intervalos do renascimento se opunha
diametralmente à harmonia de acordes do barroco. Se a harmonia se concebia baseada
nos acordes, resulta possível introduzir uma nota dissonante posta ao acorde em
qualquer momento, sempre que o acorde permanece perfeitamente definido. O baixo, na
música barroca, proporcionava os acordes, e permitia dessa maneira que as vozes
superiores formassem dissonâncias de uma forma mais espontânea que antes. A
resolução da dissonância podia efetuar-se levando a voz dissonante até a seguinte nota
do acorde, mediante um acorde ascendente ou descendente. Esta alternativa ilustra a
nova liberdade melódica da música barroca, que deste modo, já não se viu atada à regra
renascentista de resolver todas as dissonâncias em um movimento descendente.
É evidente que o tratamento da dissonância no renascimento deu lugar a severas
restrições do ritmo harmônico, isto é, a mudança da harmonia por unidade de tempo.
Com um ritmo harmônico, o compositor renascentista apenas podia utilizar
dissonâncias, e por isso, todas as seções rápidas em ritmo ternário se destacavam por
sua escassez de dissonâncias. O tratamento da dissonância na música barroca não só
permitia usar um ritmo harmônico, mas também proporcionava os principais meios
técnicos para o estilo de caráter afetivo do recitativo. Só se conservou o antigo
tratamento da dissonância na música barroca no domínio do estilo antigo. Dado que este
estava relacionado com a música sacra, a ausência do tratamento moderno da
dissonância foi pelos músicos barrocos como uma característica do estilo sacro. Berardi
criticou a música renascentista do ponto de vista dessa nova norma e afirmou que esta
era inferior à barroca, já que, segundo ele, “quase não havia diferenças estilísticas entre
um motete e um madrigal”. Esta é a origem da oposição entre o sagrado e o profano em
música. A equivocada ideia de que um certo estilo é mais apropriado para a igreja do
que outro surgiu no barroco, tão consciente do estilo, e esta ideia ainda continua
pesando sobre nós. A afirmação de Berardi só é correta no tocante ao tratamento da
dissonância, e sua conclusão se baseia em uma norma inaceitável. Não soube ver que a
unidade de estilo da música renascentista era o segredo de sua força e não de sua
debilidade.
O tratamento da dissonância no barroco dependia de uma voz capaz de suportar os
acordes; consequentemente, o baixo recebeu mais atenção que nunca. Em realidade, a
forma peculiar de fazer com que o baixo servisse à nova função foi tão característica do
barroco quanto seu nome: baixo contínuo. O período barroco começa e termina de
maneira quase exata com a época do baixo contínuo. Por isso, Riemann não duvidou em
chamar a era barroca de ​Generalbass-Zeitolter – “era do baixo”. No entanto, se
aplicarmos estritamente estes termos, não podem incluir-se as obras de Bach para cravo
e órgão, que não têm contínuo, e por conseguinte, resultando em algo demasiado
restrito. A pesar de tudo, a presença do contínuo é um indício claro do estilo barroco; e
sua ausência, deixando de lado as obras pata teclado, é tão excepcional que demanda
uma explicação específica do compositor.
A invenção do contínuo foi mais um sintoma do que uma causa. Graças a ele, todos os
aspectos da melodia, da harmonia e o contraponto apareceram numa perspectiva
modificada em seus fundamentos. Pela primeira vez apareceu na história da música uma
polaridade harmônica entre o baixo e o soprano, entre o apoio harmônico e um novo
tipo de melodia que dependia deste apoio. Esta polaridade é a essência do estilo
monódico. Com a nova função do “acompanhamento” relegado ao baixo, a melodia
ganhou em liberdade e agilidade. A nova distinção de Agarazzi entre instrumentos
fundamentais e ornamentais, nos deixa ver a rapidez com que os compositores barrocos
se deram conta da importância desta polaridade. Os instrumentos fundamentais eram em
essência os de teclado e todos os que se podiam usar no contínuo. Os ornamentais eram
os que entoavam a melodia. A divisão entre fundamental e ornamental na função dos
instrumentos é paralela, de forma discreta, ao dualismo existente entre o
acompanhamento do baixo e a melodia. As vozes mais exteriores adquiriram no barroco
uma importância dominante: o baixo e o soprano constituíam o esqueleto da
composição. Este perfil estrutural era a parte essencial da música. O demais podia ser
completado pelo intérprete de forma improvisada. Resulta significativo que esta
complementação do contínuo recaia em mão da improvisação, uma vez que a polaridade
entre as vozes extremas assegurava o perfil estrutural.
