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Gênero,sexualidade e poder

0 s Estudos Feministas estiveram sempre central-


mente preocupados com as relações de poder.
Como já foi salientado, inicialmente esses estudos pro-
curaram demonstrar as formas de silenciamento, sub-
metimento e opressão das mulheres. A exposição dessas
situações parece ter sido indispensável para que se visi-
bilizasse aquelas que, histórica e lingüisticamente, ha-
viam sido negadasou secundarizadas. Mas se a denún-
cia foi imprescindível, ela também permitiu, algumas
vezes,que se cristalizasse uma vitimização feminina ou,
em outros momentos, que se culpasse a mulher por sua
}
condição social hierarquicamente subordinada. De
qualquer modo, a concepçãoque atravessougrande
parte dos Estudos Feministas foi(e talvez ainda seja) a
de um homemdominanteoersusuma mulher domi-
nada como se essafosse uma fórmula única, fixa e
permanente.
No entanto, já há algum tempo, algumas estudi-
:
osase estudiosos vêm problemati zando essa concepção.
l Por um lado, sãoenfatizadas as formas e locais de resis-
)

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tência feminina; por outro lado, são observadasas
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perdas ou os custos dós homens no exercício de sua


superioridade" social; além disso, o movimento gay e o
movimento de mulheres lésbicas também vêm demons-

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por "manobras", "técnicas", "disposições", as quais são,
traído que o esquemapolarizado linear não dá conta da por sua vez, resistidas e contestadas, respondidas,
complexidade social. Nos últimos anos, a leitura de absorvidas, aceitas ou transformadas. E importante
Michel Foucaultpor estudiosas/os
das relaçõesde notar que, na concepçãode Foucault,o exercícodo
gênero resultou em novos debates e, de um modo espe- poder sempre se dá entre sujeitos que são capazesde
cial, trouxe contribuições para as discussõessobre as resistir (pois, casocontrário, o que se verifica, segundo
relaçõesde poder. ele, é uma relação de violência). Antonio Maia (1995, p.
Aquelas/es que se aproximam de Foucault prova- 89), estudando a "analítica do poder de Foucault",
velmente concordamque o poder tem um lugar signifi- afirma:
cativo em seus estudos e que sua"analítica do poder" é
Há nasrelações de poder um en6'entamento cons-
inovadora e instigante. Foucault desorganiza as concep-
tante e perpétuo. Como corolário destaidéia
ções convencionais que usualmente remetem à cen-
teremos que estas relações não se dão onde não
tralidade e à possedo poder e propõe que obser-
haja liberdade. Na definição de Foucault a exis-
vemos o poder sendo exercido em muitas e variadas tência de liberdade, garantindo a possibilidade de
direções, como se fosse uma rede que, "capilarmente reação por parte daqueles sobre os quais o poder é
se constituipor todaa sociedade.
Paraele, o poder exercido, apresenta-se como fundamental. Não há
deveria ser concebido mais como "uma estratégia"; ele poder semliberdade e sem potencial de revolta.
não seria, portanto, um privilégio que alguém possui (e
transmite) ou do qual alguém se "apropria". Mais preo- A polaridade fixa é, pois, impossível dentro de seu raci-
cupado com os efeitos do poder, Foucault diz que seria ocínio. De fato, Foucault acrescenta que se deve buscar
importante que se percebesseessesefeitos como observar o poder como "uma rede de relações sempre
estando vinculados "a disposições, a manobras, a tensas,sempre em atividade". Sugere que, preferente-
táticas, a técnicas, a funcionamentos" (Foucault, 1987, mente, se dê ao poder "mais como modelo a batalha
P 29)
perpétua do que o contrato que faz uma cessãoou uma
No contexto dessereferencial teórico, fica extre- conquistaque se apoderade um domínio" (Foucault,
1987,P.29).
