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LEGENDA POR GRUPO

GRUPO 1 – LER E FAZER O MAPA DO QUE ESTÁ EM LARANJADO

GRUPO 2- LER E FAZER O MAPA DO QUE ESTÁ EM AZUL

GRUPO 4 - LER E FAZER O MAPA DO QUE ESTÁ EM VERDE

GRUPO 5 - LER E FAZER O MAPA DO QUE ESTÁ EM AMARELO

GRUPO 6 - LER E FAZER O MAPA DO QUE ESTÁ EM ROXO

DA INSTITUCIONALIZAÇÃO DA LOUCURA À REFORMA PSIQUIÁTRICA:


as sete vidas da agenda pública em saúde mental no brasil1

Eliane Maria Monteiro da Fonte

Resumo

Este artigo tem por objetivo examinar, de forma sucinta, a estruturação das políticas de
saúde mental no Brasil, desde os seus primórdios até o período atual. As políticas de
saúde mental são aqui consideradas como um acordo político-jurídico que se estabelece
numa determinada sociedade sobre a concepção e respostas aos problemas da
loucura/doença mental. Com base em fontes secundárias e em trabalhos de terceiros,
buscou-se esboçar as principais tendências na trajetória das políticas para esse setor, que
tem sua origem em 1830, com o projeto de medicalização da loucura e se materializa
com a criação dos primeiros hospícios para alienados, no final da segunda metade do
século XIX, culminando no processo que se convencionou chamar de reforma
psiquiátrica, no final do século XX. Este exercício sobre a história da agenda pública no
cuidado com a saúde mental no Brasil nos permitiu identificar sete fases nessa trajetória,
as quais são discutidas por etapa desta evolução, apresentando ao final algumas das
principais tendências nas políticas de saúde mental no Brasil na atualidade.

Palavras-chave

Loucura. Políticas de Saúde Mental. Instituição Psiquiátrica. Reforma Psiquiátrica.

Introdução

A construção da loucura como doença mental e a propagação de instituições asilares


especialmente destinadas aos alienados, assinalando “a formulação de políticas públicas
de tratamento e/ou repressão dos doentes mentais, identificados com base nos limites
cada vez mais abrangentes da anormalidade”, distingue-se como um processo
desencadeado no Brasil entre os anos 1830 e os anos 1920, marcado por continuidades e
descontinuidades (ENGEL, 2001, p. 330). Este artigo, de caráter exploratório, baseado
em fontes secundárias e em trabalhos de terceiros, tem por objetivo examinar, de forma
sucinta, a estruturação e transformações das políticas de saúde mental no Brasil, desde
os seus primórdios até o período atual. As políticas de saúde mental são aqui
consideradas como um acordo político-jurídico que se estabelece numa determinada
sociedade sobre a concepção e respostas aos problemas da loucura/doença mental. O
foco da análise são as transformações da instituição psiquiátrica no Brasil, constituída
historicamente em seu modelo asilar como o lugar de confinamento e tratamento
especialmente destinado aos loucos. O que se convencionou denominar como “reforma
psiquiátrica”, que está em curso no país nos últimos 35 anos, poderia deixar
transparecer a ideia de reformas que caracterizam os rearranjos institucionais sem
transformá-los em sua essência. Entretanto, este é um processo multifacetado e muito
mais complexo do que a mera reorganização dos serviços de assistência em saúde
mental, extrapolando o campo da psiquiatria enquanto um saber-fazer especializado
(AMARANTE, 1998b). O caráter abrangente e radical que dá significado a essa
expressão se deve aos desdobramentos que o processo de reforma psiquiátrica adquire, a
partir de 1978, como um movimento social de base ao adotar o lema “Por uma
sociedade sem manicômios”,

[...] que significou abraçar a bandeira da eliminação progressiva


dos hospitais psiquiátricos e sua substituição por outros tipos de
equipamentos comunitários, territorialmente circunscritos e
voltados para a inserção social dos usuários, como passam a ser
chamados os “doentes mentais”, no contexto de recuperação de
sua cidadania, identidade e condições de sujeitos (PASSOS,
2009a, p. 159).

Não se pretende empreender aqui uma exaustiva reconstituição histórica das práticas de
cuidados à loucura, entendida também como “um tipo especial de existência-sofrimento,
que faz apelo a saberes especializados para seu alívio” 2, mas esboçar as principais
tendências na trajetória das políticas de saúde mental no Brasil. Este exercício sobre a
história da agenda pública no cuidado com a saúde mental nos permitiu identificar sete
fases nessa trajetória, as quais são discutidas a seguir, por etapa desta evolução. Na
seção final são apresentadas algumas das principais tendências nas políticas de saúde
mental no Brasil na atualidade, apontando os progressos nos modelos de cuidados que
estão sendo criados, mas também as dificuldades e obstáculos que ainda persistem.

1. A institucionalização da loucura no Brasil

A loucura só vem a ser objeto de intervenção por parte do Estado no início do século
XIX, com a chegada da Família Real ao Brasil, depois de ter sido socialmente ignorada
por quase trezentos anos. Nesse período de modernização e consolidação da nação
brasileira como um país independente, passa-se a ver os loucos como “resíduos da
sociedade e uma ameaça à ordem pública”. Aos loucos que apresentassem
“comportamento agressivo não mais se permitia continuar vagando nas ruas,
principalmente quando sua situação socioeconômica era desfavorável, e “seu destino
passou a ser os porões das Santas Casas de Misericórdia, onde permaneciam amarrados
e vivendo sob péssimas condições de higiene e cuidado” (PASSOS, 2009a, p. 104).
Em 1830, a recém-criada Sociedade de Medicina e Cirurgia lança uma nova palavra de
ordem: “aos loucos o hospício”. Para Machado (1978, p. 376), só é possível
compreender o nascimento da psiquiatria brasileira a partir da medicina que incorpora a
sociedade como novo objeto e se impõe como instância de controle social dos
indivíduos e da população. O hospício, considerado na época o principal instrumento
terapêutico da psiquiatria, aparece como exigência de uma critica higiênica e disciplinar
às instituições de enclausuramento e ao perigo presente em uma população que começa
a ser percebida como desviante, a partir de critérios que a própria medicina social
estabelece.

