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da Costa-Rosa 27
Resumo
Neste artigo temos como tema de interesse o encontro da loucura com o trabalho nos modelos de atenção em
Saúde Mental, historicamente construídos, onde concepções e práticas de atenção e cuidado foram produzidas
tendo o trabalho como um de seus eixos estruturantes. Temos como objetivo conhecer e compreender, através de
um estudo teórico, as concepções e práticas produzidas nesse campo no nascimento da Psiquiatria; na Psiquiatria
Social e de Setor e na Psicoterapia Institucional na França; na Psiquiatria Democrática Italiana; e, na Reforma
Psiquiátrica Brasileira. Além disso, nos interessa a articulação entre Saúde Mental e Economia Solidária na
atualidade brasileira, preconizada pela III Conferência Nacional de Saúde Mental em 2001 e instituída como política
intersetorial de inclusão social pelo trabalho em 2004. Neste campo, faremos um recorte tendo como foco a
micropolítica existente no processo de constituição de coletivos de trabalho autogestionário nos dispositivos de
atenção em Saúde Mental.
Palavras-chave: Loucura, Trabalho, Saúde Mental, Economia Solidária.
Abstract
This paper focuses on the relation between madness and labour in mental healthcare models. These models have
been historically constructed and have produced the concepts and practices of attention and care, mainly in the
mainstream of labour. This paper aims at understanding, through a series of theoretical studies, the concepts and
practices produced at the birth of Psychiatry; in Social and Sector Psychiatry as well as in Institutional
Psychotherapy in France; in the Italian Democratic Psychiatry and in the Psychiatric Reform in Brazil. In addition, it
investigates the connection between Mental Health and Solidarity Economy in Brazilian reality, advocated by the III
National Mental Health Conference 2001 and founded as an intersectoral policy of social inclusion through labour,
in 2004. We will focus on the existing micropolitics of the process which constitutes self-manageable collective
labour in the attention models of Mental Health.
Keywords: Madness, Labour, Mental Health, Solidarity Economy.
1 Contato: abiliocr@assis.unesp.br
mais prender os sem trabalho, mas sim ocupá-los – figuras de subjetivação do alienado e do alienista e
enquanto presos (dentre eles, os loucos) – como a relação médico-paciente.
mão-de-obra barata para garantir a prosperidade da Sabemos que nasce daí a justificativa para o
sociedade liberal da época. tratamento da loucura como doença mental no
Nesta perspectiva, o trabalho era utilizado pelas contexto científico da medicina psiquiátrica e do
instituições de assistência leiga como remédio dispositivo hospital psiquiátrico, tal como
contra o desemprego em momentos de crise preconizado por Pinel no final, do século XVIII,
econômica e como um estimulante para os onde o “meio mais seguro e talvez a única garantia
momentos de desenvolvimento industrial, não da manutenção da saúde, do bom comportamento
havendo distinção entre loucos e demais e da ordem é a lei de um trabalho mecânico
degenerados sociais visto que todos eram rigorosamente executado” (Pinel, citado por
ocupados e produziam conforme suas Foucault, 2003, p. 538). Foi nesse mesmo espaço
possibilidades. institucional que a loucura passou a ter o
Para Foucault, de acordo com Dreyfus e significado de doença, de incapacidade para o
Rabinow (1995), foi após a Revolução Francesa trabalho e de impossibilidade de integração social.
que aparecem outras relações com o louco através Foucault (2003) descreve a concepção de
de um movimento de indignação humanitária pelo trabalho construída por Tuke e Pinel no âmbito do
fato desses ocuparem os mesmos espaços de asilo como uma instituição filantrópica de
internamento que os criminosos. É neste contexto tratamento da loucura no início do século XIX. No
que se constitui o modelo asilar de tratamento da asilo, o trabalho foi destituído de seu valor de
loucura que teve uma função vital no produção e passou a ser imposto com regra moral
estabelecimento de uma consciência ética que pura, com o objetivo de limitar a liberdade,
acreditava que o trabalho era o principal eixo submeter à ordem e desalienar o espírito:
regulador das mazelas da sociedade. Entretanto, os O trabalho vem em primeira linha no “tratamento
loucos marcaram sua diferença ao resistirem a moral” [...]. Em si mesmo, o trabalho possui uma
submeter-se às regras de organização do trabalho força de coação superior a todas as formas de
estabelecidas pelo capitalismo incipiente. coerção física, uma vez que a regularidade das
Castel (1978) descreve como o louco é visto horas, as exigências da atenção e a obrigação de
pela sociedade instaurada pela Revolução Francesa chegar a um resultado separam o doente de uma
como uma figura marcada por uma irracionalidade liberdade de espírito que lhe seria funesta e o
fundamental, que definiu a prática de perícia nas engajam num sistema de responsabilidade
(Foucault, 2003, p. 529).