O novo tipo de melodia diferia da renascentista principalmente em sua estrutura interno
e no seu ritmo. Já não valiam as limitações impostas ao compositor renascentista no
tocante a saltos ascendentes e descendentes. O novo tratamento da dissonância
implicava também novos intervalos melódicos. Os graus cromáticos, e em especial as
progressões aumentadas e diminuídas, foram os distintivos dos primórdios do barroco.
Todos estes intervalos se experimentaram nos últimos madrigais, que constituíram o
passo do renascimento para o barroco; época na qual se converteram no pão de cada dia
do estilo teatralizado de expressão dos afetos.
A mudança da melodia e de sua estrutura de intervalos, se relacionava diretamente com
os novos conceitos harmônicos. A harmonia de intervalos do renascimento só admitia
tríades e acordes de sexta, já que todos os outros precisavam de suspensões. A
polaridade do baixo e do soprano abriu a porta para inúmeras possibilidades harmônicas
novas, o que para os conservadores da época constituiu o começo do caos. Quando os
favoritos intervalos aumentados e diminuídos se empregavam simultaneamente, isto
desencadeava um rico vocabulário de acordes alterados, muito característicos dos
princípios do barroco. Surgiram acordes de sétima no tempo forte do compasso sem
preparação. A harmonia do primeiro barroco não tinha direção tonal e seu lugar se viu
ocupado pela exploração experimental dos efeitos de acordes, como o que
mencionamos. Os experimentos levados a cabo na harmonia pré-tonal, conduziram
finalmente a uma clarificação na criação da tonalidade.
Se pode definir a tonalidade como um sistema de relações de acordes baseados na
atração exercida por um centro tonal. Esta tônica constituía o centro de gravitação dos
outros acordes. Não resulta uma mera metáfora explicar o sistema tonal em termos de
gravitação. Tanto a tonalidade quanto a gravitação foram descobertas do período
barroco, ocorrendo simultaneamente. Os efeitos profundos devido ao reconhecimento
da tonalidade persistem, todavia, na atual busca por uma concepção nova e mais ampla
da tonalidade. No período da harmonia tonal ou funcional, o interesse musical se
concentrou na regulação das progressões de acordes. Na música renascentista a
harmonia se viu constrangida à combinação das combinações de intervalos. As
progressões de uma combinação a outra, que segundo a moderna terminologia
chamaremos de ‘progressões de acordes’, não vinham ditadas por um princípio tonal ou
harmônico, senão pelas leis melódicas da composição em partes. Dado que as partes
individuais, por sua vez, se viam guiadas pelas regras dos modos melódicos, a
modalidade regia de forma indireta a harmonia dos intervalos. A modalidade regia a
harmonia da música renascentistas e a tonalidade a harmonia de acordes dos finais do
barroco. A harmonia experimental do princípio do barroco exemplifica de maneira
notável a transição do conceito antigo ao moderno ada harmonia. A harmonia do
primeiro barroco foi concebida, com toda evidência, em termos de acordes; por
conseguinte, era “moderna”. Contudo, ainda não se via dominada pela força diretriz da
tonalidade, e dessa forma ainda conservou vestígios da tradição renascentista.
O ritmo da música renascentista jazia regulado por um fluxo uniforme de pulsações, o
chamado ​Tactus​. Os movimentos das partes e dos diversos ​tempi se viam unidos de
maneira estrita pelo ​tactus mediante um sistema métrico de pulsações, válido na música
sacra como na dançante. As síncopas e os acentos se levavam a cabo mediante a
duração, não mediante os efeitos rítmico-dinâmicos. Os compositores barrocos não
abandonaram repentinamente este procedimento, porém usaram uma polaridade rítmica
cada vez mais característica, que raramente se empregava no renascimento. No estilo do
recitativo afetivo a música servia à palavra falada e por isso o ​tactus perdeu a
importância. Um compositor radical como Monteverdi por vezes descartou totalmente o
plano das pulsações e assinalava que seus recitativos deviam entoar-se ​senza batuta –
livre de pulso regular. Aos ouvidos do compositor renascentista, esta música insultante
não ritmo musical em absoluto, já que ele era incapaz de imaginar sequer um ritmo
separado da regularidade do ​tactus​. Para o compositor barroco, a flexibilidade do ritmo,
recém obtida e extramusical, merecia um maior elogio, já que permitia a representação
mais fiel dos afetos. Isto é apenas um aspecto do ritmo barroco. O compositor também
explorou o outro extremo, no qual o ​tactus se transformou em pulsações mecanicamente
recorrentes. Estas apareceram primeiro na música de dança e logo depois na música
instrumental estilizada. O estilo do Concerto do último barroco exemplifica em especial
uma exploração quase irrefreável das pulsações. Entre os extremos de um ritmo livre e
outro mecanicamente estrito, todas as etapas intermediárias se usaram na música
barroca.
