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Seminário Teológico Rhema 1

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 2

1ª – Seção
CONSIDERAÇÕES SOBRE A EXPRESSÃO “LOUVOR E ADORAÇÃO” 3

1. DEFINIÇÕES DAS PALAVRAS ADORAÇÃO E LOUVOR 4


1.1. Definição da palavra Adoração 4
1.1.1. Evolução do significado de Adoração: os significados
hebraico, grego e latim 4
1.1.2. Análise teológica sobre Adoração: o diálogo entre os significados
hebraico, grego e latim 7

1.2. Definição da palavra Louvor 8


1.2.1. Evolução do significado de Louvor: os significados
hebraico e grego 8
1.2.2. Análise teológica sobre Louvor: o diálogo entre os significados
hebraico e grego 9
2ª – Seção
A MÚSICA NO “LOUVOR E NA ADORAÇÃO”: APANHADO BÍBLICO E HISTÓRICO 11

2. A MÚSICA COMO EXPRESSÃO DA ARTE 12


2.1. A arte musical 12

3. A BASE BÍBLICA PARA A MÚSICA NO LOUVOR E NA ADORAÇÃO 13


3.1. A música no Antigo Testamento 13
3.2. A música no Novo Testamento 13

4. A MÚSICA NA IGREJA AO LONGO DA HISTÓRIA 15


4.1. A música do período Patrístico até o ano 580 d.C 15
4.2. A música na Idade Média 16
4.3. A música na Renascença 17
4.4. A música no período da Reforma 18
4.5. A música no período Pós-Reforma 19
4.6. A música no século XIX 19

5. A MÚSICA CRISTÃ NO BRASIL COMO LOUVOR E ADORAÇÃO 21


5.1. A música cristã no Brasil até advento do Neopentecostalismo 21
5.2. A música cristã sob a influência neopentecostal 22
3ª – Seção
A MÚSICA E TEOLOGIA 24

6. A MÚSICA CRISTÃ E A TEOLOGIA NO SÉCULO XX 25


6.1. Distanciamento entre prédica e música 25
6.2. O Marketing e a música cristã 26
6.3. As dificuldades doutrinárias das canções neopentecostais 29
6.4. Termos e expressões indevidas utilizadas pelos ministros de louvor 33
6.5. A música cristã como louvor e adoração 35

CONCLUSÃO 38

Leitura Complementar
CRITÉRIOS PARA ESCOLHA DE REPERTÓRIO DE LOUVOR 39

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 41
Seminário Teológico Rhema 2

INTRODUÇÃO

Em nossos dias é comum ouvirmos a expressão “louvor e adoração”. Frases como “o louvor liberta”,
“adoradores extravagantes”, “ministério levítico”, “louvor profético”, “música de adoração” entre
outras são utilizadas e repetidas sem um exame teológico. Em muitas igrejas os “ministérios de louvor”
associam “louvor” à atividade musical. Para muitos louvar é cantar. Adorar é cantar.

Adorar e louvar são atividades essenciais à vida cristã, portanto, restringir a adoração e o louvor ao
exercício da música, ou de qualquer outra manifestação artística nas reuniões, além de causar confusão
distancia a Igreja do verdadeiro culto ao Senhor.

O crescimento da Igreja brasileira nos últimos vinte anos despertou o interesse do mercado
fonográfico, de editoras, emissoras de TV e rádio. Os cristãos são enxergados como uma oportunidade
financeira. A aceitabilidade de uma canção ou grupo musical evangélico é interpretada como um nicho1
de consumo.

As canções saíram dos templos, invadiram as casas, os ambientes de trabalho e outros espaços cristãos.
O que parecia impossível através da exposição dos sermões, passou a ocorrer informalmente pela
música de “Louvor e adoração”. Daí se pergunta: Quais são as consequências deste movimento?

Inicialmente verificaremos o significado das palavras “louvor e adoração” e as implicações teológicas


destes termos no Antigo e no Novo Testamento. Depois de entender compreender os verbetes,
examinaremos a trajetória da música enquanto expressão cúltica a partir do Antigo Testamento. Então
prosseguiremos o estudo verificando a relação entre as canções e a exposição da palavra nas reuniões
regulares das comunidades cristãs. Algumas canções e expressões, características dos “ministros de
louvor”, serão examinadas sob a ótica do texto bíblico e do contexto teológico. Por fim,
apresentaremos uma definição bíblica de “louvor e adoração”. Em razão dos objetivos, não
detalharemos a história da música ocidental, apenas a visão teológica de alguns líderes cristãos.

Acredita-se que as informações contidas no conteúdo desta apostila servirão para ajudar o estudante a
refletir sobre o culto. Afinal, refletir sobre o culto é refletir sobre exercício da fé. A Igreja de Cristo é
estabelecida na reunião de dois ou três em seu nome. Os dons são compartilhados pelos fiéis para o
crescimento dessa Igreja. Portanto, o “culto racional”, recomendado por Paulo, é a disposição do
cristão de não se conformar com o presente século e renovar sua mente.

1De acordo com o Dicionário Eletrônico Houaiss, o verbete nicho, do ponto de vista do marketing, refere-se ao mercado especializado e que
geralmente oferece novas oportunidades de negócio.
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1ª – Seção

CONSIDERAÇÕES
SOBRE A
EXPRESSÃO
“LOUVOR E ADORAÇÃO”
Seminário Teológico Rhema 4

Capítulo 1
DEFINIÇÕES DAS PALAVRAS ADORAÇÃO E LOUVOR

Congressos, palestras, livros e vídeos são realizados, produzidos e distribuídos nas comunidades cristãs
sobre o tema “Louvor e Adoração”, em que se discute sobre o uso de determinados ritmos ou
instrumentos e posturas de ministração, além de outros tópicos relacionados. Todavia, essa expressão
não é mencionada nenhuma vez na Bíblia.

Separando as palavras verifica-se que “louvor” é registrado 75 vezes no texto bíblico, enquanto
“adoração” se apresenta apenas uma vez, no livro Atos dos Apóstolos 8:272. Assim, para iniciarmos o
estudo desta expressão, examinaremos a origem e a evolução do uso e do significado das palavras
louvor e adoração e o desenvolvimento teológico destes vocábulos.

1.1. Definição da palavra Adoração

O vocábulo “adoração” pode ser entendido como: Ato de adorar. Culto a uma divindade. Culto,
reverência, veneração. Amor excessivo; idolatria. Gosto imoderado de alguma coisa. O verbo “adorar”
expande a compreensão do vocábulo com as expressões: Render culto a (divindade). Reverenciar,
venerar. Amar extremosamente; idolatrar. Ter grande predileção a. Cultuar, reverenciar, venerar. Prestar
culto de adoração. Amar extremamente. Amar-se mutuamente ao extremo3.

1.1.1. Evolução do significado de Adoração: os significados hebraico, grego e latim

Do que foi visto como conceito, junto da investigação da origem da palavra, aprende-se que
“Adoração” é um substantivo feminino oriundo do latim adoratione. É o ato pelo qual reconhecemos a
nossa dependência de Deus4. Mas não fica só nisso; o entendimento teológico mais amplo do vocábulo
exige uma reflexão sobre o percurso semântico da palavra, isto é, o percurso histórico de seus
significados em cada época, a evolução dos conceitos até chegar aos dias de hoje: começando na língua
hebraica, passando pela língua grega e chegando à língua latina.

Ø Adoração no Antigo Testamento: o significado de Adoração no hebraico

No Antigo Testamento a prostração era uma forma de adoração expressa no termo hebraico
hishtahawâh e no grego proskyneo5, manifestando temor reverente, admiração e respeito6. A ênfase da
adoração no Antigo Testamento estava caracteristicamente no coletivo, recaindo sobre a congregação7,

2 Expressão encontrada na versão da Bíblia em português Almeida Corrigida Fiel (ACF)


3 FERREIRA, p.17.
4 WEISZFLOG, p.63.
5 Termo encontrado na Septuaginta, que é a Versão Grega do Antigo Testamento traduzida entre o terceiro e primeiro século a.C em

Alexandria.
6 SHEDD, p.35.
7 Cf. o livro dos Salmos 42:4 e o 1º livro das Crômicas 29:30.
Seminário Teológico Rhema 5

mas havia instâncias de adoração individual8. Pessoas usavam louvor público contido nos Salmos9 para
expressarem seu amor e gratidão a Deus em ato de adoração espiritual10. No cativeiro babilônico a
adoração consistia do Shema11, das orações, e da leitura e exposição das Escrituras.

O trabalho de investigação na língua original revela algumas palavras que conduzem a significados
diferentes para a palavra “adoração”. A palavra hebraica bhôdhâ, significando trabalho efetuado pelos
escravos ou empregados, são associados a hishtahawâh. Neste caso, o conceito essencial de adoração era
o serviço12. Já a palavra sogad, escrita nos textos de Gênesis 18:2 e 33:3, é encontrada como adoração e
junto com hishtahawâh, significa, primariamente, “a inclinação de corpo”. Junto de alguns
complementos, passa a significar “a inclinação de corpo até o chão”. Noutros textos, a palavra qadad,
também era usada sempre em ligação com hishtahawâh significando se “pôr de joelhos” 13.

Em se tratando destas últimas palavras, o estudo sobre a adoração veterotestamentária se torna ainda
mais interessante quando se percebe que os gestos não ocorriam desprovidos de sentido. Ao contrário,
os sacrifícios14, a música e canto de salmos15, e o apelo para a conversão16 estavam ligados ao ato de
adoração 17 que, por sua vez, com o tempo passou a ser classificada como “adoração cultual”.

E detrimento deste tipo de adoração, os profetas compreenderam e começaram e anunciar, como uma
espécie de estágio mais elevado, a “adoração espiritual” 18. Mas esta só será mais bem compreendida e
desenvolvida no Novo Testamento.

Ø Adoração no Novo Testamento: o significado de adoração no grego

No Novo Testamento encontramos duas palavras destinadas a promover um sentido para “adoração”:
latreia e proskyneo.

Assim como no Antigo Testamento, o termo latreia expande no Novo Testamento a compreensão de
adoração para o serviço; só que este é prestado aos próprios semelhantes19. Além de outros textos
bíblicos, Latreia ocorre frequentemente em Lucas, Atos e Hebreus. Trata-se do serviço prestado a

8 Cf. o livro de Gênesis 24:26 e o livro de Êxodo 33:9-34.


9 Cf. o livro dos Salmos 93 e 95 a100.
10 Cf. o livro de Deuteronômio 11:13.
11 Shema significa “Ouça Israel". Trata-se das duas primeiras palavras da seção da Torá que constitui a profissão de fé judaica.
12 SHEDD, p.36.
13 ZIMMERMANN, p.14.
14 Cf. o livros de Deuteronômio 26:10 e o 1º livro de Samuel 1:3.
15 Cf. o 2º livro das Crônicas 29:28.
16 Cf. o livro dos Salmos 95.
17 ZIMMERMANN, op.cit., p.14.
18 Cf. os livros de Isaías 1:1-20 e 29:13; Joel 2:13; Amós 5:21-16; Miquéias 6:6-8; e dos Salmos 40
19 SHEDD, p.36.
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Deus20. Em Hebreus refere-se ao ministério dos sacrifícios levíticos. Também o apóstolo Paulo
apresenta a pregação como culto ou adoração nesta condição de prestar serviço ao próximo21.

Já a palavra proskyneo no Novo Testamento significa prestar um ato cultual de adoração a Deus. No
Antigo Testamento, o evento do profeta Elias no monte Carmelo em posição de prostração colocando
a cabeça entre os joelhos a fim de suplicar a tão desejada chuva22 exemplifica o ato de proskinese.

Proskinese aparece 13 vezes em Mateus, 11 vezes em João e 24 vezes no Apocalipse, enquanto Marcos
registra apenas 2 vezes e Lucas 3 vezes. Mateus adota proskinese como conceito religioso aplicado a
adoração de Jesus. O Apocalipse apresenta a proskinese de Cristo relacionada com o culto celeste. E em
João a adoração de Jesus também é enfatizada, entretanto há uma adequação considerada como uma
novidade.

No capítulo 4, versículo 23 tem-se a expressão “Mas vem a hora, e é agora, em que os verdadeiros
adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade”. Esta adoração é nova, não refere a
transformação da ação exterior do homem em evento interior, como se fazia na adoração cultual desde
o Antigo Testamento.

Ela finalmente confirma os profetas que já tinham colocado a exigência de uma adoração espiritual de
Deus, revelando, ao mesmo tempo, que a natureza de Deus torna-se realidade visível através de Jesus.
Por conseguinte, a “adoração no Espírito e na Verdade” significa a adoração de Deus que se tornou
23
possível pela revelação de Jesus Cristo na hora escatológica. Ele é o “novo templo” em que Deus
pode ser adorado24.