O projeto de medicalização da loucura, esboçadas nos textos médicos deste período, que
defendiam novos parâmetros para a loucura e a necessidade de reclusão dos loucos,
começaria a ser concretizado a partir da criação dos primeiros hospícios nas décadas
seguintes. Entretanto, as funções saneadoras dos primeiros hospitais psiquiátricos
fornecem às origens da assistência psiquiátrica brasileira um caráter bastante peculiar,
que é “o da precedência da criação de instituições destinadas especificamente para
abrigar loucos sobre o nascimento da psiquiatria3, enquanto corpo de saber médico
especializado” (RESENDE, 2007, p. 39).

Pode-se situar o marco institucional da assistência psiquiátrica brasileira com a


fundação do primeiro hospital psiquiátrico, o Hospício D. Pedro II, explicitamente
inspirado no modelo asilar francês (elaborado por Pinel e Esquirol), que ocorreu em
1852, no Rio de Janeiro. De acordo com Machado (1978, p. 431), o isolamento foi uma
“característica básica do regime médico e policial do Hospício Pedro II” e era o próprio
hospício, concebido como o lugar do exercício da ação terapêutica, que deveria realizar
a transformação do alienado. Nesse primeiro momento, o isolamento em relação à
família é prioritário e indispensável apenas para um tipo especifico de louco: o caso do
louco que vaga pela rua, pois a família pobre não tem possibilidade alguma de garantir a
segurança e o tratamento. Para famílias ricas, que quisessem manter junto dela o
alienado, o internamento não deveria ser imposto, pois, ainda que com limitações,
acreditava-se que ela poderia reproduzir um hospício no interior de sua ampla
residência.

Durante o Segundo Reinado (1840-1889), foram criadas outras instituições, que se


denominavam “exclusivas para alienados” em São Paulo (1852), Pernambuco (1864),
Pará (1873), Bahia (1874), Rio Grande do Sul (1884) e Ceará (1886). 4 Conforme aponta
Resende,

...as primeiras instituições psiquiátricas surgiram em meio a um


contexto de ameaça à ordem e à paz social, em resposta aos
reclamos gerais contra o livre trânsito de doidos pelas ruas das
cidades; acrescentem-se os apelos de caráter humanitário, as
denúncias contra os maus tratos que sofriam os insanos. A
recém-criada Sociedade de Medicina engrossa os protestos,
enfatizando a necessidade dar-lhes tratamento adequado,
segundo as teorias e técnicas já em prática na Europa
(RESENDE, 2007, p. 38).

Entretanto, a ênfase no caráter religioso e caritativo das instituições criadas durante este
período acabaria por restringir o caráter medicalizado destes hospícios, onde, até o fim
do Império, não havia presença significativa de médicos. Não só a nosologia
psiquiátrica estava ausente das instituições, como também eram leigos os critérios de
seleção dos pacientes, a juízo da autoridade pública em geral. Os poucos médicos
existentes nas instituições tinham pouca influência nas questões administrativas e,
somente no início do século XX, os médicos conseguiram desmontar as poderosas
administrações leigas das Santas Casas, bem como as ordens religiosas que prestavam
serviços nestes locais, instalando-se na direção dessas instituições (ENGEL, 2001; ODA
e DALGARRONDA, 2005).

[...] por mais parciais e ambíguas que tenham sido as primeiras


conquistas dos alienistas brasileiros, elas estiveram pautadas,
desde o início, na ampliação do significado da moléstia mental
que, ultrapassando em muito os limites da loucura associada ao
delírio, procurava legitimar a reclusão de indivíduos que
manifestassem os mais diversos comportamentos considerados
moral e/ou socialmente perigosos, ao mesmo tempo em que
viabilizava as perspectivas de ampliação de poder do alienista
(ENGEL, 2001, p. 331).

Nas análises dos relatórios dos presidentes das províncias estudadas, Oda e Dalgarronda
(2005, p. 1005) identificam “uma clara contradição entre o discurso que enunciava um
projeto de assistência oficial e moderno aos loucos e uma prática realmente efetivada”.
De fato tratava-se de pessoas pobres submetidas a uma reclusão forçada e a péssimas
condições de vida. Nos documentos analisados por estes autores há claras indicações da
existência de pressão para internação dos portadores de transtorno mental, de sua
retirada das ruas, ação operacionalizada através das autoridades policiais. Para eles, o
processo de institucionalização dos alienados no Brasil foi marcado pela construção de
uma opinião pública consensual quanto à necessidade e legitimidade de sua reclusão em
hospícios próprios.

2. A medicalização da loucura

Com o advento da República, em 1889, tem início um período que se caracteriza pelo
“redimensionamento das políticas de controle social, cuja rigidez e abrangência eram
produzidas pelo reconhecimento e pela legitimidade dos novos parâmetros definidores
da ordem, do progresso, da modernidade e da civilização” (ENGEL, 2001, p. 331).
Asilo de alienados, quartel de polícia, hospital psiquiátrico, hospício, asilo de
mendicidade e casa de correção tinham como função principal realizar a exclusão social
do louco, garantindo que ele não ficasse perambulando pela rua, à vista dos passantes, o
que era incompatível como nosso pretenso grau de civilidade. Entretanto, se os arranjos
realizados nas distintas unidades da Federação foram diferenciados, uma tendência geral
serviu de pano de fundo para todas as respostas distintas e práticas diferenciadas no
tratamento da loucura pelo poder público: a exclusão em instituições asilares de
milhares de ‘homens livres’, “onde só aguardavam o dia de sua morte, encarcerados
nesses imensos cemitérios dos vivos” (JABERT, 2005, p. 714).
Em 1890, o Hospício Pedro II é desvinculado da Santa Casa, ficando subordinado à
administração pública, passando a denominar-se Hospício Nacional de Alienados,
primeira instituição pública de saúde estabelecida pela República. Para Resende,

Pode-se estabelecer grosseiramente o período imediatamente


posterior à proclamação da república como o marco divisório
entre a psiquiatria empírica do vice-reinado e a psiquiátrica
científica, a laicização do asilo, a ascensão dos representantes da
classe médica ao controle das instituições e ao papel de porta-
vozes legítimos do Estado, que avocara a si as atribuições da
assistência ao doente mental, em questões de saúde e doença
mental tal como a gravidade da situação exigia (RESENDE,
2007, p. 43).

