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A Missa

A missa foi a mais importante forma de composição musical da Renascença e também a


primeira grande forma a ser utilizada na história da música ocidental. Todos os
renomados compositores renascentistas compuseram missas, que incluíam todas as
partes do Ordinário (Kyrie, Glória, Credo, Sanctus-Benedictus e Agnus Dei); mais as
seções do Próprio correspondente ao momento do ano litúrgico para o qual porventura
fora composta. No século XIV Guillaume de Machaut já havia fixado estas partes em
sua grande Missa de Notre Dame, no entanto, até cerca de 1420 as seções do Ordinário
eram compostas como peças independentes, podendo ser reunidas em ciclo por um
compilador. Uma das realizações do século XV foi implementar como prática regular a
composição polifônica ao Ordinário como um todo musicalmente unificado. Isto se deu
devido ao intento dos músicos de darem coerência a uma forma musical ampla e
complexa; além disso, já existiam desde princípios do século XIV, agrupamentos
cíclicos similares das peças de cantochão para o Ordinário.
Na inquietação por conferir unidade a uma obra de maiores dimensões como a missa, os
compositores buscaram soluções. Em princípios do século XV, baseando-se nas
estruturas da ​ballade ou da ​chanson​, procurou-se utilizar ​cantus firmus relacionados
entre si de acordo com a disposição do ​Graduale​, destacando-se de forma ornamentada
no soprano o cântico escolhido a cada seção; todavia isso conferia uma associação
apenas litúrgica, e não musical, pois que os cânticos não tinham relação temática entre
si. Estas primeiras tentativas chamaram-se de ​Missa choralis ​ou ​Missa de cantochão​.
A maneira mais prática de se conferir unidade perceptível aos segmentos seria
utilizar-se o mesmo material em todas as seções. A princípio consistindo apenas em
iniciar cada parte com o mesmo motivo melódico, geralmente em destaque no soprano.
Uma missa composta sob este processo denominava-se de ​Missa de motto ou Missa
paráfrase. Este procedimento ensejou outro, inicialmente utilizado por compositores
ingleses e adotado no continente em meados do século XV, pelo qual utilizava-se o
mesmo ​cantus firmus em todos os movimentos, resultando no que se denominou de
Missa de cantus firmus​ ou ​Missa tenor​.
O antigo condicionamento adotado nos motetos medievais pelo qual a voz mais grave
não podia ser modificada a contento, limitava bastante a ação do compositor nos moldes
do século XV. Exigia-se que a voz de base tivesse mais flexibilidade, para conferir o
devido alicerce para a evolução das demais vozes, especialmente nos momentos
cadenciais. O tenor então passou a ser a segunda voz mais grave, aplicando-se abaixo
dele uma voz inicialmente chamada de ​contratenor bassus – ‘contratenor baixo’; mais
tarde simplesmente ​bassus​. Acima do tenor situava-se então uma outra voz chamada de
contratenor altus​, mais tarde chamada de ​altus​. No ápice ficava o soprano, designado
por ​cantus (melodia), ou por discantus (descante) ou ainda por ​superius (voz mais alta).
Esta padronização surgida no século XV conserva-se até os nossos dias, com raras
exceções.
A Missa ​cantus firmus
Esta modalidade foi uma das grandes inovações formais na História da Música
Ocidental. Foi a primeira forma cíclica altamente organizada. Outro legado do motete
medieval era a tática de escrever-se o tenor de uma missa de ​cantus firmus ​em notas
mais longas do que as das demais vozes e isorritmicamente. Impondo assim uma certa
estrutura rítmica à melodia do cantochão e repetindo-a com a mesma estrutura.
Conservando o ritmo original, por exemplo, de uma melodia profana e alterando as
sucessivas aparições da melodia. Tornando-a por vezes mais rápida ou mais lenta com
relação às outras vozes. Assim como no motete isorrítmico, a identidade da melodia
extraída do cantochão podia ser totalmente camuflada. Especialmente situando-se em
uma voz interior e não na mais grave – como no século XIV e ainda assim mantendo