Ø Adoração extra-bíblica: o significado de adoração no latim

Estudo sobre a “adoração” tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, conduziram à tentativa de
prática eclesiástica nos tempos posteriores ao neotestamentário. O termo latino adorare contém as idéias
de orar, de rogar, de venerar, de homenagear25. Note que tal compreensão já demonstra uma tentativa
de mesclar a adoração cultual à adoração espiritual26.

20 Cf. os Evangelhos de Lucas 10:25; Mateus 5:23 e Jo 4:20; e a epístola de Tiago 1:27.
21 Cf. a 2ª epístola de Paulo aos Coríntios 8:18.
22 Cf. o 1º livro dos Reis 18:42.
23 Cf. o Evangelho de João 2:19-22.
24 BAUER, p.19.
25 CHAMPLIN, p.48.
26 Esta observação sobre a adoração cultual e a adoração espiritual é um acréscimo à obra original do autor. Trata-se já de uma

interpretação do significado da palavra adoração em latim, que foi a única informação escrita originalmente.
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1.1.2. Análise teológica sobre Adoração: o diálogo entre os significados hebraico, grego e latim

Obviamente que não existe apenas uma possibilidade de interpretação ou construção teológica sobre os
conceitos apresentados até aqui, muito menos um único jeito e interligar estas definições e suas
implicações. Mas, como também não é possível apresentar todas as teologias sobre o assunto, uma
delas foi escolhida por se compreender que ela é bem esclarecedora.

A definição cultual de Dufour para adoração é:


“A expressão ao mesmo tempo espontânea e consciente, imposta e
desejada, da reação complexa do homem arroubado pela proximidade de
Deus: consciência aguda de sua insignificância e de seu pecado, confusão
silenciosa (Jó 42: 1-6), veneração trêmula (Sl 5:8) e reconhecida (Gn
24:48), homenagem jubilosa (95:1-6) de todo o seu ser” 27.

Dufour acredita que não é possível o ato de adoração destituído de gestos exteriores e que de algum
modo estes gestos exprimem a soberania de Deus sobre sua criação. A prostração antes de ser um gesto
espontâneo é uma atitude imposta pelo que é mais poderoso. Assim, a fim de evitar a violência, o fraco
prefere inclinar-se diante do mais forte e implorar sua graça28. Essa atitude não consiste em
procedimento puramente interior, mas é proveniente da consagração do ser como um todo29.

Inclinar a cabeça, ajoelhar-se e prostrar-se são atos que exibem adoração e mostram o estado de alma,
diante de Deus30. Nos Salmos 94 e 95 a 100, Deus é adorado em vista de sua majestade, poder,
santidade, bondade, retidão e providência em favor dos homens. As palavras gregas gónu e gonupetéo
denotam o ato de ajoelhar. Ajoelhar-se era um ato de humildade, auto-aviltamento e de homenagem31 e
são encontrados em diversos trechos do texto bíblico32.

O livro de Romanos apresenta a vida de oração, louvor e proclamação das boas-novas como “andar no
33
Espírito” . Com base na definição latina, sugere-se que o que está em foco não é uma adoração
espiritual em distinção a uma adoração litúrgica, mas o ministério interior. O indivíduo que nasce do
Espírito é dirigido pelo Espírito e, através de suas expressões externas, oferece a Deus, por meio de
Cristo, uma adoração apropriada e aceitável 34.

27 DUFOUR, p.13.
28 Cf. o 2º livro dos Reis 1:13.
29 DUFOUR, op.cit., p.13.
30 Cf. os livros Êxodo 34:8; 1º Reis 8:54; Gênesis 17:3 e Apocalipse 1:17.
31 CHAMPLIN, p.50.
32 Cf. o livro de Isaías 45:23; os Evangelhos de Lucas 22:41 e Mateus 10:17;17:14 e na epístola de Paulo aos Filipenses 2:10.
33 Cf. a epístola de Paulo aos Romanos 8:1
34 CHAMPLIN, op.cit., p.62.
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Como se pode notar, o sentido da palavra adoração migra de uma ação concreta: “se por de joelhos”,
como manifestação pública de reconhecimento de autoridade divina, expressa em atos de submissão,
para o “serviço cristão”, que é proclamação do evangelho de Cristo. Adoração exige uma expressão
pública de total rendimento ao que é digno de culto. O escritor de Hebreus no capítulo 13, nos
versículos 13 a 15, sintetiza o ato de adorar em sua convocação:

“Saiamos, pois, a ele, fora do arraial, levando o seu vitupério. Na


verdade, não temos aqui cidade permanente, mas buscamos a que há de
vir. Por meio de Jesus, pois, ofereçamos a Deus, sempre, sacrifício de
louvor, que é o fruto de lábios que confessam o seu nome. Não
negligencieis, igualmente, a prática do bem e a mútua cooperação; pois,
com tais sacrifícios, Deus se compraz” 35.

A confissão do nome de Cristo e a prática do bem se tornam atos externos de adoração. Adorar é o
continuo exercício da vida cristã. Assim, “viver para Cristo” e “adorar a Deus” tornam-se expressões
equivalentes.

1.2. Definição da palavra Louvor

Palavras como elogio, gabo, encômio, glorificação e exaltação exprimem o significado geral da palavra
louvor36. Do ponto de vista teológico, dirigir a Deus louvor é reconhecer a grandeza e magnificência
dos seus dons. Forma perfeita de oração. Confissão que proclama o amor de Deus através de Cristo 37.
Esta definição resume o conceito cristão de louvor descrito nas Escrituras.

1.2.1. Evolução do significado de Louvor: os significados hebraico e grego

Proveniente do latim laudare38, a palavra “louvor”, assim como adoração, também possui um percurso
histórico de significados, que é construído dentro do texto bíblico a partir das línguas hebraica e grega
como veremos a seguir.

Ø Louvor no Antigo Testamento: o significado de louvor em hebraico

A septuaginta traduziu a palavra hebraica hálal, “louvar”, do qual dois terços se concentram no livro dos
Salmos, para a palavra grega aineo. A raiz de hálal significa “fazer barulho” nesse caso os sons das
pessoas envolvidas no culto. Traduziu-se também as equivalentes hebraicas bârak, “bendizer”, yâdâh,
“louvar”, “celebrar”, “confessar”, rû, “gritar”, que é o termo que evoca o grito de guerra, shir “cantar”,
shabah, “louvar”, e hâdar, “celebrar”, que é outra raiz que acrescenta as idéias de esplendor de beleza e
de honra.

35 Versão Almeida Corrigida Fiel – ACF.


36 FERREIRA, p.401.
37 HAMELINE, p.1050.
38 WEISZFLOG, p.1279.
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Mas, de todas estas palavras, especificamente, chama-nos a atenção a palavra yâdâh, que era associada
aos movimentos corporais que exprimem louvor, e a palavra Zamar, que indicava o louvor expresso
mediante os cânticos ou instrumentos musicais 39. Provavelmente, estas palavras clarificavam o sentido
de louvor concretizando seu significado e sua prática.

Ø Louvor no Novo Testamento: o significado de louvor no grego

O Novo Testamento exprime louvor pelo verbo grego aineo e o substantivo ainos. E de acordo com a
investigação dos textos na língua original, o sentido de “louvor” ainda é adicionado ou complementado
através das palavras gregas doxazô, “glorificar”, megalunô, “magnificar”, eulogeô, “bendizer”, exomologeomal,
“confessar” adicionam ou complementam. O canto faz parte do louvor através dos verbos adô,
“cantar”, humneô, “cantar um hino ou salmo”.40

Como eco do louvor referente a piedade e ao retorno de Cristo e sua obra, alguns fragmentos de hinos
primitivos foram conservados nos escritos paulinos41, transformando-se em confissão de fé42. No
ambiente do Novo Testamento, o louvor está intimamente ligado à oração, inclusive a de ação de
graças. É a confissão da natureza e das obras de Deus.

O sentido de louvor culmina no reconhecimento dos atributos de Deus e da obra redentora de Cristo.
É uma ação consciente de honrar ao que é digno de honra. É por isso que há muitos trechos
neotestamentários que apresentam exemplos de expressão de alegria através o louvor43. Louvar passa a
ser um privilégio e um dever dos santos44.

1.2.2. Análise teológica sobre Louvor: o diálogo entre os significados hebraico e grego

Assim como foi apresentada uma interpretação teológica para a Adoração, não poderia deixar de ser
apresentada uma interpretação teológica para o Louvor. Então, dando sequência, o mesmo autor que se
expressou sobre a Adoração, expõe, agora, sua compreensão sobre o Louvor, seguido de uma síntese
que mostra as formas de louvor encontradas na Bíblia.

Dufour, não vê distinção entre louvor e ação de graças, pois tais expressões se encontram no mesmo
movimento de alma e, no plano literário, nos mesmos textos despertando manifestações exteriores de
alegria45, sobretudo no culto46.

39 CHAMPLIN, p.906.
40 CHAMPLIN, p.1051.
41 DUFOUR, p.537.
42 Cf. a 1ª carta de Paulo a Timóteo 3:16 e 6:15; e as epístolas de Paulo aos Filipenses 2:5 e aos Efésios 5:14.
43 Cf. o Evangelho de Lucas 1:64, 2:20, 2:28, 18:43, 19:37-38; e o livro de Atos 2:47, 3:8, 16:25.
44 Cf. o Evangelho de João 12:13; a a epístola aos Hebreus 13:15.
45 Cf. o livro de Isaías 42:12; o livro dos Salmos 22:24; o Evangelho de Lucas 15:15-18; o livro de Atos 11:18; e a epístola de Paulo aos

Filipenses 1.11.
46 DUFOUR, op.cit., p.534.
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O louvor pensa mais na pessoa de Deus; é mais teocêntrico, mais perto da adoração, assim, os hinos de
louvor cantam a Deus porque ele é Deus47. Confirmando, então, a teologia de Dufour, o texto bíblico
revela as formas de louvor. O louvor angelical, em que os anjos sentem o dever de louvar a Deus48; o
louvor no livro dos Salmos; os instrumentos musicais como maneira de ajudar o louvor49, onde a
música atinge a mente e a sensibilidade artística; o louvor nos sacrifícios50 e o louvor no Testemunho51
são estas formas.

Enquanto o significado de “adoração” tem como alicerce ações que exprimem a soberania de Deus,
seja por gestos ou exercício da vida cristã, o sentido de “louvor” é expresso na confissão sobre a
grandeza de Deus e suas obras. O ato de adorar e louvar são características inatas daqueles que são
“nascidos de novo”. Diante do poderio de Cristo a Igreja se prostra (adoração) e confessa que ele é
bom (louvor): “Rendei graças ao Senhor, porque ele é bom, e a sua misericórdia dura para sempre” 52.
O Senhor é louvado pelo que é. Louvar é declarar, é o reconhecimento de um coração quebrantado,
alcançado pela graça, diante de seu Criador e Salvador. Não é um movimento orientado pelo medo ou
pelo interesse. Em Cristo, o fiel contempla e bendiz o Pai celestial.

Louvor no livro dos Salmos

Os Salmos tornaram-se ao longo da vida da Igreja a referência como expressão cúltica e poética de louvor. No Antigo
Testamento destinavam-se as ocasiões de culto ou liturgia muito específicas como os cânticos de peregrino cantados ao
subirem o Monte do Templo (Sl 24) ou, em marcha ao redor dos declives brumosos do Sião (Sl 48). De fato, não é evidente
que todos os salmos fossem usados liturgicamente, ou que todos fossem realmente cantados, além dos que apresentam
indicações no texto de instrumentos musicais53 e respostas em antífona54.

O titulo hebraico do livro dos Salmos é Sepher tehillim, “Livro de Louvores”, substantivo derivado de hálal “louvar”
conhecido na forma de aleluia “louvai o Senhor” destacando-se os cinco poemas de aleluia (Sl 146-150). Apesar da ênfase de
louvor mais de um terço dos poemas são de “súplicas”, coletivas ou individuais. Há gêneros menores como: salmos de
sabedoria (Sl 1; 37), monárquicos (Sl 21; 72), peregrino (Sl 82), históricos (Sl 68; 78) e profissão de fé (Sl 23; 62). A
Septuaginta adotou o termo Psalmoi “poemas cantados” com acompanhamento de instrumento musicais e esta palavra
tornou base para os termos “Saltério” e “Salmo” em português 55.

Os salmos de ação de graças ou louvor são seguintes: 8;18;19;29;30;32-34; 36;40; 41; 66; 103-106; 111; 113; 116; 117; 124;
129; 135; 136; 138; 139; 146-148;150. Os salmos de entronização referem-se ao governo soberano de Deus (47; 93; 96-99).

