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Fonética∗

Morris Halle

1 Introdução
A fonética é a ciência dos sons da linguagem. Tradicionalmente a fonética
ocupava-se do estudo da forma como estes sons são produzidos pelo aparelho
fonador do homem (fonética articulatória), das suas propriedades acústicas
(fonética acústica) e da maneira como eram percebidos (psico-acústica). Na
verdade, muitos dos assuntos abordados pela fonética são também analisados
por disciplinas altamente desenvolvidas como é o caso da anatomia, da acús-
tica e da psicologia. Apesar desta sobreposição, a fonética não se tornou um
subdomı́nio de nenhum desses três campos, tendo-se sempre mantido como
uma disciplina separada. A razão desta independência da fonética reside no
facto de ela implicar um aspecto que por si só não emerge de modo especı́fico
de nenhuma das três disciplinas atrás mencionadas; a fonética deve ter em
consideração a cada momento o facto de que não trabalha com sons puros e
simples mas com sons da linguagem, isto é, com sons produzidos e percebidos
por seres humanos, que têm acesso a um conjunto especial de conhecimen-
tos a que aqui chamaremos conhecimentos de linguagem. Os sons que não
implicam de modo determinante este conhecimento estão fora do âmbito da
fonética mesmo que fisicamente sejam tão semelhantes de sons da fala como
o som [f] e o ruı́do produzido ao soprar uma vela. De fato a própria noção
de som da fala, entidade fundamental da fonética, não é um dado fı́sico mas
um conceito linguı́stico. Os ruı́dos feitos por animais ou máquinas, o mugido
das vacas, o canto dos pássaros, o ruı́do de um trem em movimento ou a
detonação de uma espingarda soam-nos como sequências de sons da fala. No
entanto somos nós que graças ao nosso conhecimento da lı́ngua analisamos

Trecho do verbete com o mesmo tı́tulo, publicado no volume 1 da “Enciclopédia Ei-
naudi” (pp. 132–136), publicada em Portugal. A ortografia e algumas construções foram
adaptados para o uso mais comum no Brasil. Sı́mbolos fonéticos alternativos presentes na
versão original foram substituı́dos por seus equivalentes no Alfabeto Fonético Internacio-
nal. Alguns termos técnicos também foram atualizados. A adaptação foi feita por Pablo
Arantes (DL/UFSCar) para uso educacional. Não distribuir sem consentimento.

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dessa maneira essas informações sonoras. Uma vaca ao mugir não produz
uma sequência de sons linguı́sticos tal como o vento ao soprar as nuvens
não cria imagens de montanhas, de rostos ou de monstros gigantescos. Um
bom exemplo acerca do papel essencial desempenhado pelo conhecimento da
lı́ngua na percepção da fala é dado pela percepção da palavra. Todos os
falantes de uma lı́ngua sem conhecimentos linguı́sticos especı́ficos crêem que
no decurso de uma conversa produzem e ouvem palavras. Mas as palavras
não são, evidentemente, apenas sequências especiais de fenômenos acústicos
(sons, mas antes entidades linguı́sticas, isto é, fatos conhecidos por aqueles
que têm conhecimentos de uma determinada lı́ngua particular e ignorados
pelos que não o têm. Consideremos as seguintes frases:
(
a name
It’s necessary to have
an aim
Tal como é pronunciado normalmente, este enunciado é algo ambı́guo.
Pode ser entendido como uma recomendação para ter ou um nome ou um
objetivo. A razão de tal ambiguidade reside no fato de as fronteiras de pa-
lavras — aquelas entidades representadas por espaços no nosso sistema de
escrita — não serem acusticamente assinaladas quando falamos. Normal-
mente não fazemos pausas entre as palavras, como se pode verificar lendo
em voz alta esta frase e fazendo um esforço para parar após cada palavra. A
ausência de sinais acústicos indicando as fronteiras de palavra na fala não im-
pede os indivı́duos de perceber normalmente um dado enunciado como uma
sequência de palavras, desde que conheçam a lı́ngua que suporta o enunci-
ado. Isto significa que o falante comum dirá que a última palavra da frase
referida é ou name ou aim, enquanto que apenas alguns indivı́duos (talvez
pessoas com alguma prática de fonética) reagirão observando que o enunciado
é ambı́guo. (Pensemos ainda nas possı́veis ambiguidades que podem surgir
em português perante exemplos como o tópico/utópico, a mala/amá-la). É
óbvio que nenhuma das três respostas pode ser dada por uma pessoa que não
domine a lı́ngua inglesa. O que estas pessoas poderiam dizer é que tinham
ouvido a sequência sonora [Itsn"EsIs@ôIt@h"æv@n"eIm] que no entanto contém
provavelmente muito mais detalhes do que seriam capazes de ouvir a maioria
dos indivı́duos que desconhecem a lı́ngua.
Fatos deste tipo são exemplos do papel fundamental desempenhado na
percepção por aquilo a que os psicólogos chamam mental set ‘mecanismo
mental’ (em alemão Einstellung). Quando percebemos certas combinações
de linhas numa folha de papel como tridimensionais ou quando vemos rostos,
montanhas e seres mitológicos nas formações nebulosas do céu, ou se avali-
amos as dimensões dos objetos familiares de forma diferente da que usamos