mamente problemático aceitar que um pólo tem o
Tais referências podem ser úteis para os Estudos
poder estavelmente e outro, não. Em vez disso,
deve-se supor que o poder é exercido pelos sujeitos e Feministas. Afinal, homens e mulheres, através das
mais diferentes práticas sociais, constituem relações em
que tem efeitos sobre suas ações. Torna-se central
pensar no exercício do poder; exercício que se constitui que há, constantemente, negociações, avanços,recuos,

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Homens e mulheres certamente não são construídos
consentimentos, revoltas, alianças. Talvez uma interes-
sante representaçãodessaspráticas seja imagina-las apenas através de mecanismos de repressão ou censura,
como semelhantes ajogos em que os participantes estão eles e elas se fazem, também, através de práticas e rela-
sempre em atividade, em vez de reduzi-las, todas, a um ções que nsf traem gestos, modos de ser e de estar no
esquema mais ou menos fixo em que um dos "conten- mundo, formas de falar e de agir, condutas e posturas
dores" é, por antecipaçãoe para sempre,o vencedor. aprop7"Íadm (e, usualmente, diversas). Os gêneros se
Isso não significa, no entanto, desprezar o fato de que as produzem, portanto, nas e pelas relações de poder.
mulheres (e também os homens que não compartilham Certamente se poderia estender a reflexão para
da masculinidade hegemónica) tenham, mais freqüente além dessasidéias sobre o "poder disciplinar" o qual
e fortemente, so6ido manobrasde poder que os consti- constitui, atravésde práticas cotidianas e de técnicas
tuem como o outí"o, geralmente subordinado ou subme- minuciosas, os sujeitos. O conceito foucaultiano de
tido mas tais manobras não as/os anularam como 'biopoder", ou seja,o poder de controlar as populações,
sujeitos. Nas palavras de Foucault (1988, p. 91): "lá onde de controlar o "corpo-espécie" também parece ser útil
há poder, há resistência e, no entanto (ou melhor, por para que se pense no conjunto de disposições e práticas
isso mesmo) esta nunca se encontra em posição de exte- que foram, historicamente, criadas e acionadaspara
rioridade em relação ao poder". A resistência ou controlar homens e mulheres. Nelas é possível identi-
melhor, "a multiplicidade de pontos de resistência" ficar estratégiase determinações que, de modo muito
seria inerente ao exercício do poder. direto, instituíram lugares socialmente diferentes para
As concepçõestradicionais são também pertur- os gêneros, ao tratarem, por exemplo, de "medidas de
badas por outro {nsigAf de Foucault, que consiste em incentivo ao casamentoe procriação". Aqui também se
perceber o poder não apenascomo coercitivo e nega- trata de um poder que é exercido sobre os corpos dos
tivo, mas como produtivo e positivo. O poder não sujeitos, ainda que agora essessejam observadosde um
apenas nega, impede, coíbe, mas também "faz", produz, modo mais coletivo trata-se do "corpo-molar da

incita. Chamando a atençãopara as minúcias, para os população". As relações entre os gêneros continuam,
detalhes, para táticas ou técnicas aparentemente sem dúvida, objeto de atenção, uma vez que distintas
banais, ele nos faz observar que o poder produz estratégias procuram intervir nos agrupamentos
sujeitos, fabrica corpos dóceis, induz comportamentos, humanos, buscando regular e controlar taxas de nasci-
;aumenta a utilidade económica" e "diminui a força mento e mortalidade, condições de saúde, expectativas
política" dos indivíduos (Machado, 1993, p. XVI). de vida, deslocamentos geográficos, etc.

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As lentes de Foucault ainda poderiam provocar efeito de poder, e também obstáculo, escora,ponto
outros olhares sobre as relações de poder entre os de resistência e ponto de partida de uma estratégia
gêneros: a normalização da conduta dos meninos e oposta.O discurso veicula e produz poder; refor-
meninas, a produção dos saberes sobre a sexualidade e ça-o mas também o mina, expõe, debilita e permite
os corpos, as táticas e as tecnologias que garantem o barra-lo. Da riiesma forma, o silêncio e o segredo
'governo" e o "auto-governo" dos sujeitos... Deixo de dão guarida ao poder, fixam suasinterdições; mas,
desenvolver essasidéias aqui, uma vez que elas serão também, afrouxam seus laços e dão margem a tole-
râncias mais ou menos obscuras.