Nesse período, a loucura é gradativamente medicalizada e o tratamento psiquiátrico


continua a ter como principal fundamento o isolamento do louco da vida social. “Os
hospícios e as colônias agrícolas, destinadas aos loucos curáveis, para tratamento
através da práxis ou da ergoterapia, foram surgindo e se multiplicando pelos principais
centros urbanos do país como ícones de sua modernização” (PASSOS, 2009a, p. 107).
Para Amarante (1998a, p. 76), “este conjunto de medidas caracterizam a primeira
reforma psiquiátrica no Brasil, que tem como escopo a implantação do modelo de
colônias de assistência aos doentes mentais” 5.

Nesta época, a maioria dos Estados brasileiros incorpora colônias agrícolas à sua rede
de oferta de serviços, seja como complemento aos hospitais psiquiátricos tradicionais,
seja como opção única ou predominante. De acordo com Resende (2007, p. 47), o
entusiasmo na adesão “à política de construção de colônias agrícolas não se deu apenas
por exclusão de outras estratégias terapêuticas, de eficiência duvidosa, mas por ter
encontrado um ambiente político e ideológico propícia ao seu florescimento”.

Como a prática psiquiátrica não existe num vazio social, era de


se esperar que ela assimilasse aos seus critérios de diferenciação
do normal e do patológico os mesmos valores da sociedade onde
se inseria, e se empenhasse em devolver à comunidade
indivíduos tratados e curados, aptos para o trabalho. O trabalho
passou a ser ao mesmo tempo meio e fim do tratamento
(RESENDE, 2007, p. 47).

Entretanto, apesar das intenções de recuperação dos doentes mentais, nas propostas de
seus criadores, as colônias continuaram a manter na prática a mesma função que
caracterizava a assistência ao alienado no Brasil desde a sua criação: a de excluir o
louco de seu convívio social e de escondê-lo dos olhos da sociedade. Este período, que
se encerra em 1920, mantém “inalterada a destinação social do hospital psiquiátrico a
despeito da substituição da psiquiatria empírica pela cientifica” (RESENDE, 2007, p.
52) e se destaca pela ampliação do espaço asilar.

3. Da higiene mental à psiquiatria comunitária


A década de 1920 é marcada pela “ampliação e o aprofundamento da influência dos
princípios eugênicos no âmbito da psiquiatria brasileira, que sem romper com os
referenciais organicistas, passaria a caracterizar-se, cada vez mais, pela presença de
perspectivas preventistas” (ENGEL, 2001, p. 175). Em 1923, com a fundação da Liga
Brasileira de Higiene Mental (LBHM), se cristaliza o movimento de higiene mental,
como um programa de intervenção no espaço social com características marcadamente
eugenistas, xenofóbicas, antiliberais e racistas. A psiquiatria passa também a pretender a
recuperação das raças e a constituição de coletividades sadias, colocando-se
definitivamente em defesa do Estado, levando-o a uma ação rigorosa de controle social
e reivindicando um maior poder de intervenção (AMARANTE, 1998a, p. 78).

As palavras de ordem da Liga eram “controlar, tratar e curar” e os fenômenos psíquicos


eram vistos como produtos da raça ou do meio, decorrentes de obscuros fatores
biológicos ou orgânicos. A visão da vertente mais radical da Liga, liderada por Gustavo
Riedel, seu fundador, guiava-se por um princípio moralizador e saneador dos
comportamentos, pregando a pureza da raça ainda que fosse à custa da esterilização dos
“tarados e degenerados”. A vertente higienista propunha melhorias sanitárias e
modificação dos costumes e dos modos de vida da população como forma de prevenir
as doenças mentais, pois embora tivessem origem em fatores individuais, as condições
sanitárias, tais como “o aumento do alcoolismo e da sífilis”, eram consideradas como
“fatores desencadeantes” (COSTA, 1989 apud PASSOS, 2009a, p. 108).

De acordo com Venâncio (2007), as ações político-assistenciais para a área da


psiquiatria, iniciadas na década de 1940, foram organizadas no contexto de um processo
de modernização, centralização e nacionalização da assistência mais ampla em saúde.
Esse processo foi iniciado em 1930, articulado a uma reforma das políticas de saúde,
com a criação de serviços nacionais por doenças produzindo uma verticalização das
ações, atreladas a enfermidades especificas. Em 1941, foi criado o Serviço Nacional de
Doenças Mentais (SNDM), vinculado ao Ministério da Educação e Saúde 6. Neste
período predominavam os hospitais públicos responsáveis por 80,7% dos hospitais
psiquiátricos no Brasil. Os famosos asilos, como o Juqueri (em São Paulo), o Hospital
de Alienados (no Rio de Janeiro) e o São Pedro (em Porto Alegre), exerciam um papel
orientador da assistência psiquiátrica, consolidando a política macro-hospitalar pública
como o principal instrumento de intervenção sobre a doença mental. Embora existissem
alguns hospitais privados e ambulatórios, estes eram bastante incipientes diante do vigor
dos hospitais públicos (PAULIN e TURATO, 2004).

As décadas de 1940 e 1950 se caracterizam pela expansão de hospitais públicos em


vários estados brasileiros, cujo crescimento foi propiciado pela aprovação do decreto-lei
8.555, de 3 de janeiro de 1946, que autorizava o SNDM a realizar convênios com os
governos estaduais para a construção de hospitais psiquiátricos. 7 O Código Brasileiro de
Saúde, publicado em 1945, condenava as denominações ‘asilo’, ‘retiro’ ou
‘recolhimento’, reconhecendo a categoria ‘hospital’, se afirmando o espaço de atuação
do hospital psiquiátrico. Naquela época a psiquiatria buscava se estabelecer como
especialidade médica e os instrumentos mais avançados da psiquiatria biológica foram
introduzidos no país, como o choque cardiazólico, a psicocirurgia, a insulinoterapia e a
eletroconvulsoterapia (SAMPAIO, 1988; AMARANTE, 1998a).