47 DUFOUR, p.535.
48 Cf. o livro dos Salmos 103:20; o Evangelho de Lucas 2:13-14; e o livro do Apocalipse 5:11-12.
49 Cf. o livro dos Salmos 150:3-5 e 104:33.
50 Cf. o livro de Levítico 7:13 e a epístola de Paulo aos Romanos 12:1.
51 Cf. o livro de Salmos 66:16.
52 Salmo 107:1 na versão ARA – Almeida Revista e Atualizada.
53 ALTER, p.166.
54 Uma peça musical executada por dois coros semi-independentes, interagindo um com o outro, às vezes cantando frases alternadas.
55 NELSON, p.150.
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2ª – Seção

A MÚSICA NO
“LOUVOR E NA ADORAÇÃO”:
APANHADO
BÍBLICO E HISTÓRICO
Seminário Teológico Rhema 12

Capítulo 2
A MÚSICA COMO EXPRESSÃO DA ARTE

Como vimos no capítulo anterior “Louvor” e a “Adoração” são características da vida cristã. O louvor
pode ser expresso pelas manifestações artísticas do “bem fazer”, pelas ações cotidianas, realizadas com
excelência e dedicadas ao que é merecedor de ser louvado e digno de ser adorado, isto é, Deus.

E já que o louvor pode ser expresso pelas manifestações artísticas, a mais conhecida e usada de todas é
a música. Este capítulo dedica a pequenas reflexões filosóficas e teológicas sobre a música como meio
de realçar a grandeza desta arte e como ela penetra na alma humana.

2.1. A arte musical

A palavra música é de origem grega, mousiké, compreendia o conjunto de atividades como poesia, dança
e ginástica. O estudo sobre a origem e a evolução do significado da palavra música associa mousiké com
as musas, deusas protetoras da educação, da poesia e da cultura geral. A palavra mousa, de onde provém
mousiké é associada ao verbo manthanein, “aprender”, que é o verbo de onde origina a palavra
“matemática”.

Platão, filósofo grego, 427-347 a.C, atribuía a música a capacidade de acalmar as perturbações da alma:

“... a música não foi concedida aos homens pelos deuses imortais com o
único fim de lhes deleitar agradavelmente os sentido, mas assim,
sobretudo, para acalmar as perturbações das suas almas e os movimentos
tumultuosos que, necessariamente, experimenta um corpo, como o
nosso, cheio de imperfeições”.56

O filósofo grego, Aristóteles, 384-332 a.C, considerava a música necessária para a formação do caráter
sendo imprescindível seu ensino as crianças. Os chineses viam na música uma forma de ensinar a
prática do bem e de purificar os pensamentos. Entre os hebreus, a música estava presente em suas
festividades e possuía função educativa.

Ronald Allen e Godon Borror alegam que a arte, em todas as formas, pode ajudar-nos a perceber a
natureza de Deus. Eles vão além e afirmam que a arte ajuda-nos também a amar a Deus de maneira
mais completa. Eles citam William Temple, último Bispo da Cantuária em sua afirmação de que a
imaginação é purificada quando se contempla a beleza de Deus57.

“adorar é despertar a consciência com a santidade de Deus, alimentar a


mente com a verdade de Deus, purificar a imaginação com a beleza de
Deus, abrir o coração para o amor de Deus e devotar a vontade ao
propósito de Deus” 58.

56 PORTO, p.33.
57 ALLEN e BORROR apud ANDRADE.
58 ANDRADE, p.51.
Seminário Teológico Rhema 13

Capítulo 3
A BASE BÍBLICA PARA A MÚSICA NO LOUVOR E NA ADORAÇÃO

3.1. A música no Antigo Testamento

Encontramos no Antigo Testamento muitas passagens referentes à música, instrumentos musicais e


canto. E o que se percebe é que há dois momentos para a música: no primeiro momento a música não
está vinculada à necessidade de culto e muito menos possui um viés doutrinário; já no segundo
momento, a música está estabelecida como manifestação cultual e com viés doutrinário.

A primeira referência a um músico na Bíblia encontra-se em Gn 4:21: “O nome do seu irmão era Jubal;
este foi o pai de todos os que tocam harpa e flauta”. Esta citação e as posteriores, como por exemplo,
as referentes a Moisés e Miriã59 não se aplicam ainda a música cultual, mas são provenientes das
manifestações de alegria e regozijo, pelas vitórias do povo de Israel. Claramente se percebe que não é
possível associar os eventos musicais descritos no texto bíblico, ao uso regular da música nas atividades
cotidianas do tabernáculo.

Mas, com o tempo ocorre a utilização da música no tabernáculo e posteriormente no templo. Um


exemplo disso está no registro encontrado nos livros das Crônicas.

Antes do relato do cronista, os levitas eram citados desempenhando papéis de apoio, segurança e
manutenção do tabernáculo. Então, surge o rei Davi, sendo descrito como o organizador da música no
tabernáculo 60. O cronista detalha quais famílias entre os levitas estavam incumbidas de cantar e tocar
em adoração ao Senhor. O texto veterotestamentário também apresenta os turnos de cantores e a
forma de convivência entre mestres e aprendizes.

Nos eventos posteriores a monarquia, Esdras ao retornar do cativeiro babilônico à Jerusalém tinha a
incumbência de reconstruir o templo e reestruturar o culto. A ordem cúltica fora tão importante que
definir o papel dos levitas era extremamente necessário para a continuidade do culto em Jerusalém.

O livro de Salmos é outra evidência, sobre os levitas dedicados a música, onde os nomes dos principais
mestres são citados.

3.2. A música no Novo Testamento

No Novo Testamento Paulo alude ao cântico de Salmos em uma de suas epístolas aos coríntios.
Primitivos hinos cristãos são percebidos em trechos de suas cartas61. É bem possível que o saltério

59 Cf. o livro de Deuteronômio 31:19; 32 e o livro de Êxodo 15.


60 Cf. o 1º livro das Crônicas 23:5.
61 Cf. a epístola de Paulo aos Filipenses 2:6 e na 1ª carta de Paulo a Timóteo 3:16.
Seminário Teológico Rhema 14

fosse o hinário da Igreja Primitiva, embora Plínio e Trajano refiram-se a hinos cristológicos, dando a
entender que foram compostos novos hinos62.

Há poucos relatos acerca do canto no Novo Testamento principalmente na vida da Igreja primitiva
como: (Mc 14:26) “... tendo cantado um hino ...”; (At 16:25) “... Paulo e Silas oravam e cantavam”;
(1Co 14:26) “ ... quando vos reunis, um tem salmo, outro doutrina ...”; (Ef 5:19) “falando entre vós
com salmos, entoando e louvando de coração ao Senhor com hinos e cânticos espirituais”; (Cl 3:16)
“louvando a Deus, com salmos, e hinos, e cânticos espirituais”. Nota-se, porém, que os textos citados
não esclarecem o papel ministerial da música na Igreja. Cantar era uma ação natural no culto,
juntamente com a oração sem maiores elaborações técnicas ou litúrgicas.

62 CHAMPLIN, p.60.
Seminário Teológico Rhema 15

Capítulo 4
A MÚSICA NA IGREJA AO LONGO DA HISTÓRIA

Na história da Igreja a música se destaca entre as manifestações artísticas a serviço do culto. Muitos
cristãos confundem “louvor e adoração” com música cantada. Para revermos este conceito veremos um
breve levantamento de informações e históricas sobre a música, seguido do relato sobre o uso da
música nos cultos judaico e cristão.

4.1. A música do período Patrístico até o ano 580 d.C

O termo “música” que pertencente à teoria greco-latina não é empregado pelos autores cristãos antes
Cassiodoro (485-580 d.C.) introduzi-la nos ambientes clericais e monásticos. No começo da vida da
Igreja não há registro de aparato musical do tipo cantores, dançarinos e instrumentistas. O espaço
doméstico dos membros da comunidade e a clandestinidade do movimento cristão não permitiam tais
manifestações. Tertuliano testemunha a atividade hinódica espontânea e improvisada, onde “cada
indivíduo é convidado a cantar a Deus, no meio da assembléia, um canto tirado das Escrituras ou de
sua própria inspiração”.63

Escritores cristãos como Clemente de Alexandria (150-220 d.C.), Basílio (330-378 d.C.), João
Crisóstomo (345-407 d.C.) e Jerônimo (340-420 d.C.) viam no canto um instrumento de propagação da
fé, colaborando para o culto de Deus, tornando imprescindível para o serviço religioso. Porém, os
cristãos deste período, influenciados pelo platonismo, resistiam à poesia e à música por considerá-las
indignas de uma vida virtuosa e reta.64 Mais tarde, Agostinho demonstrou hesitação sobre a recepção
pela Igreja de uma arte tão frívola ou temível como o canto, procurando estabelecer a condução a um
“canto novo”, isto é, uma atitude propriamente cristã diante da vida e na renovação como uma maneira
feliz de viver segundo a graça. Apesar de não ter sido o primeiro a propor isso.

Este pensamento já era anteriormente praticado por Clemente de Alexandria (212 d.C). Ele entendia
que a arte musical não possuía em si nenhum poder direto de salvação, tampouco o poder de
influenciar a divindade. A ação do Espirito Santo deveria ser relacionada a uma nova música, o laus
vocalis “louvor vocal”. Clemente rejeitava tudo que pudesse se aproximar do teatro sagrado romano65 ou
da embriaguez báquica66. Outro pensador cristão, Atanásio, atribuiu a recitação melodiosa dos salmos
um efeito apaziguador.

63 HAMELINE, p.1216.
64 QUASTEN, apud HAMELINE, 2004. p.1216.
65 LACOSTE, p.1217
66 Festas dedicadas ao deus grego Baco (Dionísio para os Romanos). Era o deus do vinho, dos excessos sexuais e da natureza.
Seminário Teológico Rhema 16

A rejeição da música no culto na forma conhecida pelos cristãos do 2º século apoiava-se em não
permitir:

§ Atribuir à arte ação constrangedora sobre as forças naturais e sobrenaturais;

§ Construir argumentos de tendência gnóstica em ligar as formas musicais (escalas, números, ritmos) com poder de
iluminação e acesso ao conhecimento divino;

§ Associar as práticas musicais ao desregramento dos modos, embriaguez, frenezi, estados-limites, transes.

Os cristãos estavam em processo de definição do papel do canto (música, arte) nos cultos tendo o
cuidado de não se contaminarem com a cultura romana. Os sangrentos jogos do circo romano eram
precedidos por fanfarras, gritos e estandartes, o que levou a execração de tais manifestações sonoras no
culto67.

A expressão “cantai e celebrai o Senhor de todo vosso coração”, in cordibus vestris encontrada na epístola
de Paulo aos Efésios 5:19, levou ao conceito de união do coração e da voz. A simplicidade cristã não
poderia tomar de empréstimo o encantamento de suas melodias a uma arte teatral e vã68.

Isidoro de Sevilha resume o papel do cantor nas seguintes palavras:


“Não fará aparecer uma arte de intérprete, mas manifestará em seu
desdobramento musical uma verdadeira simplicidade cristã. Não sentirá a
ostentação própria dos músicos nem da arte teatral, mas operará, antes,
em seus ouvintes um verdadeiro enternecimento do coração” 69.

4.2. A música na Idade Média

Na transição da Antiguidade para a Idade média os cristãos tiveram que tomar posição quanto às
definições sobre artes e a beleza. A Bíblia não oferecia nenhum esclarecimento objetivo acerca destes
temas. A beleza que antes era vinculada à natureza, pelos gregos e romanos, passou a ser entendida
como divina, perfeita, espiritual e suprassensível. Assim, durante a Idade Média a música constituía um
ramo da filosofia e as artes deveriam representar a grandeza divina no lugar da aparência fugidia,
efêmera, passageira das coisas que nos rodeiam70.

O clero via o desenvolvimento instrumental como desfavorável a prática religiosa, pois poderia
despertar o sensualismo e a hipocrisia. Assim, priorizou-se a música vocal, expulsando os instrumentos
musicais do culto. A citação de Agostinho exemplifica a dificuldade da época de se estabelecer a relação
entre fé e “prazer musical” 71:

67 LACOSTE, p.1217.
68 Ibidem, p.1218.
69 Ibidem, p.1220.
70 TOMAS, p.31.
71 Talvez o aluno se confunda com a menção de Agostinho no período medieval. O que ocorre, na verdade, é que não há uma

preocupação em definir uma data precisa para a divisão do final da Idade Antiga e do período Patrístico e início da Idade Média. Com
isso, Agostinho é citado por alguns autores como o último Pai da Igreja e marco do fim da Idade Antiga, e por outros, Agostinho já é
citado como já pertencente ao período medieval.
Seminário Teológico Rhema 17

“Os prazeres do ouvido prendem-me e subjugam-me com mais


tenacidade. Mas Vós me desligastes deles, libertando-me. Confesso que
ainda agora encontro algum descanso nos cânticos que as Vossas
palavras vivificam, quando são entoadas com suavidade e arte. Não digo
que fique preso por eles. Mas custa-me deixa-los quando quero (...)” 72.