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para os que nos são desconhecidos, a nossa percepção explica-se só parcial-
mente com base no sinal fı́sico que chega aos nossos olhos. O que é percebido
representa parcialmente uma construção da mente; e isto é verdadeiro não
somente para um conjunto restrito de fenômenos perceptivos, como os acima
descritos, mas para todos os fenômenos perceptivos. O inglês tem um termo
especial — illusion ‘ilusão’ — para caracterizar certas situações em que o
papel do indivı́duo se torna particularmente determinante e óbvio na percep-
ção. Se, no entanto, observarmos em pormenor os fenômenos perceptivos,
percebemos rapidamente que este termo é apropriado a qualquer deles: toda
a percepção é de certo modo uma ilusão. Isto é especialmente verdade na
percepção da fala, pois como acabamos de ver, a percepção das palavras
no discurso implica de modo determinante o conhecimento linguı́stico do
ouvinte. É o fato de o conhecimento da lı́ngua ter um papel central na com-
preensão dos fenômenos fonéticos que faz da fonética um campo de pesquisa
distinto, separado da acústica, da anatomia ou da psicologia.

2 Aspectos anatômicos da fala


É quase desnecessário afirmar que ao insistir na importância do conheci-
mento dos falantes e dos ouvintes, não se pretende minimizar a importância
do estı́mulo fı́sico. O som é essencial para a compreensão linguagem e o
conhecimento do modo como é produzido pelo aparelho formador e perce-
bido pelo aparelho auditivo fornece-nos dados importantes sobre algumas
propriedades fundamentais da linguagem. Passemos pois a uma análise do
mecanismo anatômico normalmente utilizado pelo homem para falar.
O mecanismo anatômico responsável pela produção da fala faz parte da
extremidade superior dos aparelhos respiratório e digestivo do homem (fi-
gura 1). A fala é normalmente produzida utilizando um fluxo de ar vindo
dos pulmões, embora não seja impossı́vel produzir sons perfeitamente inte-
ligı́veis quando a direção do fluxo de ar é inversa. Normalmente, o ar é
comprimido nos pulmões percorrendo os dois brônquios em direcção à tra-
queia. A traqueia, na sua parte superior, termina numa estrutura complexa
de ligamentos, músculos e cartilagens — a laringe —, cuja função principal
é a de uma válvula que fecha os pulmões ao exterior. A parte inferior desta
válvula é constituı́da por um par de protuberâncias horizontais separadas por
uma abertura. Estas protuberâncias são as pregas vocais e a abertura é co-
nhecida pelo nome de glote. As pregas vocais controlam o grau de constrição
glotal, o qual pode variar desde o fechamento total (como quando suspende-
mos a respiração ao empurrar um objeto), e até à abertura máxima (como na
respiração profunda). Não são no entanto estes extremos que se revestem de