A criação de novos hospitais não amenizou a situação caótica dos hospitais públicos
que, na década de 1950, viviam em total abandono e apresentando excesso de pacientes
internados, continuando os hospitais psiquiátricos a terem basicamente a função social
de exclusão. A assistência psiquiátrica pública apresentava enorme lentidão em tomar
conhecimento das importantes transformações que ocorriam na prática psiquiátrica na
Europa e Estados Unidos no período pós-segunda guerra e as drogas psicóticas,
parcialmente responsáveis por grandes transformações nas práticas terapêuticas dos
asilos, só fariam sua aparição no mercado em 1955. Segundo Resende (2007, p. 56), o
descrédito que os hospitais públicos atingiram junto à população, “expressada em
marchinhas de carnaval, anedotas e rótulos pejorativos atribuídos a determinados
hospitais”, seria utilizado posteriormente como “evidência incontestável de sua
incompetência e um forte argumento em favor da excelência da iniciativa privada”.

3. O surgimento da “indústria da loucura”

O tratamento asilar foi sendo modificado, questionado e mesmo substituído desde o


pós-guerra em vários países. Neste período vários movimentos de contestação ao saber
e prática psiquiátrica instituída se fizeram notar no cenário mundial, dos quais se
destacam os movimentos denominados Psiquiatria de Setor, na França; as Comunidades
Terapêuticas, na Inglaterra; e a Psiquiatria Preventiva, nos EUA 8. Esses movimentos se
caracterizaram por visar uma reforma do modelo de atenção psiquiátrica, propondo
rearranjos técnico-científicos e administrativos da psiquiatria. Apesar disso, observa-se
uma grande expansão da rede de hospitais psiquiátricos no Brasil a partir da década de
1960.9

O período que se seguiu ao golpe militar de 1964 foi o marco divisório entre uma
assistência eminentemente destinada ao doente mental indigente e uma nova fase, a
partir da qual se estendeu a cobertura à massa de trabalhadores e seus dependentes.
Foram os governos militares que consolidaram a articulação entre internação asilar e
privatização da assistência, com a crescente contratação de leitos nas clínicas e hospitais
psiquiátricos conveniados, que floresceram rapidamente para atender a demanda. As
internações passaram a ser feitas não apenas em hospitais públicos (que, dadas as suas
precárias condições, permaneceram reservados aos indivíduos sem vínculos com a
previdência social), mas em instituições privadas, que eram remuneradas pelo setor
público para isso.10 Na maioria das vezes, as clínicas contratadas funcionavam
totalmente as expensas do Sistema Único de Saúde (SUS) – antes via INPS (Instituto
Nacional de Previdência Social). Sua única fonte de receita era a internação psiquiátrica,
remunerada na forma de diária paga para cada dia de internação de cada paciente.

Como na psiquiatria, ao contrário de outras especialidades da medicina, a indicação de


internação nem sempre é clara ou indiscutível, a decisão, com grande margem de
escolha, fica a critério do médico ou da família do paciente. Como o pressuposto
disseminado no meio especializado e na sociedade era de que lugar de louco é no
hospício, e diante da inexistência de dispositivos de assistência intensiva alternativos ao
modelo asilar, o sistema impulsionava a internação, mesmo onde havia boa fé
(TENÓRIO, 2002: 34). O sistema e a mentalidade vigentes estavam organizados em
torno da internação (e da internação prolongada), as empresas hospitalares auferiam
benefícios significativos com as internações (sua única fonte de lucro), com total falta
de controle pelo estado, observando-se um verdadeiro empuxo a internação, razão pela
qual este sistema veio a ser chamado de “indústria da loucura”.
A discussão acerca da necessidade de humanização do tratamento do doente mental teve
início na década de 1970, momento em que diversos setores da sociedade brasileira se
mobilizaram em torno da redemocratização do país. A Associação Brasileira de
Psiquiatria (ABP), em ações políticas para defender médicos que haviam sido presos e
torturados, revitalizou, no cotidiano profissional, discussões éticas acerca dos direitos
humanos e da necessidade de ampliação dos direitos individuais no país. Apelos para
que "ninguém fosse submetido à tortura, a tratamento ou castigo cruel, desumano e
degradante" e nem "arbitrariamente preso, detido ou exilado" foram estendidos para a
condição de opressão do doente mental nos manicômios e sua humilhação moral na
sociedade em geral (FIRMINO, 1982, p. 35). Os hospitais psiquiátricos, centralizando a
assistência e sendo praticamente únicos na oferta de serviços psiquiátricos no contexto
nacional, tiveram as condições internas de maus-tratos aos internados, desnudadas e
denunciadas no processo social brasileiro de "abertura democrática". A discussão acerca
da violência, dos maus tratos e da tortura praticada nos asilos brasileiros produziu, em
grande parte, a insatisfação que alimentou o Movimento Antimanicomial. Entretanto,
ainda não estava muito claro qual deveria ser o modelo de cuidado e nem havia uma
proposta estruturada da intervenção clínica.

3. A deflagração da reforma psiquiátrica

A derrocada da denominada “indústria da loucura”, capitaneada pelo Movimento de


Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), dá início a quinta fase, que se inicia em
1978, identificada por Amarante e Torre (2010: 119), como “fase de crítica
institucional”, que deflagra a reforma psiquiátrica. Segundo os autores mencionados, foi
neste ano que culminaram as denúncias e a mobilização de atores sociais decisivos para
a transformação do sistema psiquiátrico vigente. Para eles, o acontecimento decisivo foi
a “crise da DINSAM”, órgão do Ministério da Saúde responsável pela formulação das
políticas de saúde do subsetor saúde mental. Vários fatores, tais como, a precarização
das condições de trabalho, e as frequentes denúncias de agressão, estupro, trabalho
escravo e mortes não esclarecidas, nas grandes instituições psiquiátricas brasileiras,
provocaram a união dos trabalhadores da saúde mental para a luta pelas as mudanças
necessárias no sistema. A partir daí começam a ocorrer, em diversos estados brasileiros,
congressos e encontros decisivos na militância do MTSM, dando origem à trajetória da
Reforma Psiquiátrica Brasileira (AMARANTE e TORRE, 2010: 117-118).