sociedades modernas, centrada no papel do
psiquiatra, estabelecida a partir de critérios técnico- Além disso, os que se recusavam a cumprir a lei
científicos organizados: geral do trabalho eram punidos com reclusão em cela
porque, de acordo com o mesmo autor, nem os
Insensato não é sujeito de direito; irresponsável
não pode ser objeto de sanções; por ser incapaz loucos podem ser desculpados pela resistência ao
de trabalhar ou de “servir”, não entra no circuito trabalho, pela desobediência por fanatismo
regulado das trocas, essa “livre” circulação de religioso e pelo roubo por serem movimentos de
mercadorias e de homens à qual a nova legalidade “resistência à uniformização moral e social”
burguesa serve de matriz (Castel, 1978, p. 19). (Foucault, 2003, p. 546) à sociedade burguesa. Vale
Para Souza (2001) o tratamento moral, notar que a burguesia foi responsável pelo
construído entre o final do século XVIII e o início agenciamento da criação do asilo como instituição
do século XIX por Pinel (França), Tuke de tratamento da loucura.
(Inglaterra), Chiaruggi (Itália) e Todd (Estados O tratamento oferecido ao alienado serviu para
Unidos) é considerado o primeiro movimento de lhe dar um lugar à margem da sociedade,
Reforma Psiquiátrica na História da Loucura que excluindo-o e destinando-o a ser o sujeito da
produz o nascimento da Psiquiatria como uma desrazão. Ao ocupar este lugar, o louco torna-se
especialidade médica e do asilo como lugar de cura aquele que é incapaz de trabalhar, que não se
da loucura. Neste contexto, são produzidas as enquadra nas normas da burguesia e deve ser
isolado para que receba o devido tratamento ciência psiquiátrica; ao mesmo tempo, isso fez
moral, sendo que nesse o trabalho tinha justamente repensar o trabalho como um fator decisivo de
uma função corretiva, de disciplinamento. melhora, uma vez que podia produzir, nos que
Se no alienismo os equipamentos sociais, as vivenciaram a experiência, sentimentos de utilidade
práticas, os discursos e as tecnologias sociais e de reconhecimento social (Lima & Brescia,
produziram a modelagem e a serialização da 2002).
subjetividade como afirmam Guattari & Rolnik Esses questionamentos endossam a proposta da
(1986), as Reformas Psiquiátricas são movimentos Psiquiatria Social e de Setor na França, assim como
de resistência e ruptura que produziram a dos pioneiros da Psicoterapia Institucional.
singularizações na subjetividade, nos modos de De acordo com Passos (2009), a Reforma
pensar e de viver (Guattari, 1990) em relação à Psiquiátrica francesa teve como protagonistas os
loucura e às práticas clínicas e sociais de cuidado psiquiatras em uma perspectiva institucional,
com os sujeitos da experiência da loucura. reformista e profissionalista de caráter
Nessa perspectiva, estes movimentos de corporativista e ideológico. Era denominada como
resistência engendrados no final século XX têm Psiquiatria Social e de Setor com um paradigma
forjado um repensar a respeito do lugar do louco clínico nas dimensões de cuidado e de tratamento.
