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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

R349 Revista do CONGEMAS : reconstrução do Sistema Único


1.ed. de Assistência Social : o desafio coletivo na
eliminação da fome e da pobreza, na ampliação
da proteção social no Brasil [livro eletrônico] /
organizadora Jucimeri Isolda Silveira. – 1.ed. –
Brasília, DF : Colegiado Nacional de Gestores
Municipais de Assistência Social – CONGEMAS, 2023.
PDF

Vários autores.
ISBN 978-65-981652-0

1. Assistência social – Brasil. 2. Direitos


humanos – Brasil 3. Fome – Aspectos sociais.
4. Pobreza – Aspectos sociais. 5. Proteção social.
6. Sistema Único de Assistência Social (SUAS).
I. Silveira, Jucimeri Isolda.

10-2023/107 CDD 361.30981

Índice para catálogo sistemático:


1. Brasil : Sistema Único de Assistência Social :
Serviço social 361.30981
Aline Graziele Benitez – Bibliotecária - CRB-1/3129
Ficha Técnica:

Diretoria Executiva: Vice-Presidenta Regional Nordeste:


Penélope Andrade – Surubim/PE| Médio Porte
Presidente:
Elias de Sousa Oliveira - Foz do Iguaçu/PR | Vice-Presidenta Regional Centro Oeste:
Grande Porte Vânia Aparecida dos Santos Murgatt – Bonito/
MS – Pequeno Porte I
Vice-Presidente:
Valdiosmar Vieira Santos – Lagarto/SE | Médio Vice-Presidenta Regional Sudeste:
Porte Elaine Medeiros Fonseca da Silva – Nova Igua-
çu/RJ – Grande Porte
Primeira Secretária:
Maria Dalva Vieira – Viçosa/RN | Pequeno Vice-Presidenta Regional Sul:
Porte I Rosângela Batista da Silva Duarte – Pinhais/
PR – Grande Porte.
Segunda Secretária:
Ivone Pereira Castro – Cordisburgo/MG | Pe-
queno Porte I
Articuladora Municipal de Pequeno Porte I:
Primeira Tesoureira: Sofia Ulisses Santos – Dona Inês/PB
Magali Pereira Costato Basile – Atibaia/SP |
Grande Porte Articuladora Municipal Pequeno Porte II:
Larissa Araújo Santos Andrade – Gandu/BA
Segundo Tesoureiro: Articuladora Municipal Médio Porte:
Márcio Damasceno Farias – Pires Pereira/CE | Arabella Janne Mendonça da Silva – Rio Lar-
Pequeno Porte I go/AL

Articuladora Municipal Grande Porte:


Luciana Mantovaneli – Linhares/ES
Conselho Fiscal:
Articuladora Metrópole:
Primeira Conselheira Fiscal: Rosilene Rocha – Belo Horizonte/MG
Keiles Lucena de Macedo – Picuí/PB | Peque-
no Porte I
1ª Suplente: Vera Lúcia Oliveira de Souza –
Segunda Conselheira Fiscal: Ponta Porã/MS – Médio Porte
Viviane Souza França – Contagem/MG | Médio
Porte 2ª Suplente: Francisco Soares Cavalcante
Neto – Água Branca/PI – Pequeno Porte ll
Terceira Conselheira Fiscal:
Lúcia Marquim – São Caetano/PE | Pequeno 3ª Suplente: Flávia Maria Tavares de Lima
Porte II Machado – Palmeira dos Índios/AL - Médio
Porte
Quarta Conselheira Fiscal:
Ediana de Castro Dourado Santos – João Dou- 4ª Suplente: Richardson Lenine de Alencar
rado/BA | Pequeno Porte II Carvalho – Campo Redondo/RN – PPI

Quinta Conselheira Fiscal: 5ª Suplente: Miriam Luciana Saggin Visoto –


Jucélia Gonçalves Ferro – Sorriso/MT | Médio Tapera/RS – Pequeno Porte I
Porte
6º Suplente: Maria de Lourdes Silva lima –
Porto/PI – Pequeno Porte I

Vice-Presidente Regional Norte: Coordenação técnica: Jucimeri Isolda


Heitor Márcio Pinheiro dos Santos | Curionó- Silveira
polis/PA | Pequeno Porte
Editorial:

