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Origem divina e fonte


humana do poder civil em
Guilherme de Ockham:
Emergência da Liberdade

António Rocha Martins

2011
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Covilhã, 2011

F ICHA T ÉCNICA
Título: Origem divina e fonte humana do poder civil
em Guilherme de Ockham: Emergência da Liberdade
Autor: António Rocha Martins
Colecção: Artigos L USO S OFIA
Design da Capa: António Rodrigues Tomé
Composição & Paginação: Filomena S. Matos
Universidade da Beira Interior
Covilhã, 2011

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Origem divina e fonte humana do


poder civil em Guilherme de
Ockham:
Emergência da Liberdade
António Rocha Martins∗

«If there are no new truths to be discovered,


there are old truths to be rediscovered.»1

Ao filósofo não é permitido pensar passando por cima do seu mundo


contemporâneo: o «presente» revela-se-lhe indeclinável exigência
a e do pensar2 . «O que é» entra no pensamento, constituindo-
se como tal mas também configurando o próprio pensamento. A
verdade é filha do tempo. Pensar o tempo a esse nível essen-
cial faz o pensamento criar raízes na história e traduz o «espírito»
da filosofia medieval3 . Tal dimensão histórica, imprescindível ao

Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa
1
P. F. Strawson, Individuals. An Essay
in Descriptive Metaphysics, London-New York, 1993, p. 10.
2
O filósofo é filho do seu tempo, como recorda, pertinentemente, Manuel J.
Carmo FERREIRA, «O tema da revolução em Hegel», Brotéria, 102 (1076), p.
37.
3
Cf. Carlos STEEL, «La philosophie comme expression de son époque»,
in J. Follon – J. Mcevoy, (eds): Actualité de la pensée medieval, Louvain-Paris,
1994, pp. 79-93.

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desenvolvimento da cultura, encontra naturalmente a questão do


poder político (dimensão material da vida humana)4 , sendo aí o
direito humano menos expressão de aspectos negativos (pecado)
do que de aspectos positivos (viver bem e politicamente)5 .
A filosofia política de Guilherme de Ockham é de actualidade
bem exemplo, pela sua íntima ligação às vicissitudes históricas eu-
ropeias da primeira metade de Trezentos; mas não é por isso um
simples resultado das circunstâncias, sendo antes fruto de um in-
terventor comprometido face a acontecimentos que interpreta, ora
legitimando ora rejeitando. Em dois acontecimentos o filósofo me-
dieval se envolveu particularmente: na questão acerca «Pobreza
Evangélica e Franciscana»6 e nos conflitos entre o Papado e o Im-
perador; aí chamado, constituiu o seu pensamento político – ori-
ginando, entre os seus intérpretes, a discussão sobre a fractura ou
continuidade do «político» e do «filósofo»7 .
4
A questão que se coloca não é a de se o poder é uma categoria medieval,
mas, sim, se ele aparece mais cedo ou mais tarde: o poder constituir-se-á ainda
no interior da medievalidade. Liga se com a separação entre âmbitos como
o secular e o religioso-moral; explicitamente, aparece nos primeiros anos do
século XIV; viera, no entanto, já desenhando-se, pela alteração de condições
sociopolíticas, com reflexo nas relações entre a Igreja e o Império. Para uma
perspectiva de conjunto sobre a emergência do poder na Idade Média, veja-se:
D. Boutet – J. Verger (dir), Penser le pouvoir au Moyen Âge, Rue d’Ulm, Paris,
2000; Jürgen MIETHKE, Las ideas políticas de la Edad Media (trad. esp. de
Francisco Bertelloni), Buenos Aires, Editorial Biblos, 1993. No mesmo sentido
vai a investigação de Esteban Peña EGUREN, La filosofia política de Guillermo
de Ockham, Madrid, Encuentro Editiones, 2005, pp. 19-40. (Obra que muito
nos deu que pensar).
5
Veremos que poder sobre os bens materiais, instituído por direito humano,
tem a função de prever (e não promover) a corrupção (onde não há governador
o povo corrompe-se).
6
Sobre a controvérsia entre o Papa João XXII e a Ordem Franciscana nos
inícios do século XIV, tenha-se presente a obra de Virpi MÄKINEN, Property
rights in late medieval discussion on franciscan poverty, Peeters, 2000, pp. 141-
190.
7
Os aspectos de continuidade têm sido mais relevados. Entre muitos pos-
síveis, vejam-se: Marino DAMIATA, Guglielmo d’Ockham: Poverta’ e Poter.

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Origem divina e fonte humana do poder civil em Guilherme... 5

O nome de Ockham assumirá particular relevo no dealbar do


século XIV, não só por ter reivindicado o primado do indivíduo em
relação ao género e à espécie, mas também pelo equilíbrio mantido
entre o poder religioso e o poder civil, conciliando as especifici-
dades de ambos.
Na verdade, se a separação política entre o espiritual/religioso
e o temporal é hoje inquestionável, os termos desta separação en-
contram as suas primeiras determinações na Idade Média, explici-
tamente nos primeiros decénios do século XIV. Historicamente fa-
lando, é frequente ver-se na reacção ao religioso uma das primeiras
expressões da filosofia política moderna, cujo aparecimento, as-
sim, se entende determinado negativamente pelo elemento reli-
gioso. A autonomia do político dar-se-ia somente com a desagre-
gação do religioso, facto tardo-medievo. Importa, no entanto, dizer
que há nessa perspectiva um quadro de compreensão demasiada-
mente unívoco e simplista acerca da medievalidade, época em que,
justamente, nada é simples e tudo é complexo8 .
Il problema della povertà evangelica e franciscana nel sec. XIII e XIV. Ori-
gine del pensiero politico di G. d’Ockham, vol. I, Firenze, 1978, pp, 391ss;
Georges de LAGARDE, La naissance de l’esprit laïque au déclin de Moyen
Âge. V. Guillaume d’Ockham: Critique des structures ecclésiales, Louvain-
Paris, Nauwlaerts, 1963, pp, 281-289ss; Alessandro GHISALBERTI, Gugliemo
di Ockham, Vita e Pensiero, Milano, 1972.
8
A filosofia moderna, que muitas vezes se pretende originária, tem no século
XIV, ainda medieval, indeclináveis expressões. Veja-se: André de MURALT,
L’unité de la philosophie politique. De Scot, Occam et Suarez au libéralisme
contemporain, Paris, Vrin, 2002, pp. 7ss. O autor reage à obra de Pierre Mes-
nard, L’essor de la philosophie politique au XVIe siècle, Vrin, Paris, 1969, o qual
defende a ideia de que a filosofia política moderna surge apenas com o fim da
Idade Média. Sublinha Muralt (pp. 7 8): «La philosophie politique moderne est
bien celle qui fleurit dans les siècles classiques. Elle a connu un développement
divers et contrasté. Elle présente les théories de l’absolutisme monarchique tout
aussi bien que les idéaux civils qui continuent d’animer, sous des formes im-
prégnées du libéralisme anglais, les sociétés démocratiques occidentales. Mais
elle n’est pas le fruit éclosion originale qui marquerait brusqument l’arrêt d’un
temps et la naissance d’un autre. Elle plonge ses racines dans la réflexion poli-

