Você está na página 1de 4

,

',, ., ..
'· I
1 :· · ,

.,
ódio ,e o pavor, obedecia a
gozo, o homem arrancou a
a, seu corpo, sua cabeça·es-
de dor. A noit~ escura não - ;/

do homem. ~le gozou feito •.

.. Depois tombou sonolento . J.


rtar o corpo para se afastar ,· '
ão. Pressentiu era a arma
o tim foi certéiro e tão pr~ Beijo na face
- .
;·;·.c0NcE1çÃo eyAR_1sro·.- r se matando também. Fu-
. . .
, ·,

....~ n..-.u numa


-
favela darona sul âe Belo
- - quem <lizer? Oque fazer? Só
, ttnru.onte. Teve que conciliar os estu- - ,, a vergonha, o pavor, a dór "'
. 1
.· Jlói ,om o trabalho como empregad_a • mais ~o que a corageryi da
. _ · dclmletlu, até concluir o curso Normal, · 111ais do que a satisfaç~o de
,· m 1971, jll aos 25 anos. Mudou-se então ·a vida. Guardou a semente . · f

'., p1it o Rio de Janeiro, onde passoú num os meses depois, Natalina se
NIM"Uf90 público para o magistério e
ara arrebentar no mundo a
fllllduu l1ttti na UFRJ. #

ara olhar aquele filho e não


dkad• de 1980, entrou em contato nem dela. Estava feliz e só
o Grupo <)uílomblioje. Estreou Sá Praxedes e sorria. Aquela . Salinda tombou s~avemente o rósto e coni as mãos em con- .
1111r1 t'm 1990, com obras eguir comer nunca. Um dia, cha colheu, pela milésima vez, a sensação impregnada do
11• ~rif' Cadernos Negros, a, saíra da cidade onde nas- beijo em sua face. Depois com um gesto lento e cuidadoso,
llbllllr1ult prla organização. . Agora, bem recentemente, abriq as palmas das mãos, contemplando-as. Sim, lá estaya o · ,
o comparsa de um homem vestígio do carinho. Algo tão tênue, como os restos de uma ·
mUteratura Brasileira pela .e o perigo existia, mas estava asa amarela, de uma borboleta-m~nina, que foi atropelada .
ato,• 1>ouu,r1 rm Literatura filho. Um filho que tora con- nos primeiros instantes de seu inàugural voo. Rememorou
,da IH!'II tJnJvNsidade Federal da e da morte. ainda o corpo que um dia antes estivera em ofertório ao · ·. '

seu lado. Tudo parecia um sonho. Os toques aconteceram


.•
carregados de ~utileza. Carinhos inicialmente ex~rimen-
p«tal u romance tados apenas com ·as pontas dos dedos-desejos. Ela estava .
1 JOOJ, abordam aprendendo um novo amor. Um amor que vivia e se fortà- ·
.lnaçlo raclal, leda·na espera do amanhã, que se fazlaJnespe~~n~ . ,,·., .
Óbnfol ..
1oubUcad1
·· '
.,..
. 1;;0NCEIÇÃ,O EV°'RISTO. '-

'~.
nas frinchas de um mom~nto qual uer I • . , , . , , , ,
B!IJO N°' F°'cg
:um Simples piscar de olhos r u q , que s~ reve\ava por ,.
t~de das bordas de um lábi~ / : sorriso ensaiado na me- ' .... '