Com a mudança havida do renascimento para o barroco, todos os elementos da estrutura
musical se enriqueceram com novas qualidade específicas; até aqueles elementos
singulares que foram comuns a ambos os estilos. Dado que todos os elementos
dependiam da estrutura total, cada um adquiriu um novo significado, tal como temos
demonstrado ao explicar o tratamento da dissonância, as funções do baixo, a melodia, a
harmonia e o ritmo.
Ao começo do período barroco apareceu um elemento estilístico inteiramente novo: a
composição idiomática. A época barroca desenvolveu de modo consciente as
possibilidades idiomáticas inerentes aos meios instrumentais e vocais. Há que se
entender a consciência idiomática do barroco como outro aspecto de sua consciência
estilística. Em nenhum outro aspecto surge com tanta clareza entre a música
renascentista e barroca. A concepção renascentista da estrutura musical se baseava na
composição por partes, que abordava tanto a música vocal como a instrumental. Devido
a sua mesma natureza esta concepção não exigia estilos musicais idiomáticos para
instrumentos individuais e em consequência, as vozes na música renascentista podiam
ser interpretadas vocalmente ou instrumentalmente; ou de maneira inversa, as partes
instrumentais, com frequência, se definiam como “para ser tocadas ou cantadas”,
embora não contassem com uma letra. O fato de que a voz ou os instrumentos eram
intercambiáveis, demonstra até que ponto a importância radicava na construção das
partes individuais, e não no meio de interpretação.
Dado que as estruturas das partes lineares era algo mais importante do que o meio pelo
qual eram construídas, não se pode considerar que o renascimento teria sido a época do
estilo à ​capella​, tal como se crê comumente. Com frequência se expressa a diferença
entre os dois períodos dizendo que o primeiro teve como meta o estilo à ​capella e o
segundo, o instrumental. Como qualquer simplificação excessiva, essa também contém
algo de verdade, embora atribua ao renascimento uma consciência do meio que lhe é
estranha. Muitos frontispícios de obras onde se leem explicitamente “para voz viva” ou
“instrumento”, provam que tanto a voz como os instrumentos eram intercambiáveis até
na música sacra. O modo de interpretação era flexível e não ensejava preocupações –
contanto que se não atentasse contra a estrutura das partes. A música renascentista
apresentava, em linhas gerais, três possibilidades: interpretação somente das vozes; dos
instrumentos somente; ou combinação de vozes e instrumentos – o que era mais
frequente. A interpretação à ​capella ​não era mais que um recurso entre outros. Qualquer
classificação da música renascentista que não inclua o dobramento ou substituição das
vocês por instrumento, é pobre.
Foi o compositor barroco quem criou as características idiomáticas de voz e
instrumento, e foi ele quem primeiro as utilizou amplamente no estilo ​concertato do
primeiro barroco. Com seu instinto por criar efeitos coloristas, também descobriu o
atrativo sensual do coro à ​capella​, que desapareceria quando os instrumentos dobravam
as vozes. Dado que o dobramento das vozes era uma prática comum dos compositores
renascentistas, fica claro que eles não reconheceram em sua plenitude este atrativo já
mencionado. O ideal à ​capella​, cujo cuja expressão mais solene se encontra no estilo
antigo, foi um invento do barroco. Além disso, o termo à ​capella foi cunhado no
período barroco. O exemplo da Capela Sixtina citado com tanta frequência pelos
historiadores como caso típico, é na verdade um exemplo excepcional. A utilização do
efeito à capella puro só representa um extremo do barroco consciente idiomaticamente
falando, ao que vem complementar o outro extremo: o idioma estritamente instrumental.