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Figura 1: O trato vocal humano.

particular interesse para nós, mas antes os nı́veis intermédios de constrição


glotal, que podem ser encontrados por um lado durante o murmúrio e por
outro quando se pronunciam vogais ou sons de tipo vocálico, em voz alta.
No murmúrio a glote estreita-se de modo a produzir uma turbulência perfei-
tamente audı́vel. Na pronúncia normal de vogais e de sons de tipo vocálico a
glote contrai-se e o fluxo de ar é regulado de maneira a pôr as pregas vocais
em movimento, abrindo e fechando muitas vezes por segundo, convertendo
assim o fluxo de ar expiratório em pequenos sopros de ar. Os foneticistas
chamam sonoros aos sons produzidos com este tipo de vibração das pregas
vocais. Podemos facilmente sentir estas vibrações das pregas vocais se colo-
carmos as pontas dos dedos na zona da laringe, enquanto pronunciamos uma
vogal ou qualquer outro som sonoro.
O número de vibrações das pregas vocais determina a altura melódica
(ingl. ‘pitch’) da voz: se o número de vibrações aumenta, a altura melódica
da voz sobe; se diminui, a altura melódica da voz desce. A altura melódica
da voz de cada indivı́duo varia dentro de uma gama própria: em média,
ela é mais baixa nos homens do que nas mulheres e nas crianças. Durante o
murmúrio ou a produção de sons surdos como por exemplo [s f p k], as pregas
vocais deixam de vibrar em consequência do seu afastamento, daı́ resultando
uma abertura da glote de considerável amplitude. Podemos variar não só
a abertura da glote, mas também a posição da laringe como um todo. É
ainda possı́vel subir ou descer o nı́vel da laringe modificando assim o volume
da cavidade supra-glotal: este é menor quando a laringe se eleva e aumenta
quando se baixa. Para além disto, a elevação ou o abaixamento da glote
parece ainda ter efeitos concomitantes na rigidez das pregas vocais: uma
laringe baixa tende a afrouxar as pregas vocais enquanto que uma laringe

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elevada as torna mais rı́gidas. Quer as variações no volume da cavidade quer
as variações da elasticidade das pregas vocais são utilizadas na fala.
O espaço acima da laringe consiste em três cavidades distintas: a faringe,
a boca (ou cavidade oral) e as cavidades nasais. A faringe é um tubo vertical
com cerca de doze centı́metros de altura e três aberturas: a primeira, na
extremidade inferior, para a laringe, a segunda, ao meio, para a cavidade
oral; e a terceira, na extremidade superior, para as cavidades nasais. A
parte nasal da faringe pode ser separada da restante, elevando e recuando o
véu palatino ou palato mole, encostando-o à parede posterior da faringe. A
configuração da zona intermediária da faringe é controlada pela lı́ngua. A
este propósito é necessário distinguir aqui dois mecanismos: um que controla
a posição da raiz da lı́ngua e outro que controla a posição do corpo da mesma.
A raiz da lı́ngua pode estar avançada como na produção das vogais [i] ou [u],
ou recuada no sentido da parede posterior da faringe como na vogal [a] ou
nas consoantes farı́ngeas do árabe.
O corpo da lı́ngua controla não só a forma da faringe mas também a
da cavidade oral. O corpo da lı́ngua pode estar mais para a frente, como
acontece na pronúncia das vogais [i] ou [e], ou recuado no sentido da parede
farı́ngea como em [u] ou [a]. Na produção das consoantes podemos encontrar
diferenças análogas no que diz respeito à posição horizontal do corpo da
lı́ngua; assim, por exemplo, o corpo da lı́ngua está deslocado para a frente
quando se pronuncia a consoante inicial da palavra tigre, e puxado para trás
quando se pronuncia a primeira consoante da palavra gato. O corpo da lı́ngua
tem, além do movimento horizontal, um movimento vertical, podendo elevar-
se até tocar o céu da boca (palato), como acontece nas consoantes iniciais das
palavras tigre e gato, ou abaixar-se consideravelmente como ao pronunciar a
vogal [a] ou quando pretendemos mostrar as amı́gdalas a um médico.
O bordo lateral da lı́ngua é usado para fechar ou estreitar a cavidade bucal
em diferentes pontos. Por exemplo, quando se pronuncia a consoante inicial
da palavra sábado a cavidade bucal estreita-se numa zona mais anterior do
que na produção da consoante inicial da palavra chá. O estreitamento da
cavidade bucal produzido pelo bordo da lı́ngua pode ser menor, como acon-
tece por exemplo na pronúncia da vogal contida na palavra inglesa bird. O
bordo da lı́ngua pode ser elevado de várias formas. Embora a elevação possa
ser feita só pelo ápice da lı́ngua em direção ao céu da boca, como acontece
durante a produção da vogal na palavra inglesa bird, o mesmo não se passa
com a produção da consoante inicial da palavra tigre, onde todo o bordo da
lı́ngua está elevado em direcção ao céu da boca. Para além disto, é ainda
possı́vel controlar as margens laterais da lı́ngua: quando se pronunciam sons
do tipo [l], as margens laterais da lı́ngua estão baixas e o ar sai pelo espaço
criado abaixo dos dentes caninos e molares e não, como acontece com a maior