A influência dos movimentos de crítica à psiquiatria começou a se fazer sentir no


contexto social brasileiro, principalmente a partir da década de 1980, no ocaso da
ditadura militar e aguda crise econômica que caracterizaram o período (OLIVEIRA e
ALESSI, 2005). A sociedade reencontrava as vias democráticas de expressão e
reivindicação e, neste contexto, as ideias de Foucault (2005), Goffman (1996), Szasz
(1961), Laing (1969, 1982), Scheff (1966), Basaglia (1985) e outros tiveram uma forte
influência. A situação crítica em que se encontrava a assistência psiquiátrica brasileira
era favorável à crítica proposta por esses pensadores e por esses movimentos sociais.

Alguns grupos de técnicos de saúde, acadêmicos, militantes sociais, organizações


comunitárias e afins, influenciados pela Psiquiatria Democrática Italiana –
especialmente o pensamento de Franco Basaglia - começam a criar uma sistematização
de pensamento contra hegemônico na assistência em Saúde Mental. No final da década
de 1980, surgem os primeiros Centros de Atenção Psicossocial – CAPS e fecham-se
alguns manicômios e se inicia um embate epistemológico, político e técnico em prol de
“uma sociedade sem manicômios”. Em 1987 foi realizada, no Rio de Janeiro, a I
Conferência Nacional de Saúde Mental e, em 1989, foi dada a entrada no Congresso
Nacional do Projeto de Lei do Deputado Paulo Delgado (PT/MG), que propunha a
regulamentação dos direitos da pessoa com transtornos mentais e a extinção progressiva
dos manicômios no Brasil, marcando “o início das lutas do movimento da Reforma
Psiquiátrica nos campos legislativo e normativo” (DELGADO et al, 2007, p. 41).

Entre os protagonistas desse movimento contra-hegemônico surge o Movimento


Nacional da Luta Antimanicomial como um movimento social deveras heterogêneo,
mas com um importante consenso entre seus integrantes: não é mais aceitável que o
infortúnio do acometimento de um transtorno mental leve qualquer indivíduo ao
encarceramento num manicômio por décadas de sua vida, muitas vezes sem cuidados
integrais a sua saúde e com desrespeito a seus direitos Humanos e civis.

3. A “institucionalização” da reforma psiquiátrica

Em função do compromisso firmado pelo Brasil na Declaração de Caracas 11 e pela


realização da II Conferência Nacional de Saúde Mental, passaram a entrar em vigor no
país, a partir da década de 1990, as primeiras normas federais regulamentando a
implantação dos serviços de atenção diária, fundadas nas experiências dos primeiros
CAPS, NAPS e Hospitais-dias. Também foram aprovadas as primeiras normas para
fiscalização e classificação dos hospitais psiquiátricos. As macro mudanças legislativas,
jurídicas e administrativas foram, no período de institucionalização da Reforma
Psiquiátrica, consideradas necessárias e, até mesmo, as garantias de operacionalização
de novas práticas terapêuticas.

Nesta fase a Reforma Psiquiátrica efetivamente começou a se materializar em serviços


extra-hospitalares, sejam intermediários ou substitutivos ao manicômio e os novos
serviços de saúde mental são normatizados, estabelecendo-se algumas definições
administrativas e operacionais. Se, por um lado, isso assinala a inclusão da questão na
agenda governamental, definindo legalmente sua existência como uma nova forma de
assistência oficial, por outro lado, há uma homogeneização dos serviços pela criação de
um modelo único, denominado nos documentos como “NAPS/CAPS”, limitando “a
criação de experiências inovadoras, induzindo à criação de novas formas de assistência
estritamente sanitárias e tecnologias de tratamento e organização de serviços
padronizados sob um modelo operacional” (AMARANTE e TORRE, 2010, p. 122).

No contexto da reforma psiquiátrica, duas leis solidificaram a direção da política de


saúde mental no Brasil, no sentido da desospitalização da assistência psiquiátrica,
atendimento na comunidade e respeito aos direitos humanos do paciente: a Lei Federal
nº. 10.216, de abril de 2001, com base na famosa "Lei Paulo Delgado", sobre a extinção
dos manicômios, criação de serviços substitutivos na comunidade e regulação da
internação psiquiátrica compulsória (aprovada no Congresso após 12 anos de
tramitação); e a Lei Federal nº. 10.708, de julho de 2003, instituindo o Programa De
Volta para Casa (conhecida como "Bolsa-Auxílio"), que assegura recursos financeiros
que incentivam a saída de pacientes com longo tempo de internação dos hospícios para
a família ou comunidade12. Outras Portarias importantes foram também a nº 106, de
2000, que dispõe sobre as residências terapêuticas e a Portaria de nº 336, de 2002, que
regulamenta os novos serviços e o modelo assistencial, introduzindo as modalidades
CAPS I, II e III, CAPSi e CAPSad. Entretanto, apesar do processo de expansão dos
CAPS e NAPS (que em 2002 já somavam 424 serviços em todo o país), as normas para
fiscalização e classificação dos hospitais psiquiátricos não previam mecanismos
sistemáticos para a redução de leitos e cerca de 80% dos recursos do Ministério da
Saúde ainda eram destinados aos hospitais psiquiátricos (BRASIL, 2007).

Nesse período merece destaque ainda a realização da III Conferência Nacional de Saúde
Mental, ao final de 2001, em Brasília, com ampla participação dos movimentos sociais,
de usuários e seus familiares que, segundo Delgado et al (2007, p. 43) “consolida a
Reforma Psiquiátrica como política de governo, confere aos CAPS o valor estratégico
para a mudança do modelo de assistência e estabelece o controle social como garantia
da reforma Psiquiátrica”, fornecendo “os substratos políticos e teóricos para a [atual]
política de Saúde mental no Brasil”.

3. A consolidação da reforma psiquiátrica

A partir de 2003, na gestão presidencial do Governo Lula, o processo de


desinstitucionalização vem avançando significativamente, graças à criação de alguns
mecanismos para a redução de leitos psiquiátricos no país e a expansão de serviços
substitutivos como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), levando ao fechamento
de vários hospitais psiquiátricos. A reflexão sobre essas medidas, que será feita a seguir,
apresenta um breve balanço da implantação dos principais programas, dos novos
serviços e dos modelos assistenciais.

