PARTICIPAÇÃO CIDADÃ COMO FATOR DE RESILIÊNCIA NO SETOR
EDUCACIONAL AOS EFEITOS DA PANDEMIA
A importância e a necessidade da "participação cidadã (da sociedade, da
sociedade civil, da cidadania) na educação" tornou-se um tema recorrente e geralmente aceito na maioria dos países do mundo.
O crescente valor atribuído à sociedade civil e à participação cidadã no
pensamento e no trabalho local, nacional e internacional tem como pano de fundo uma redefinição do papel e da relação entre o Estado e a sociedade civil, bem como entre ambos e as agências internacionais de cooperação para o desenvolvimento. no quadro de uma redefinição da relação entre o público e o privado, e entre o local, o nacional e o global. Em termos de BID, estaríamos avançando na construção de "um novo paradigma corporativo caracterizado simultaneamente pela eficiência econômica e pela eficiência social" (BID- Argentina, 1998: 9).
A tradicional atribuição do poder público e da política pública – entendida como
aquela que trata do "bem comum", do "interesse de todos" – como domínio exclusivo do Estado, é hoje questionada. Por um lado, há uma crescente abertura do Estado e da "coisa pública" à intervenção ativa de atores não estatais. Por outro lado, há uma crescente abertura dos Estados e das sociedades nacionais, e das políticas públicas, à influência das agências internacionais, que têm incorporado a sociedade civil como um novo interlocutor, com e sem a mediação do Estado. Como apontado em uma reunião do BID, estaríamos dançando hoje um "tango entre três": Estado, sociedade civil e Banco (agência doadora). Na verdade, porém, é um "tango entre quatro", pois nessa tríade está ausente o novo grande ator: o mercado. A sociedade civil (sua própria caracterização como tal, seu novo papel, seus limites e possibilidades) situa-se e se define hoje nessa complexa teia de relações entre Estado, mercado e agências internacionais.
A crescente visibilidade da sociedade civil está relacionada ao crescimento e ao
crescente peso das Organizações da Sociedade Civil (OSCs), e particularmente das Organizações Não Governamentais (ONGs), nos níveis nacional e internacional. Nesta, as agências internacionais têm desempenhado um papel importante, vendo o fortalecimento e a participação das OSCs como elementos fundamentais de democratização, modernização e governança, bem como maior eficiência e sustentabilidade na execução das políticas e projetos de desenvolvimento que estão sendo realizados com o apoio da cooperação internacional.
A necessidade de fortalecer a organização e a participação social tem sido
historicamente destacada no campo da educação, particularmente a partir do pensamento e das forças progressistas. Hoje, a participação permeia todos os discursos, nacional e internacionalmente, e passou a ser assumida como bandeira também por Estados e agências internacionais. No entanto, esse consenso é mais nominal do que real, permanece mais apegado à retórica do que aos fatos, e se baseia em concepções restritas tanto de participação (centrada em aspectos instrumentais) quanto de sociedade civil (geralmente reduzida a organizações não-governamentais-ONGs) e educação (reduzida à escola ou educação formal).
Uma visão ampla da "participação cidadã na educação" implica aceitar que:A
educação não se limita à educação escolar, nem a aprendizagem necessária – para a vida, para o trabalho, para a participação, para a cidadania plena – pode ser limitada a um determinado período da vida de uma pessoa. A aprendizagem começa no nascimento e se estende ao longo da vida, começando em casa, precedendo e ultrapassando a instituição escolar, abrangendo um amplo conjunto de instituições, modalidades, relações e práticas. A educação, a comunidade educativa e a política educativa são muito mais amplas, respectivamente, do que a educação escolar, a comunidade escolar e a política escolar.
A "sociedade civil" é uma realidade extremamente heterogênea e
complexa, formada por um amplo mosaico de organizações (as ONGs são apenas um segmento, e minoria, das OSCs), no qual se expressam múltiplas visões, interesses e conflitos. De fato, os processos nacionais e as iniciativas internacionais de reforma educacional testados nessa região nos últimos anos vêm demonstrando a existência e o enfrentamento entre "sociedades civis" diferenciadas (posições, interesses, ideologias) em torno delas. A participação, para tornar-se instrumento de desenvolvimento, empoderamento e equidade social, deve ser significativa e autêntica, envolver todos os atores, diferenciando, mas sincronizando seus papéis, e ocorrer nas diversas áreas e dimensões da educação: da sala de aula à política educacional, dentro da escola e também da educação extracurricular, nos aspectos administrativos e também naqueles relacionados ao ensino e à aprendizagem, tanto em nível local quanto em nível nacional e global. Isso implica o estudo, a definição e a implementação de uma estratégia de participação social embutida na própria política educacional, e ela própria pactuada participativamente, de modo a delimitar claramente os papéis e responsabilidades de cada um dos atores e assegurar as condições e os mecanismos para efetivar tal participação.