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parte dos sons, na zona dos dentes incisivos.
Finalmente, é possı́vel elevar o bordo da lı́ngua de modo a fazê-lo vi-
brar quando da passagem do ar. Isto acontece com alguns tipos de sons que
normalmente em português são representados pela letra r. Estes sons, conhe-
cidos pelo nome de vibrantes, são uma caracterı́stica de algumas variantes
do português.
O tracto vocal tem duas saı́das para o exterior: uma nos lábios e ou-
tra nas narinas. O tamanho e a forma da abertura labial podem alterar-se
tendo estas variações consequências acústicas importantes. Ao projetar os
lábios para frente estamos de fato aumentando o comprimento total da ca-
vidade bucal, o que afeta diretamente as suas propriedades de ressonância.
As dimensões da abertura labial são também outro factor importante que
influencia as propriedades de ressonância da cavidade. A abertura das nari-
nas não pode evidentemente ser controlada durante a fala, havendo sim, um
controle voluntário no abaixamento ou na elevação do palato mole ou véu
palatino. Quando o véu está elevado, todo o ar vindo dos pulmões sai atra-
vés da boca não passando sequer minimamente pela faringe nasal nem pelas
cavidades nasais, que estão portanto acusticamente inertes. Por outro lado,
se o véu palatino está baixo, o fluxo de ar vindo dos pulmões subdivide-se
em duas partes: uma parte passa pela boca e a outra através da cavidade
nasal. Esta última é então excitada, originando efeitos acústicos especı́ficos
que desempenham uma função na fala.
A meio da margem inferior do véu palatino, existe um elemento em forma
de cauda chamado úvula, o qual vibra, em algumas lı́nguas, durante a produ-
ção de alguns sons representados pela letra r em muitas lı́nguas. Por exemplo,
os que encontramos no francês literário.
Completamos assim a abordagem das estruturas anatômicas que inter-
vêm activamente na fonação. Nota-se que a lı́ngua é, sem sombra de dúvida,
o órgão mais importante, visto que controla a forma das principais cavida-
des ressoadoras: a faringe e a boca. Não é portanto de estranhar que em
muitas lı́nguas um mesmo termo (‘lı́ngua’) indique tanto o órgão anatómico
como o sistema gramatical e lexical através do qual um determinado grupo
de indivı́duos comunica-se entre si. Convém ainda chamar a atenção para
os movimentos do maxilar inferior que, apesar de bastante evidentes quando
observamos alguém a falar, não parecem ter um papel relevante na fonação;
parece não existirem sons em cuja produção o posicionamento do maxilar
inferior seja determinante. A razão mais provável para isto parece residir no
fato de que os movimentos do maxilar não podem ser controlados tão rapi-
damente como os de outras estruturas anatômicas que intervêm no processo
de produção da fala.

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