um poder regulador entre as partes da missa.
Os cânticos utilizados como ​cantus firmi eram extraídos do repertório do Próprio ou do
Ofício. Podendo, contudo, ter também origem profana, como o tenor de uma ​chanson​;
não tendo qualquer relação litúrgica com o Ordinário da missa. Nesses casos, o nome da
melodia tomada de empréstimo dava nome à missa à qual servia como ​cantus firmus​.
O caso mais famoso e emblemático envolvendo esse estilo de missa envolve uma
canção popular da época chamada ​L’homme Armé – O homem Armado, cuja letra diz:
“O homem armado inspira temor; por toda parte se proclamou que todos devem
armar-se com uma cota de malha de ferro”. Foram escritas numerosas missas baseadas
nesta canção. Quase todos os compositores de finais do século XV até o século XVI
escreveram pelo menos uma missa sobre ela. Antoine Busnois (que se supõe ter sido o
primeiro), Dufay, Ockeghem, até Palestrina.
Dufay também utilizou o mesmo estilo ao compor a sua missa ​Se la face ay pale​,
baseada numa canção de sua própria autoria e de mesmo nome. As suas missas de
cantus firmus a quatro vozes são obras tardias, posteriores a 1450 e seus métodos de
construção as distinguem bastante do que se vinha escrevendo no início do século. Estas
obras se caracterizam por um estilo erudito que se tornou dominante a partir de 1450.
Embora desde antes tal evolução evidenciasse os aspectos que viriam a distinguir o
estilo musical do período chamado renascentista do anterior, a Idade Média Tardia:
1- O controle das dissonâncias.
2- Sonoridades predominantemente consonantes.
3- Sucessões de terças e sextas harmônicas.
4- Igual importância das vozes.
5- Congruência melódica e rítmica das diversas linhas.
6- Textura a quatro vozes.
7- Recurso ocasional de imitação.
Outras modalidades de missas
Uma missa que não se fundamentasse em nenhum ​cantus firmus​, com todo material
original do compositor, chamava-se de ​Missa sine nomine​ – ‘Missa sem nome’.
Missa de imitação (ou missa Paródia) – o compositor aplicava motivos ou fragmentos
de uma obra polifônica já existente, em geral profana. Ao escrever a missa ele não
somente modificava o texto, mas acrescentava, ornamentava e até modificava as partes
internas da obra referenciada. É uma forma de demonstrar a simplicidade da obra
parodiada e era considerado um exercício intelectual. Josquin de Prez destacou-se nessa
modalidade. Nessa modalidade o tema escolhido deixava de ser uma linha melódica
para ser a própria trama polifônica. Utilizava-se a combinação de motivos. Viria mais
tarde a substituir a missa ​cantus-firmus​.
O uso da estratégia de se iniciar cada seção com um mesmo motivo em destaque
caracteriza a missa ​Caput​, atribuída a Dufay, considerada a primeira verdadeiramente
unitária. Nesta missa, pela primeira vez, cada fragmento é construído sobre um único
cantus firmus​. Este procedimento é chamado entre os musicólogos alemães de
Kopfmotif ​- ‘motivo cabeça’, pois que cada segmento ou subseção começa por um
mesmo elemento melódico no ​superius​. Um marco sensível de que cada parte pertence a
um conjunto, podendo receber o mesmo contraponto na voz abaixo do cantus​, a cada
incidência do mesmo. A próxima grande missa ​Caput seria composta por Johannes
Ockeghem (​c​. 1410-1497).
Ockeghem
Anteriormente a Jacob Obrecht (1457-1505), Heinrich Isaac (1450-1517) e Josquin des
Prez (​c​. 1440-1521), Johannes Ockeghem representa uma segunda fase na música
franco-flamenga e na atuação dos compositores do Norte; cuja primeira etapa foi
protagonizada especialmente por Dufay e Binchois, influenciados pela música de
Dunstable. De Ockeghem nos restaram 13 missas, dentre as quais um Réquiem, o
primeiro do gênero, na ausência da perdida ​Missa Pro Defunctus de Dufay. O gosto pela
complexidade que havia sido herança da Ars Nova, ganha ainda mais representatividade
na música de Ockeghem, caracterizando um período no qual a composição torna-se um
intenso exercício de abstração, através de procedimentos como:
Manipulação do ​cantus firmus.​