Agostinho relacionava à música a faculdade intelectual e não a instintos e sentidos. Ele a denominava
como “a ciência do bem medir”, devido à influência de Pitágoras no pensamento medieval, que atribui
à música a excelência da matemática. O ato de reconhecer auditivamente as proporções entre os
intervalos e os tempos musicais em uma música estabelecia seu padrão beleza. Este pensamento
predominou na estética musical religiosa.

4.3. A música na Renascença

A Renascença foi um movimento ocorrido entre o fim do século XIV e por todo o século XV, nascido
na Itália, na cidade de Florença, ainda na Idade Média. O interesse do homem renascentista pela
Antiguidade era diferente do restante dos eruditos medievais. Chama-se renascimento o
desenvolvimento que tiveram as letras, as ciências e as artes inspiradas nos autores gregos e romanos.

No renascimento, o homem é colocado como centro de todas as coisas. Este pensamento trouxe
grandes mudanças para a arte. Figuras como Gutemberg (1398-1468), Leonardo da Vinci (1452-1519),
Maquiavel (1469-1527), Lutero (1483- 1546) e Galileu (1546-1642) são os principais vultos deste
movimento73.

No campo da música o grande destaque se deu na Polifonia74, tendo como expoente os compositores
Palestrina (1525-1594) e Josquin Des Prés (1450-1521). O estilo elaborado acabaria dificultando a
compreensão dos ouvintes leigos e permitindo o advento do canto congregacional luterano e os corais
do compositor Johann Sebastian Bach (1685-1750).

No culto católico romano a missa era executada em elaborado estilo polifônico divida em duas etapas:
§ Ordinário: Kyrie eleison (expressão cuja tradução é “Senhor tende piedade de nós”); Glória (Glória a Deus nas
alturas); Credo (Creio em um só Deus criador do céu e da terra); Sanctus (Santo, Santo, Santo é o Senhor Deus do
Universo); Agnus Dei (expressão cuja tradução é “Cordeiro de Deus”).

§ Próprio: parte da missa cujos textos seguiam as festas do ano litúrgico 75.

E importante é ressaltar que a Igreja era a principal patrocinadora das composições musicais deste
período. Assim, os grandes mestres da música renascentista escreviam peças de alta qualidade para o

72 AGOSTINHO, apud TOMAS, 2005. p.33.


73 MELLO, p.24.
74 Combinação de duas ou mais melodias cantadas simultaneamente pelo coro.
75 MELLO, p.25.
Seminário Teológico Rhema 18

culto. Os coros renascentistas experimentavam todas as inovações técnicas que estes compositores
pesquisavam o que levou aos poucos o distanciamento da compreensão musical pelos fiéis da Igreja.

4.4. A música no período da Reforma

Lutero apreciava a arte musical e considerava:


“A música uma arte acima das outras e uma disciplina que torna as
pessoas mais paciente e doces, mais modestas e razoáveis. Ela é um dom
de Deus e não dos homens. Com ela se esquecem da cólera e todos os
vícios. Por isso, não temo afirmar que depois da teologia nenhuma arte
pode ser equiparada a música”.76

O reformador alemão referia-se a música de boa qualidade como veículo eficiente para explicação do texto.
Serva, e não espetáculo por si mesma. Sua posição refletia o pensamento da época: música boa agradava
a Deus, música ruim agradava a Satanás, mesmo que não tivesse associada ao culto. A boa música
poderia fixar as verdades teológicas anunciadas. A música era um presente divino, donum divinum et
excellentissimum, dado aos homens para a união dos sons vocálicos, vox, à palavra, sermo. Assim, o canto
permitia que o homem adorasse a Deus 77.

João Calvino, reformador protestante, acreditava que a música inflamava o coração humano com zelo
espiritual. Recrutou músicos para a Igreja de Genebra para a produção de novas melodias para
acompanhamento dos salmos. O canto era destinado a congregação, sendo simples, não requerendo
treinamento ou habilidade de quem cantasse e em uníssono na igreja. O cântico de salmos na igreja de
Genebra era encorajado como instrumento de louvor e meio de alcançar um culto “comum” 78. Uma
das marcas do culto reformado era a racionalidade.

O canto congregacional era à capella79 e o órgão de tubos foi abolido devido a sua identificação com a
liturgia católica romana. Além de adotar o canto do livro dos Salmos, a igreja de Genebra fomentou o
aprendizado musical em seus cultos para as crianças. A estratégia era simples, a criança aprendia cantar
os salmos e nos cultos familiares auxiliava a fixação destas doutrinas para seus pais, grande maioria sem
acesso a leitura.

Como o conceito de música sacra no barroco estava associado à perfeição métrica de suas estruturas e a
compreensão do texto, os reformadores não sentiam constrangidos em utilizar canções populares para
os textos protestantes.

76 MORAES, apud ANDRADE, 2005. p.32.


77 MODULO, p.1.
78 SILVA, p.4.
79 Sem o uso de instrumentos musicais.
Seminário Teológico Rhema 19

4.5. A música no período Pós-Reforma

Nos séculos XVI a XVIII a definição de qualidade era simples: bom ou mau. A música servia para a
recreação sadia da alma. “Quem deseja, na sua profissão de músico, ter a graça de Deus e uma
consciência limpa, não desonra esta grande dádiva de Deus, pelo seu abuso”.80

No período barroco, “boa música” era associada ao princípio da ordem e do número, sendo racional e
intelectualmente decodificada. A música podia até representar o cosmo. Em 1707, Andreas
Werckmeister orientava que as proporções musicais são perfeitas e assim que o intelecto podia
compreender. Mas se o intelecto não compreendia, mas se confundia, era abominável81.

Bach, músico alemão luterano, escrevia suas músicas para agradar a Deus, baseada no princípio do
número (proporcionalidade rítmica, melódica e harmônica) representando cada palavra, quando música
vocal. Bach utilizava no final de suas obras a expressão soli Deo Gloria82, “S.D.G”. A qualidade da música
sacra barroca servia de modelo para a música secular.

4.6. A música no século XIX

É o século do materialismo e do material, da declaração da morte de Deus. O século do cidadão e de


sua arrogância. O século do artista e do seu atrevimento. O século das Nações e da soberba. A arte, em
geral, e também a música, torna-se destinada e produzida para uma burguesia intelectualizada. Essa
nova classe sócio-cultural trazia exigências e pretensões de gosto extremamente duvidosas83.

O aprimoramento técnico e uma espécie de pensamento tecnicista do período refletem-se na execução


da música, fazendo florescer o virtuosismo instrumental. Nasce o Conservatoire National de Musique em
Paris, na França, em fins do século dezoito, e em 1822 a Royal Academy of Music, na Inglaterra84.

A Arte começa a ser considerada superior e é destinada a um público “selecionado”, “iniciado em seus
mistérios”, exclusivista e, por isso mesmo, supérfluo, dispensável. O compositor anterior ao século
dezenove era um artesão, um artífice, como eram o ferreiro ou o vidreiro. O produto do seu trabalho
era consumido pelas pessoas da sua própria comunidade. O compositor do século dezenove trabalha
não mais a serviço de um aristocrata ou de uma instituição, como o Estado ou a própria Igreja, mas
para um ouvinte desconhecido, para um público. O ser humano que sabe compor músicas passa a ser
considerado uma espécie de “ente superior”; um “profeta” na opinião de Schumann e dos seus

80 NIEDT apud MODULO, p.2.


81 WERCKMEISTER, apud MODULO, p.4.
82 Glória somente a Deus.
83 MODULO, p.1
84 Ibidem, p.1.
Seminário Teológico Rhema 20

admiradores; um “verdadeiro Sacerdote da sua Arte”, segundo Carl Maria von Weber; um artista, com
toda a conotação negativa que o termo também podia trazer consigo85.

A partir da mudança do conceito de Arte, a música é fracionada em música de concerto (erudita ou


popularmente chamada de clássica) e música popular (pop). A primeira para os ouvidos eleitos e a
segunda para o povo. Se considerarmos que antes do século dezenove, a música era divida em: música
boa e música ruim, a própria música sacra também sofreu com o novo conceito. A Igreja via a música
como serva do texto, o fiel veículo para a exposição, o explicatio textus. Temos assim, mais uma divisão:
música sacra e música de concerto. Com isso, a cisão torna-se tripartida se estabelecendo no final
como: música Popular, música Sacra e música Erudita.

A presença da música no culto cristão e sua influência são temas discutidos desde o início da era cristã.
Pensadores cristãos, do segundo século, influenciados pelo pensamento grego, viam perigos no uso da
música na liturgia cristã. Apesar das ressalvas a música foi admitida no culto. Na reforma a música além
de elemento de louvor, ganhou o papel de veículo de disseminação do movimento protestante. E no
século dezenove, a música sofreu influência do materialismo e iniciou um distanciamento dos
compositores de maior expressão, que começavam a produzir música para as “elites” daquele tempo.
Era o início do declínio da produção das grandes composições sacras e a divisão da música em três
modalidades: sacra, erudita e popular. Esta divisão não se parece ou não nos lembra, ainda que
longinquamente, com a divisão moderna e música sagrada, popular e profana? Pense nisto!

85 MODULO, p.2.
Seminário Teológico Rhema 21

Capítulo 5
A MÚSICA CRISTÃ NO BRASIL COMO LOUVOR E ADORAÇÃO

5.1. A música cristã no Brasil até advento do Neopentecostalismo86

As notícias sobre os cânticos entoados por protestantes nos dois primeiros séculos do Brasil são apenas
dados históricos. Em 1557, chegou ao Rio de Janeiro um pequeno grupo de protestantes reformados,
integrantes da expedição chefiada por Nicolau Durand de Villegaignon. O primeiro culto evangélico
aconteceu no dia 10 de março de 1557, dirigido pelo pastor Pedro Richier. Unidos, cantaram o Salmo 5
de acordo com a metrificação de Clement Marot87.

Até o século XIX música no Brasil seguia os moldes europeus sob a influência católica88. Os
missionários que aqui chegaram, não trouxeram apenas o evangelho, mas os princípios de suas
denominações de origem. Simonton desembarca em 1859 no Rio de Janeiro, trazendo em sua bagagem
as sementes do presbiterianismo. Com os missionários chegam os primeiros hinários, muitos deles
composições típicas do século dezenove. A gospel song (“a canção evangélica”)89 tornou-se o estilo mais
cantado e, consequentemente, mais conhecido e apreciado pela nascente igreja evangélica brasileira,
tornando-se o estilo litúrgico por excelência. Aqueles sons, nunca ouvidos anteriormente, foram
assimilados pelos primeiros brasileiros convertidos como música sacra; como única e verdadeira
música de igreja. De fato, ela era: 1) diferente da música profana conhecida em nosso país naquela
época; 2) tocada em instrumentos diferentes dos usados fora da igreja, exatamente os harmônios
trazidos pelos próprios missionários e 3) um bom veículo para os textos aos quais estava associada.
Estas três características juntas são suficientes para conceituar Música Sacra para um determinado
grupo sócio cultural religioso90.

Como o século dezenove também foi o século dos avivamentos, Moody e Finney inauguraram um
estilo próprio de evangelismo. Foi em função destas campanhas evangelísticas que nasceu o estilo
musical gospel song. O objetivo do gênero era sensibilizar os grandes auditórios. Este gênero não tinha
compromisso com arte musical nos moldes anteriores de adoração. Tecnicamente se alinhava a com a
música mais popular da época. A característica dessa “nova canção evangélica” era a melodia simples e
intuitiva e facilmente aprendida pela massa. O estilo era sempre romântico e emotivo. Os textos eram
de caráter pessoal e emocional, raramente meramente racional. É a primeira vez em toda a história da

86 Igrejas oriundas do pentecostalismo clássico. As principais representantes neopentecostais são: Igreja Universal do Reino de Deus;
Igreja Internacional da Graça de Deus e Igreja Renascer em Cristo.
87 MONTEIRO, p.82.
88 O objetivo do trabalho não permite aprofundarmos nas composições sacras no Brasil colonial. A música praticada no Brasil, apesar de

composição elaborada, seguia os ritos católicos europeus.


89 Tradução acrescentada ao texto original.
90 MODULO, p.7.
Seminário Teológico Rhema 22

música ocidental que a música sacra destina-se ao homem, compromete-se com o público, é dirigida a
ele. Até então, a música da igreja era cantada e tocada para Deus91.