Dado que o estilo antigo e à ​capella eram fundamentalmente idênticos no barroco,
resulta facilmente compreensível por que o modelo de estilo antigo – o estilo de
Palestrina – podia ser contemplado à luz do ideal à capella. É um erro de compreensão
irônico que o efeito sensual do estilo à ​capella​, por ele a quem quase nada interessava o
renascimento, tenha contribuído para a glorificação mística da música renascentista. A
controvérsia moderna sobre o ideal à ​capella deve parte de sua confusão à
supervivência poderosa dos ideais e preconceitos barrocos.
As deslumbrantes sonoridades de um coro à ​capella eram somente uma cor da rica
paleta dos idiomas barrocos. As possibilidades idiomáticas da voz só foram motivo de
exploração no notável canto virtuosístico dos princípios do barroco, que depois
cristalizaram nos métodos refinados do bel canto italiano. Os conjuntos vocais e
instrumentais afinaram o ouvido até encontrar a diferença existente entre os idiomas
vocal e instrumental, justapostos conscientemente na ópera, no oratório e na cantata.
Depois de Gabrielli e Schütz, o idioma coral se separou de forma definitiva do idioma
do conjunto de solistas. Em especial, os instrumentos, pouco a pouco, deram origem a
estilos específicos. Particularmente a família do violino e em menor grau os sopros. A
música para alaúde e teclado se fez também cada vez mais idiomática e os compositores
demonstraram possuir uma grande fonte de recursos na hora de aproveitar as atitudes e
debilidades peculiares dos respectivos instrumentos. Baseando-se no estilo, não
podemos discernir com segurança, na música renascentista, que obra foi pensada para
voz ou instrumento, com exceção das peças para alaúde e teclado. Na música barroca, o
estilo musical e por vezes certas formas, aparecem vinculadas ao seu meio de forma
nova. Ninguém se engana sobre o caráter violinístico de um ​concerto grosso de Vivaldi,
composto desde o início para os referidos meios. Com o descobrimento destes idiomas
no barroco, surgiram novas possibilidades de intercâmbio deliberado de idiomas entre
instrumentos diferentes, ou entre o instrumento e a voz. Esta transferência de idiomas
constitui um dos aspectos mais fascinantes da música barroca. Os ornamentos de alaúde
podiam ser transferidos para o teclado. O violino podia imitar a técnica vocal. A
figuração do violino podia aparecer na música para órgão. No barroco tardio se pode
observar que este rico intercâmbio e painel de idiomas alcançou uma complexidade
quase inacreditável. Os idiomas vocal e instrumental não eram entidades fixas,
constantemente influindo-se entre si, criavam técnicas análogas e desta forma um novo
idioma que por sua vez poderia influir no original. No barroco tardio era frequente que a
voz e o instrumento competissem em igualdade de termos e seus idiomas quase
chegaram a ser indiferenciados. Neste caso o intercâmbio de idiomas chegou a tal
extremo que quase pareceu contradizer ao seu próprio princípio, todavia, e de forma
paradoxal, o tratamento instrumental da voz deve ser reconhecido como um dos idiomas
vocais da época. Esta mesma mistura paradoxal se pode observar na arquitetura
paisagística do barroco, na qual arbustos e árvores eram cultivados adotando modelos
geométricos e formas zoológicas.
Os compositores barrocos deram ainda um passo a mais no intercâmbio de idiomas com
as transposições de formas inteiras, incluindo todas as suas peculiaridades estilísticas,
de um meio a outro. A sonata sacra podia transferir-se ao teclado, o recitativo
converter-se em forma instrumental, o prelúdio de órgão transplantar-se ao meio coral.
As transposições apresentavam em cada caso um problema estilístico especial que
desafiava o gênio do compositor. Não podemos entender de maneira apropriada a
imensa gama de técnicas musicais do barroco tardio, sem reconhecer antes a tremenda
importância que tiveram estas formas ou maneiras de transferência.
Na seguinte tabela está resumida a explicação precedente. Nela contrastamos as
caraterísticas da música renascentista com as da música barroca. Empregamos em parte
a terminologia antiga, a qual podemos empregar agora sem que haja confusão.
Justapomos os elementos preeminentes de cada estilo e eliminamos qualquer
generalização que se prestasse a interpretações errôneas, como “contraponto ​versus
harmonia”; já que determinados elementos retirados de seu contexto podem
apresentar-se em ambos estilos.