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Pode dizer-se, com efeito, que já nos inícios do Baixo Medievo


surgem esforços que manifesta e politicamente reflectem uma con-
corrência e um equilíbrio entre os distintos âmbitos do humano,
indo o sentido de desenvolvimento dessa experiência medieval nu-
ma crescente participação de elementos naturais e não teológicos
(secularização) na fundamentação da organização política (juridi-
zação)9 . Mas nenhum dos termos que aí entra em questão será
encarado com significado restritivo. Guilherme de Ockham é fa-
vorável a tal orientação, acentuando os factores que possibilitam, a
partir do homem, a afirmação do político (em oposição à tradição
curialista). É preciso, contudo, não cair em simplismos, que o
próprio Venerabilis Inceptor, aliás, denunciaria10 . Nem o espir-
itual se confunde com a Igreja, nem o temporal coincide com a
sociedade civil: os «clérigos» e os «laicos» não são dois géneros
tique et ecclésio-politique des siècles précédents. Elle est partie intégrante, par-
ticulièrement féconde, d’un mouvement foisonnant, dont les pionniers les plus
importants sont Jean Duns Scot et Guillaume d’Occam». Sublinha o autor que,
excepto Hegel («abandonou a modo de pensar moderno»), a filosofia moderna
prolonga e complementa, respondendo de um modo novo às mesmas dificul-
dades, o pensamento ockhaminiano (pp. 154ss).
9
Jürgen MIETHKE, Las ideas políticas de la Edad Media, pp. 49ss. No
dizer do autor, o século XII significa um novo momento no desenvolvimento da
teoria política (tradicionalmente, uma separação efectiva do espiritual e do tem-
poral parecia impossível), pois os prolongados e renascentes esforços que então
vão surgindo, na Alemanha, por exemplo (Concordata de Worms, 1122), cons-
tituem uma nova base de futuros desenvolvimentos. Nesses anos transforma-se a
situação que actuava como ponto de partida, acrescendo que, transformações das
condições gerais de vida (crescimento, mobilidade, movimentos populacionais,
surgimento de novas cidades, aparecimento de novas estruturas), afectaram a
ordem política e a constituição social, adquirindo as condições de vida uma pe-
culiar plasticidade. Novas formas coexistirão com as antigas.
10
Ockham censurará a manifesta «ligeireza» das fórmulas de distinção,
muitas vezes admitidas sem discussão. O que significa «espiritual»? Esta ou
aquela pessoa é espiritual porque pertence à Igreja ou porque vive segundo o es-
pírito e a lei divina? Cf. Georges de LAGARDE, La naissance de l’esprit laïque
au déclin de Moyen Âge. V. Guillaume d’Ockham: Critique dês structures ec-
clésiales, Louvain Paris, Nauwlaerts, 1963, 204ss.

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Origem divina e fonte humana do poder civil em Guilherme... 7

da espécie humana; como tal, essa oposição não pode servir como
critério de demarcação entre o natural e o teológico. Evidencia-se
uma direcção à suficiente autonomia do poder real, mas a fonte hu-
mana (independência do poder) não rejeita a origem divina (potes-
tas a deo). O mesmo pode dizer-se de conceitos como seculariza-
ção (laicidade), racionalidade, diferenciação, soberania, e outros,
os quais comportam indeclináveis expressões medievais11 .
Efectivamente, se é verdade que a Idade Média não produz pro-
priamente uma teoria política (no sentido moderno do termo)12 ,
é também verdade que a partir de um certo momento (especial-
mente a partir do século XI), as questões crescentes relativas às
relações concretas da Igreja com o mundo vão repercutindo um
âmbito político (mesmo negativamente), estranho/exterior à Igreja,
a partir do qual era muito difícil compreender as exigências do
direito divino13 . E, portanto, embora de modo negativo (i. e., a
11
Só uma reflexão geral e abrangente de toda a história medieval poderá de-
terminar com rigor o alcance e limites de tais conceitos. Sobre isso, veja-se:
Jürgen MIETHKE, Las ideas políticas de la Edad Media, pp. 211-212; Philippe
NEMO, Histoire des idées politiques dans l’Antiquité at au Moyen Âge, Paris,
Puf, 1998, pp. 974ss. P. Nemo recorda ter sido em França que primeiramente se
fez sentir a necessidade de justificar a independência política do Estado nacional
face ao Império universal («o rei de França é imperador do seu reino»): Ockham
teria descuidado a soberania a favor da laicidade.
12
Cf. João Morais BARBOSA, «Introdução», in Álvaro Pais, Estado e Pranto
da Igreja (Status et Planctus Ecclesiae), vol. 1, Lisboa, INIC, 1988, p. 25.
13
O século XI não foi uma simples continuação da tradição, sem solução de
continuidade. Agora há a ideia de uma reforma geral da Igreja, que irá corporizar
um programa apoiado por movimentos monásticos de renovação, visando não só
libertar a Igreja de manipulações e abusos mas também reformular as relações
entre o espiritual e o temporal. O lema era a «liberdade» da Igreja ante quais-
quer intromissões externas. Sobre tal exigência de libertação da Igreja (libertas
ecclesiae), acompanhada da reformulação das relações entre os poderes, vejam-
se: Jürgen MIETHKE, Las ideas políticas de la Edad Media, pp. 38ss. Evelyne
PATLAGEAN; A. Paravicini BAGLIANI (et alii), «Les raports du Spirituel et
du Temporel. Évolution et remise en cause (1054-1122), in AA.VV, Histoire
du Christianisme, vol. 5: Apogée de la papauté et expansion de la chrétienté