No Antigo Testamento e início do cristianismo, cantavam-se os salmos e hinos de adoração a Deus. A


partir do século seis, a música gregoriana, também cantava para Deus. Na Reforma, o coral alemão,
vinha especialmente com finalidades doutrinárias ensinando os dogmas e fixando as doutrinas
protestantes. O hinário de Calvino, o Saltério de Genebra, era formado pelos 150 Salmos metrificados,
e depois musicados por Louis Bourgeois, um dos melhores músicos da corte francesa da época. Eram
novamente os velhos salmos e, como antes, cantavam para Deus. É só a partir de século dezenove que
o alvo da canção sacra é o homem92.

A gospel song era composta para ouvidos e emoções humanas, comprometida com o ser humano. Não
tinha mais que ser diferente ou melhor que a música profana. A música chamada erudita já se afastara
do povo, ganhara status de arte superior e especializada, para um público selecionado. Assim, a música
que se faz para o culto é tecnicamente idêntica à do bar ou do clube93.

5.2. A música cristã sob a influência neopentecostal

O movimento pentecostal iniciou em 1906 nos Estados Unidos e o movimento neopentecostal 60 anos
depois. No Brasil, na década de 1950 iniciam-se os movimentos pentecostais e a partir da década de
1970 iniciam-se os movimentos neopentecostais, que ganham ainda mais espaço junto às denominações
evangélicas brasileiras na década de 1980.

Alguém já disse, criticando e ironizando ao mesmo tempo a situação, que o Evangelho nasce na
Alemanha, se aperfeiçoa na Inglaterra, se distorce nos EUA e depois vem para o Brasil 94! Obviamente
que não é possível generalizar e afirmar que não existe nada de proveitoso tanto no movimento
pentecostal quanto no movimento neopentecostal, entretanto há algumas propostas da teologia
neopentecostal que são sustentadas por argumentos pessoais, visões e interpretações únicas, nunca
mencionadas na Bíblia ou registradas na história da Igreja. “Revelações especiais” e “novas unções”
quando defrontadas com a interpretação bíblica, norteada pelos princípios da hermenêutica95 e
exegese96 não apresentam consistência e tendem ao antropocentrismo e à heresia.

Como já mencionado, as observações feitas não tem o intuito de desmerecer ou desrespeitar o


pentecostalismo ou o neopentecostalismo. Entretanto, a própria história revela o quanto houve

91 MODULO, p.5.
92 Ibidem, p.5.
93 Ibidem, p.6.
94 SILVEIRA, p.2.
95 Hermenêutica é o campo da teologia que se dedica desenvolver a teoria da interpretação bíblica.
96 Exegese é a técnica que visa a explicação ou comentário gramatical e histórico do texto.
Seminário Teológico Rhema 23

distanciamento por parte dos movimentos brasileiros dos propósitos e práticas iniciais do
pentecostalismo norte-americano. Por outro lado, artigos teológicos revelam a importância de ambos os
movimentos nas instâncias religiosa e política principalmente no período da ditadura militar. Portanto,
o foco não é afirmar que o neopentecostalismo não possua nenhuma sustentação bíblica, mas apenas o
de mostrar quais são os aspectos não bíblicos que influenciam a Igreja nos dias de hoje. E no caso desta
apostila, mostrar as distorções que foram desenvolvidas em se tratando da música.

Assim, no tocante a música, parte dos seguidores destes pensamentos chegam a transformá-la em um
“organismo vivo, com personalidade, que crê e descrê à revelia, que tem poder de levar pessoas ao
pecado ou trazê-las para Deus, sem nenhuma interferência humana”, santificando “acordes e
mundanificando sequências harmônicas, ritmos, e instrumentos”.97

O “ministro de louvor” assume um papel mágico, sacerdotal, capaz de conduzir a Igreja a um estado de
transe espiritual, onde a experiência individual suplanta o exercício da distribuição dos dons no
crescimento da Igreja. Consciente ou inconscientemente os “ministros de louvor” utilizam recursos de
dinâmica, técnicas de palco, gestos e expressões que induzem e fixam crenças e “vendem produtos
espirituais” aos ouvintes. A música torna-se um veículo de comunicação de massa.

Como consequência, o crescimento dessas igrejas que aderiram a este tipo de distorção não-bíblico-
teológica nos últimos anos, seduziu outras instituições evangélicas que, ao fazerem uso das mesmas
técnicas e modelos, contribuem com o investimento na mídia e o uso da música, como elemento
propagador de conceitos neopentecostais, levando a cada dia a uma “padronização cultual”. Esse
nivelamento ocorre em função dos meios utilizados. Desse modo, o debate teológico e da exposição
sistemática da palavra foi substituído pelas “técnicas de sugestão”.

Infelizmente, no movimento neopentecostal de muitos segmentos a música é reduzida a veículo de


propaganda. E esta nova função não é fundamentada em questões teológicas, mas em práticas de
mercado. A expansão desse movimento chama a atenção e contribui para sua aceitação pelas igrejas
cristãs protestantes e pelo movimento carismático católico. Um novo quadro de fé é desenhado e a
música, antes elemento de “louvor e adoração”, assume um novo papel nunca experimentado.

97 SILVEIRA, p.3.
Seminário Teológico Rhema 24

3ª – Seção

A MÚSICA
E
TEOLOGIA
Seminário Teológico Rhema 25

Capítulo 6
A MÚSICA CRISTÃ E A TEOLOGIA NO SÉCULO XX

Nas reuniões regulares das igrejas cristãs até os anos 80, a pregação, o ensino da palavra e o período de
cânticos eram os elementos que compunham os cultos evangélicos. A exposição das doutrinas cristãs
era o ponto alto das reuniões. Porém, hoje se percebe o enfraquecimento dos sermões e a valorização
de atividades artísticas no período de culto. Além disso, um novo elemento foi inserido: a propaganda
de material cristão (livros, DVD’s, cursos, viagens e propaganda de “patrocinadores da igreja”). Essa
mudança impacta o culto e a fixação da palavra de Deus. A Fé é produzida pelo “ouvir”. Não é
qualquer “ouvir”, mas a audição de uma mensagem cristocêntrica. Esta mensagem leva a Igreja a
reconhecer sua dependência diária de Deus e também renova a esperança no porvir.

6.1. Distanciamento entre prédica e música

No século vinte, um novo modelo cúltico é inserido no ambiente religioso protestante brasileiro. As
funções do culto são reinterpretadas, os papéis da prédica (exposição da palavra) e da música entram
em choque. Este conflito é decorrente da história da hinódia protestante que contribuiu para
insatisfação com a música litúrgica.

O modelo litúrgico implantado, oriundo das igrejas de avivamento dos EUA, composto de “sermão
acompanhado de hinos com muita emoção” provocou um esvaziamento litúrgico com a ausência de
elementos simbólicos no culto98. Em 1855 Robert Kalley, missionário vindo para o Brasil, criou um
modelo de culto doméstico que se fundamentava na leitura e o ensino da Bíblia e cântico de alguns
hinos. Sara Kalley, esposa de Robert, iniciou também atividades da Escola Bíblica Dominical usando
música como meio de educar as crianças na nova doutrina. Nessa nova concepção de culto coube aos
leigos a condução musical e ao pastor o exercício da prédica.

O espaço cúltico passou a ser dividido pelo pastor e pelos músicos condutores dos cânticos
congregacionais. Porém, o espaço da prédica era gradativamente reduzido, com as inúmeras
manifestações musicais (coro, apresentações individuais, canto congregacional). Entre os anos 70 e 80
com o advento dos “louvorzões”, organizações paraeclesiáticas promoviam eventos em espaços além
dos templos, iniciando uma independência da prédica e sua sujeição como um elemento do
“espetáculo”.

A idéia de show é ampliada nas igrejas neopentecostais. O líder de louvor, também chamado de ministro,
desestabiliza o poder da prédica. O agente musical detém o controle dos sentimentos do público 99. A

98 DOLGHIE, p.83.
99 Ibidem, p.92.
Seminário Teológico Rhema 26

prédica passa não ser necessária no culto. O líder de louvor pode conduzir os ouvintes a sensações de
alegria e choro através de palavras e atos motivacionais, sem necessariamente expor a palavra. Alguns
nomeiam esta capacidade motivacional de “unção”. A palavra fica enfraquecida diante das emoções. É
a palavra “humilhada” diante das emoções da “sociedade espetáculo”.100

O conceito de “unção” permite aos ministros de louvor e muitos pastores neopentecostais


abandonarem a interpretação do texto bíblico. As regras de hermenêutica e exegese são abandonadas.
As Escrituras são usadas para a sacralização da interpretação de textos isolados, utilizados para justificar
a nova forma de culto. Outro desvio característico deste movimento é a ênfase excessiva na
“intocabilidade pastoral ou ministerial”, muito parecida com a infalibilidade papal iniciada no período
medieval. Assim como os católicos romanos, que acreditam na infalibilidade papal, os neopentecostais
utilizam de argumento semelhante. A visão da liderança eclesiástica é inquestionável, pois segundo os
lideres esta provém direto de Deus e é concedida apenas aos “ungidos” (afirmação muito próxima do
gnosticismo101). Nenhuma experiência anterior tem autoridade. A história da Igreja é totalmente
esquecida.

O existencialismo consiste na ênfase da experiência antes da razão. A adoração cristã tem priorizado os
sentimentos em detrimento da razão. O existencialismo faz dos cânticos instrumentos de auto-ajuda,
auto-aceitação. O resultado final é a sensação de se voltar para casa “descarregado” e sentido bem, sem
que tenha adorado verdadeiramente102.

6.2. O Marketing e a música cristã

Marketing é o conjunto de técnicas e atividades relacionadas com o fluxo de bens e serviços do


produtor para o consumidor. O crescimento do mercado da música gospel no Brasil, derivada da Gospel
Song do século XIX, deve muito às técnicas de mercado praticadas pela indústria fonográfica. O músico
inglês Steve Allen descreve de forma bem simples a verdade por trás do sucesso de qualquer
empreendimento musical de massa: “Ninguém abrirá espaço na mídia de massa para um músico, em
respeito ao seu talento. Um músico conseguirá espaço em mídia de massa, se for de interesse comercial
dos dirigentes desta empresa de mídia”.103

Allen, enquanto produtor musical enxerga a música como um produto que tem como objetivo permitir
ao consumidor que escape de sua vida rotineira. O autor cita que a religião, a mãe de diversos estilos
musicais, utiliza da música para conduzir as pessoas a estados de transe e euforia. Ele mesmo declara:

100 DOLGHIE, p.94.


101 Movimento herético iniciado na Ásia menor (135 – 200 d.C.) que acreditava possuir uma verdade superior, adquirida em plano superior
místico.
102 SANTOS, p.4.
103 ALLEN, p.9.
Seminário Teológico Rhema 27

“Sim! A música é uma ferramenta que lida com empatia. De alguma forma, a música deve gritar ao
ouvinte, tudo que ele gostaria de gritar ao mundo, mas não tem coragem de fazer sozinho”.104

O pensamento emblemático do autor e da indústria fonográfica se resume na seguinte citação: “As


pessoas adoram se aproximar de quem é bem sucedido. Da mesma forma a indústria que consumirá e
repassará seu o produto de música (a mídia, por exemplo) não terá interesse de fazer de você um
sucesso, até que você seja um sucesso” 105.

O que surpreende nesta última citação de Allen, é que o marketing não importa com a qualidade do
material produzido. O importante é saber se o produto possuiu um público capaz de consumi-lo. Na
verdade o produto que se encontra a venda, não é a canção, mas a imagem de quem canta e tudo que
esta imagem pode agregar valor como: bottons, camisetas, shows, assessórios, livros, DVD’s, e outros. O
autor ensina que o segredo do sucesso é identificar o público consumidor, construir e preservar uma
imagem compatível com o produto que é oferecido, garantir que sua imagem esteja presente nos meios
de comunicação, a qual seu público tenha acesso, e finalmente, construir um fã clube, “fiéis
seguidores”, doutrinados a prosseguir na aquisição de seus produtos.

Após o breve relato, alguns poderiam perguntar: Qual é a relação entre a música cristã e mercado
fonográfico? Esta pergunta é facilmente respondida quando recordamos todo o trajeto funcional da
música na história da Igreja. Como arte, capaz de atingir os sentidos e despertar paixões, a música
associada às técnicas de mercado pode causar um estrago doutrinário sem precedente na Igreja. Percival
Módulo avalia a influência da música da seguinte forma:

“... o poder que a música tem de atuar sobre nosso corpo e nossas
emoções, alterando-as, acalmando-nos ou excitando-nos, ainda que sem
palavras. Ela pode criar diferentes atmosferas: de alegria, de paz, de
tristeza, de majestade, ou simplesmente um ambiente devocional, quando
for apropriada. Se as palavras de um cântico não são bem
compreendidas, desaparece seu papel de expressão, podendo, porém
subsistir o de impressão”.106

Qualquer composição que faça alusão a temas bíblicos, cantada por um apresentador gospel é
sacralizada, não importando o conteúdo doutrinário, a coerência com as escrituras e a mediocridade
poética do texto. O determinante na sacralização da canção muito das vezes está relacionada à
vendagem do CD/DVD’s.