eu te amo, declaração feita , m' ulll: repetir constante do.' · lhos. Além da ida ao trab~ho, SaUnda não podia sa~ só.
,, .
audível somente para dent
, u1tas vezes em v
f ,
. , ,
oz s11enciosa, Os filhos, sem saber, .tinham sido transformados em vlglas
·f · ro, azendo com q . da _mãe. A viagem .de regresso, que ela fez sozinha, foi con-
ala se expandisse no int . . ue o eco dessa'
, tr~lada desde .o mómento em que deixou a casa da tia. No
. No princípio apren:i~~reme:o do próprio declarante.
principio, logo que começou a ser Vigiada, ç~egou a pen..
mada ao amor ·em · g m e. custé!ra muito. Acostu- ,.
<>vlb.-d · que tudo ou quase tudo pode ser gritado sar que estivesse sofrendo de mania de perseguição. Con-
1 o aos quatro vent S li . , firmou, p~rém, que estav.a sendo seguida, quando, numa
i· ' da ao amor que pede e, os,
, p ª. nda• perdeu o chão., Habitua-
noite, o marido, julgando que ela estivesse dormindo, fala-
f:.. , , ermite testemunhas, inclusive nas
• horas do desamor, viver silent~ tamanha emoção, era como . va alto na sala 'ao lado e sem querer ela ouviu todo o teor da
.,· deglutir a pró · b ·, · · conversa:.. Ele pedia notícias de todos os passos dela; Depois
. _ pna oca, repleta de_fala, desejosa de contar
'• 1 !., . as _glónas amorosas. E por que não gritar, não' pichar pelos a confirmação foi se dando pelas notícias que ele trazia. Ela
r··
muros; não expor em outdoor _a grandeza do sentimentÔ?° - tinha sido vista ·em tal e tal lugar. Salinda entendeu o com-
.• Não, não era a ostentàção que aquele ~mor pedia. o amor portamento do marido. Estava a vigiá-la, mas ao invés de
'--' · pedia o direito de amaf, somente. · · · agir em silêncio, vinha de própria voz alertá-la. Era como se
ele buscasse retardar um encontro com a verdade. ·
-Salinda tentou guardar em si as leÍnoranças e retomar a
Ao's poucos as ameaças feitas pelo martdo, as mais diver-
rotina. Era preciso_vi;er a calma e o ~ésespero como se nada ·,
,.i
.,. - estivesse acontecendo; Havia quase .um ano que a felicidade .
. sificadas e cruéis, foram surgindo. Tomar as crianças, matá-la _
•.{f
. . . \ . , ou suicidar-se deixando uma carta culpando-a. Salinda, por
- lhe era servtda em conta-gotas. Pequenas gotJculas que guar- · ..isso, vinha hã anos adiando um rompimento definitivo com
f ·\j .
. davam a força a parecença dé reservatórios infindos,' de re- eíe. Tinha medo, sentia-se acuada, embora às vezes pensasse
. 'f presas de felicidade inteira. Mesmo estando entupidà de
ale: que elé nunca faria nada, caso ela o deixasse de vez. Apren-
. gna; com uma canção a borbulhar no,peit9, Salinda precisa_va dera, desde então, certas artimanhas, sondava terreno, pro-
·. t . embrutecer o corpo, os olhos, a voz. Estava sendo observada ~rava saídas. Aos poucos foi se fortalecendo, criando defe-
.: ...:.:·
em todos seus movimentos. A vigilância sobre os seus passos
J:

; '
sas, garantindo pelo.menos,o seu espaço íntimo. . , , . . \.
pretendia,·se po~ível, abarcar até seus pensaméntos. FJ-i1; que Tia Vandu, em Chã da Alegria, era única pessoa que adi-
e
,I -~- -, ,., •

.
. até então fora sempre distraída, teve de aprender a pwstar vinhoÜ o sofrimento .cfe Salinda, ·acolheu seu segredo se
. . l- . ·: atenção·a tudo e eÍn todos. A mulher ou homem que estivesse
- tornou çúmplice. Era na casa dà tia que os encontros ac~n- .
!'
· assentado·ao seu lado no ônibus poderia ser o detetive p~r'd- teciam. De noite, depois das crianças, desconhecendo o que
~" J

r ·.. . rular que o seu marido tinha contratado para segui-la. . se passava com a mãe, dormirem, Satlnda, no quarto destt- ;
• ·" "<
_,"'.. -Ao se lembrar do ·m arido, Salinda foi até ao quarto ciesfa- . · nado a ela, podia se dar, receber, se ter e ser para ela mesma ·
'· ··zer à mala, que estava ali aban~onâda desde manhã.,Tinha , . 1 • .··e para mais alguém. Tia Vandu ,êra guardiã do_novo e ·seae-
~ Ido até Chã de Alegria, deixar .às crianças de férlás com a . to amor de Salinda. · . . .,
. tia. .Era 'para ~quela cidade que viajava sempre com os fi-, Salinda desfazia a mala relembrando o seu regresso de
· Chã da Alegria. Voltava p~a casa traz~do lem~ças en-
'

. 52 · -
, .'
•53
.,.: '
: -·
' ' CONCEIÇÃO EVARISTO
. •/

• BEIJO NA FACE
' talhadas na ·· memóri J · ·· · · · ·:
. .. . • . a. ogou al&'1mas roupas no tan ue· - '
- outras, amda um1das do desejo que b·n· q , ,

soltou a voz pelas terras de Chã de Alegria: As crianças àcor- .


· . · ncaya nos corpos
. . ' ~~~tes, para ess~s, e!a inv~tou um esconderijo. Queria a daram ao som da ave-mãe qÜe não estava presa na gaiola.
ç ã? ~o tesouro, que as p~ças mofassem,sob á açãÓ
I • _.:·· _. ---preserva_ A mais velha, menina se matui:ando mulher, .olhou :salinda
· · _do tempo mtimo de sua esperança. · · - . _ _ nos olhos .e sorriu. Ela ieçolhe:u o sorriso da filha e percebeu
. Havia dois tempos fundamentais na vid~ de Salinda: um na atitude da me~iÍla uma possível cumpllcidáde, que e~
p.er~nçosámente guardou e aguardou--poder realizar um dia._
_ ;:, te~~o, em que o marido estava envolvido e cada vez mais ' ·
. . • se dilma e o tempo em que o novo amor se solidificava. Daí e
· .Distraída em desarrumar-a mala em reviver várias iem-
, uns minutos, o homem ~~~garia, poderia vir calmo, amigo ,- -.branças, Salind~ não percebeu o.avançar das horas. Quando
·. . deu por si já era noite. Estranhou o silêncio e a ausência dÕ . ·
como nos ~nnempos qe namoro e ainda durante alguns
-: marido. Ele não tinha ido buscá-la na-rodoviáriá, nías; assim ·
anos de casada. Sim, tinha stdo dele, o lugar do cálido'ámo~ "· • . • • 1 •