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libertação por parte da Igreja de influências estranhas/temporais),


prevê-se aí uma alteração de relações entre o poder espiritual e
o poder temporal. O facto de a política não integrar as artes li-
berales não significa, pois, que o medieval desconheça a sua im-
portância14 . Recorde-se que a jurisprudência é uma das ciências
de melhor aplicação prática quotidiana15 . O direito, e sobretudo
o direito canónico, deveria plasmar as relações jurídicas que, den-
tro da Igreja, se verificavam entre os seus diferentes membros. Si-
multaneamente, o crescendo das decretais pontifícias requeria cada
vez melhores especialistas, de tal modo que o estudo do direito
canónico abrira enormes possibilidades de carreira16 , que a con-
frontação entre o papado e o poder temporal (representado primei-
ramente pelo imperador e mais tarde pelos reis e príncipes da cris-
tandade) bem salientaria, reportando uma concepção acerca da for-
ma e estrutura jurídica da Igreja. Assim se impôs a doutrina se-
gundo a qual o Papa constituía a cúspide e o eixo de todo o sistema
da organização eclesiástica, que o conceito de plenitude de poder
(1054-1274), Paris, Desclée, 1993, pp. 25-175; Harold J. Berman, Law and
Revolution. The Formation of the Western Legal Tradition, Harvard University
Press, 1983, pp. 49-119.
14
Concluir que a universidade medieval careceria de significação para a teoria
política, em virtude da ausência da política – como disciplina autónoma – do
trivium e do quadrivium, seria, de facto, um erro muito grave. São abundantes
os textos que podem ser considerados políticos. Ademais, o público e os autores
também se transformaram; e com essa transformação transformou-se igualmente
o lugar da teoria política. Vd. Jürgen MIETHKE, Las ideas políticas de la Edad
Media, pp. 54ss.
15
O Direito – principalmente – e a Medicina são as ciências consideradas
como lucrativas (scientiae lucrativae); os juristas encontram espaço nos sistemas
de domínio dos prelados da Igreja e dos governantes temporais. Vd. Jürgen
MIETHKE, Las ideas políticas de la Edad Media, p. 56ss.
16
Repare-se que uma quinta parte de todas as decretais conhecidas, desde a
Igreja primitiva até finais do século XII, foram sancionadas por Alexandre III
(1159-1181). Cf. Jürgen MIETHKE, Las ideas políticas de la Edad Media, p.
70ss.

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Origem divina e fonte humana do poder civil em Guilherme... 9

(plenitudo potestatis) pretende designar, que fora difundido pelos


canonistas do século XII17 .
Ora, é justamente essa teoria da plenitude de poder, elaborada
pelos hierocratas, a partir dos últimos decénios do século XII18 ,
que, acrescentando-se à questão da pobreza evangélica e francis-
cana, constituem os pólos de chamada e de reposta do pensamento
político de Guilherme de Ockham.
A questão acerca da pobreza franciscana reabrira-se na Prima-
vera de 1322 (30 de Maio a 7 de Junho), com a declaração (De-
claratio), por parte de um grupo de Menoritas (contra João XXII),
de que Cristo e os Apóstolos haviam renunciado a quaisquer di-
reitos de propriedade e domínio sobre os bens materiais, recla-
mando, nessa apreciação, o promulgado por Nicolau III (bula Exiit
qui seminat, de 14 de Agosto de 1279), o qual confirma (recor-
17
Foi com Inocêncio III que o conceito de plenitudo potestatis se tornou
um termo técnico, servindo para designar a soberania pontifícia. As origens
da fórmula remontam a Leão I (século V). Mas é apenas nos últimos decénios
século XII que o papado passa a aplicá-la para indicar a legitimidade de inter-
venção nas questões seculares. Em 1198 entrou decisivamente na linguagem
da chancelaria pontifica. Os canonistas adoptá-la-ão também (tradicionalmente,
definia-se a autoridade papal como plena potestas, plena auctoritas, pelnaria
potestas, plena et libera administratio). O sucesso da fórmula ficou assegurado
pelo entusiasmo com que Bernardo de Claraval também a acolheu, e pelo apro-
fundamento jurídico e doutrinal de Huguccio, cuja definição veio a tornar-se
clássica: «A autoridade plena existe quando contém ordem (preceptum), vali-
dade e necessidade; estes três elementos encontram-se no papa, ao passo que os
restantes bispos reúnem apenas o primeiro e o terceiro». Sobre os canonistas
do século XII, veja-se: A. Paravicini BAGLIANI, «La suprématie pontificale
(1198-1274)», in AA.VV, Histoire du Christianisme, vol. 5: Apogée de la pa-
pauté et expansion de la chrétienté (1054-1274), pp. 577ss. Note-se, ainda, que
foi no gozo da plenitude de poder que, no decurso do concílio de Lyon, em 13
de Julho de 1245, o papa Inocêncio IV destituiu o imperador Frederico II, bem
como o rei português Sancho II.
18
Entre os defensores dessa forma de absolutismo eclesiástico, encontravam-
se juristas e teólogos; cabe mencionar, pela relevância das obras, Tiago de
Viterbo (autor do «mais antigo tratado da Igreja»), Egídio Romano (De eccle-
siastica potestate) e Álvaro Pais, Bispo de Silves, (De statu et planctu ecclesiae).

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10 António Rocha Martins

dando os argumentos de São Boaventura) a observância da Regra


ao Evangelho19 . Com efeito, tal como o Doutor Seráfico20 , Nico-
lau III distinguira os conceitos de propriedade, possessão, usufruto,
direito de uso e simples uso de facto, sendo o único direito a não
derrogar o que diz respeito ao simples uso de facto21 . Ou seja,
a esta luz seria possível e juridicamente legítimo servir-se de um
dado objecto sem do mesmo reclamar algum direito legal. O uso
de um bem não implicaria, pois, a sua propriedade.
Tal distinção conceptual-jurídica, que garante a possibilidade –
legal – da vida franciscana em pobreza, tornar-se-á – cerca de dois
anos mais tarde – pomo de discórdia entre João XXII e Guilherme
de Ockham. O sumo pontífice, que reagira de imediato ao ma-
nifesto de Perugia (bula Ad conditorem canonum, de 2 de Dezem-
19
Sobre isso, pode ver-se: Marino DAMIATA, Guglielmo d’Ockham:
Poverta’ e Poter. . . , vol. I, 337ss; Virpi MÄKINEN, Property Rigths in Late
Medieval. . . , p. 154ss.
20
Eis como São Boaventura interpreta a pobreza: «Ut igitur praefatis et his
similibus cavillationibus malignis et subdolis imponatur silentium, intelligen-
dum est, quod cum circa res temporales quatuor sit considerare, scilicet proprie-
tatem, possessionem, usumfructum et simplicem usum; et primis quidem tribus
vita mortalium possit carere, ultimo vero tanquam necessario egeat: nulla pror-
sus potest esse professio omnino temporalium rerum abdicans usum. Verum ei
professioni, quae sponte devovit Christum in extrema paupertate sectari, conde-
cens fuit universaliter rerum abdicare dominium arctoque rerum alienarum et sibi
concessarum usu esse contentam. Unde et ipsorum Regula continetur: “Fratres
nihil sibi approprient, nec domum nec locum nec aliquam rem”.» (Apologia pau-
perum, XI, 5; VIII 312a). Note-se que o texto bonaventuriano é de 1269, por-
tanto muito anterior ao reavivar da controvérsia (daí também a sua importância).
21
Non autem talem abdicationem proprietatis omnimode renuntiationem usus
rerum cuiquam videatur inducere; nam cum in rebus temporalibus sit conside-
rare precipuum proprietatem, possessionem, usum fructum, jus utendi et sim-
plicem facti usum, et ultimo tanquam necessario egeat, licet primis carere possit
vita mortalium, nulla prorsus potest esse professio, que a se usum necessarie
sustentationis excludat, verum condescens fui ei professioni, que sponte devovit
Christum pauperem in tanta paupertate securi, omnium abdicare dominium et
rerum sibi concessarum necessário usu fore contentam.» (Bullarium Francis-
canum III, 408b). Itálico nosso.