na sociedade e das formas de atenção e cuidado Neste contexto, surgiram contribuições de
com este que desconstruam a lógica manicomial, vários psiquiatras que ainda hoje são referências
produzindo subjetivações para além do modelo para se pensar a questão da loucura em sua relação
hospitalocêntrico da psiquiatria tradicional. As com o trabalho. Alguns deles se dedicaram à
mudanças relacionadas à maneira de se referir ao produção de práticas clínicas que incorporaram o
louco aconteceram na medida em que se percebeu trabalho de diversas maneiras. Dentre eles estão
a importância da desconstrução do estigma que o Lucien Bonnafé, François Tosquelles, Louis Le
designa como um sujeito incapaz tanto de Guillant, Paul Sivadon e Jean Oury.
governar sua vida como de trabalhar. A Psiquiatria de Setor, de acordo com Passos
(2009), foi engendrada como uma doutrina que,
Loucura e Trabalho na Psiquiatria Social e de desde a década de 40 do século XX, questionava a
Setor na França e na Psicoterapia Institucional instituição psiquiátrica e seu princípio estratégico
Passos (2009), assim como Lima e Brescia da internação hospitalar. Somente nas décadas de
(2002), relatam que durante a Segunda Grande 70 e 80 esta se configura como uma política que
Guerra, devido à impossibilidade de se manter a tenciona cuidar da saúde mental da população
superpopulação dos asilos no contexto de uma através de “ações de prevenção, profilaxia, cura e
economia de guerra e para oferecer-lhes a pós-cura” (Passos, 2009, p. 62), expandindo a
possibilidade de sobrevivência aos ataques Psiquiatria para o social. Entretanto, entra em
inimigos ao território francês, os psiquiatras declínio na década de 90 com a crise econômica
tomaram a decisão de liberar os pacientes internos. mundial que mina o Estado-providência
Isso ocorreu para que esses não morressem, se fundamentado no Welfare State, tendo como
integrassem ao trabalho nas fazendas e consequência a queda nos investimentos em
comunidades vizinhas ou voltassem ao convívio políticas sociais.
familiar. Relata-se que houve uma readaptação ao A ideia de setor é a seguinte: uma equipe única se
cotidiano de vida destes lugares sem apresentarem responsabiliza por uma zona populacional
problemas ligados à falta dos recursos de específica, referente a uma determinada região
tratamento oferecidos pela Psiquiatria. geográfica, onde se disporia de um sistema
Tal fato provocou um questionamento à completo de estruturas que cobririam da
instituição asilo como espaço de tratamento que, prevenção à pós-cura e seriam criadas de acordo
ao invés de manter-se inerte, poderia proporcionar com as necessidades reais da população, e não em
convivência e reaprendizagem da vida coletiva função de imperativos administrativos ou
gerenciais. [...] essa equipe teria de se deslocar
(Passos, 2009), sendo também questionadas as
permanentemente por todas as estruturas, do
formas tradicionais de tratamento oferecidas pela
terapêutica na perspectiva de Tosquelles, até tocante à relação entre loucura e trabalho, tanto a
atingirem níveis de maior complexidade como uma Psiquiatria Social e de Setor como as duas
atividade profissionalizante remunerada, na modalidades da Psicoterapia Institucional mantêm
perspectiva de Sivadon. Para Le Guillant, a a internação hospitalar e o trabalho como tendo
Ergoterapia como terapêutica deveria oferecer ela uma função terapêutica, embora não mais
mesma atividades próximas do trabalho real, sendo disciplinadora, sendo um elemento estruturante
estas remuneradas mesmo dentro do hospital das práticas clínicas de cuidado e de
(Lima & Brescia, 2002). ressocialização.
A Psicoterapia Institucional construída em La Podemos encontrar também nas propostas dos
Borde a partir dos anos 60 contou com a CATs e Ateliês, assim como nas de Sivadon e Le
participação de Félix Guattari e de Jean Oury, esse Guillant experiências de relacionamento entre a
último influenciado pela Psicanálise Lacaniana. assistência e o mundo da produção através do
Todos estes acontecimentos engendraram a trabalho produtivo, embora sub-remunerado. Aí
separação da Psicoterapia Institucional como está, justamente, a mudança crucial e radical a ser
paradigma teórico-clínico da Psiquiatria de Setor produzida pela Psiquiatria Democrática Italiana,
na França como estratégia estatal de atendimento como veremos a seguir.