No que se refere à Atenção Psiquiátrica Hospitalar, salienta-se o Programa Nacional de


Avaliação do Sistema Hospitalar/Psiquiatria (PNASH/Psiquiatria), instituído em 2002,
que é essencialmente um instrumento de avaliação que permite aos gestores um
diagnóstico da qualidade da assistência dos hospitais psiquiátricos conveniados e
públicos existentes na rede de saúde, descredenciando os hospitais considerados de
baixa qualidade. De fato trata-se da instauração do primeiro processo avaliativo
sistemático dos hospitais psiquiátricos. O Programa Anual de Reestruturação da
Assistência Hospitalar Psiquiátrica no SUS (PRH), aprovado em 2004 pelo Ministério
da Saúde, tinha como principal estratégia a redução progressiva e planejada de leitos de
macro-hospitais (acima de 600 leitos) e hospitais de grande porte (240 a 600 leitos
psiquiátricos), evitando a falta de assistência. Para tanto, foram definidos os limites
máximos e mínimos de redução anual de leitos para cada classe de hospitais (definidos
pelo número de leitos existentes, contratados pelo SUS). Além disso, se deveria garantir
que os recursos que deixassem de ser utilizados nos hospitais, com a progressiva
redução dos leitos, fossem redirecionadas para incremento das ações territoriais e
comunitárias de saúde mental (BRASIL, 2005). Dados do Ministério da Saúde
mostram, no final de 2011, uma clara reversão dos recursos gastos com hospitais
psiquiátricos para os serviços extra-hospitalares, quando mais de 70% dos recursos são
destinados aos gastos destes serviços (BRASIL, 2012).
Outro dado importante com relação à atenção hospitalar é a mudança do perfil dos
hospitais psiquiátricos que, desde 2002, vem ficando menores. Com o
PNASH/Psiquiatria e o Programa de Reestruturação da Assistência Psiquiátrica (PRH),
observa‐se uma mudança do perfil dos hospitais psiquiátricos a partir da redução de
leitos. Tal cenário foi reforçado com a publicação da Portaria GM 2.644/09, de 28 de
outubro de 2009, que vem induzindo o sistema, a partir do reagrupamento dos hospitais
psiquiátricos em quatro classes13, a remunerar melhor os hospitais de menor porte,
buscando-se a redução dos problemas presentes nos macro hospitais e se configurando
como uma estratégia, em contextos mais difíceis de fechamento de leitos. Dados de
2011 mostram que 49,53% dos leitos psiquiátricos estão situados em hospitais de
pequeno porte (até 160 leitos), enquanto em 2002 apenas 24,11% estavam nestes
hospitais. Os leitos em hospitais de grande porte (acima de 400 leitos) reduziram-se, no
período 2002-2011, de 29,43% para 10,48% (BRASIL, 2012, p. 18). A expansão de
leitos psiquiátricos nos Hospitais Gerais é ainda um problema para a rede de saúde
mental, necessitando-se investigar suas causas. Enquanto o número total de leitos SUS
em hospitais psiquiátricos, em 2011, era de 35.426 leitos, a estimativa de leitos
habilitados de psiquiatria em Hospitais Gerais era de apenas 3.910 leitos, distribuídos
em 646 Hospitais Gerais, localizados de forma muito desigual no território nacional
(BRASIL, 2012, p. 20).

A implantação e o financiamento de Serviços Residenciais Terapêuticos se constituem


em componentes decisivos para a concretização da superação do modelo de atenção
centrado no hospital psiquiátrico. As Residências Terapêuticas são casas localizadas no
meio urbano, que devem ser utilizadas para resolver o problema de moradia de pessoas
com transtornos mentais graves, preferencialmente as egressas de hospitais
psiquiátricos, devendo auxiliar o morador em seu processo de construção progressiva de
autonomia, como também de reintegração na comunidade. Para aquelas pessoas que
passaram anos de suas vidas hospitalizadas o significado de habitar uma residência
terapêutica não significaria apenas o uso da casa, mas “um processo de (re)apropriação
da própria vida”, a passagem do lugar de “pacientes” para o de “residentes” A metáfora
“retorno para casa” pode ser considerada “a primeira referência simbólica de um rito de
passagem que sinaliza uma nova vida, uma nova identidade, uma nova referência”
(ROEDER, 2010, p. 319). No final de 2011 existiam 779 residências em
funcionamento, com um total de 3.470 moradores, e ainda 154 residências em
implantação (BRASIL, 2012, p. 11). Vale salientar que a cobertura deste serviço ainda é
muito baixa em relação às necessidades existentes, e a oferta desses serviços no
território nacional também é muito desigual (até 2011 não existiam residências
terapêuticas em quatro dos estados brasileiros).

O Programa de Volta para Casa tem como objetivo contribuir para o processo de
reinserção social e resgate da cidadania das pessoas com longa história de internações
em hospitais psiquiátricos, através do pagamento mensal de um auxílio-reabilitação
pago aos seus beneficiários. Entretanto, o programa tem encontrado algumas
dificuldades na sua implementação. A grande maioria dos beneficiários, sendo egressos
de longas internações psiquiátricas, não possui a documentação pessoal mínima para
cadastramento no programa. Muitos não possuem certidão de nascimento ou carteira de
identidade (BRASIL, 2005; DELGADO et al, 2007). A inclusão de beneficiários no
programa depende de vários fatores, entre os quais se destacam o ritmo efetivo da
desinstitucionalização, da organização de Residências Terapêuticas e da reinserção de
pacientes em suas famílias, o que explica a disparidade no número de beneficiários por
estado da federação. Dados desagregados por estado mostravam que, em 2010, os
estados do Sudeste, com um total de 2.347 beneficiários, concentravam 65,7% do total
de beneficiários, enquanto nos estados do Norte apenas quatro pessoas recebiam o
auxílio (BRASIL, 2010, p. 12).