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Origem divina e fonte humana do poder civil em Guilherme... 11

bro de 1322), afirma que o uso de um bem é inseparável da pro-


priedade22 ; nas coisas fungíveis isso seria evidente, nas que não o
são o uso acabaria por levar a um certo direito – o usus iuris; ora,
quem tem direito é proprietário23 . Assim, para João XXII, dizer
que Cristo e os Apóstolos nada possuíram era o mesmo que ne-
gar o seu direito a servir-se de alguma coisa; e visto tal ir contra
a Escritura, deveria reprovar-se e condenar-se como heresia (bula
Cum inter nonnulos, 12 de Novembro de 1323)24 . Numa terceira
intervenção oficial (bula Quia quorumdam, 10 de Novembro de
1324)25 , o sumo pontífice reprova a opinião dos detractores, que
presumiram impugnar as suas duas constituições precedentes; re-
cusa, sobretudo, a distinção dos frades Menores entre o que o Papa
afirma per clavem scientiae in fide ac moribus (ex cathedra) e o
simplesmente dito per clavem potestatis (questões administrati-
vas). Para João XXII, tudo o que o Papa declara é verdade imutável
(infalível). Pretendia o sumo pontífice pôr termo à controvérsia.
Entretanto, as circunstâncias vão reunindo outros interlocutores,
de entre os quais sobressai justamente Guilherme de Ockham.
Eis por que, não fora essa questão acerca da pobreza, legitima-
mente se poderia presumir que Ockham regressaria a Oxford, findo
o processo de acusação em que se vira envolvido. O filósofo me-
dieval encontrava-se Avinhão desde 1324, a fim de se defender da
denúncia de J. Lutterell. Impelido a tomar a pena a respeito dessa
questão, «lê e estuda diligentemente» as três constituições ponti-
fícias (Ad conditorem canonum; Cum inter nonnulos; Quia quo-
rumdam), apelidando-as de destitutiones haereticales (mais do que
22
«Ex hoc patet quod nullum eidem ecclesiae temporalis advenerit hactenus
commodum nec speratur.» (Bullarium Franciscanum V, 236b-237a).
23
«Quod, in talibus rebus, usus iuris vel facti separatus a proprietate seu
domino possit constitui, repugnat iuri et obviat rationi.» (Bullarium Francis-
canum V, 237a).
24
Bullarium Franciscanum V, 256-259.
25
Bullarium Franciscanum V, 271-280.

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12 António Rocha Martins

constitutiones),26 insurgindo-se explicitamente contra João XXII, e


assim principiando a sua carreira de polemista, o chamado período
político da sua vida.
Tal não quer dizer, contudo, que o pensamento político do nos-
so Autor se explique exclusivamente a partir da sua posição face à
questão da pobreza. Sempre optimista e confiante nos valores ra-
cionais, adoptará uma via media, distanciando-se tanto do radica-
lismo dos espirituais como das tentações joquimitas de colapso e
desarticulação apocalíptica27 .
Mas foi justamente a bula Quia via reprobus, promulgada por
João XXII, em 16 de Novembro de 132928 , para responder aos es-
critos e apelações de Miguel de Cesena, entretanto refugiado em
Munique (juntamente com Ockham e demais companheiros)29 , que
26
«Quia nolens leviter credere quod persona in tanto officio constituta haere-
ses definiret esse tenendas, constitutiones haereticales ipsius nec legere nec
habere curavi. Postmodum vero ex occasione data, superiore mandante, tres
constitutiones seu potius destitutiones haereticales, videlicet Ad conditorem,
Cum inter et Quia quorundam, legi et studui diligenter. In quibus quamplura
haereticalia, errónea, stulta, ridiculosa, fantastica, insana et diffamatoria, fidei
orthodoxae, bonis moribus, rationi naturali, experientiae certae et caritati frater-
nae contraria pariter et adversa patenter inveni: de quibus nonnulla duxi prae-
sentibus inserenda.» (Epistola ad fratres minores, OP III, 6).
27
Pouco propício a extremismos, Ockham revela-se tão longe dos apologistas
da cúria pontifícia como do laicismo radical de um Marsílio de Pádua, e mesmo
dos partidários de uma distinção rigorosa entre o espiritual e o temporal. Sobre
a via media ockhaminiana, veja-se: Marino DAMIATA, Gugliemo d’Ockham:
Povertà e Potere. Il Potere come servizio dal principatus dominativus al princi-
patus ministativus, vol II, Firenze, 1979, pp. 149ss; Esteban Peña EGUREN, La
filosofia política de Guillermo de Ockham, pp. 196 e 428-438.
28
Bullarium Franciscanum, V 408-449.
29
Miguel de Cesena, Bonagrazia de Bérgamo, Francisco de Ascoli e Gui-
lherme de Ockham fogem de Avinhão em 26 de Maio de 1328 (vd. Bullar-
ium Franciscanum, t. V, nos. 711 e 714.) Depois de uma breve passagem por
Génova, chegam a Pisa em 9 de Junho. Encontram-se com o imperador (Luís
de Baviera) apenas em 21 de Setembro; é então que a lenda põe na boca de
Ockham as seguintes palavras: O imperador defende me gladio et ego defendam
te verbo. João XXII excomungá-los-á em Junho do mesmo ano, e embora per-