aos sujeitos da experiência da loucura, o que não
necessariamente quer dizer que a primeira seja uma Loucura e Trabalho na Psiquiatria
“evolução” da segunda. Democrática Italiana
A Clínica é autogerida internamente mesmo De acordo com Rotteli (1994) a experiência
não sendo uma propriedade coletiva, visto que é italiana buscava não somente humanizar a
uma instituição privada. Possui, sendo exigido por assistência psiquiátrica, mas sim transformá-la,
lei, um Comitê Hospitalar composto por médicos, fazendo uma crítica radical à neutralidade científica e à
funcionários, pensionistas e seus familiares que ideologia dominante da exigência de produtividade
compõem uma associação e funcionam como um das pessoas, que destruía qualquer forma de
Clube. Esse Clube é uma instância coletiva que diversidade e excluía suas forças produtivas. A
“define os destinos da clínica no dia-a-dia, nos Psiquiatria pactuou com essa perspectiva,
moldes da autogestão, com a participação de legitimando-se como um saber construído nas
todos, com assembleias semanais e em muitos práticas de tratamento no manicômio.
subgrupos de atividades” (Passos, 2009, p.120). Inicialmente, os italianos se fundamentaram nas
Além do Clube, segundo a autora, existem duas experiências de outros países como Inglaterra e
outras instâncias responsáveis pela vida França para colocar em discussão, junto com os
comunitária: a Caixa de Depósito (referente à pacientes, a instituição da psiquiatria e as demais
gestão dos recursos específicos dos pensionistas) e instituições por ela produzidas. Posteriormente,
a Caixa Solidária (referente aos recursos da clínica romperam com estas devido ao fato delas apenas
para as atividades coletivas). modificarem as práticas psiquiátricas, não
No tocante à especificidade do trabalho na colocando em discussão a psiquiatria como tal e
Clínica La Borde, de acordo com Passos (2009), se sua visão da loucura como doença.
pode encontrar atividades ocupacionais que são Com a experiência de Basaglia no Hospital San
realizadas em ateliês (marcenaria, produção de mel, Giovanni em Trieste, instaura-se o movimento da
criação de galinhas, etc.) e consideradas Psiquiatria Democrática, constituído através de um
terapêuticas. Essas, em conjunto com as atividades documento de fundação em 1973 que coloca em
de manutenção da clínica (limpeza, cozinha, “discussão a função e o papel dos técnicos e o
administração, telefonia), são realizadas por todas próprio espaço de ação da psiquiatria” (Passos,
as pessoas, excetuando-se os médicos, em 2009, p.127) realizando, assim, três confrontos:
pequenos grupos que trabalham em rodízio, sendo com o hospital psiquiátrico, com o modelo da
a adesão livre, embora seja estimulada a comunidade terapêutica inglesa e com a política de
participação. Setor da França. Entretanto, para Barros (1990)
Embora apresentem estratégias diferentes no mantém o princípio de democratização das relações
entre os atores institucionais e a ideia de territorialidade que na experiência em Trieste não se fala em
presentes, respectivamente, na comunidade ressocialização como na Psicoterapia Institucional,
terapêutica e na política de setor. mas sim em reinserção social a partir do processo de
Sendo assim, influenciados pelo conceito de Desinstitucionalização.
setor na psiquiatria francesa, os italianos As diferentes formas de se conceber o
elaboraram uma noção de território que, terapêutico nas práticas de cuidado destas
entretanto, não está circunscrita a uma delimitação perspectivas carece de problematização porque se
geográfica do espaço. configura como um divisor de águas quando se é
É, antes, o espaço social de uma coletividade, discutida a questão da primazia ora da clínica, ora
identificado pela existência de uma cultura própria do político como vertente paradigmática para se
e de uma série de recursos arquiteturais e pensar e atuar com a loucura. Estamos falando de
institucionais (de trabalho, lazer, ação política, primazia e não de exclusão da clínica ou do
saúde, educação, convivência, arte, religião, etc.) político por consideramos que há uma concepção
que precisam ser conhecidos e articulados pelos diferenciada de clínica na Psiquiatria Italiana onde
serviços sanitários, numa ação coletiva o terapêutico não está restrito à clínica que
integradora. O território é uma construção; como acontece nos dispositivos da assistência em saúde
tal, deve emergir da mobilização concreta dos
mental.