As particularidades doutrinárias das comunidades cristãs no Brasil são superpostas pelo conteúdo da
mídia gospel. O que alarma nesta constatação é que o mercado gospel pouco se importa com a “fé” dos
seus consumidores. É possível encontrar textos, com afirmações, citações, doutrinas que em nada se

104 ALLEN, p.6.


105 Ibidem, p.81.
106 MÓDOLO, apud MONTEIRO, 2011. p.98.
Seminário Teológico Rhema 28

harmonizam com a Bíblia Sagrada, antes, se aproximando muito mais de movimentos esotéricos
orientais.

A música, independente de seu uso, pode sugerir ao ouvinte alteração de humor; ativar lembranças; e
contribuir na assimilação de novas informações. Adicione as características citadas às estratégias de
marketing, a idéia de vincular o sucesso de vendas com o princípio de “aprovação divina do ministério
do cantor” e teremos uma noção da capacidade da música gospel em alterar o corpo doutrinário das
comunidades.

Antes do evento da mídia de massa as discussões teológicas nasciam nos seminários ou nos púlpitos
das Igrejas e era assumida pelas comunidades cristãs na forma de doutrinas. Hoje, o caminho é
diferente. Através das canções temos alterações doutrinárias. Porém, essas canções possuem lógica de
distribuição de mercado, não se preocupando com as questões doutrinárias. A seguir vemos o percurso
normal da inserção de canções no seio da Igreja pela mídia:

§ O mercado procura identificar um público para um determinado cantor ou banda gospel em ascensão.

§ Após a identificação, é reproduzido, ou adaptado os textos e melodias que este público deseja ouvir, através de
campanhas de marketing bem planejadas ocupando os espaços através de veículos de comunicação;

§ A imagem do cantor ou banda é devidamente cuidada e exposta em programas, propagandas e eventos; Utiliza-se de
congressos e shows.

§ Distribui-se a produção musical de forma planejada, agressiva e invasiva. Após a venda do produto e a valorização da
marca (nome do cantor ou banda) inicia-se novamente o processo com o lançamento de um CD/DVD.

Nesta exposição nota-se não ser necessário ao cantor ou banda terem compromisso com os valores
cristãos, conhecimento bíblico ou experiência ministerial. Tudo pode ser “alcançado” com o trabalho
de um produtor musical e um profissional de relações públicas. O que importa é vender a imagem. Este
princípio é diametralmente oposto ao evangelho de Jesus.

O que assusta nesta exposição é que estamos falando do “corpo de Cristo”. Ações no seio da Igreja
devem seguir os parâmetros estabelecidos nas Escrituras Sagradas. Não é possível negociar estes
princípios em nome de uma máquina produtora de “celebridades”. Como identificar tais erros? Como
orientar os cristãos a discernirem o que ouvem? Como preservar a sã doutrina das comunidades? A
resposta encontra-se no uso das Escrituras como filtro das influências do mercado. Como a própria
Bíblia nos ensina: “Errais em não conhecer as escrituras e nem o poder de Deus”.107 “O meu povo é
destruído por lhe faltar conhecimento”.108 “Bem aventurado o homem que adquire conhecimento”. 109

107 Cf. o Evangelho de Mateus 22:19.


108 Cf. o livro de Oséias 4:6.
109 Cf. o livro de Provérbios 3:13
Seminário Teológico Rhema 29

A música tornou-se um instrumento para o espetáculo no universo evangélico brasileiro. O membro da


igreja cristã evangélica não é obrigado a se satisfazer com o modelo musical de sua congregação, ele
pode escolher, experimentar e consumir. A produção musical dentro e fora dos círculos institucionais é
encarada como sintoma de secularização.110 A tentativa de preenchimento do vazio, a ansiedade
existencial e a necessidade de construir uma segurança ontológica,111 pela via do consumo, obriga as
instituições religiosas a oferecerem em forma de espetáculo aquilo que é negado no cotidiano a seus
fieis112. A citação, a seguir, expressa claramente estas observações:

“Não é o caso de considerar que a música gospel não seja produto


específico de igrejas específicas, mas sim que as igrejas ao produzirem e
difundirem seus bens musicais os inserem em um contexto que
possibilita a livre escolha de consumo por parte de públicos de variadas
denominações, criando assim uma espécie de autonomia dos sujeitos em
relação ao produto religioso institucional. Ou seja, o mercado gera um
quadro contraditório: é por meio dele que as igrejas podem lançar seus
produtos e com isso conseguirem mais adeptos, mas é nele também que
os sujeitos ganham mais independência do crivo da religião
institucional.”113

O gênero “música de adoração” tem atraído grande público. É um produto litúrgico para o mercado,
basicamente para igrejas neopentecostais. A condução deste gênero é realizada por um ministro de
adoração “um sacerdote considerado ungido de Deus”, que conduz entusiasticamente o público. A
ministração provoca sentimentos diversos como: choro, contrição, introspecção, gritos, danças, pulos e
coreografias coletivas. A qualidade do culto é estabelecida a partir do volume de emoções despertadas
pelo “ministro de louvor”. O elemento estético torna-se parte dos bens de consumo114.

Ocorre que o protestantismo, desde sua origem, procurou eliminar os aspectos mágicos da vivência
religiosa e da dependência sacerdotal do “ministro”. A fé vem pelo ouvir a palavra de Deus. Os cristãos
ao se comportarem como consumidores exigem, mesmo que indiretamente, uma religião mais fácil,
menos exigente, quase uma religião à la carte. O principal papel da liderança cristã é ensinar a palavra. A
atividade de ensinar e pregar a palavra de Deus é vital para a construção da fé cristã. Produz mudanças,
constrange o pecador, abre o entendimento para as coisas divinas, não pela técnica de palco, mas pela
ação do Espírito Santo. A música não é uma ferramenta de indução, hipnose, veículo de transe. Os
reformadores a viam como um instrumento servindo o texto, servindo ao ensino e à pregação.

6.3. As dificuldades doutrinárias das canções neopentecostais

As canções utilizadas no culto evangélico têm sofrido grande influência secular, a mudança da forma e
conteúdo ocorre em função de agradar o ouvinte. A Teologia é encarada como uma prisão às

110 PIERUCCI, apud DOLGHIE, 2010. p.2.


111 Ontologia é a parte da filosofia que trata da natureza do ser, da realidade, da existência.
112 DEBORD, apud DOLGHIE, 2010. p.3.
113 DOLGHIE, p.3.
114 Ibidem, p.6.
Seminário Teológico Rhema 30

possibilidades de adoração. Estas canções estimulam a uma rebelião contra a interpretação histórica e a
interpretação coerente das escrituras através da hermenêutica e da exegese. Cristo não é o centro dos
cânticos contemporâneos. Um coquetel de gnosticismo, humanismo e romantismo permeia as canções,
em decorrência da valorização das experiências e revelações extra-bíblicas em detrimento a coerência
das Escrituras. Técnicas de auto-ajuda aliadas a um texto que explora o triunfalismo humano atraem
aos desejosos de uma experiência religiosa centrada na capacidade do homem de “controlar” sua
existência e determinar seu “sucesso”. Não se deve confundir alegria com banalidade. A centralidade do
louvor com música é obra redentora de Cristo.

Muitas canções, além do distanciamento hermenêutico apresentam dificuldades gramaticais e erros de


concordância. Alguns defendem tais erros como “recursos de linguagem”, porém, nota-se que o autor
os comete não por elaboração estética, mas, por desconhecimento da língua.

Allen R. Porto, analisou alguns cânticos em sua monografia115. Aproveito seu registro e acrescento
outras observações. Estas canções são aceitas sem nenhuma dificuldade em diversas denominações. A
utilização de metáforas atingiu um novo patamar nas igrejas tornando-se uma forma “iluminada” de
revelação sobre passagens bíblicas. Ao construir uma canção o compositor simplesmente combina
partes isoladas de textos bíblicos conforme sua “inspiração” e pronto; mais uma nova interpretação
bíblica “saindo do forno”. O que será exposto a partir de agora são apenas algumas observações
bíblico-teológicas sobre as dificuldades doutrinárias nalgumas canções. Vejamos:

E ELE VEM
O tempo de cantar chegou. O tempo de dançar chegou. O tempo de cantar chegou. O tempo de dançar chegou. E Ele vem,
e Ele vem saltando pelos montes. E seus cabelos e seus cabelos são brancos como a neve. E nos seus olhos e nos seus olhos
há fogo! Incendeia Senhor a sua noiva. Incendeia Senhor a sua igreja. Incendeia Senhor a sua casa. Vem me incendiar!

A canção “Ele vem” (David Quinlan) combina duas passagens bíblicas: Apocalipse 1:14 e Cantares 2:8.
A primeira apresenta a descrição simbólica da pessoa de Cristo. A segunda é um texto da poesia
hebraica, entendida leigamente pelos judeus como o relacionamento de Deus com Israel, e pelos
cristãos como o relacionamento de Cristo com a Igreja116. O fogo na bíblia é relacionado ao juízo ou ira
divina (Hb. 10:27; 12:29; 2º Cr. 7.1; 2º Rs. 1:10). No texto de Atos (2:13) a palavra “fogo” é citada de
forma diferente “... e apareceram línguas como de fogo..”. Os movimentos pentecostais sempre
associaram este texto às manifestações carismáticas do Espirito Santo na Igreja contemporânea.
Entretanto, o compositor extrapola o uso simbólico, e não satisfeito com o sentido “pentecostal” da

PORTO, p.70.
115

Há uma corrente teológica de interpretação que considera o texto como a exposição do relacionamento amoroso e honrado entre um
116

homem e uma mulher. Exemplo de virtude do matrimônio.


Seminário Teológico Rhema 31

palavra “fogo”, pede, um “incêndio” na Igreja. A canção abusa da metáfora, associa duas passagens
distintas, separadas historicamente e sem relação literária e muito menos de sentido.

TOQUE NO ALTAR
Quem quer a glória, traz a arca. Quem quer o fogo, traz sacrifício. Quem quer a vida, que suba a cruz. Quem deseja o favor
do Rei. Toca na ponta do altar
Quem mais poderia te livrar? E mudar tua sorte de uma vez. Prostre-se ao chão. Estenda a tua mão. E toque no altar. Tu
alcançarás o favor do Rei, Toque no altar
Quem quer resposta, queima incenso. Quem quer a cura, toca no manto. Quem quer a honra, rasgue suas vestes. Quem
deseja o favor do Rei. Toca na ponta do altar.
Quem mais poderia te livrar? E mudar tua sorte de uma vez. Prostre-se ao chão. Estenda a tua mão. E toque no altar. Tu
alcançarás o favor do Rei. Toque no altar.

A canção “toque no Altar” (Ministério Apascentar de Nova Iguaçu) é um desafio hermenêutico. O


compositor apresenta um texto que em nada se harmoniza com a carta aos Romanos e a carta aos
Hebreus. Na carta aos Romanos o apóstolo Paulo apresenta o plano de salvação e a impossibilidade do
homem de se justificar diante de Deus, “Todos pecaram...” (3:23). O escritor de Hebreus apresenta a
sacrifício de Cristo como substituição aos rituais sacerdotais da casa de Arão. Apenas em Cristo o
homem pode ter relacionamento com Deus. A expressão “Quem deseja o favor do Rei toque no Altar”
não tem nenhum paralelo bíblico com a pessoa de Cristo. Em 1º Reis 1:51 temos a seguinte citação: “E
foi dito a Salomão: Eis que Adonias teme ao rei Salomão; pois que se apegou às pontas do altar,
dizendo: Jure-me hoje o rei Salomão que não matará o seu servo à espada”.

Cristo é o Rei dos Reis, e oferta pelo pecado do homem. Não é necessário “tocar no Altar”. No
cristianismo a figura do altar para derramento de sangue pelo pecado é a cruz de Cristo, oferta única e
admissível pelo pecado do homem. O escritor aos Hebreus (10:1) exorta o cristão que os ritos
sacerdotais são apenas sombras: “Porque a lei, tendo a sombra dos bens futuros, e não a imagem das
coisas, não pode nunca, pelos mesmos sacrifícios que continuamente se oferecem de ano em ano,
aperfeiçoar os que chegam a Deus”.

Desse modo, o que se percebe claramente é que a canção “Toque no altar” utiliza os símbolos do
Antigo Testamento desconectados da visão cristológica do Novo Testamento.

MOVE AS AGUAS
“Quanto tempo eu esperei, chegou a minha vez, sei que hoje é o meu dia. Jesus esta aqui. Move as águas Senhor. Move as
águas. Vou mergulhar, vou restaurar a minha vida. Move as águas Senhor. Move as águas. Vou mergulhar me libertar, sim
move as águas”.