Uso de diversos recursos desenvolvidos pela arte contrapontística: cânon simples e duplo,
cânons ocultos e imitações estritas. Inversões, cânon retrógrado – ​cancrizant​.

Liberdade de organização do material. Utilização de material profano. Paráfrases e paródias.

Amplitude das tessituras vocais, especialmente do baixo.

Manipulação dos Pés Métricos (​Missa Prolationum)​ .

Múltiplos ​cantus firmus​ – a exemplo da missa ​Clemens et benigna​.

Numerologia: construções de padrões melódicos baseados em relações numéricas místicas


(Cabala, cálculos de Gematria). Uso de divisões pitagóricas e outros artifícios
matemáticos.

O estilo de ockeghem
A maioria das missas de Okeghem se assemelham globalmente às de Dufay. Quatro
vozes interagem numa textura contrapontística de linhas independentes. Todavia, o
baixo tem a sua tessitura ampliada em sentido inferior; resultando numa textura mais
compacta, densa e sombria, ao mesmo tempo mais homogênea. Esta inovação talvez
estivesse relacionada ao fato do próprio compositor ser um admirado cantor de timbre
grave. Tal efeito é reforçado pela natureza das linhas melódicas de Ockeghem, que se
estendem em frases de grande folego, num fluxo bastante flexível e similar ao
cantochão melismático, com raras cadências e poucas pausas. Por outro lado, mais um
artifício do compositor é recorrer ao uso de uma textura homofônica, como meio de
criar variedade sonora; podendo também, à maneira dos compositores do início do
século XV, omitir vozes ao longo de trechos ou opor pares de vozes entre si.
As missas compostas entre 1420 e 1497, trazem as seguintes particularidades:
Técnica da missa de ​cantus firmus​.
Utilização tradicional do ​cantus firmus (Missa ​L’homme armé​), isto é, restrita a uma
voz apenas.
Tratamento mais ornamentado do ​CF​.
Técnica da paráfrase – citação de temas e fragmentos de material pré-existente, por
vezes profano.
Tendência à padronização do pé métrico das vozes.
Por vezes usa cinco vozes, ampliando a textura típica de Dufay, de quatro vozes.
Menor espacialização das vozes - Dufay deixava claro a preponderância do ​superius na
condução melódica.
Continuidade melódica - Dufay constrói melodias por arcos (limites claros) com
motivos bem definidos. Já as melodias de Ockeghem não definem pontos de cesura
dando a sensação de melodia contínua (as cadências são diluídas).
Imitação usada ocasionalmente, a exemplo da ​Missa Caput​.
Conserva o uso da isorritmia.
Utiliza o cânon (Regra, lei), sob várias fórmulas: Inversão, retrogradação ou ​cancrizant​.
Mensuração (​Missa Prolationum​): aumentação, diminuição e combinação.
Nas obras tardias:
Tratamento imitativo: apesar de Ockeghem já haver utilizado este recurso em suas
chansons​, nas suas missas, a sua incidência se destaca em sua fase tardia. Contudo, a
imitação não exerce nenhuma influência sobre a estrutura básica da composição – o que
não irá acontecer, posteriormente, no estilo de Obrecht e Josquin de Prez. Apesar do uso
de textura canônica, o compositor primava por escamotear tal artifício mediante uma
meticulosa trama polifônica.
Na ​Missa prolationum ​encontram-se estes recursos. É a obra mais complexa e rica em
artifícios contrapontísticos do século XV. Nela Ockeghem aplica cânon duplo: S-A /
T-B; abstrai do empréstimo de um ​cantus firmus para em seu lugar aplicar o estilo
imitativo, como estratégia para conferir a unidade estilística da qual precisa. Sua trama a
4 vozes é construída sobre uma dupla leitura rítmica de apenas duas vozes. Diferentes
sinais de métrica determinam distintas extensões das notas, que enfim se combinam
conforme as regras de tempo. A isso soma-se o uso de artifícios como o cânon
enigmático. Também aplica a cada voz Pés Métricos distintos – as quatro prolações de
Philipe de Vitry da ​Ars Nova – daí o título da obra. O grau de engenho desta obra,
segundo alguns autores, elevaria Ockeghem – apesar dos séculos de diferença – ao
patamar do gênio de J. S. Bach.
Outras obras características de Ockeghem
A ​Missa cuiusvis toni ​– “Em qualquer modo”. Pode ser cantada em qualquer modo,
conforme se leia a música de acordo com uma ou outra de quatro combinações de
claves; fazendo os ajustes necessários para evitar o ​diabolus ​– trítono, quer
melodicamente ou harmonicamente com relação ao baixo.
A ​Missa Mi Mi – Se chama assim simplesmente porque as duas primeiras notas
recorrente no baixo a cada seção eram Mi – Lá; que no método de solmização da época
eram cantadas como a sílaba Mi.
Ockeghem compôs 21 chansons e nove motetos marianos. Destes, se destaca o mais
elaborado, ​Gaude Maria – uma obra a cinco vozes que anuncia o pleno renascimento
musical.
Era costume no século XV, quando da morte de algum músico famoso, se comporem
Lamentações – ​Déplorations em sua memória. Ockeghem, por ocasião da morte do seu
admirado Gilles Binchois (1460), escreveu um ​Planctus sur la mort de Binchois​. Por
sua vez, quando de sua morte, foi também homenageado pelo discípulo Josquin des
Prez com a ​Déploration sur le trépas de Jean Ockeghem​ (1497).

Referências
ATLAS. Allan W. La música del Renacimiento. Madrid, Akal, 2002.
GROUT & PALISCA, Donald J. e Claude V. História da Música Ocidental. Lisboa,
Gradiva, 2007.
Massin, Jean & Brigitte. História da Música Ocidental. RJ, Nova Fronteira, 1997.
RAYNOR, Henry. História social da música. RJ, Zahar, 1988.
REESE, Gustave. La Música em el Renacimiento. Madrid, Alianza Música, 1988.

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