recursos existentes e das necessidades reais da
Entretanto, parece-nos que priorizar a clínica
comunidade (Barros, 1990, p. 136).
ou o político é não ver a clínica que pode haver na
O marco desse paradigma político foi a Lei 180 política e a política que há na clínica. Por outro
que regulamentou tanto o tratamento voluntário lado, a cura, na Psicoterapia Institucional nos
quanto o compulsório em substituição ao remete à transformação e recriação de si através de
procedimento de internação hospitalar um movimento ininterrupto do sujeito de criar
compulsório instaurando o processo de novos sentidos a respeito de si, do outro e do
Desinstitucionalização que, de acordo com Rotteli mundo, assim como pensava Lacan.
(1994), é o trabalho de desinstitucionalizar a Além disso, uma emancipação terapêutica não pode
Psiquiatria mudando substancialmente a relação ser também uma terapêutica emancipadora? Refletindo
entre médico e paciente, abolindo a exclusão e sobre nossa própria questão, percebemos que na
segregação das pessoas fundamentadas na custódia primeira concepção há um protagonismo do
e na periculosidade destas como tarefas atribuídas sujeito da experiência da loucura, tendo em vista
à instituição psiquiatria na figura do médico. Dessa que ele mesmo realiza a ação de emancipar-se; e,
forma, a proposta foi a de criar serviços na segunda, é a ação terapêutica engendrada nos
alternativos a essa instituição situados no território dispositivos de saúde mental que produz a
da comunidade onde as relações de poder fossem emancipação de outro que recebe o cuidado. Desta
horizontalizadas em uma perspectiva de rede – forma, nos é possível pensar que na primeira há a
uma estratégia terapêutica na comunidade. primazia do político e na segunda a primazia da
Nesse sentido, a questão do trabalho no clínica, embora não necessariamente sejam
tratamento preconizado pela desinstitucionalização dicotômicas e incompatíveis como formas
propõe a eliminação da ergoterapia e a reativação intercambiáveis nas práticas de cuidado.
das possibilidades de ter acesso a rendimentos Retomando o contexto de Trieste, algumas
econômicos que possibilitem a participação no práticas de cuidado foram construídas no contexto
mundo do intercâmbio social, que é o mundo do da emancipação terapêutica como, por exemplo, a
território comunitário da cidade, através de uma criação das cooperativas sociais e a organização de
atividade produtiva como meio para se alcançar grupos-apartamento, modificando o estatuto dos
este objetivo. que residiam no hospital de internos para o de
Passos (2009) considera que ao romper com o hóspedes. Tais fatos foram determinantes no
paradigma clínico da Psicoterapia Institucional processo de Desinstitucionalização, a partir de
francesa e propor o paradigma político, os italianos 1971, quando Basaglia assume a direção do
substituem a cura pela emancipação terapêutica, sendo Hospital San Giovanni. Outras ações como
músico e crítico de arte identificou nas obras cidade de São Paulo e do Núcleo de Atenção
artísticas dos pacientes uma semelhança com a Psicossocial (NAPS) criado em 1989 em Santos
produção dos artistas modernos. Vale lembrar que como perspectivas pioneiras no processo de
a Semana de Arte Moderna aconteceu em São construção de uma “nova práxis” de atenção
Paulo em 1922. Com o intuito de valorizar as integral em Saúde Mental em Saúde Coletiva no
dimensões artística, social e cultural dos Brasil. Incluindo nessa as práxis referentes ao
“alienados” e não a dimensão psiquiátrica, Osório encontro da loucura com o trabalho.