A substituição do modelo hospitalocêntrico tem se dado através da criação e


fortalecimento de uma rede de serviços substitutivos, como os Centros de Atenção
Psicossocial (CAPS)14, Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS), Hospitais-Dia,
Centros de Convivência, Serviço de Urgência e Emergência Psiquiátrica em Pronto-
Socorro Geral, etc. Compete aos CAPS o acolhimento e a atenção às pessoas
transtornos mentais graves e persistentes, procurando preservar e fortalecer os laços
sociais em seu território. São serviços de saúde municipais abertos, comunitários, que
oferecem atendimento diário, que buscam realizar “o acompanhamento clínico e
reinserção social” de seus usuários “por meio de acesso ao trabalho, ao lazer, exercício
de dos direitos civis e fortalecimento dos laços familiares e
comunitários” (DELGADO et al, 2007: 59).

Embora os primeiros CAPS tenham surgido no país desde meados da década de 1980,
só a partir de 2002 passaram a receber uma linha específica de financiamento do
Ministério da Saúde, quando se observa uma grande expansão destes serviços. Com o
cadastramento de 122 novos CAPS em 2011, entre eles cinco CAPSad 24h, a cobertura
nacional em saúde mental chegou a 72%, com 1.742 CAPS em funcionamento
(BRASIL, 2012). Apesar do crescimento numérico extraordinário dessas unidades de
serviço, estes números ainda estão aquém do parâmetro estabelecido pelo Ministério da
Saúde, que é de um CAPS para cada 100.000 habitantes. Além disso, a distribuição
espacial desses serviços no território nacional também é bastante desigual (BRASIL,
2010). Embora o perfil populacional seja um dos principais critérios para o
planejamento da rede de atenção à saúde mental nas cidades, este é apenas um critério
orientador para o planejamento das ações.

Tendências atuais das políticas de saúde mental no Brasil: começo de uma nova
história?

Em uma rápida avaliação do processo aqui historiado, pode-se perceber que a reforma
psiquiátrica brasileira tem se apresentado, de forma geral, bem sucedida e os fatos e
dados aqui apresentados demonstram que ela vem alcançando alguns de seus objetivos,
especialmente no que tange à provisão de recursos extra-hospitalares e redução da
internação asilar. Um dos êxitos da política de saúde mental atual foi ter conseguido o
redirecionamento do financiamento público e um maior controle sobre o funcionamento
dos hospitais. Entretanto, os dados discutidos apontam também para desigualdades
regionais na inserção da Reforma Psiquiátrica nos estados da federação.

Pode ser temerário afirmar que a era asilar tenha sido suplantada no Brasil,
considerando que, em muitos casos, o internamento psiquiátrico como ato de exclusão e
isolamento ainda persiste em muitas localidades. O que se pode afirmar é que a
assistência à saúde mental no Brasil apresenta uma clara tendência para a perda de
hegemonia institucional do hospital psiquiátrico e aponta para uma nova convergência
no modelo assistencial. Mas, o fato de um serviço ser externo não garante sua natureza
não-manicomial e sua qualidade. Uma das críticas mais contundentes da Reforma
Psiquiátrica diz respeito à identificação de certo processo de “reinstitucionalização” nas
políticas de saúde mental, que é demonstrado pela configuração de uma “CAPScização”
do modelo assistencial, na forma como os CAPS são colocados como “centro do
sistema” (AMARANTE e TORRE, 2010, p. 130).

Integra ainda o processo de reforma psiquiátrica brasileira a disseminação do recurso


dos psicofármacos nos tratamentos terapêuticos, o que pode ser corroborado pelo
aumento vertiginoso nos gastos de recursos federais destinados ao pagamento de
medicações “antipsicóticas atípicas”, que se amplia de 35.817 milhões, em 2002, para
263.440 milhões em 2009, valores excessivamente altos, se aproximando do custeio
federal para toda a rede CAPS no período considerado (BRASIL, 2010, p. 23). Se não
se pode negar que os médicos são, de modo geral, levados a receitar remédios (por uma
série de fatores que não cabe aqui discutir), é verdade também que grande parte dos
usuários dos serviços espera do médico exatamente isso e, por vezes, identifica a boa
consulta ou o bom tratamento à prescrição de medicamentos.

Mas, mesmo considerando-se alguns possíveis exageros nessa medicalização em massa


dos usuários dos serviços de saúde mental, deve-se reconhecer a enorme importância
dos psicofármacos como instrumentos terapêuticos. Como afirma Perrusi (2010: 102-
103), o uso de psicotrópicos produziu um processo de diferenciação na clientela
psiquiátrica, que não precisa mais ser identificada como reclusa no asilo, produzindo
internamentos intermitentes (com duração limitada) e possibilitando a boa parte dos
pacientes o uso de serviços extra-hospitalares. Atualmente no Brasil, assim como em
muitos outros países, os serviços psiquiátricos e de atenção psicossocial são utilizados
voluntariamente pelos pacientes, identificados como “usuários”, no papel de doentes, ou
seja, “num papel reconhecido e sancionado socialmente, como qualquer outro serviço
de saúde pública ou privada”, contribuindo para minimizar o estigma da intervenção
psiquiátrica. Como resultado conjunto da reforma institucional (hospitalização do asilo
+ instituições extra-hospitalares), o portador do sofrimento psíquico pôde deixar de
ocupar uma linha biográfica, a carreira moral de paciente psiquiátrico, cujo resultado era
a cronicidade do paciente, se transformando em usuário.

“Assim, os estados psicóticos cronificados estão deixando de


povoar os hospitais psiquiátricos e um bom número de pacientes
reencontrou o meio social, embora muitos sejam dependentes de
uma assistência extra-hospitalar e sofram de uma socialização
precária. Talvez, a dependência dos serviços extra-hospitalares e
da ajuda social seja a grande contrapartida da reforma
psiquiátrica” (PERRUSI, 2010, p. 103).

Atualmente, a visão do louco e da loucura como algo a ser excluído do convívio social
tem sido amplamente questionado na medida em que a proposta de
desinstitucionalização vem sendo incorporada na agenda pública. Mas, interessa saber
também qual é a visão dos profissionais de saúde, da população em geral e dos
familiares dos portadores de sofrimento psíquico e como estes atuam neste processo.