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Origem divina e fonte humana do poder civil em Guilherme... 13

proporcionou a ocasião imediata, não só para discutir o problema


da «pobreza evangélica» mas também as suas implicações refe-
rentes aos poderes espiritual e secular30 .
Verdadeiramente, Ockham vai acelerar a noção de laicidade do
Estado, atenuando a autoridade papal ao mesmo tempo que, na re-
lação entre os seres humanos, acentua o positivismo da lei, privile-
giando a convenção e o pacto31 , isto é, o que a todos se deve impor
por defeito de cada um.
Assim, entre finais de 1332 e inícios de 133332 , escreveu a
sua primeira obra polémica, intitulada Opus nonaginta dierum, na
qual, sempre partindo de Quia vir reprobus, refuta as teses de João
XXII, expressas nas suas últimas bulas. Suceder-se-ão as obras
propriamente políticas, já que a natureza do poder (tanto religioso
como civil) permanece aí como questão decisiva, quase sempre li-
gada à pergunta sobre a plenitudo potestatis, isto é, sobre a pre-
tensão de poder ilimitado por parte do Papa e, por consequência,
aos limites entre o poder religioso e o poder civil, poderes esses
que, personificados na época nas figuras do sumo pontífice e do
imperador, haviam entrado em rota de colisão, pelo que se tornara
necessário averiguar quer um quer outro, bem como a relação entre
ambos.
maneçam ainda algum tempo em Itália cerca de dois anos mais tarde já se en-
contram na Alemanha. Sobre a vida e obra de Guilherme de Ockham, veja-se:
L. BAUDRY, Guillaume d’Occam. Sa vie, ses ouvres, ses idées sociales et poli-
tiques. I: L’homme et les oeuvres, Paris, Vrin, 1950; Esteban Peña EGUREN,
La filosofia política de Guillermo de Ockham, pp. 91-119.
30
Cf. José António de SOUSA, «Fundamentos éticos da teoria Ockhamista
acerca da origem do poder secular», Revista Portuguesa de Filosofia, 41 (1985),
p. 142.
31
Cf. Philippe NEMO, Histoire des idées politiques. . . ., pp. 93-94.
32
Já em Munique, aonde chegara há cerca de dois anos (1330), na companhia
do próprio Luís de Baviera.

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14 António Rocha Martins

Na economia do presente estudo, centrar-nos-emos principal-


mente no Livro III do Breviloquium33 , dedicado precisamente à
origem divina mediata do poder, isto é, à fonte humana do poder
civil. Vamos ver que o discurso de Ockham é cheio de consequên-
cias para a filosofia política34 .
Voltando, por conseguinte, de novo a João XXII (Quia vir re-
probus), eis o que importa saber: fora da Igreja existe ou exis-
tiu poder legítimo? Que direito introduz o direito de propriedade
ou de domínio, o direito divino ou o direito civil? A resposta do
pontífice reporta a palavras de Santo Agostinho, segundo as quais
nada poderia possuir se de temporal senão por direito divino, di-
reito pelo qual todas as coisas são dos justos35 , pelo que fora da
33
Utilizaremos a edição de Baudry, L., Breviloquium de potestate papae,
Paris, 1937. Não obstante algumas dúvidas, sabe-se hoje que o Breviloquium foi
escrito por volta de 1339-1341 (antes de 25 de Abril de 1341, data da morte de
Bento XII). Nas obras que precedem o Breviloquium Ockham não havia ainda
explicitado claramente uma teoria da autoridade, referira apenas a sua origem
divina mediata. É então agora o momento de formular uma teoria mais elabo-
rada, que justamente desenvolverá em obras posteriores (Octo questiones). So-
bre isso, veja-se: Georges de LAGARDE, La naissance de l’esprit laïque au
déclin de Moyen Âge. IV. . . , pp. 217ss.
34
A filosofia política ockhaminiana apresenta-se como uma história, de-
screvendo o devir político do ser humano segundo os diversos «estados», deter-
minados pela ruptura radical do pecado original. É fácil pressentir coincidências
na filosofia política moderna com o discurso de Ockham. Por exemplo, o estado
de natureza de Hobbes é manifestamente uma laicização do estado da natureza
humana após o pecado, tal como a noção de jus omnium in omnia («direito de
todos sobre todas as coisas») deriva da noção de dominium commune («domínio
comum», i.e, o mesmo é comum a todos). A ganância, inveja, ciúme, destrói o
domínio comum: eis por que doravante, ainda no pecado, é necessário ao homem
organizar racionalmente a divisão das coisas e a repartição dos cargos públicos,
escapando assim à guerra de todos contra todos e assegurando a continuação da
vida comum através de uma justa propriedade e uma justa sociedade civil. (Cf.
André de MURALT, L’unité de la philosophie politique. . . , pp. 148ss).
35
AGOSTINHO, «Et quamvis res quaeque terrena non recte a quoquam pos-
sideri possit, nisi vere jure divino, quo cuncta justorum sunt (. . . )» (Epist., 93,
PL, 33, 345, c. XII).

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Origem divina e fonte humana do poder civil em Guilherme... 15

Igreja não haveria propriedade nem jurisdição36 . O poder não se


estenderia aos «laicos». Identificando, desse modo, os «justos» – a
Igreja – com os «fiéis» – o Estado –, nota Ockham, facilmente se
provaria que fora da Igreja não poderia existir verdadeiro domínio
das coisas temporais, nem sequer algum poder «ordenado ou con-
cedido», mas apenas um poder por «permissão». Tudo aí seria por
direito divino, uma vez que fora do âmbito eclesiástico não restaria
senão a perdição37 . Mas isso é um erro que vários dos chama-
dos bispos romanos cometem, afirmando que o império romano –
poder civil – vem do Papa (plenitudo potestatis); e, de um tal erro,
salienta o Autor, resultam muitos outros e intoleráveis, quer para
imperadores, reis e demais príncipes, quer para todos os mortais38 .
Urge pois refutá-lo, e justamente começando por provar a origem
do poder político39 . Dever-se-á ir às Sagradas Escrituras e a todos
os documentos não depreciáveis; vendo, pois, que já no Antigo
Testamento existiu fora do Povo de Deus e fora da Igreja católica
um verdadeiro domínio das coisas temporais e uma verdadeira ju-
36
«Primo autem inquiram na papa ex ordinacione Christi aliquam super im-
perium habeat potestam. Et quidem sunt non nulli dicentes quod imperium est a
papa ita ut nullus possit esse verus imperator nisi qui a papa fuerit confirmatus
vel electus. Et quidam istam assercionem suam in hoc fundare nituntur quod,
secundum ipsos, extra ecclesiam nullum est verum dominium quod, secundum
ipsos, extra ecclesiam nullum est verum dominium temporalium rerum nec extra
eam aliqua vera jurisdiccio temporalis.» (Breviloquium, III, 1).
37
Breviloquium, III, 1.
38
«Verum, quia in isto errore quidam vocati romani episcopi, asserentes quod
romanum imperium est a papa, se principaliter fundaverunt et ex eodem errore
alii innumerati in intolerabile et nullmodo ferendum prejudicium imperatorum
et regum aliorumque principium secularium, ymmo cunctorum mortalium infe-
runtur, ipsum, antequam aggrediar alia, clarissime confutare conabor.» (Brevi-
loquium, III, 2).
39
Breviloquium, III, 2. A confusão da Igreja e da Cristandade impede na
distinção das sociedades a base de uma oposição do espiritual ao temporal. Para
Ockham, o poder político tem origem em Deus, mas não é nem uma dependência
nem anexo do poder espiritual. Veja-se: Georges de LAGARDE, La naissance
de l’esprit laïque au déclin de Moyen Âge. IV. . . , pp. 193ss.