César publica A expressão artística dos alienados e cria Através das contribuições de Amarante (2008)
a Escola de Artes Plásticas do Juquery. Naquele encontramos que no projeto do CAPS Prof. Luís
momento histórico do Brasil, um psiquiatra se Cerqueira a família e o trabalho são vistas como
contrapõe à ciência psiquiátrica e seu tratamento dimensões do campo macrossocial a serem
moral quando afirma que no hospital psiquiátrico o considerados no programa de psicoterapia,
departamento de arte não tem somente uma socioterapia e terapia ocupacional; ou seja, são
finalidade terapêutica, mas também de reabilitar e dimensões que contribuem terapeuticamente com
construir possibilidades profissionais fora do o tratamento. No projeto do NAPS em Santos o
hospital de acordo com as potencialidades dos trabalho compôs, desde o início, o projeto terapêutico
pacientes (Lima, 1999, p.65). do cuidado na Atenção Psicossocial juntamente
Na década de 40 do mesmo século, a com outras atividades como o atendimento
terapêutica ocupacional proposta por Nise da individual, o atendimento aos familiares, as
Silveira no Centro Psiquiátrico Nacional Engenho assembleias, os passeios, as visitas domiciliares,
de Dentro no Rio de Janeiro/RJ via o trabalho dentre outras. Ou seja, o trabalho era considerado
como um recurso terapêutico em pé de igualdade como um dos componentes importantes na
com as demais práticas. Esse tinha a finalidade de construção do poder de contratualidade social dos
beneficiar todos os pacientes, crônicos e agudos, sujeitos da experiência da loucura, sendo esse o
com uma ocupação livremente escolhida e não principal foco de atenção das práticas de atenção e
como uma obrigação imposta. As atividades eram cuidado da equipe do NAPS.
variadas (encadernação, costura, música, ateliês de No final do século XX e início do século XXI
pintura e modelagem, etc.) e respeitavam a as mudanças estruturais e desestruturantes no
subjetividade dos pacientes, não possuindo um campo socioeconômico advindas do incremento
caráter financeiro de manutenção do hospital da economia de mercado, como o desemprego
(Guerra, 2008). estrutural, provocam a construção de alternativas
De acordo com a mesma autora, na Reforma relacionadas à questão do trabalho em perspectivas
Psiquiátrica a partir da década de 1980, em um diferenciadas da relação capital-trabalho encarnada
contexto de abertura política, a atenção em saúde no formato do emprego.
mental passou a associar o projeto clínico ao Neste contexto, acontece o encontro da Saúde
projeto político. Foi realizada a crítica à psiquiatria Mental com a Economia Solidária (ECOSOL)
tradicional e o trabalho passou a ser visto como através da realização do evento Oficina de
instrumento de reabilitação e reinserção sociais Experiências de Geração de Renda e Trabalho dos
criando novas inscrições da loucura na cultura e na Usuários dos Serviços de Saúde Mental em 2004,
cidadania. Nesse contexto, houve a participação de realizado em Brasília/DF. Deste encontro foram
oficineiros não “psi” com diferentes discursos e construídas estratégias de inclusão social pelo
relações sociais com a loucura, e se efetivou o trabalho dos usuários dos serviços de saúde
respeito à singularidade na loucura com a invenção mental, com transtornos mentais graves e/ou
da clínica ampliada, antimanicomial ou decorrentes do uso de álcool e outras drogas, por
psicossocial. meio da constituição de empreendimentos
Em relação ao início do processo da Reforma econômicos solidários como grupos informais,
Psiquiátrica no Brasil, tomamos como exemplos as associações e/ou cooperativas (MS, 2005).
experiências do Centro de Atenção Psicossocial Nos relatos dos grupos de discussão desse
(CAPS) Prof. Luís Cerqueira criado em 1987 na evento, os participantes do evento consideraram a
paradigmas da história da loucura. Na crise respeito desta temática, prevenindo que a reedição
econômica que desencadeou a grande internação de antigas práticas de inclusão perversa (Sawaia,
dos loucos, mendigos, vagabundos, delinquentes; 2006) venha a acontecer nos contextos
no advento da psiquiatria como ciência pautada contemporâneos em curso que apontam para a
pela noção de sujeito do cogito cartesiano, onde invenção e a potencialização de possibilidades de
assume uma função terapêutica disciplinadora na transformação no encontro da loucura com o
busca pela cura da doença mental através do trabalho.