04 | Ficha Técnica REVISTA CONGEMAS EDIÇÃO ESPECIAL


Prefácio
O tema “Reconstrução do Sistema Único de
Assistência Social: o desafio coletivo na elimi-
nação da fome e da pobreza, na ampliação
da proteção social no Brasil”, exige de nós a
crítica ao desmonte do SUAS praticado nos
últimos governos, especialmente nos últi-
mos anos. Foram tempos sombrios, de mui-
tas adversidades, de fragilização do sistema
de proteção social brasileiro. Mas resistimos,
atuamos de modo propositivo e democrático,
sinalizando os evidentes obstáculos ao pacto
federativo, e, por isso, é preciso ressaltar nos-
sa capacidade organizativa, nossa resiliência
e protagonismo. Somos uma grande força
social e política no Brasil, na administração
pública, na esfera pública do Estado. Hoje po-
demos afirmar categoricamente que o SUAS
foi atacado, mas não os municípios não para-
ram. Este tema, portanto, também expressa a
convicção de que vamos construir de modo
coletivo um novo país, sem fome e pobreza,
com políticas e reformas que efetivamente
reduzam as desigualdades e as desproteções
sociais, envolvendo a sociedade civil e organi-
zações não-governamentais atuando tanto no
planejamento de políticas públicas quanto no
monitoramento e avaliação destas.
É importante reconhecer, que no contexto de
desfinanciamento e de grave crise decorren-
te da pandemia de COVID-Covid19, os muni-
cípios mantiveram os serviços, com todas as
dificuldades, e comprovaram a resiliência do
municipalismo brasileiro, mas também, e, es-
pecialmente na atual conjuntura de retoma-
da da agenda de direitos e de sustentabilida-
de das políticas socais, a potencialidade de
reconstruir o SUAS a partir do município, da
atuação de gestoras/es, trabalhadoras/es, usu-
árias/os, conselheiras/os, entidades e organi-
zações da sociedade civil.
O lugar de resistência e de viabilização da
proteção social nos municípios nos permite
reafirmar a necessidade de uma nova política
econômica aliada a uma política social mais
ampla, que considere as particularidades ter-
ritoriais e as diversidades das populações e
grupos sociais, com resultados positivos na
redução das desigualdades, o que supõe fun-
do público, pacto federativo e reformas estru-
turantes.