Renascimento Barroco
Uma prática, um estilo. Duas práticas, três estilos.
Representação comedida dos textos, ​musica Representação afetiva das letras, absolutismo do
reservata​ e madrigalismos. texto.
Todas as vozes em igual equilíbrio. Polaridade das vozes exteriores.
Melodia diatônica de pequeno âmbito. Melodia diatônica e cromática de grande âmbito.
Contraponto modal. Contraponto tonal.
Harmonia de intervalos e tratamento da Harmonia de acordes e tratamento da dissonância
dissonância em intervalos. em acordes.
Os acordes derivam da escritura das partes. Os acordes são entidades independentes.
A modalidade rege a progressão dos acordes. A tonalidade rege a progressão dos acordes.
O ​tactus rege um ritmo de desenvolvimento Ritmos extremos, declamação livre e pulsações
uniforme. mecânicas.
Não há idiomas diferenciados, a voz e o Idiomas vocal e instrumental. Os idiomas são
instrumento são intercambiáveis. intercambiáveis.

Deste conjunto de informações se poderia inferir que é possível contrastar ambos


estilos, concebendo-os como unidades estáticas e sem relação entre si, não possuindo
qualquer desenvolvimento interno próprio. Esta explicação é incorreta embora
inevitável. Não devemos esquecer que o termo “época barroca” é uma abstração. Toda
comparação que implique duas abstrações forçosamente é ambígua. Pois que não teve
em conta nem o desenvolvimento interno de cada época nem as obras de transição, que
em geral oferecem características pertencentes a ambas.
As fases da música barroca
A música da época barroca abarca figuras que contrastam tanto entre si como
Monteverdi e Bach, ou Peri e Haendel. O que estes compositores têm em comum
parecer ser bastante insignificante à luz daquilo que os separa. O que compartilham,
porém, deixando de lado traços menores, o recitativo e o contínuo – dois recursos
fundamentais da música barroca; em cuja aplicação artística, no entanto, as diferenças
são outra vez mais importantes do que as similaridades. Só a história interna da música
barroca pode oferecer uma explicação satisfatória das notáveis evoluções que tiveram
lugar no período de tempo transcorrido entre Gabrieli e Haendel. O estilo barroco teve
diversas fases que nem sequer coincidem em países diferentes. Podem agrupar-se em
três períodos maiores: Barroco primeiro, médio e tardio. Embora os períodos se
entrelacem no tempo, os podemos datar aproximadamente da seguinte forma: o primeiro
desde 1580 a 1630; o segundo de 1630 a 1680; e o último de 1680 a 1730. Estas etapas
só indicam aqueles períodos em que se formaram os novos conceitos, e nos quais as
etapas anteriores prevaleceram por certo tempo. Temos também de considerar que estas
datas se referem à Itália, país no qual a música barroca recebeu seus principais
impulsos. Nos demais países os períodos respectivos começaram por volta de dez a
vinte anos mais tarde que na Itália. Assim, resulta compreensível que quando por volta
de 1730 na Itália já se cultivava o Estilo Galante, na Alemanha se começava a consumir
a música barroca.
Uma breve análise dos três períodos nos ajudará a esclarecer suas principais diferenças
estilísticas. No primeiro período barroco prevaleceram as ideias: oposição ao
contraponto e interpretação muito violenta das letras, plasmada nos recitativos afetivos
com ritmo livre. Devido a isso, apareceu uma extraordinário necessidade de
dissonâncias. A harmonia tinha caráter experimental e pré-tonal, ou seja, seus acordes
não tinham uma orientação tonal. Por isso não se contava, todavia, com a faculdade de
saber como sustentar um movimento prolongado, e em consequência, todas as formas
eram em pequena escala e divididas em seções. Então se iniciou as diferenças entre os
idiomas vocal e instrumental, e levou a primazia a música vocal.
O período médio barroco trouxe sobretudo a criação do estilo bel canto aplicado à
cantata e à ópera; surgindo a diferença entre ária e recitativo. As seções individuais das
formas musicais começaram a evoluir e se voltou a utilizar a textura contrapontística.
Os modos se reduziram a maior e menor e uma tonalidade rudimentar, que limitava o
tratamento da dissonância livre que era característica do primeiro barroco, regia as
progressões de acordes. A música vocal e instrumental se equipararam em importância.