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16 António Rocha Martins

risdição temporal – não apenas permitidas mas também concedidas


e ordenadas –, Ockham atribui legitimidade própria aos infiéis, os
quais devem assim ser considerados como também dignos de pro-
priedade, sendo mesmo um prejuízo geral (i.e., para fiéis e infiéis,
o «género humano») não reconhecer essa dignidade aos laicos40 .
Tudo isto significa, vinca Ockham, que as palavras de Agosti-
nho foram interpretadas «irracional», «errónea» e «hereticamen-
te»41 . De facto, provar-se-ia facilmente que também os fiéis, não
obstante a rectidão da fé, vivem sujeitos do pecado, e assim por
igual razão não teriam verdadeiro domínio sobre as coisas tem-
porais: ou seja, qualquer cristão, fora rei ou imperador, perderia
tudo o que até então possuíra se pecasse mortalmente. Isso seria
absurdo, e prova-se abundantemente nas Escrituras42 .
As palavras de Agostinho poderiam ainda ser interpretadas de
outro modo, igualmente pernicioso. Entender-se-ia, neste caso,
«justos» por oposição a «injustos», identificando os primeiros com
os cristãos e os segundos com os que estariam fora da Igreja. As-
sim, tudo é sempre por direito divino, mas apenas no que diz res-
peito à «dignidade de possuir, ter e usar», não no que respeita ao
«domínio e propriedade». Nenhum injusto, fiel ou infiel, é digno
de domínio sobre as coisas temporais. O cristão que sem se afas-
tar da fé peca mortalmente torna-se imediatamente indigno do que
possuía ou possui, podendo, contudo, por bondade divina, rece-
40
«Primo itaque probandum est per scripturas sacras et alias non spernandas
quod verum dominium temporalium rerum et vera jurisdiccio temporalis, non
solummodo permissa sed eciam concessa et ordinata a Deo, fuit extra populum
Dei et extra catholicam ecclesiam.» (Breviloquium, III, 2).
41
«Superset nunc videre irracionabiliter, erronee et hereticaliter domini, seu
proprietatis temporalium rerum fuerit locutus Jo 22us.» (Breviloquium, III, 14).
42
«(. . . ) faciliter probaretur quod apud fideles, qui cum fide recta peccato
aliquo mortali tenentur, non est verum dominium temporalium rerum et quilibet
christianus, sive imperator sive rex sive alius quicumque, si peccaret mortaliter,
omne verum dominium temporalium rerum quod prius habeat amitteret, quod
quam sit absurdum, ymmo heresim sapiens manifestam, per scripturas sacras
posset copiose probari.» (Breviloquium, III, 12).

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Origem divina e fonte humana do poder civil em Guilherme... 17

ber um benefício temporal, não só permitido mas verdadeiramente


concedido e ordenado por Deus. E assim, embora sejam indignos,
os infiéis e pecadores podem possuir um verdadeiro domínio e uma
jurisdição autêntica sobre as coisas temporais43 .
Guilherme de Ockham, porém, que não se conforma com a
identidade entre os justos (i.e., os que estariam dentro da Igreja)
e o espiritual, não aceita tal interpretação, sublinhando que ela pro-
longa o erro, que já denunciara, de que fora da Igreja tudo leva
à perdição – e isto não é verdade. Fora da Igreja não só não há
necessária perdição como também existe uma jurisdição temporal
autêntica. Como dissera Agostinho, nem a maldade de um tirano
se torna louvável por tratar os seus súbditos com clemência, nem
a ordem do poder real deve ser injuriada se o rei maltratar com
crueldade tirânica. Uma coisa é querer usar justamente um poder
injusto, outra coisa é querer usar injustamente um poder justo44 .
Nem um poder ilegítimo é legitimável mediante o bom uso, nem o
abuso de um poder legítimo anula a sua legitimidade.
O filósofo medieval, constantemente debruçado sobre o con-
creto, não se predispõe, pois, a aceitar a equivalência entre fiéis e
justos, por um lado, e entre infiéis e pecadores, por outro, por ela
ser demasiadamente genérica e artificial. Nem os infiéis são sempre
injustos (não pecam sempre), nem os justos são imunes ao pecado
(também são pecadores). Pode-se, assim, copiosamente provar que
os Judeus – os infiéis – possuem um verdadeiro domínio e uma
verdadeira jurisdição das coisas temporais. Admitir a falsidade
contrária implicaria atribuir um prejuízo ao género humano, pois,
desse modo, seria impossível qualquer reivindicação de posse, ain-
da por direito de hereditariedade, de bens ou direitos dos progeni-
43
Breviloquium, III, 12.
44
Santo AGOSTINHO, De bono conjugali, PL, 40, 384-385: «Nec tyran-
nicae factionis perversitas laudabilis erit, sic regia clementia tirannos subditos
tractet. Nec vituperbalis ordo regiae potestatis, si rex crudelitate tyrannica sae-
viat. Aliud est namque injusta potestate iuste velle uti, et aliud iujsta potestate
in iujste velle uti.»

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18 António Rocha Martins

tores infiéis, já que a propriedade, sendo ilegítima, não comportaria


direitos. E como o que se não pode possuir não pode prescrever,
jamais os filhos e sucessores fiéis poderiam alegar para si os bens
e direitos dos seus pais e antecessores infiéis45 .
Com efeito, a bondade divina dirige-se a todos os seres hu-
manos, concedendo também aos infiéis a «possibilidade» de domí-
nio e jurisdição sobre as coisas seculares, bem como de qualquer
outro direito46 .
Ou seja, em Guilherme de Ockham os factores que explicam,
a partir do homem, o poder de apropriação e divisão das coisas
temporais (potestas appropriandi et dividendi res) são os mesmos
que explicam o poder de constituir universalmente/autonomamente
uma jurisdição temporal, por meio de «governadores» (potestas
instituendi rectores habentes jurisdictionem). Um e outro, isto é, a
organização da propriedade privada e a instituição da sociedade
civil têm origem em Deus, mas ambos se constituem historica-
mente mediante fonte humana, sem interferência divina directa. E
Ockham insistirá, aliás, neste ponto, pois se a causalidade divina
fora igualmente a fonte do poder civil, tal significaria que Deus
45
«Sequitur nunc videre quomodo dicere apud infideles non fuisse verum
dominium temporalium rerum neque veram jurisdiccionem temporalium pre-
judicet cunctis mortalibus. Et quidem tam fidelibus quam infidelibus prejudi-
cium inferre enorme dinoscitur. Reges enim fideles et principes ac alii inferiores
hereditario jure de bonis et juribus progenitorum suorum infidelium nichil pe-
nitus vendicare valerent, si progenitores sui infideles verum dominium et veram
jurisdiccionem temporalem minime habuerunt, quia filii illa vendicare non pos-
sunt que patres nullo jure, sed solummodo illicite tenuerunt, presertim si sciant
vel teneantur scire quod patres sui in hujusmodi nullum jus penitus habuerunt;
nec possunt se prescripcione juvare quia possessor male fidei ullo tempore non
prescribit, extra de re.» (Breviloquium, III, 5).
46
«(. . . ) si Deus infidelibus sensum salutis corporis super quem non est sen-
sus, racionem variarum rerum noticiam, uxorem, prolem aliaque innumerata
bona tribuit, non est dicendum quod Deus eos omni dominio temporalium re-
rum et jurisdiccione temporali omnique alio jure privavit.» (Breviloquium, III,
6).