05 | Prefácio REVISTA CONGEMAS EDIÇÃO ESPECIAL


A população mais pobre e que vive em con- de critérios de territorialização, quantidade
textos mais desiguais no Brasil, tem sofrido de equipes, custo de serviços, financiamento
as consequências da adoção do ultraneolibe- de serviços tipificados e não implementados,
ralismo, da subordinação dos direitos sociais entre outros avanços necessários.
conquistados ao ajuste fiscal, em flagrante
É igualmente importante avançarmos na re-
descumprimento dos deveres do Estado De-
lação intersetorial com demais ministérios,
mocrático de Direito, mantendo os ideais fir-
para garantir a intersetorialidade e a integra-
mados pelo pacto federativo nas antípodas
lidade dos direitos e da proteção social, numa
das reais necessidades populacionais.
perspectiva macro, de propostas a longo pra-
O SUAS já está sendo reconstruído desde a zo, distante de interesses casuísticos, mas
transição de governo. As evidências do pro- que possam ano longo prazo desenvolver ou-
cesso de restabelecimento de deste sistema tras potencialidades. Nesse sentido, alguns
público e da atuação intersetorial no com- programas precisam ser retomados e novas
bate à fome e pobreza são concretas: recu- ações precisam ser construídas para eliminar
peração de mais de 2 bilhões de recursos as profundas desigualdades no Brasil.
orçamentários para o SUAS; repactuação do
No âmbito do SUAS, alguns aprimoramentos
processo de verificação do Cadastro Único e
demandam respostas rápidas, de curto pra-
de gestão interfederativa; pactuação de um
zo. É fundamental rever algumas correspon-
Programa de Fortalecimento Emergencial
sabilidades e fortalecer o papel dos estados.
do Atendimento do Cadastro Único no SUAS,
É uma prioridade para os municípios que o
com destinação de recursos para apoio aos
ente estado assuma fortemente seu papel
municípios e estabelecimento de prioridades
no SUAS, sem programas paralelos e pontu-
e corresponsabilidades; retomada das ins-
ais, com financiamento e ações adequadas
tâncias do SUAS da Política de Segurança Ali-
às corresponsabilidades pactuadas no SUAS,
mentar e Nutricional; criação de comissões
como a regionalização e o cofinanciamento
técnicas, com destaque para a revogação da
atento às demandas específicas em conso-
Portaria 2362/19, de redesenho do Programa
nância às regulamentações já previamente
Criança Feliz, que resulte na sua regulação
postas. A regularidade no financiamento e o
no âmbito da proteção social básica no do-
princípio das corresponsabilidades, também
micílio, com respectivo financiamento e cor-
é uma exigência para os estados.
responsabilidades, e de solução dos passivos
do Benefício de Prestação Continuada. Além das emergências orçamentárias, já que
o governo anterior quase zerou o orçamen-
Algumas prioridades para a nova gestão têm
to federal, é preciso garantir uma revisão de
sido reforçadas nas instâncias do SUAS pelo
custos dos serviços, construir um plano na-
Congemas: o aprimoramento da gestão das
cional de revitalização das unidades públicas,
condicionalidades, a gestão integrada do Ca-
absolutamente sucateadas nos últimos anos.
dúnico; a integração e posição estratégica do
É necessário regularizar o cofinanciamento
SUAS nos esforços pela superação da fome e
pactado em 2015 e iniciar um novo pacto de
da pobreza; a regulamentação da defesa de
aprimoramento; ampliar, garantir regularida-
direitos e os serviços híbridos de cuidado; o
de nos repasses e aprimorar critérios dos in-
redesenho do programa Criança Feliz e de
centivos de Gestão do SUAS e do Programa
outras políticas voltadas à infância, como a
Bolsa Família.
proteção social aos órfãos em decorrência da
Covid e do feminicídio; e o aprimoramento
e a revisão de rumos no SUAS, com revisão

06 | Prefácio REVISTA CONGEMAS EDIÇÃO ESPECIAL


Nesse sentido, consideramos ser imprescin- a cumprir o II Plano Decenal de Assistência
dível regulamentar a vinculação de recursos Social (2016/2026), além de aprimorar o mo-
nas três esferas de governo, seja pela aprova- delo de regionalização da proteção social
ção da PEC 383/17, ou na imediata construção especial, com ampliação de cofinanciamen-
de uma iniciativa do governo federal que via- to; restabelecer os Programas deliberados e
bilize a vinculação de recursos e a sustenta- regulamentados no SUAS, especialmente o
bilidade do SUAS. Devemos persistir na luta ACESSUAS e o AEPETI, com os devidos apri-
coletiva pela revogação da Emenda Constitu- moramentos para enfrentar o desemprego
cional nº 95/16 e intensificar ações que bar- e o trabalho infantil; retomar a implantação
rem todos os projetos que buscam reduzir o da gestão do trabalho do SUAS, o cofinancia-
papel do Estado e subordinar os direitos ao mento e o aprimoramento do programa de
ajuste fiscal. Educação Permanente, com implantação e
unificação dos percursos formativos e ado-
É preciso assegurar condições para prover o
ção de novos dispositivos que qualifiquem
novo Bolsa Família, de modo integrado com
os serviços prestados à população. É preciso
demais políticas sociais, vinculado às mais di-
que o SUAS tenha o tamanho e a importân-
versas redes socioassistenciais dispostas nos
cia que o povo tem.
municípios, e que servem de bases para vin-
culação e promoção de programas e projetos O desafio central, portanto, é o de construir
vinculados ao SUAS. A segurança de renda pactos e deliberações nas instâncias do SUAS
é um direito que deve ser acompanhado de que deve ser aprimorado e consolidado na
serviços públicos integrados e de qualidade, proteção social mais ampla.
com aprimoramentos constantes. Entende-
A agenda em defesa do SUAS é ampla e viável
mos, ainda, ser necessário a gestão e a ope-
já que busca a plena concretização do direito
racionalização do Benefício de Prestação
à assistência social integrado aos demais di-
Continuada no âmbito do órgão gestor da
reitos de cidadania. Vivemos um novo tempo
Assistência Social, com adoção de mecanis-
e nós militantes do SUAS estamos com muita
mos urgentes para a desburocratização do
disposição política para fortalecer a democra-
acesso.
cia e o pacto federativo, reconstruir o SUAS,
Outra pauta fundamental é a expansão do uma conquista do povo brasileiro, e colaborar
SUAS no Brasil. É preciso expandir os serviços em programas intersetoriais que promovam
socioassistenciais em resposta às demandas condições dignas de vida para a população.
da população, sem que estas fiquem centra-
É fundamental, nesse sentido, a retomada
das apenas nos grandes centros, mas que
da capacidade de o Estado prover e univer-
atendam em sua integralidade locais mais
salizar serviços e benefícios, proteção e cui-
distantes, muitas vezes deixadas à margem
dado, com integração de políticas públicas
da esfera de participação e decisão em políti-
e direitos, visando a prevenção e a interrup-
cas sociais e recursos públicos. É fundamen-
ção de violações, de ciclos de pobreza, com
tal aprimorar as regulações do SUAS, os crité-
efetiva redução das desigualdades; a imple-
rios de territorialização das unidades públicas
mentação de reformas e políticas que com-
e a previsão de trabalhadoras/es. Temos que
binem eliminação das desigualdade, gestão
revitalizar e fortalecer toda rede de serviços.
democrática e participação social, o que im-
Faz parte da agenda de lutas no SUAS, den- plica financiamento público adequado às
tre outros avanços, rever patamares de cofi- coberturas planejadas; ações transformado-
nanciamento e pactuar novos serviços que ras de vidas, com impactos positivos nos ter-
considerem a Tipificação Nacional de Servi- ritórios, no campo e na cidade, na direção da
ços Socioassistenciais, as diversidades e as emancipação humana.
potencialidades locais e regionais, de modo