A participação cidadã nas decisões e ações da educação não é um luxo ou
uma opção: é condição indispensável para sustentar, desenvolver e transformar a educação nas direções desejadas. Trata-se de um imperativo não só político-democrático - direito dos cidadãos à informação, consulta e iniciativa, transparência na gestão da coisa pública -, mas também de relevância, eficácia e sustentabilidade das acções empreendidas. Porque a educação e a mudança educacional envolvem as pessoas e, portanto, passam pelo conhecimento, pelo raciocínio, pela subjetividade, pelos padrões culturais, pelas expectativas, pela vontade de mudar e pela própria mudança das próprias pessoas concretas, o que é salvo – no tempo, nos recursos, nas complicações – pela passagem de pessoas e suas organizações negligenciadas. Paga-se na inadequação das ideias propostas às realidades e possibilidades concretas, na incompreensão, na resistência ou, pior ainda, na apatia, daqueles que são chamados a apropriar-se e a fazer. Afirmar isso não requer mais a dependência de citações e estudos, pois, se não bastasse o bom senso, ele já foi incorporado ao corpo de grandes lições aprendidas nos processos de reforma educacional em todo o mundo e nesta região especificamente.
A década de 1990, com as grandes transformações que trouxe consigo em
todo o mundo, em todos os níveis, trouxe muitas e variadas propostas de reforma para a educação, desde versões mornas de "melhoria da qualidade da educação (escolar)" até propostas radicais de mudança de paradigma, algumas das quais, Apoiando-se no superpoder das modernas Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs), eles até preveem o desaparecimento do sistema escolar como o conhecemos. A versão de reforma que se impôs ao longo da década nessa região e nas demais regiões do Sul, via financiamento e assessoria internacional, particularmente do Banco Mundial, incluiu como componentes fundamentais a descentralização, a autonomia escolar, participação comunitária e cogestão e consulta social. (Quadro 1). Estas políticas e medidas tiveram diferentes modos e graus de interpretação, implementação, desenvolvimento e sucesso em diferentes países, programas e regiões. Em muitos casos, como se reconhece, essas medidas foram precipitadas e parciais; Na maioria dos casos, geraram desequilíbrios e resistências, não só por parte dos professores, mas também da comunidade escolar, de um amplo espectro de organizações sociais e da opinião pública.
Apesar da formalização do discurso participativo e da promoção efetiva da
participação de determinados setores por meio de medidas e programas, nunca antes houve tanta demanda (comunidade escolar, ONGs, movimentos sociais etc.) por participação e consulta, ou pelas fragilidades e insuficiências na gestão destes. As reformas convulsionaram o cenário educacional e afetaram os diferentes atores de diferentes maneiras, estimularam a inovação em alguns casos e a paralisaram em outros, contribuíram para o desenvolvimento de formas híbridas, novas e importadas em alguns casos, novas e próprias em outros, não contempladas nem na recomendação nem no manual. De qualquer forma, os resultados em termos da melhoria esperada na qualidade da aprendizagem continuam por ver e, em geral, têm sido decepcionantes até à data.
Deste período recente, e de várias décadas de reformas intermitentes, restam
lições importantes a serem refinadas e assimiladas. Mas o que não pode mais ser ignorado como lição aprendida é a reafirmação da complexidade da mudança educacional e a necessidade de aprofundar a participação social de todos, em todos os níveis, nas diferentes áreas e etapas do desenvolvimento educacional em nossos países.
A situação hoje é contraditória e instável. Em alguns lugares, a reforma começa a
ser reformada, revertendo ou propondo novas alternativas para sanar os novos males trazidos pelas novas soluções; em outros, é retificado, mas o progresso é consolidado. Cada país e toda a região é um foco de exploração, de cima, de baixo e dos lados. Muitos deles têm - ou fazem - da participação um ingrediente fundamental e, portanto, são mais valiosos e mais propensos a serem apropriados, a deixar sua marca, a se multiplicar em outros e a se estender ao longo do tempo, para além da retórica ou da inovação efêmera.
Este estudo parte e parte de algumas dessas experiências, não para o
diagnóstico, mas para a proposta, mostrando parte do que existe e do que é possível, em uma realidade profundamente contraditória, dinâmica e fértil como a que caracteriza essa região. Nesse conjunto de experiências, consubstanciam-se várias dimensões, áreas, níveis e atores dessa "visão ampla" de participação cidadã na educação que aqui se preconiza. Embora devam ser intercalados ao longo do texto, por questões de diagramação e facilidade de leitura os colocamos no final, como um anexo.