A canção “Move as águas” (Alda Célia), assim como as demais, não se preocupa com o conteúdo e a
interpretação do texto bíblico. No evangelho de João (5:1-9) relata a história de um homem que se
Seminário Teológico Rhema 32

encontrava 38 anos enfermo, aguardando que alguém o ajudasse a descer no tanque de Betesda, que de
tempos em tempos a água era agitada por um anjo, propiciando a cura da pessoa que primeiro
mergulhar-se. Jesus não moveu “a água do tanque”. Ele simplesmente ordenou que o homem
levantasse, tomasse seu leito e andasse.

As expressões “vou restaurar minha vida” e “me libertar” são associadas ao ato de mergulhar nas águas.
No evangelho de João a figura de Jesus é associada a “água da vida”. Se a compositora entende que a
palavra água em sua canção simboliza Jesus, então: “Jesus está movendo Jesus”, o único que pode
libertar o homem do pecado e restaurar sua vida. Não há coerência nesta afirmação. Mas, o maior
problema é que a canção ensina que restauração e libertação são ações humanas. Estas afirmações não
harmonizam com a expressão “verdadeiramente o filho vos libertará”. Na canção, Jesus faz a sua parte:
“mover as águas”, e indivíduo “restaura sua vida e se liberta” pelo ato do mergulho. Isto não é
cristianismo. A carta aos Efésios 2:8 declara: “Porque pela graça sois salvos, por meio da fé, e isto não
vem de vós, é dom de Deus”.

A última música a ser analisada é da compositora Ludmila Ferber:

SONHOS DE DEUS
“Se tentaram matar os teus sonhos. Sufocando o teu coração. Se lançaram você numa cova, e ferido perdeu a visão. Não
desista não pare de crer. Os sonhos de Deus jamais vão morrer. Não desista não pare de lutar, não pare de adorar. Levanta
os teus olhos e vê Deus está restaurando os teus sonhos. E a sua visão. Recebe a cura. Recebe a unção. Unção de ousadia.
Unção de conquista. Unção de multiplicação”.

A figura de Deus sonhando, embora bela e inspiradora em certo sentido, não possui fundamentação
Bíblica. Deus não sonha, Ele age (Dn 4:35)117. As citações de Mt. 25:34, Lc. 11:50, Hb. 4:3, 9:26, Ap.
13:8 e 17:8 utilizam a expressão “desde a fundação do mundo” para ações que mesmo retratadas no
futuro, diante de Deus, já haviam sido realizadas. Os atributos de onisciência e onipresença permitem o
olhar atemporal de Deus sobre a criação. A canção é alicerçada na doutrina da “confissão positiva”,
“auto-ajuda”.

Deus até pode usar o sonho do homem, durante o sono para lhe falar (Gn. 37:5-9; Mt. 2:12). O profeta
Joel profetizou que Deus nos últimos dias daria sonhos (revelações de Deus) aos velhos (Jl. 2:28).
Entretanto, estas manifestações em nada tem a ver com os projetos pessoais dos cristãos. Pelo
contrário, o profeta Jeremias alerta que o coração do homem é enganoso (Jr. 17:9). Um exemplo de um
projeto, bem intecionado que não foi aprovado é relatado em 2º Sm. 7:1-17. Davi desejava edificar uma
casa ao Senhor, (ação nobre, um bom sonho) e o profeta Natã apressou em apoiar o Rei. Mas, à noite
Deus falou ao profeta que Davi não poderia lhe edifiar uma casa.

117 PORTO, p.81.


Seminário Teológico Rhema 33

Em defesa desta canção alguns alegam que José era um “sonhador” e tornou o vice-rei do Egito e
Daniel um eminente funcinário no governo da Babilônia. Todavia, ao lermos a história de José e
Daniel, vemos que ambos recebem de Deus o “dom” de interpretação de sonhos. Eles nunca
desejaram ser eminentes no Egito e Babilônia, não há registros de projetos pessoais neste sentido. O
dom recebido serviu para se cumprir o propósito divino, e não humano, de cuidar da segurança da casa
de Jacó e dos judeus no cativeiro. Tudo estava sob o controle de Deus. Isto é muito diferente da visão
antropocêntrica desta canção. A carta de Tiago (4:3) afirma que não recebemos porque pedimos mal
para o nosso própiro deleite. A carta aos Filipenses 4:6 exorta: “Não andeis ansiosos de coisa alguma;
em tudo, porém, sejam conhecidas, diante de Deus, as vossas petições, pela oração e pela súplica, com
ações de graças”.

Ø Considerações a serem feitas pelo estudante

Muitas outras canções poderiam ser avaliadas e causariam espanto pelo distanciamento teológico de
seus textos. Entendemos que os exemplos sejam suficientes para alertar quanto à disseminação de
conceitos estranhos que estão tentando inserir nas Escrituras e alguns que estão tentando inserir a partir
das Escrituras, usando-as de forma inadequada quando forçam o sentido de um texto bíblico qualquer.

O que foi exposto não é fundamentado no gosto musical do autor; na verdade, o balizador da avaliação
é a coerência com o texto sagrado. A música como veículo de comunicação e fixação de idéias tem um
papel importante na assimilação de informações. Assim, as informações expostas devem estar coerentes
com as doutrinas bíblicas.

6.4. Termos e expressões indevidas utilizadas pelos ministros de louvor

Como este é o capítulo destinado a avaliar teologicamente a música, o louvor e a adoração e o resultado
do envolvimento destes três conceitos na Igreja, este tópico é o que se destina a lançar luzes bíblicas
sobre os principais ensinamentos e práticas litúrgicas que têm ocorrido.

Os ministros de louvor possuem o hábito de reproduzir “jargões”, “frases de efeito” e “palavras


motivacionais” durante a ministração dos cânticos. Mas, algumas destas frases não possuem nenhuma
sustentação doutrinária e, contudo, são assimiladas pelo restante a Igreja, isto é, o corpo de leigos de
maneira totalmente acrítica, desprovida de uma avaliação bíblica. Chegam a enganar até mesmo os
principais líderes das denominações. Vejamos:

§ “O louvor liberta”. Esta expressão é normalmente associada a dois textos das Escrituras: 1º Sm. 16:23 e At. 16:25-
26. O primeiro trata da relação entre Saul e Davi. Saul encontrava-se atormentado e quando ouvia o dedilhado de
Davi em sua harpa “sentia alívio”. Isto mesmo, “sentia alívio”, não libertação. Mesmo após ouvir as canções de
Davi, Saul tentou matá-lo, consultou uma feiticeira e cometeu suicídio. No texto de atos, Paulo e Silas “oravam e
cantavam” na prisão, ou seja, “cultuavam” a Deus. À meia noite ocorre um terremoto que destrói a cadeia. Não
Seminário Teológico Rhema 34

houve libertação nem física ou espiritual para Paulo e Silas. Eles já eram salvos e libertos. Eles não fugiram da
prisão, permaneceram e partir deste milagre o carcereiro e sua família foram salvos em Jesus. Alguns vão dizer,
“mais isto é o que aconteceu, o louvor libertou o carcereiro”. De forma alguma, não foi à música, foi o Evangelho
anunciado por Paulo e Silas que levou a família a conversão.

Temos uma inversão de papéis na interpretação destes textos. O louvor é fruto de um coração que
reconhece a grandeza e o poder de Deus, diante de todas as adversidades. Quem liberta? A resposta é
encontrada no evangelho de João 8:32, 36: “E conhecereis a verdade e a verdade vos libertará.” “Se,
pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres.”

§ “Ministério levítico”. Em muitas igrejas a equipe de louvor é conhecida como os “levitas da casa do Senhor”. Deus
toma a tribo de Levi, em resgate aos filhos primogênitos de Israel (Nm. 3:12). Os levitas são separados para o
trabalho da casa de Deus. Carregar, limpar, cuidar, proteger e montar os utensílios do tabernáculo segundo suas
famílias (Gerson, Merari e Coate). Apenas em 2º Cr 25:1 é mencionado a atividade musical para um grupo de
levitas. Davi e os chefes de serviços separam três levitas (Asafe, Hemã, Jedutum) e seus filhos para profetizarem
com harpas, alaúdes e címbalos. O exercício da música não era a única atividade dos levitas, mas todo o trabalho
do templo.

Daí surge um pequeno problema na interpretação e afirmação deste ministério. É que as atividades
sacerdotais, inclusive levitas, foram interrompidas a partir do sacrifício de Cristo na cruz. Trabalhar na
obra de Deus, não é uma obrigação legal, é um privilégio para aqueles que são do reino. O livro de
Hebreus, cita que os crentes possuem sacerdócio real e no livro de Apocalipse é usada a expressão
“sacerdotes”; e neste texto, o termo não está associado ao trabalho do templo e sim ao aspecto de
separação da Igreja das paixões mundanas. Portanto, se formos usar a expressão “levitas” na atualidade,
devemos utilizá-la para todo o corpo de Cristo. As passagens de Hebreus (8:5 e 10:1) orientam que o
Antigo Testamento é “sombra” dos bens vindouros. “Por meio de Jesus, pois, ofereçamos a Deus,
sempre, sacrifício de louvor, que é o fruto de lábios que confessam o seu nome”.

§ “Lúcifer118 era regente do coral no céu antes de sua queda”. Os que assim dizem alegam que Lúcifer por ódio de ter
perdido seu posto celestial investe com maior furor contra o ministério de louvor na Igreja. No evangelho de João
(10:10) Jesus afirma que o diabo veio para roubar, matar e destruir. Em Apocalipse (12:7) o dragão, irado por não ter
destruído a “mulher”, inicia guerra contra “todos” os que guardam os mandamentos de Deus e o testemunho de Jesus
Cristo.

Os evangelhos, as cartas paulinas e cartas gerais alertam sobre os ataques e tribulações que a Igreja de
Cristo estaria sujeita. Entretanto, a investida é contra todo o povo de Deus. A idéia que Lúcifer era
regente celestial foi gerada a partir da interpretação de um texto no livro de Ezequiel (28:13) na versão
Almeida Corrigida Fiel (ACF), diferente da versão Revista e Atualizada (ARA) e Nova versão
Internacional (NVI).

118 Do latim Luxfero, portador da Luz, em hebraico, Heilel ben-shahar. O nome “Lúcifer” não é encontrado no texto bíblico.
Seminário Teológico Rhema 35

Comparemos os textos:
“Estiveste no Éden, jardim de Deus; de toda a pedra preciosa era a tua cobertura: sardônica,
topázio, diamante, turquesa, ônix, jaspe, safira, carbúnculo, esmeralda e ouro; em ti se faziam
os teus tambores e os teus pífaros; no dia em que foste criado foram preparados”. ACF

“Você estava no Éden, no jardim de Deus; todas as pedras preciosas o enfeitavam: sárdio,
topázio e diamante, berilo, ônix e jaspe, safira, carbúnculo e esmeralda. Seus engastes e
guarnições eram feitos de ouro; tudo foi preparado no dia em que você foi criado.”. NVI

Não há nenhuma outra menção da criação de Lúcifer na Bíblia (a não ser esta profecia sobre a figura do
rei de Tiro em Ezequiel). O texto da versão ACF, não leva a conclusão de que o querubim caído fosse
regente celestial. A diferença entre as frases “os teus tambores e os teus pífaros” e “engastes e
guarnições eram feitos de ouro”, é decorrente do método de interpretação bíblica: ACF possui
equivalência formal (palavra por palavra); ARA/NVI possuem equivalência semântica119.

No livro de Isaías 15.1 (outra passagem atribuída à queda de Lúcifer através da figura do rei da
Babilônia) cita que a soberba do rei foi lançada na sepultura com o som de suas liras (NVI) ou violas
(ACF). A música era associada na antiguidade as festas de opulência, as orgias, sacrifícios a ídolos e
cultos de fertilidade. A alegria destes homens, expressa na música e na bebida, era desagradável a Deus
(Am. 5:23; Dn. 3:5; Lm. 3:63; Ez. 26:13). Não há evidência bíblica que Lúcifer era regente do coro
celestial. Nenhum destes textos dá base para isto.

E para fins de curiosidade, Ellen White, líder do movimento adventista, cita em “História da redenção”
página 46 que Lucífer dirigia o coral celestial entoando a primeira nota120. A defesa desta ideia não é
cristã.

Ø Considerações a serem feitas pelo estudante

As expressões citadas são apenas um alerta sobre a necessidade dos ministros de louvor e músicos se
apegarem ao evangelho de Cristo, adquirindo conhecimento e pedindo sabedoria ao Espírito Santo.
Letras de canções e expressões sem conteúdo bíblico ocorrem na maioria das vezes por falta de zelo no
tocante à obra ministerial. Ainda que surja algum impacto no estudante, tal sensação será benéfica, pois
tem o propósito de ser libertadora, questionadora, provocar o pensamento e a ponderação teológica.