retomadas ao longo dos outros capítulos. Sem dúvida o
governo das crianças e das mulheres, exercido pelos
Diferenças e desigualdades:
homens (pais, magistrados,religiosos, médicos), bem
afinal, quem é diferente?
como o "governo de si" (objetivo final dos múltiplos
processos educativos exercidos sobre meninos e No interior dasredes de poder, pelas trocas e jogos que
meninas, homens e mulheres) ocuparão nossa atenção constituem o seu exercício, são instituídas e nomeadas
quando nos voltarmos mais diretamente para o campo as diferenças e desigualdades. Certamente essasdistin-
da Educação. ções se referem às várias categorias ou, como diz
Essas indicações básicas sobre as relações de Deborah Britzman (1996), aos diversos "marcadores
poder entre os gêneros podem ser provisoriamente sociais": gênero, classe, sexualidade, aparência física,
arrematadas por palavras do filósofo que acenam para a nacionalidade, etnia... Aqui vamos nos voltar de modo
despolarização de nosso pensamento. Diz Foucault privilegiado (ainda que não exclusivo) para o gênero e a
(1988,P. 96): sexualidade, buscando observar como são fixadas as
não se deve imaginar um mundo do discurso diferenças nessesterrenos.
dividido entre o discurso admitido e o discurso Dizer que as mulheres são diferentes dos homens
excluído, ou entre o discurso dominante e o domi- se constitui, a princípio, numa afirmação irrefutável.
nado; mas, ao contrário, como uma multiplicidade Mirmação que é acompanhada, freqüentemente, da
de elementos discursivos que podem entrar em exclamação: "E viva a diferenças". Muito se poderia
estratégias diferentes. (...) Os discursos, como os pensar sobre isso. Inicialmente, parece evidente que a
silêncios, nem são submetidos de uma vez por diferença a que se está aludindo aqui, de modo irrecor-
todasao poder, nem opostosa ele. E preciso rível, remete-se a um está fo ou está"eitodomínio bioló-
admitir um jogo complexo e instável em que o dis- gico mais explicitamente, ao domínio sexual. (E vol-
curso pode ser, ao mesmo tempo, instrumento e
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taríamos a questionar: existe um domínio biológico que Ainda que a expressão "diferença" possa como
possa ser compreendido fora do socia]? E possível de resto qualquer outra adquirir diferentes signiÊ-
separar cultura e biologia?). Não é preciso grande cados em diferentes contextos sociais, políticos ou cul-
esforço para perceber que a base é suficientemente sin- turais, é para a sua importância no campo do feminismo
tética para permitir representarínuÍtos atributos nessa que vamosnos voltar aqui. Se a primeira referência,
nomeação de "diferença". É possível observar, também, nesse campo, acena para a distinção entre os gêneí"os,é
que usualmente se diz: "asmulheres sãodiferentes dos importante observarque ela também estácarregadada
homens", ou seja, elas d $erernfezes que devem ser afirmação da diferença entre as znuZhe?"es.
tomados como a norma. Vale então repetir a reflexão de Relacionada, a princípio, às distinções biológicas,
ferry Eagleaton (1983, p.143): "a mulher é o oposto, 'o a diferença entre os gêneros serviu para explicar e justi-
outro' do homem: ela é o não-homem, o homem a que ficar as mais variadasdistinçõesentre mulherese
falta algo..." Mas a exclamação que segue "Viva a
homens. Teorias foram construídas e utilizadas para
diferenças" talvez seja ainda mais problemática. Essa 'provar" distinções físicas, psíquicas, comportamen-
saudaçãoou elogio da diferença, proferida por homens tais; para indicar diferentes habilidades sociais, talentos
e por mulheres, parece implicar (queiram ou não ou aptidões; parajustificar os lugares sociais, as possibi-
aqueles/asque a emitem) uma conformação ao status lidades e os destinos "próprios" de cada gênero. O
que das relações entre os gêneros, ou seja, parece movimento feminista vai, então, se ocupar central-
indicar que se aceita (ou até que se "vê com bons olhos") mente dessa diferença e de suas conseqüências.