que ela chegóu, recebeu um telefonema dele dizendo que ·


- , de adolescente. F(?i ele a primeira pessoa, qu~ a tomoú apta
- ~stava na casa da rnãe.' Ela admirada, gostou. Depois de lon-
e ávida para todos os demais amores que ela ;eio a'ter. Podiá
gos anos; ia poder ficar sozinha. Havia uns cinco anos, desde
chegar também amargo, agr~ssivo, infeli~, querendo a'rra- . ·- que ele desconfiou dela com um colega de trabalho, um in-
nhar a face da felicidade dela. Vinha então com as pergun- · -.. fernb na relação dÓs dois havia se instaurado.-Das perguntas
tas.de sempre: o que ela fizerá durante os 'anos em que, ain• -;_. ,m.aldosas feitas de maneira agressiva surgiu uma -vigilância
da solteiros, teiminar~m o namoro e se separaram? Qrtem'- • \lia:! ,
severé!_e cõnsfante que se transformou em uma quase pri-
era o }tomem, pai da primeira filha dela? Por que depóis · são domiciliar. Éla respondeu com um jogo~aparentemente
. êfe tanto tempo afastada, ela aceitou voltar e se. casar, com - ; passivo. Fingiu ignorar. Era apenas uma estratégia de sobre-
· - ele? E assim aos poucos, Salinda foi pércebendo que riunca_ · . vivência. Ensaiava maneiras de se defender aguardando as
deveria ter assumido novamente uma relação com·ele. Re~ .criança~ crescéssem um pouco mais: Quando foi iniciado o
}}
conhecia, entretanto, que antes, tanto na época ~o namoro · cárceré doméstico, a menina que ele havia assumidÕ como ·
da juventude como na do próprio _casamento, eles haviam filha desde os onze mésês tinha treze anos. '
experimentado tempos felizes. Mas por que o marido estava demorando tanto? Ela co-
- A mala ia sendo d~sfeita lentamente enquanto tempos meçava a se atormentar. O que estava por traz daquela ·au-
distintos amalgamavam-se em suas lembranças. A imagem sência tão silenciosa? O que tinha ac~ntecido? O que estava
. dos filhos ~oltou à sua mente: Estavam de férias, e a melhor _ pàra acontecer? E stia vida se<:_reta?Será que o segredo ha-
.·~ ~•-- companhia para eles no momento era, sém dúvida, a Tia . via sido descoberto de alguma forma? _Salinda tinha viajado
·· ,· ' Vandu; lJm misto d~ tia-avó, Ínãe e amiga. ·A casã seni as
.· crianças tinha o silêncio que brincava matreiramente nos .,
com as ~ianças. Sair com os filhos não levantava suspei- .
ção alguma. E quando' qllalquer desconfi~ça acontecia, o -.
·: cómodos. A ausência de gualquer som transportou-a nova- marido ap~iéava as suas tátiças interrogativ~. As crianças '
. mente • 1
para
.
os• poucos dias .vividos em Chã de Alegria.• No · eram· conclamadas a falar exaustivamente sobre o passeio. ~-
·dia anterior tinha levantado cedo guardando no rosto e no Inocentemente narra~am tudo, felizes por estárein conver- · 1
corpo·as marcas do encontro vividÓ na noite. Feliz,cantou, sando com o pai. .. 1
- ; .·,• ,. ' .,. - , . .
·1 _-
, . ' .
• .1

. ,,,. ..,::.
:i.

-·- ---- .,
... . ,. ." ,'
IJ.r: .'.
. . CONCEIÇÃO EVA,R ISTO

• . I. •
•' 1
-
BEIJO NA FACE -~ ., .
) .

· , , ·. ~alinda se ~embr~u da~ ameaças do marido. ~referiÚ de- i-.