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Origem divina e fonte humana do poder civil em Guilherme... 19

poderia introduzir modificações no direito humano. Mas o poder


civil não é um direito do homem crente, mas, sim, um direito na-
tural do ser humano47 . A sociedade civil é permitida (possibilitas)
por Deus, mas é instituída pelo homem. «O poder é dos homens»,
ou seja, é à universitas mortalium, como imperium, que cabe o
poder absoluto (summa potestas) de exercício efectivo (a «orde-
nação humana») desse mesmo poder «permitido e concedido» por
Deus (a «possibilidade» do poder humano).
A acção humana é, assim, determinante. Se os homens fos-
sem como deveriam ser, não haveria esse problema político stricto
sensu. Mas sendo tal como é, o homem necessita de «pactos» e
«convenções», modificando-se e adaptando se às condições con-
cretas/históricas.
O que é, afinal, o poder em Guilherme de Ockham?
Homem do seu tempo, com o qual dialogou, ele devia, por uma
lado, salvar a independência do poder secular da pressão exercida
pelas tendências hierocratas (curialistas, papistas), e, por outro, de-
via opor a certas soluções superficiais (imperialistas, legalistas, re-
galistas), a origem divina de todo o poder, discernindo tanto o reli-
gioso como o civil48 .
Não é extremamente difícil pressentir a inspiração de Duns
Escoto no discurso do Venerabilis Inceptor49 . O Autor recorre a
47
A César o que é de César: Ockham sublinha as presentes palavras de Cristo,
salientando que o Novo Testamento (Paulo, Lucas, João. . . ) as reitera explícita
e abundantemente. (Cf. Breviloquium, III, 3).
48
Aos que dizem que o império vem do papa, Ockham não responde que ele
vem dos romanos ou dos germanos, mas, sim, que vem imediatamente de Deus.
Como é que o Autor articula esta posição com a ideia da origem puramente hu-
mana dos direitos de propriedade? Afirmando que Imperium a Deo per homines
(«O império vem de Deus por meio dos homens»). Cf. Georges de LAGARDE,
La naissance de l’esprit laïque au déclin de Moyen Âge. IV. . . , p. 204.
49
Isso mesmo o observa Muralt: «Pour Occam en effet, comme pour Duns
Scot, la cause divine et la cause humaine créée concourent comme deux causes
partielles subordonées au même effet, telle opération humaine de l’âme par e-
xemple, mais la causalité divine jamais ne cause la causalité de la cause créée,

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20 António Rocha Martins

uma concepção antiga sobre o concurso da causalidade divina e


da causalidade criada, que reporta a João Damasceno, e que dis-
tingue na vontade divina uma vontade antecedente e uma vontade
consequente50 . Deus, por meio da vontade antecedente, determina
o sentido global das coisas, e, mediante a vontade consequente,
assegura a liberdade da operação humana, não influindo no seu e-
xercício autónomo. Desse modo, Deus concede ao homem o poder
de poder ser livre, poder este que se concretiza na instituição de
dirigentes, com jurisdição temporal.
O poder civil, isto é, a «instituição do principado político»,
carece de fundamento humano; se não fora assim, em que se cifra-
ria a liberdade?
Uma coisa é, pois, a possibilidade do poder (ainda de direito
divino), outra coisa é a constituição efectiva ou uso desse mesmo
poder (apropriação das coisas temporais, propriamente dita, já de
direito humano). Mas nem o direito divino exclui o direito humano
nem o direito humano anula o direito divino, ambos concorrem par-
cialmente (como dois absolutos heterogéneos, o Absoluto divino e
o absoluto finito), em recíproca independência.
Tal é o ponto de partida que permite ao Autor a analogia histó-
rica entre a origem da propriedade e a origem do poder político
(«irmãs gémeas»51 ): quer o direito à propriedade privada, quer o
direito à organização política aparecem com o pecado, mas não por
causa do pecado. Se o homem fosse como deveria ser tudo estaria
bem. Há um domínio divino (sobre o qual o Autor não se detém,
«por ora») e um domínio humano, que é comum a todo o género
et chacune de ceux causes dans leur concours opère de manière absolument in-
dépendante l’une de l‘autre». (André de MURALT, L’unité de la philosophie
politique. . . , p. 150). A presença de Escoto em Ockham, no tocante à origem da
propriedade e da propriedade privada, é igualmente sublinhada por José António
de SOUSA, «Fundamentos éticos da teoria Ockhamista. . . », pp. 144ss.
50
Cf. André de MURALT, L’unité de la philosophie politique. . . , p. 152.
51
Cf. Georges de LAGARDE, La naissance de l’esprit laïque au déclin de
Moyen Âge. IV. . . , p. 204.

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Origem divina e fonte humana do poder civil em Guilherme... 21