essasrelações tal como elas estão atualmente constitu- A diferença entre as mulheres, reclamada, num
IUdb.
primeiro momento, pelas mulheres de cor,i foi, por sua
E necessário, então, aprofundarmos um pouco vez, desencadeadora de debates e rupturas no interior
essa questão. Nos discursos atuais, o apelo à diferença do movimento feminista. Com o acréscimo dos questio-
está se tornando quase um lugar comum (o que já nos namentos trazidos pelas mulheres lésbicas, os debates
leva a sermos cautelosas/os,desconíiando de seu uso tornaram-se ainda mais complexos, acentuando a diver-
irrestrito). Certamente o caráter político que a questão sidade de histórias, de experiências e de reivindicações
teve (e tem) no âmbito dos Estudos Feministas e dos das muitas (e diferentes) mulheres.
Estudos Culturais não pode ser o mesmo com que ela é Mas o que estavacentralmente implicado em
admitida e repetida pelos setoresmais tradicionais, pela
todas essasdiscussõeseram as relações de poder que ali
média ou até pela nova direita.
se construíam e se pretendiam fixar. Importava saber

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ição da diferença está se7npreimplicada em relações de
quem definia a diferença, quem era considerada dife-
poder, a diferença é nomeada a pa7"tÍrde um determi-
rente, o que significavaser diferente. O que estavaem
nado lugar que se coloca como referência.
jogo, de fato, eram des guaZ(ides.
Estudiosas e estudiosos ligados aos estudos lés-
A esse propósito, Joan Scott (1988) aponta o
bicos, estudosde etnia e de raça têm contribuído parti-
equívoco de se conceber o par "diferença-igualdade
cularmente para a teorização e também para a propo-
como um "dilema", ao qual as feministas teriam neces-
sição de práticas políticas e educativas atentas à dize.
sariamente de se entregar. Lembra que a luta primeira
rença. Suas contribuições vêm representando uma
se centrava na reivindicação da igualdade entre as
importante oxigenaçãodos Estudos Feministas,implo-
mulheres e os homens (igualdade social, política, eco-
dindo suas característicasiniciais de uma construção
nómica). Avançando em suas teorizações, o feminismo
teórica marcadamenteconduzida por mulheres
vai responder à "acusação"da diferença transformando-
brancas, heterossexuais, urbanas e de classe média.
a numa afirmação, ou seja, não apenas reconhecendo
Essasdiscussõestambém representam, é claro, deses-
mas procurando valorizar, positivamente, a diferença
tabilização, e exigem uma capacidade de contínuo
entre mulheres e homens. Críticos do movimento vão,
questionamento e problematização. Isso não é facil-
então, colocar essasduas proposições igualdade ou
mente assimilável por aquelas/es que buscam lidar com
diferença como alternativasinconciliáveis. Afinal,
paradigmaspermanentes, ligados a uma concepção
dizem eles, o que querem as mulheres, o que buscam
mais "dura" de ciência e que desejam operar dessa
afirmar: a igualdade ou a diferença? Scott observa que
forma no campo dos Estudos Feministas.Teresa de
esse desafio representa uma armadilha, é uma "falsa
Lauretis (1986, p. 14) é provocativa a esse respeito:
dicotomia", já que igualdade é um conceito político que
supõe a diferença. Segundo ela, não há sentido em se um quadro de referência feminista que sirva
reivindicar a igualdade para sujeitos que são idênticos, para tudo não existe. Ele tampouco deveria,
ou que sãoos mesmos.Na verdade,reivindica-se que jamais, ser um pacote pronto para usar. Nós preci-
sujeitos diferentes sejam considerados não como idên- samos continuar construindo esse quadro, um
quadro absolutamente flexível e reajustável, a
ticos, mas como equivalentes.