Perrusi (2010, p. 103) salienta que o portador de transtorno mental, mesmo deixando de
ser um recluso no asilo, pode perseverar num estado de invalidez permanente ou
sucumbir a uma exclusão social “aberta” ou outras formas de exclusão, e até sofrer um
processo de mendigação. Um dos maiores desafios da reforma psiquiátrica parecer ser
ainda a superação do estigma do “louco” como pessoa perigosa ou incapaz no
imaginário social. A permanência do estigma em relação ao portador de sofrimento
psíquico pode colaborar na perpetuação da exclusão social, na dificuldade de inserção
no mercado de trabalho e na comunidade, na construção de relações afetivas e no
isolamento, muitas vezes levado a efeito pela própria família, na intenção de proteger
seus membros do risco da chacota e do escárnio social.

1Texto produzido no âmbito de um projeto de investigação financiado pelo CNPq (A reforma psiquiátrica no
Brasil: o papel das redes sociais e os desafios nas novas práticas de cuidados na saúde mental - Edital
MCT/CNPq/MEC/CAPES Nº 02/2010). Constitui-se em versão revisada e ampliada de Comunicação
apresentada no XXVIII Congresso Internacional da Associação Latino-Americana de Sociologia (ALAS),
Recife, setembro de 2011.

* Universidade Federal de Pernambuco, Brasil.

2Segundo Passos (2009b, p. 35) essa é a expressão utilizada pelos praticantes da desinstitucionalização
italiana, como forma de renomear a doença mental por criticar o seu conteúdo médico-patológico original e
estrito.

3Segundo Machado (1978, p. 382), em meados do século XIX surgem no Brasil os primeiros trabalhos teóricos
sobre alienação mental, entretanto, a teorização psiquiátrica não reflete qualquer articulação com a
prática, se constituindo em “um exercício de cunho universitário, escolar e burocrático”. Apenas em 1881 é
que seria criada a cadeira de Psiquiatria na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.

4Conforme informações de Moreira (1905) e Medeiros (1977, apud ODA E DALGARRONDA, 2005).

5No âmbito da assistência foram criadas as Colônias de São Bento e de Conde Mesquita (para tratamento de
alienados indigentes do sexo masculino) na cidade do Rio de Janeiro, as duas primeiras colônias de
alienados do Brasil e da América Latina. Logo depois foram criadas as Colônias de Juqueri, em São Paulo, e
a de Vargem Alegre, no interior do Rio de Janeiro. Em 1911, foi criada a Colônia de Alienadas de Engenho
de Dentro (para mulheres indigentes) e, em 1920, são iniciadas as obras da Colônia de Alienados de
Jacarepaguá e as obras do manicômio Judiciário (AMARANTE, 1998a, p. 76).

6O SNDM mais tarde se constituiu na Divisão Nacional de Saúde Mental (DINSAM) e hoje é a Coordenadoria
Geral de Saúde Mental do Ministério da Saúde.

7Entre 1841 e 1954 foram criadas 56 instituições psiquiátricas, concentradas principalmente na região Sudeste
(predominantemente no Rio de janeiro e São Paulo), Nordeste e Norte (PASSOS, 2009a, p.107).

8Para um mapeamento dos movimentos reformistas da psiquiatria na contemporaneidade consultar Amarante


(1998b).

9Em 1961 existiam 140 hospitais psiquiátricos no Brasil, dos quais 54 pertenciam à esfera pública e 86 à esfera
privada. Dez anos depois, quando se deu a mais ampla privatização de serviços de saúde da história do
país, 340 hospitais distribuíam-se pelo território nacional, sendo 277 privados e 63 públicos. Em 1981, a
rede hospitalar privada havia crescido ainda mais, alcançando 425 hospitais. Nenhum hospital público foi
aberto entre 1971 e 1981 (MESSAS, 2008, p. 93).

10O direcionamento do financiamento público para a esfera privada durante o regime militar pode ser
percebida no fato de que entre 1965 e 1970 a população internada em hospitais públicos permaneceu
inalterada, enquanto a clientela das instituições privadas remuneradas pelo setor público saltou de 14 mil
para 30 mil, chegando a uma proporção de 80% de leitos contratados junto ao setor privado e 20%
diretamente públicos (TENÓRIO, 2002, p. 34).

11O principal documento norteador das políticas adotadas pelo governo brasileiro nesta área foi a declaração
de Caracas, aprovada em 1990. Este documento estabeleceu a diretriz da saúde mental, centrando-a na
comunidade e dentro de sua rede social. Os recursos, cuidados e tratamentos devem salvaguardar a
dignidade pessoal, direitos civis e humanos, propiciando a permanência do doente em seu meio
comunitário. O principal efeito nocivo do sistema asilar era diagnosticado como o isolamento, a
desintegração social e a exclusão do portador de transtorno mental (DUNKER e KYRILLOS NETO, 2004,
p. 119) .

12O período 1990-2003 concentra a máxima intensidade política e normativa do que chamamos, no Brasil, de
Reforma Psiquiátrica. Para uma visão do conjunto de normativo no período, ver publicação do Ministério da
Saúde (BRASIL, 2004a), que se constitui em uma antologia de documentos legais, capaz de ajudar na
compreensão do esforço de construção da agenda de saúde mental do SUS.

13Macro hospitais (acima de 600 leitos); hospitais de grande porte (240 a 600 leitos psiquiátricos); hospitais
de médio porte (161 a 240 leitos) e hospitais de pequeno porte (até 160 leitos).

14Os CAPS estão estabelecidos em três níveis: CAPS I e CAPS II (para atendimento diário de adultos) e CAPS
III (para atendimento diário e noturno de adultos), definidos por ordem crescente de porte, complexidade
e abrangência populacional. Os CAPSi são destinados ao tratamento de crianças e adolescentes com
transtornos mentais e os CAPSad são destinados à população dependente de álcool e outras drogas. Os
CAPSad III ou CAPSad 24h, que começaram a ser implantados em 2012, são serviços destinados ao
cuidado de pessoas que fazem uso abusivo do álcool e outras drogas, que funcionam 24 horas, nos sete
dias da semana, inclusive finais de semana e feriados.

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