O estilo barroco tardio se caracteriza por uma tonalidade plenamente estabelecida, com
progressões reguladas dos acordes, tratamento da dissonância e estruturas formais. A
técnica contrapontística culminou com a absorção plena da harmonia tonal. As formas
adquiriram grandes dimensões. Apareceu o estilo de concerto e com ele o ritmo
mecânico adquiriu uma maior importância. O intercâmbio de idiomas chegou ao seu
ponto mais alto; a música instrumental dominou a vocal.
Estas fases do período barroco devemos ter sempre presentes se pretendemos explicar o
tempo transcorrido entre Monteverdi e Bach. Se poderia dizer que, dadas as diferenças
estilísticas existentes dentro da época barroca, não há necessidade de seguir usando
palavras de sentido tão amplo como “época barroca”; todavia, a comparação da música
renascentista e a barroco nos tem demonstrado que a época barroca, em seu conjunto,
difere mais da renascentista em seus fundamentos que os estilos dos três períodos do
barroco entre si. Apesar de suas qualidades particulares, os três estilos estão vinculados
pela unidade profunda do período, a qual só se evidencia sob uma comparação em plano
muito elevado. É preciso também considerar que a distinção entre os três grupos
estilísticos dentro do barroco adquiriu uma complexidade cada vez maior devido aos
estilos nacionais que se entrecruzam nos estilos do período. O reconhecimento por parte
dos escritores barrocos desses estilos nacionais ajuda a ilustrar de maneira confiável sua
consciência estilística.
Até este momento temos explicado a questão de renascimento ​versus barroco
baseando-nos em análises comparativas; contudo, outras características do barroco não
se podem incluir neste método de análise. São incomparáveis com o renascimento
porque são únicas. Pela primeira vez na história da música, na época barroca, surgiram
uma grande variedade de formas, técnicas e idiomas que possibilitaram uma riqueza de
material musical que sobrevive, embora de forma transformada. O barroco foi
testemunho da primeira evolução da ópera, o oratório e a cantata, assim como da criação
da sonata para solista, a sonata em trio, e o dueto de câmara. Foi a época do prelúdio e
fuga, do prelúdio coral e da fantasia coral. Se instituíram as importantes formas do
concerto grosso e do concerto para solista. O barroco chegou ao primeiro cume da
história da ópera com as obras de Scarlatti e Haendel. O barroco viu nascer o singular
estilo dramático chamado ​concertato​, cujos mestres principais foram Gabrieli,
Monteverdi e Schütz. Por último, representa nas obras de Bach, o período mais rico da
música para órgão e, de igual modo, o, período mais ilustre da igreja protestante.
A herança da música barroca é tão enorme que vez por outra veio c constituir um
desafio para as gerações posteriores. O reconhecimento da grandeza da música barroca
tem tido um lento desenvolvimento, e se iniciou a conta-gotas ao final do período
clássico. Alcançou certa altura no romântico, embora de forma paradoxal devido às
interpretações errôneas. Chegando enfim a adquirir proporções impressionantes na
atualidade, com revitalização da música barroca. A relevância desta revitalização em
nossa vida musical não deve explicar-se como o resultado de uma coincidência
caprichosa, mas pelo trabalho de musicólogos laboriosos que têm desenterrado esta
música. Resulta significativo que os compositores modernos, de modo consciente e
inconsciente, voltem a empregar os recursos formais e técnicos do estilo barroco;
fazendo-os cumprir novas funções dentro da música moderna.
Há que se assinalar, contudo, que a moderna revitalização da música barroca se limita
de modo quase exclusivo a obras do barroco tardio e isso faz com que o historiador não
possa evitar perguntar-se se está surgindo uma nova lenda que confunda toda a música
do barroco com a do período tardio somente. Sinceramente é de se desejar que as
qualidades do primeiro barroco, com frequência obscurecidas por interpretações
amaneiradas, recebam a atenção que bem merecem. Ainda não podemos dizer se uma
nova lenda relativa à música barroca entorpecerá o caminho a uma evolução cada vez
mais ilustrada. Ocorra ou não, a revitalização das óperas de Haendel e as controvérsias
sobre “a interpretação correta de Bach” demonstram que a música barroca já não é um
mero valor histórico: se converteu em uma força vivente da música dos nossos dias.

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