partir da própria experiência das mulheres com
O que Joan procura fazer, com essaargumentação, relação à diferença, a partir de nossa diferença em
é dar sentido a alguns "momentos" e problematizações relaçãoà Mulher e das diferençasentre as
colocadas para e pelos Estudos Feministas. Aqui nos mulheres; diferenças que (...) sãopercebidas como
interessa salientar, acima de tudo, o fato de que a atribu- tendo a ver tanto (ou mais) com a raça, a classeou a
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etnia quanto com o gênero ou a sexualidade per se. dades masculinas saíssem,como numa fábrica de cho-
colate, da ponta de uma esteira". Ao invés disso, Con-
O que venho comentando aqui com relação às mulheres nell pensa na construção da masculinidade como um
também pode ser pensado em relação aos homens. 'projeto" tanto coletivo quanto individual no sen-
Como já observamos,a concepção fortemente polari- tido de que esseé um processo que estácontinuamente
zada dos gêneros esconde a pluralidade existente em
se transformando, afetando e sendo afetado por inú-
cada um dos pólos. Assim, aqueles homens que se
meras instituições e práticas. Sendo assim, o que é
afastam da forma de masculinidade hegemónica são
'normal" e o que é "diferente"?
considerados dtâeí"entes, são representados como o
Quando afirmamos que as identidades de gênero e
outro e, usualmente,experimentampráticasde discri-
as identidades sexuais se constroem em relação, que-
minação ou subordinação.
remos significar algo distinto e mais complexo do que
Robert Connel1 (1995, p. 190) está atento para
uma oposição entre dois pólos; pretendemos dizer que
essas questões, quando se ocupa das "políticas de mas- as várias formas de sexualidade e de gênero sãointerde-
culinidade". Ele comentaque há uma "narrativa con- pendentes,ou seja, afetam umas às outras. Richard
vencional" sobre a maneira como as masculinidades são
Johnson (1996, p. 183) aponta isso, ao sustentar que os
construídas e que se supõe, por essa narrativa, que
conservadores estão corretos quando dizem que a
;toda a cultura tem uma definição da conduta e dos sen-
'celebração" da identidade gay/lésbica afeta a família
timentos apropriadospara os homens". Meninos e (tal como eles a percebem e como a desejariamcon-
rapazes em suamaioria aprenderiam tal conduta e servar). De fato, a crescente exposição pela mídia de
sentimentos e, assim, se afastariam do comportamento
sujeitos homossexuais interfere nas suas representa-
das mulheres. Mas essa seria apenas uma das histórias ções sociais. Mas Richard acrescentam
possíveis. Conforme Connell, "a narrativa convencional
adota uma das formas de masculinidade para definir a Eles (os conservadores) estão errados em apre-
masculinidade em geral". Em outras palavras,o que se sentar isso como uma ameaça. Quem, exatamente,
tem, aqui, seria uma representação do ser homem que é é ameaçado? Devemos sempre policiar os limites
mais visível. No entanto, como ele lembra, essamascu- sexuaise congelar nossasformas de viver? Por que
não podemos ver a diversidade sexual como uma
linidade se produz "juntamente" e "em relação" com
outras masculinidades. Além disso, essa narrativa con- fonte de construção de algumas novas possibili-
dades?
vencional "vê o gênero como um molde social cuja
marca é estampadana criança,como se as personali- Em nossa sociedade, devido à hegemonia branca, mas

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culina, heterossexuale cristã, têm sido nomeadose dizer que:
nomeadas como diferentes aqueles e aquelas que não
As sociedades da modernidade tardia (...) são
compartilham dessesatributos. A atribuição da dife-
caracterizadas pela "diferença"; elas são atraves-
rença é sempre historicamente contingente ela é
sadas por diferentes divisões e antagonismos
dependente de uma situação e de um momento particu-
lares sociais que produzem uma variedade de diferentes
'posições de sujeito" isto é, de identidades
Jonathan Katz (1996, p. 27), em ]ivro no qual busca para osindivíduos.
escrever uma hist(ária da heterossexualidade, aposta
num argumento interessantes De íhto, os sujeitos são, ao mesmo tempo, homens ou
mulheres, de determinada etnia, classe, sexualidade,
A não ser pressionadopor vozes fortes e insis- nacionalidade; são participantes ou não de uma deter-
tentes, não damos nome à norma, ao nozmaZe ao
minada comissãoreligiosa ou de um partido político..
processo social de noríltaZização, muito menos os Essas múltiplas identidades não podem, no entanto, ser
consideramos desconcertantes, objetos de estudo.