. :: ,sacreditar que ele tivesse coragem suficiente para qu-alquer . · chan?o d~ descuido_dei~-e tia. Disse ainda qÚé não·~ -
, d~sã~. Entretanto, não se tranquilizou, alguma coisa es- , riavê-la nunca mais, mas era bom ela ir se preparando para ·
,_ tav_a acontecendo-: Levantou afllt~ procuraf\do os. cigarros. uma guerra. Não ia matá-la. Não ta cometer sulddlo. Mas la
•· . Buscou uma .caixa f~sforos que deixou cair no chão. o li- . , - disputar ferre0:hmnerite os filhÓs. Ele querla os filhos, todos. .
, gelro barulho da caixa caindo no ~olo retµmbou como uma Ah, queria!... Salinda recebeu·Ó golpe com a cabeça ergui-
.. -bomba at~mlca, e €hã Feliz.se desenhou em sua ment~~ TI- da. Sua voz não podia demonstrar nenhum temor. Batalhas ,
nha ido ao circo ~om as criançàs em um dos dias que ficara· viriam, piores, mais cruéis que ~s anteriores. Sentiu porém .
na casa da tia. Estava mais entusiasmada do qu~ elas. Bem certo alívlq. A verdade tinha sido apresentada, por pior que
cedo, quando a manhã ainda estava no nascedouro, ela go- · fosse a dor. O que fazer? Que·cuidados eprovidências tomar
. zou antecipadamente a doce·aflição que sentiria à tarde ao no momento? A quem recorrer? É as crianças? Não, ela não
· . ·ia desistir delas. Seus filhos eram uma opção qÚe ela fizera
deparar-se tom o equilibrista. N~ circo, ·o momento que Sa-
·:,: ·para s;mpre, Sentiu-se desesperadamente só. Quis ligai para
linda mais gostava, era o de vigiar a acrobacia do bailarino·:
Tia . Vandu, ponderou entretanto que seda melhor esperar
. :. _- na corda_bam~a. Naquele dia, quem se apresent~va era ~ma --:.
11·, _, · •· · um pouco. À .noite ás ' crianças sempre ligavam para casa
-. mulher. Salinda vigiou os passos cambaleantes da moça tefü ·
• . quando estavam por lã. Agora mais do que nunca predsaya ·
•. tando sé aprumar sobre um tão fino e quase imperceptível :' ·• ' do abrigo-coração da velha. . · ·
lio; Ela sabia-que, qualquer passo ein falso, a mulher esta- "
· . Tentando se equilibrar sobre a cior e o susto: Salinda con- .
-. ria chamando a morte. Por um .momento pediu ·para .que· ·', •.· • ' . • I
, · - tempJou-se no espelho. Sabia que ali e~contraria a sua igual,
tudo sé rompesse. E, como equilibrista, eia mesma sentiu
· ·um gost~ de morte na boca, mas logo se recuperou 'njor-
- . ') - bastava o gesto contemplativo de inesma. E no lugar de
' . ·1 ' • \
si • •

sua face,, viu a da outra; Do outro lado, como se verdade


dendo novamente o sabor da vida. Seu hálito ainda estava . i' ' . . fosse, ·o nít/do rosto da amiga surgiu para afirmar a força de
imp.regnado do amor vividÓ na noite anterior. Levãntou~se
um amor entre duas iguais. Mulhe~es, ambas se-pareciam. ·
'acompanhando com gost~ o jogo da dançarina na . fugaz · · Altás, negras e com dezenas de dreads a ·lhes enfeitar a cabe- , - ·
liqha da vida. A mulher cambaleava, titubeava _no espaço:'
.ça. Ambas ave~ fêmeás; ousadas mergulhadoras na própria
•Ia cair? Recuperou-se em seguida, com um passo-gesto _re~. · ·· ·profundeza. E a cada vez que uma mêrgulhavà ria outra,
dorÍdo, próprio e justo, no finp fio éstendi5fo sob seus·pés.
o suave encontro de suas fendas~mulheres engravidava as~ ..
O público aplaudiu. Vozes infantis !1orteavam a alegria dos ·
duas de prazer. É o que parecia pouco, muito se tomava. O .
demais. salinda saiu vitoriosa do circo. · ·
que finito era, se eternizava. E um leve e fugaz beijo na face,
.~ - , · A ausêndà
. e o silêncio
- do marido
,. continuavám. 1 O tele-
de
- sombra rasurada uma asa ~mareia de borboieta, se toma-·
· fone tocou.' Levantou preparada, sabia que era ele. Do outro
•·. lado c1o·fio, com umá voz forçosamente calma, o marido
va urna ~erteza, uma presença incrJstada nos da pele poros
e da memória. · -·· · · -·
.· anunciou

que
já sabiá de tudo. Perguntou se ela·havia es-
I ' • •
q\leddode que os olhos da noite podem não ser somente
es_trel~. Ou_tros olhos existem; humanos vigiam. E riu debo- . :,... ' .
... ,.·,··
/•

., ,;;-_.-
\.. '
• ' ~ ,., 'i.c ' 1

,. j. · - ... "' 1 r e 57

Você também pode gostar