6.5. A música cristã como louvor e adoração

Ricardo Gondim sintetiza com muita clareza as consequências do empobrecimento musical do


movimento gospel em sua declaração.

119 A equivalência semântica considera o sentido da palavra em função do contexto literário. Ex. A palavra manga pode significar uma

fruta ou parte do vestuário. (A manga é saborosa. A manga da camisa rasgou.)


120 ADNA, p.1.
Seminário Teológico Rhema 36

“Canso com a falta de beleza artística dos evangélicos. Há pouco


compareci a um show de música evangélica só para sair arrasado. A
musicalidade era medíocre, a poesia sofrível e, pior, percebia-se o
interesse comercial por trás do evento. Quão diferente do dia em que me
sentei na Sala São Paulo para ouvir a música que Johann Sebastian Bach
compôs sobre os últimos capítulos do Evangelho de São João. Sob a
batuta do maestro, subimos o Gólgota. A sala se encheu de um encanto
mágico já nos primeiros acordes; fechei os olhos e me senti em um
templo. O maestro era um sacerdote e nós, a platéia, uma assembléia de
adoradores. Não consegui conter minhas lágrimas nos movimentos dos
violinos, dos oboés e das trompas. Aquela beleza não era deste mundo.
Envoltos em mistério, transcendíamos a mecânica da vida e nos
transportávamos para onde Deus habita. Minhas lágrimas naquele
momento também vinham com pesar pelo distanciamento estético da
atual cultura evangélica, contente com tão pouca beleza” 121.

Michael Horton observou que dificilmente uma pessoa musicalmente talentosa ficará na igreja por
muito tempo, cantando músicas, muitas vezes, medíocres. O que está acontecendo é que quando se
quer desenvolver o dom artístico, o indivíduo crente tem que sair do seio da igreja para encontrar
espaço e “o que cantar”. Os tempos não são mais como antigamente quando Bach embelezou o mundo
da música e todos para a glória de Deus, compondo músicas que eram utilizadas nas igrejas da época.122

O cristão, em contato com a arte, deveria cultuar a Deus da maneira mais bela possível. Adoração de
coração não está dissociada de adoração com arte. O distanciamento teológico das canções e seu
empobrecimento técnico retrocederam o quadro histórico da música sacra.

Atualmente os artistas seculares e suas canções servem de inspiração para os compositores cristãos. A
música foi transformada em produto e tratada como tal. A possibilidade da manifestação da arte
tornou-se impossível. Como retornar as origens? Como não se influenciar? Como prosseguir? A
resposta pode ser obtida na canção “Consagração” do grupo Vencedores por Cristo.

“Seja o meu canto para sempre só pra te louvar. Seja tão somente,
eternamente pra te adorar. Seja o recado que Tu tens hoje aqui pra dar.
Mas possa eu trazer na mente que Tu és quem o dá.
“Seja minha vida o padrão daquilo que eu falar. No procedimento o
exemplo aos fiéis levar. Na pureza grande e também na fé e no amor.
Mas possa eu lembrar-me sempre que dependo de Ti Senhor”.

121 GONDIM, p.1.


122 ANDRADE, p.57.
Seminário Teológico Rhema 37

Esta simples canção responde tudo o que foi apresentado nesta apostila. Para o cristão o seu canto e
sua vida são os atos exteriores de louvor e adoração. Ele está sempre atento à voz de Deus e consciente
da graça divina. O fiel torna-se exemplo, o dom não é egoísta, antes, é para crescimento do outro, é
virtude cristã. No final este crente lembra e se rende diante da grandeza de Deus.

Não há como falar de louvor e adoração, sem entendermos que os nossos cultos são apenas a “ponta
do iceberg” da vida cristã. Não louvamos ou adoramos apenas, e tão somente em nossos templos,
muito menos através de um canto.

Nossas reuniões não podem ser um fim em si mesmo, mas um convite ao conhecimento dos mistérios
do amor de Deus, expresso em Jesus Cristo e manifestado pelo Espírito Santo em sua amada Igreja no
convívio de seus fiéis. Melhor do que falar e cantar o evangelho é viver o evangelho. Apenas os filhos
de Deus são capazes de viver uma vida plena com Cristo.
Seminário Teológico Rhema 38

CONCLUSÃO

Este estudo verificou que a frase “louvor e adoração” é uma expressão que resume o viver cristão.
Estas palavras são fortemente ligadas ao relacionamento do homem com o Criador e talvez, por ser tão
importante, o seu significado tornou-se confuso na comunidade cristã.

Vimos que adorar é expresso por atos e disposição de espírito diante da autoridade divina. O
reconhecimento desta grandeza, por parte do fiel, o impulsiona a se lançar e prostrar. Louvar é um ato
de enaltecimento as obras divinas e ao sacrifício de Cristo. Louvor pode se manifestar por gestos,
atitudes e pela arte.

Quanto à música, esta é um veículo sublime do culto, uma forma de tornar público atitudes de louvor e
adoração. Porém, a música não é o fim, ou seja, “louvor e adoração”, mas um meio de expressão. Este
conceito foi percebido ao longo da história da Igreja e tratado de diversas formas. A mensagem
evangelística foi agregada à música, além dos textos de louvor e adoração, expandindo sua função
cúltica. A música falava de Deus e a falava também aos féis. A partir do século dezenove a arte é
banalizada na sociedade ocidental e a música cristã também é atingida.

No Brasil o canto é funcional. Existe para apoiar a exposição da palavra. Mas a partir dos anos sessenta,
no século XX, a música no culto sofrerá uma sensível mudança. De status de arte subordinada à
interpretação doutrinária passa a veículo de mercado nos anos 80. Com isso, a independência da
produção musical do ambiente eclesiástico introduziu uma perigosa influência antes não vista.
Chamamos esta influência de secularização. A presença do movimento neopentecostal foi o último
passo para que a música como meio de “louvor e adoração” perdesse sua identidade.

O assunto exige muito mais estudo, do que foi proposto nesta apostila. Este conteúdo é um simples
alerta para os problemas que enfrentamos na área da música sacra. Está lançado, então, o desafio para
que Teólogos, pastores, músicos, professores e toda comunidade cristã observem o uso da música em
nossos cultos. Esta discussão não é nova e não se encerrará, sua problematização continua, mas,
devemos nos posicionar para que a obra de Deus não seja prejudicada pelas “boas intenções” dos
nossos irmãos em Cristo e os movimentos seculares.
Seminário Teológico Rhema 39

Leitura Complementar
CRITÉRIOS PARA ESCOLHA DE REPERTÓRIO DE LOUVOR123

Clélio Monteiro de Menezes

Normalmente a seleção do repertório de louvor é uma difícil atividade para o cantor. Um repertório
corretamente selecionado melhora a performance do intérprete, pois explora a região mais adequada para
sua produção sonora. Esta região é denominada tessitura124. O cantor deve considerar outros elementos
como: respiração, articulação, andamento, modulação, forma e estilo. Os elementos enunciados
referem-se aos aspectos técnicos da melodia.

Outro elemento a ser considerado é o texto. Quanto ao texto é necessário observar: contexto com a
exposição da palavra pelo pregador, fundamentação teológica, coerência doutrinária, poesia, métrica e
clareza. A seguir, faço algumas recomendações sobre a seleção de repertório.

1. Ao selecionar uma canção não é recomendável:


§ Selecionar canção que a tessitura seja incompatível ao cantor.

§ Selecionar canção que o cantor não tenha o domínio da melodia e das frases rítmicas.

§ Selecionar canção que exija controle de respiração, não suportado pelo cantor.

§ Selecionar canção que cantor não tenha domínio do texto.

§ Selecionar canção que não seja de domínio dos instrumentistas da equipe de louvor.

§ Selecionar canção de estilo incompatível com o timbre e articulação do cantor (Ex: um cantor acostumado a cantar
“pop”, cantar um “baião” sem respeitar as características do estilo).

§ Selecionar canção que não lhe represente uma verdade. Não é possível uma boa interpretação se primeiro o cantor
não acreditar no texto que está cantando.

§ Selecionar canção, solo, com tessitura fora da extensão média125, ou canção de texto não congregacional.

§ Selecionar canção pelo simples fato de estar em evidência na mídia.

2. Sugestões
§ O cantor deve identificar as notas extremas da melodia que será cantada (nota mais grave e mais aguda). Verificar o
tempo de sustentação, a recorrência destas notas e as vogais de apoio (abertas ou fechadas). Após esta avaliação
deve comparar a extensão da canção com sua tessitura. Caso as notas extremas sejam recorrentes, de duração
significativa e ocorram em vogais abertas e estejam fora da tessitura do cantor, aconselho que tal canção seja evitada
ou que seja elaborado um arranjo para suprir essas dificuldades.

123 Texto elaborado em 09/08/2007 para equipe de louvor da Igreja Batista Central do Barreiro.
124 Conjunto de notas usadas por um determinado instrumento musical.
125 Normalmente a extensão de uma pessoa que não se dedica ao canto é reduzida a uma oitava. Canções com saltos melódicos de quinta,

sexto e oitavo grau, não são adequados para o canto congregacional.


Seminário Teológico Rhema 40

§ O cantor deve ouvir a canção o número de vezes necessário para sua completa compreensão. A audição não deve
ser passiva. O cantor a cada audição deve se ater a um parâmetro musical.

§ Durante a audição o cantor deve marcar os pontos de respiração e procurar reproduzi-la. A impossibilidade desta
ação compromete a interpretação da canção.

§ O texto da canção a ser utilizado pelo cantor deve ser escrito de forma legível, com espaçamento entre as linhas e
agrupados por frases melódicas. O texto deve ser recitado, respeitando a pontuação e acentuando a articulação.
Durante a leitura é necessária à construção da dinâmica (o uso do volume nas frases).

§ O cantor deve verificar com os instrumentistas o conhecimento prévio da canção escolhida. O número de ensaios
será proporcional à dificuldade da canção. É recomendável que o cantor providencie a cópia das letras, indique a
tonalidade que deseja cantar e a versão do arranjo que os instrumentistas devem executar.

§ Determinados estilos exigem frases em staccato e legato126. Há estilos que possuem escalas melódicas e frases rítmicas
características. Alguns cantores não conseguem identificar e reproduzir essas particularidades. Não sendo possível
esta reprodução, recomenda-se não cantar a canção.

§ O texto da canção deve representar a crença do cantor, os seus valores e esperanças. (Ex: um cantor que crê no
livre arbítrio terá dificuldade de cantar uma canção que aborde a predestinação). (Outro que crê na teologia da
gratuidade sentirá incomodado com canções da teologia da prosperidade). A princípio a crença do cantor reflete a
crença da comunidade que está inserido.

§ Algumas canções são compostas com o objetivo de ressaltar a performance do cantor. Outras canções possuem
mensagens diferentes do canto congregacional. 127 Mesmo que estas canções sejam belas e com conteúdo bíblico
não são apropriados para o canto da Igreja, sendo recomendas para solo em momentos especiais.

§ As grandes emissoras de rádio seculares e evangélicas não definem as canções que serão tocadas mediante ao gosto
do público ou pela importância social, cultural ou espiritual. Infelizmente o fator determinante para a definição da
programação é financeiro. É normal o pagamento de taxas, conhecidas como “jabá ou jabaculê”, para que a canção
de um grupo, cantor, seja tocada um número maior de vezes, ou citada em programações diárias de emissoras,
como a mais pedida pelos ouvintes. O objetivo dessa prática é produzir uma falsa impressão de unanimidade da
canção.

Com este texto, espero ter auxiliado os cantores e instrumentistas na difícil tarefa de preparar repertório
para os cultos da Igreja.

126 Redução e ligação de tempo das notas musicais em uma melodia.


127 Canções que enaltecem os atributos da trindade, a obra divina e a pessoa de Cristo.
Seminário Teológico Rhema 41

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS128

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< http://www.mackenzie.br/fileadmin/Mantenedora/CPAJ/revista/Fides_v14_n1_artigo-4.pdf > Acesso em:
07 mar. 2011.

128 Agradecimentos especiais ao professor Clélio Monteiro de Menezes pela autoria conteudista desta apostila e por cedê-la ao Seminário

Teológico Rhema como bibliografia primária para o ensino da disciplina “Louvor e Adoração” no curso médio em Teologia. Para fins
didáticos, a Instituição promoveu algumas modificações metodológicas e de formato no material juntamente do acréscimo no conteúdo
desta apostila com pequenas informações consideradas complementares, mas nada que interfira na propriedade intelectual do autor ou
adultere seu conteúdo distorcendo-o.
Seminário Teológico Rhema 42

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PORTO, Allen Ribeiro. Uma análise dos louvores contemporâneos em Igrejas Batistas de São Luís – Ma, à luz da Teologia
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