As experiências selecionadas (Quadro 2) são uma pequena amostra do que
sabemos e do que certamente existe, e não pretendem de forma alguma ser exaustivas. O próprio espaço disponível para este documento impõe limites ao número de experiências que poderiam ser incluídas. De resto, optamos por poucas experiências, apresentadas com um pouco mais de detalhe, do que por muitas pouco mencionadas ou tratadas superficialmente. Procuramos expressamente incluir algumas experiências novas, ou pouco conhecidas ou divulgadas. A maioria corresponde ao passado recente, e alguns datam dos anos 80 ou 70. Todos os encaminhados para instituições de ensino pertencem a instituições públicas ou privadas sem fins lucrativos. Temos evitado chamá-los de "casos de sucesso" ou "melhores práticas" porque são experiências em processo, inacabadas, contraditórias, com problemas e dilemas não resolvidos, como empresas humanas que se aventuram em novos terrenos e, principalmente, em um mundo tão complexo como o da educação e da aprendizagem. Poucos deles têm, além disso, avaliações ou sistematizações do que foi feito, o que muitas vezes acontece no campo da reforma e inovação educacional.
A bandeira do "fortalecimento da sociedade civil" e da participação cidadã
coincidiu – e não por acaso – com a bandeira da "modernização" do Estado, um Estado hoje reduzido e enfraquecido. No entanto, como é amplamente reconhecido hoje, essa equação não se fecha: avançar na construção de nações mais justas e democráticas implica construir tanto um Estado forte quanto uma sociedade civil forte, já que a força ou fraqueza de um deles faz a força ou fraqueza do outro. Por isso, é essencial trabalhar a partir e para a construção do diálogo, da aproximação e da cooperação entre ambos, aceitando que o apoio crítico, a responsabilidade, a transparência e a prestação de contas devem ser aplicados simetricamente, de ambos os lados.
Um Estado e uma sociedade civil fortes exigem um forte investimento na
educação e na aprendizagem, na informação e na comunicação, no conhecimento, na ciência e na tecnologia, na investigação e na criação cultural. A participação cidadã não é, portanto, uma concessão, ou um mal que não há escolha a não ser aceitar, mas uma condição dessa construção e, portanto, uma responsabilidade que o próprio Estado e a sociedade civil têm para consigo mesmos e para com os cidadãos em geral.
COACHING E APRENDIZAGEM
A noção de educação permaneceu fortemente atrelada à do sistema escolar.
"Política educacional" e "reforma da educação" geralmente se referem à política para o sistema escolar e para a reforma do sistema escolar (público).
No entanto, a educação não se limita ao sistema escolar. A Classificação
Internacional de Educação reconhece desde 1976 três tipos de educação: formal, não formal e informal. O formal corresponde àquele oferecido dentro do sistema escolar, que leva da pré-escola à universidade, tem reconhecimento e certificação oficiais; Não-formal inclui todas as atividades educacionais organizadas fora do sistema formal, com ou sem credenciamento de estudos, e que é oferecido por uma ampla variedade de instituições/organizações, para atender a necessidades e grupos específicos; Finalmente, sob a categoria de informais são agrupadas todas aquelas aprendizagens que são realizadas através da experiência diária e em contato com o meio ambiente (família, amigos, vizinhos, comunidade ou vizinhança, ambiente natural, trabalho, recreação, mídia, leitura e estudo autodirigido, etc).
No quadro da aprendizagem ao longo da vida, hoje assumida como paradigma e
princípio organizador dos sistemas educativos na sociedade do século XXI, e no quadro da promoção das TIC, as distinções entre estas três modalidades educativas tornam-se esbatidas, considerando a sua complementaridade e a necessidade de estabelecer pontes entre elas. A educação não formal e informal adquire cada vez mais visibilidade e importância, e nota-se que a aprendizagem informal é a que apresenta maior volume e incidência, pois é a que acompanha as pessoas ao longo de suas vidas. (Delors, 1996; Comissão das Comunidades Europeias 2000).
Passamos também de uma ênfase na quantidade para uma ênfase na qualidade,
entendendo que um não pode ficar sem o outro, e de uma ênfase na educação para uma ênfase na aprendizagem, entendendo que o que importa não é que ela seja ensinada, mas que esse ensino se traduza em aprendizagem efetiva. A partir da aprendizagem ao longo da vida (Relatório Faure 1973) estamos assim a avançar para a aprendizagem ao longo da vida (Relatório Delors 1996; Memorando sobre a Aprendizagem ao Longo da Vida 2000), e da sociedade educativa à sociedade cognitiva.
Caminhar para uma sociedade da aprendizagem e do conhecimento implica,
portanto, não só expandir e transformar o sistema escolar, mas também expandir e fortalecer as oportunidades de aprendizagem fora dele, garantindo a complementaridade e a sinergia dos vários sistemas de educação e aprendizagem. A política educacional, portanto, vai além da política escolar e a participação cidadã na educação não é mais entendida exclusivamente como participação em torno da instituição, do sistema e da reforma escolar.
Várias das experiências aqui incluídas situam-se fora do sistema escolar ou
articulam-se a ele a partir de espaços tradicionalmente considerados "extracurriculares" por referência à escola, mas que hoje adquirem status e valor próprios como espaços de educação e aprendizagem. Algumas delas têm a ver não só com a comunidade escolar, mas com a comunidade educativa em geral a nível local, nacional e internacional.