tratamento moral; na II Grande Guerra quando os
hospícios abrem suas portas aos loucos por conta Referências
dos bombardeios aéreos e esses conseguem Amarante, P. (2008). A constituição de novas práticas
trabalhar nas fazendas da região sem medicação ou no campo da Atenção Psicossocial: análise de dois
projetos pioneiros na Reforma Psiquiátrica no Brasil.
qualquer outra forma de tratamento, não sendo Saúde em Debate, 25(58), 26-34.
identificados como doentes mentais; nas reformas
psiquiátricas onde é tanto uma estratégia de Amarante, P., & Torre, E. H. (2001). Protagonismo e
subjetividade: a construção coletiva no campo da saúde
ressocialização na França, de emancipação pela mental. Ciência & Saúde Coletiva, 6(1), 73-85.
inserção no trabalho produtivo na Itália, de
reabilitação psicossocial e de inclusão social no Barros, D. D. A. (1990). Desinstitucionalização Italiana: a
experiência de Trieste. Dissertação de Mestrado. Faculdade
trabalho produtivo no Brasil. de Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Católica de
Suaya (2009, citando Foucault, 2003) considera São Paulo, São Paulo.
que o trabalho foi o instrumento utilizado no
Basaglia, F. (1985). A instituição negada: relato de um
nascimento da psiquiatria para fazer o corte entre hospital psiquiátrico. Rio de Janeiro: Edições Graal.
os loucos e os demais degenerados sociais, que
Castel, R. (1978). A ordem psiquiátrica: a idade de ouro do
foram o objeto de intervenção da grande alienismo. Rio de Janeiro: Graal.
internação. A exclusão desse grupo marcou a
singularidade do louco como não incluído no Dreyfus, H. L., & Rabinow, P. (1995). Michel Foucault,
uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da
processo produtivo, como incapaz para o trabalho hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária.
e, portanto, objeto da assistência do Estado através
do tratamento oferecido pela ciência psiquiatria. Foucault, M. (2003). A história da loucura na idade clássica.
São Paulo: Perspectiva.
De acordo com a mesma autora, o contraponto
a esta perspectiva acontece alguns séculos depois Foucault, M. O sujeito e o poder. Apêndice. In H. L.
nos movimentos das reformas psiquiátricas que Dreyfus, & P. Rabinow, Michel Foucault, uma trajetória
filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica (pp.
incluíram o trabalho como o eixo nuclear de suas 231-250). Rio de Janeiro: Forense Universitária.
práticas onde a disjunção entre loucura e trabalho é
transformada em conjunção. Guattari, F. (1992). Caosmose: um novo paradigma estético.
São Paulo: Ed. 34.
Entretanto, retomando o contexto brasileiro
nos é possível identificar, através do exposto neste Guattari, F. (1990). As três ecologias. Campinas/SP:
Papirus.
artigo, a presença tanto da disjunção quanto da
conjunção entre loucura e trabalho que acontece Guattari, F., & Rolnik, S. (1986). Micropolítica: cartografias
pela coexistência, no cotidiano dos serviços de do desejo (2ª ed.) Petrópolis: Vozes.
saúde mental, das práticas hegemônicas da Guerra, A. M. C. (2008). Oficinas em saúde mental:
psiquiatria e das práticas das reformas psiquiátricas percurso de uma história, fundamentos de uma prática.
que se contrapõem àquela com estratégias de luta e In C. M. Costa, & A. C. Figueiredo (Orgs.), Oficinas
terapêuticas em Saúde Mental: sujeito, produção e cidadania (pp.
de confronto. 23-57). Rio de Janeiro: Contra Capa.
Tal realidade também está presente no contexto
da articulação saúde mental e economia solidária Lima, E. A. (2008). Oficinas e outros dispositivos para
uma clínica atravessada pela criação. In C. M. Costa, &
na atualidade brasileira das práticas de inclusão A. C. Figueiredo (Orgs.), Oficinas terapêuticas em Saúde
social no trabalho produtivo, constituídas no Mental: sujeito, produção e cidadania (pp. 59-81). Rio de
âmbito dos dispositivos da rede de atenção ou a ela Janeiro: Contra Capa Livraria.
interligadas. É premente uma ampla discussão a Lima, M. E. A., & Brescia, M. F. Q. (2002). O trabalho