humano, e próprio. Neste exacto contexto, Ockham estabelece a


diferenciação que favorece a noção de «história» no devir político
do ser humano: a natureza humana antes e depois do pecado – e
que subsistirá como estrato metafísico do seu pensamento político.
No estado de inocência tudo pertencia a todos, não havia avareza
ou concupiscência de possuir ou usar as coisas temporais contra
a razão, e assim também não era necessário nem útil o domínio
sobre as coisas materiais. Entretanto, sucedeu uma transformação
radical, gerando-se e proliferando esse poder de apropriação dos
bens temporais52 . Como poderão, no presente estado, viver bem e
ordenadamente os homens, sem que as suas decisões sejam condi-
cionadas por factores de ordem infra-humana, senão acentuando a
natureza moral/individual da formação política?53
Para Ockham, tal como para Duns Escoto, a criação de um ser
finito não requer forçosamente a intervenção de um Ser infinito.
Politicamente falando, por motivo de estado – não por necessi-
dade de natureza –, a causalidade divina outorga absolutamente
à causalidade humana «o poder de instituir governadores com ju-
52
Propter hoc enim quod in eis nulla fuisset avaricia, vel contra racionem rec-
tam cupiditas possidendi vel utendi quamcumque re temporali, nulla fuisset tunc
necessitas vel utilitas habendi proprietatem cujuscumque rei temporalis. Post
peccatum autem, quia in hominibus pullulavit avaricia et cupiditas possidendi
et utendi non recte temporalibus rebus, utile fuit et expediens propter pravorum
immoderatum appetitum habendi temporalia refrenandum et excuciendam ne-
gligenciam circa debitam disposicionem et procuracionem temporalium rerum,
quia res communes a malis communiter negliguntur ut res temporales appro-
prianrentur et non essent omnes communes.» (Breviloquium, III, 7).
53
Política e moral estão em perfeita relação. O puramente moral obriga e
abriga todos. Constitui preceito moral reconhecer aos infiéis o poder sobre os
bens materiais e o de eleger governantes possuindo jurisdição: «Duplex potes-
tas predicta scilicet appropriandi res temporales et instituendi rectores jurisdic-
cionem habentes data est a Deo immediate non tantum fidelibus sed eciam in-
fidelibus sic quod cadit sub precepto et inter moralia computatur, propter quod
omnes obligat tam fideles quam eciam infideles.» (Breviloquium, III, 8)

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22 António Rocha Martins

risdição»54 , razão por que esse poder vem «imediatamente» dos


homens e só «mediatamente» de Deus (a deo et tamen ab ho-
minibus)55 .
Com efeito, o poder de domínio próprio é o que juridicamente
se designa por «propriedade» (proprietas), e não existia antes da
desobediência original. Trata-se do poder político, por excelên-
cia: «poder principal de dispor das coisas temporais, poder que é
apropriado a uma só pessoa, a um conjunto de pessoas ou a um
colégio especial»56 ; certamente que tal poder pode ser maior ou
menor, mas saliente-se que ele é sempre imprescindível ao género
humano, a fim de bem viver politicamente nesta vida (o bem viver
manifesta-se indissociável do viver político).
Quer isto dizer que o rumo da filosofia política de Guilherme
de Ockham continua a ser (a exemplo do período de Oxford) a
liberdade absoluta da vontade57 .
Negativamente (naturalmente privado), o poder é necessário
porque o homem tem o título de pecador. No estado de inocência
nem a inteligência nem a vontade haviam sido corrompidas pelo
mal, nem estavam respectivamente condicionadas ao engano e às
paixões desregradas. Não havia, pois, qualquer razão que justi-
ficasse a existência da propriedade privada e jamais esta teria e-
xistido se os nossos progenitores não houvessem pecado. Após o
pecado, os homens tornaram-se ambiciosos, prepotentes, avaren-
54
«(. . . ) potestas instituendi rectores habentes jurisdiccionem temporalem
(. . . ).» (Breviloquium, III, 7).
55
Breviloquium, IV, 3.
56
Breviloquium, III, 7.
57
Cf. André de MURALT, L’unité de la philosophie politique. . . , p. 154.
Muralt, contra os que apontam o «pouco vigor do fundamento filosófico do pen-
samento político de Ockham», defende que a filosofia política ockhaminiana se
inscreve manifestamente na lógica de todo o seu sistema. A filosofia política
moderna está na linha da doutrina de Ockham da vontade absoluta de toda a de-
terminação objectiva, formal e final (remetendo para Duns Escoto, de potentia
absoluta dei).

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Origem divina e fonte humana do poder civil em Guilherme... 23

tos58 : como poderiam então viver bem e em conjunto? Foi, por


isso, necessário útil e que as coisas temporais cessassem de ser co-
muns, tornando-se apropriadas, a fim de não só se refrear essa von-
tade imoderada mas também atenuar a negligência da devida dis-
posição e procuração dos bens materiais, habitualmente cometida
pelos homens que desprezam as coisas comuns, e que egoistica-
mente não zelam nem cuidam daquilo que pertence a todos59 . Po-
sitivamente (racionalmente provido) o homem aparece como um
ser capaz de autonomia, mediante o direito de apropriação sobre os
bens temporais, valor insubstituível do poder civil, o qual deve pre-
sidir à organização da propriedade e da sociedade civil. É por isso
que o império é um direito, isto é, o exercício de um poder positivo
humano. São os homens – naturalmente privados mas racional-
mente providos – que, de acordo com as suas conveniências e ne-
cessidades, instituem governadores revestidos de jurisdição tempo-
ral, imprescindíveis ao bem viver e ao viver político60 .
O poder civil não é, pois, uma última determinação da causa-
lidade divina, pela qual seria este e não aquele. O homem possui
os meios necessários ao exercício da «recta razão»61 . Aos que de-
fendem que o poder vem de Deus é preciso dizer que o poder vem
também de outro distinto de Deus62 . O Ser divino obriga sempre,
mas não para sempre (semper sed non pro semper). Com a liber-
dade na causa está garantida a liberdade nos efeitos. A liberdade
58
Cf. José António de SOUZA, «Fundamentos éticos da teoria Ock-
hamista. . . », p. 155.
59
Breviloquium, III, 7.
60
«(. . . ) dedit ei potestatem pro se et posteris suis disponendi de terrenis que
racio recta dictaverit esse necessaria, expediencia, decencia vel utilia non solum
ad vivendum sed eciam ad bene vivendum.» (Breviloquium, III, 7)
61
«Propter quod subjungitur: Consilium et linguam et oculos et aures et cor
dedit illis exocogitandi que scilicet necessaria sunt et utilia ad bene vivere tam
solitarie quam politice et in communitate perfecta. Potestas autem appropiandi
res temporales tam racionales, sicut uxores et natos, quam alias est inter neces-
saria et utilia humano generi ad bene vivere (. . . ).» (Breviloquium, III, 7).
62
Breviloquium, III, 11.

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24 António Rocha Martins

humana, por ser o que é, não obedece a determinação prévia (con-


curso praevius). O Autor abriu caminhos de irrecusáveis reper-
cussões no futuro (Lutero, Suárez, Hobbes. . . )63 ; restará saber se a
noção de poder, tematizada por Ockham, se encontra, ou não, on-
tologicamente enraizada, porque, se não estiver, os perigos de uma
demasiada fixação no homem/indivíduo persistem, gerando-se, por
via disso, a dificuldade/impossibilidade de se poder identificar o
seu verdadeiro plano metafísico.

63
Cf. André de MURALT, L’unité de la philosophie politique. . . , p. 146:
«C’est chez Guillaume d’Occam qu’il faut chercher, non seulement le principe
des alternances contrairement extrêmes de la philosophie politique moderne,
mais aussi l’origine de la notion d’aliénation. Guillaume d’Occam en donne
la théorie explicite en la définissant à tous les niveaux auxquels elle peut se
réaliser, métaphysique, moral et politique».

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