A análise do anormal, do di$e7"entee do outro, das percebidas como se fossem "camadas" que se sobre-
culturas da minoria, aparentemente tem desper- põem umas às outras, como se o sujeito fosse se fazendo
tado um interesse muito maior (grifos do autor). 'somando-as" ou agregando-as. Em vez disso, é preciso
notar que elasse interferem mutuamente, searticulam;
E por isso que hoje se escreveuma "História das podem ser contraditórias; provocam, enfim, diferentes
mulheres" e não uma História dos Homens afinal 'posições". Essas distintas posições podem se mostrar
essa última é a História goraz, a História oficial. (Estou conflitantes até mesmo para os próprios sujeitos, fazen-
segura,no entanto, de que é preciso qualificar esse do-os oscilar, deslizar entre elas perceber-se de dis-
interessemaior" a que o autor sereferemele precisa, tintos modos.
necessariamente, ser compreendido como uma atenção Entender dessa forma os efeitos dos vários "marca-
que é dirigida para tudo o que é considerado como exó- dores" sociais obriga-nos a rever uma das idéias mais
tico. como estranho ou alheio. Portanto, esse interesse assentados nas teorias sociais críticas, isto é, a de que há
não pode ser entendidocomo carregadode uma Hirta categor a cenfraZ, fundamental consagrada-
acolhida ou de uma valorização positiva). mente a classesocial que seria a base para a compre-
As contribuições de importantes analistas cultu- ensão de todas as contradições sociais. Se aceitamos
rais são úteis para melhor compreendera questãoda que os sujeitos se constituem em múltiplas identidades,
diferença. Stuart Hall (1992, p. 6) recorre a Laclau para ou se afirmamos que as identidades são sempre par-
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dais, não-unitárias, teremos dificuldade de apontar lutas e solidariedades parciais ou provisórias.
uma identidade explicativa universal. Diferentes situa- Colocar uma única e permanente base para a luta polí-
tica representará, provavelmente, a subordinação ou o
ções mobilizam os sujeitos e os grupos de distintos
modos, provocam alianças e conflitos que nem sempre escamoteamento de outras disputas igualmente signifi-
são passíveis de ser compreendidos a partir de um cativas. As formas de inserção nessas disputas podem,
único móvel central, como o antagonismode classe. também, ser diversaspara cada sujeito que pode
viver instâncias ou situações de subordinação e, ao
Examinando uma situação concreta, em que ques-
mesmo tempo, situações de dominação. Certamente é
tões de classe, gênero e raça pareciam emaranham-se,
possível que um sujeito viva, simultaneamente, várias
diz Stuart Hall (1992, p. 7), reportando-se a Mercer:
condições de subordinação. Seria um tanto simplista,
Nenhuma identidade singular por exemplo, de no entanto, "somar" essas subordinações, pois elas se
classe social podia alinhar todas as diferentes combinam de formas especiaise particulares. Eviden-
identidades com uma "identidade mestra", única,
temente, há histórias mais longas e dolorosas de
abrangente, na qual se pudesse, de forma segura, opressão do que outras. Portanto, serão sempre as con-
basearuma política. As pessoasnão identificam dições históricas específicas que nos permitirão com-
mais seus interesses sociais exclusivamente em
preender melhor, em cada sociedade específica, as rela-
termos de classe;a classenão pode servir como um
ções de poder que estão implicadas nos processos de
dispositivo discursivo ou uma categoria mobiliza-
dora através da qual todos os variados interesses e submetimento dos sujeitos.
todas as variadas identidades da pessoa possam ser Floya Anthias e Nora Yuval Davas (1993, p. 104)
reconciliadas e representadas. De forma cres- lembram que "separar as opressões a nível analítico não
cente, as paisagens políticas do mundo moderno implica que possamosfazer isso facilmente no nível
são saturadas por identificações .rivais e deslo- concreto" (vale lembrar os comentários sobre gênero e
cantes advindos, especialmente, da erosão da sexualidadedo capítulo anterior). Está implícita, aqui, a
;identidade mestra" da classe e da emergência de idéia de que as identidades dos sujeitos não podem ser
novas identidades, pertencentes à nova base polí- entendidas como fixas, estáveis, como "essências
tica definida pelos novos movimentos sociais: o
Numa perspectiva semelhante, Avtar Brah (1992),outra
feminismo, as lutas negras, os movimentos de
estudiosa de gênero, raça e etnia, chama atenção para o
libertação nacional, os movimentos antinucleares
fato de que o termo "negro" não pode ser tomado de um
e ecológicos.
modo essencialista,como se tivesse um único signifi-
As diferentes divisões sociais provocam, então, distintas cado, imediatamente reconhecido por todos/as; "negro:
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adquire diferentes sentidos políticos e culturais em damos tão pouca atenção à questão racial, seja em
diferentes contextos.Diz ela (p. 143): "nossasidenti- nossostrabalhos teóricos, seja em nossaspráticas. Ana-
dades culturais são simultaneamente nossasculturas lisando as produções acadêmicas nacionais e internaci-
em processo, mas elas adquirem significados especí- onais, Sandra assim se manifesta:
ficos num dado contexto'
A maneira como se entrelaçam as diferentes Minha intenção ao tentar estabeleceruma con-
versa entre essasdiversas formas de fazer teoria é
formas de opressão não é, pois, uma equação que possa explicitar minha apostana ídéia de que complexi-
ser resolvida facilmente. "Relações de gênero raciali-
flcar a categoria gênero historicizá-la e politizá-
zadas", "etnicidades generificadas" são apenas algumas la , prestando atenção em nossa análise a outras
das "combinações" que vêm ocupando estudiosas/ose relações de opressão, pode nos abrir caminhos
cujos resultados estão longe de ser previsíveis ou está- sequer imaginados ainda de uma sociedade mais
veis. Ao discutir sexualidadee gênero, Eve Sedgwick igualitária. Para tanto, é preciso considerar gênero
(1993, p. 253) traz um exemplo instigante= ela lembra tanto como uma categoria de análise quanto como
que "o uso do nome de casadapor uma mulher torna uma das formas que relações de opressão assumem
evidente, ao lnes7no fernpo, tanto sua sabor"dÍnação numa sociedade capitalista, racista e colonialista.
como mulher quanto seu priüiZégÍo como uma presu- Todas essas estudiosas e esses estudiosos, ao combi-
mida heterossexual" (grifos meus). Estamos diante, por-
narem o rigor das análises com o entusiasmo das lutas
tanto, de imprevisíveis combinações, de efeitos contra-
sociais,nos fazem pensar que as formas de opressãoe a
ditórios, de identidades múltiplas e transitórias.
instituição das diferenças são muito mais do que temas
Como lembra Avtar Brah (1992, p. 137), essasdife- acadêmicos de ocasião elas se constituem em apaixo-
rentes "estruturas" (ou, se preferirmos, esses vários nante questão política.
;marcadores" ou categorias) classe, raça, gênero,
sexualidade "não podem ser tratadas como 'variáveis Nota
independentes',porque a opressãode cada uma está 1. A expressão "mulheres de cor" -- ainda que problemática
inscrita no interior da outra é constituída pela outra e pretende traduzir coiored toolrzen. Na verdade, o termo não é ade-
constituinte da outra' quado. pois implica que se toma como referência as mulheres
A estudiosa brasileira Sandra Azeredo (1994, p. l)bancas, das quais as oüfrm (Gozara(Z)se distinguiriam. As mulheres
l)rancas que se constituem na "norma" nãoteriam cor. Além
206) fala num tom parecido, quando procura discutir disso também me parece que a expressão"de cor" acabapor se
porque "em um país racista e desigual como o Brasil" constituir num dos disfarces mais comuns do racismo no Brasil
Uma outra tradução para o expressãotem sido "mulheres não-
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brancas" que, como sepercebe,também não seconstitui numa boa
solução

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