Elias de Souza Oliveira: Presidente do


Colegiano Nacional de Gestores/as
Municiais de Assistência Social

07 | Prefácio
Ação e mobilização no
combate à fome
no Brasil

Desafios para a superação da


pobreza e da fome no Brasil

Desafios para a superação da


pobreza e da fome no Brasil
Pacto e o papel estratégico
do SUAS

O novo Bolsa Fámilia e a


atuação intersetorial

A pobreza multidimensional e o
eterno desafio da intersetorialidade
em prol dos direitos das crianças e
dos adolescentes

Rumo à construção de uma


Política Nacional de cuidados
no Brasil

Papel estratégico dos Centros


de Referência da Assistência
Social - CRAS no combate as
desigualdades e respeitos as
diversidades no SUAS

Por mais proteção no território:


A importancia do cadastro único
para vigilância
socioassitencial

REVISÃO DA TIPIFICAÇÃO
NACIONAL DOS SERVIÇOS
SOCIOASSISTÊNCIAIS

Gestão do SUAS: Agenda e


instrumentos necessários para
fortalecer a democracia e pro-
05 | Sumário mover direitos.
A importância (e desafios) da
efetivação da Vigilância Socioa-
ssistencial

A relação e a integração
operacional entre o SUAS
e o sistema

Financiamento do SUAS
– A retomada do diálogo com os
entes federados e o
compromisso com fundo a fun-
do regular, automático
e democrático!

Financiamento do SUAS - A re-


tomada do diálogo com os entes
federados e o compromisso com
fundo a fundo regular, automáti-
co e democrático!

Papel do SUAS na garantia dos ser-


viços de prestação continuada

Proteção social à população


de rua e o aprimoramento das
ações do SUAS

Papel do SUAS na Proteção Social


de migrantes, Refugiados e Apátri-
das

A atuação do SUAS em situa-


ções de Calamidade Públicas e
de Emergências

| A Lei 13.431/2017 e suas implica-


Cenário Socioeconômico,
ções para a proteção de crian-
Violências, panorama do
ças e adolescentes vítimas ou
Sistema Único de Assis-
testemunhas
tência e Agenda con-
de violência do âmbito do SUAS
truída nos encontros do
CONGEMAS

06 | Sumário
Roberta Aline/MDS

Wellington Dias
Ministro do Desenvolvimento e Assistência Social,
Família e Combate à Fome.

10 | Ação e mobilização no combate a fome no Brasil REVISTA CONGEMAS EDIÇÃO ESPECIAL


É com profunda tristeza que testemunhamos milhões de pessoas em nosso país e ao redor do
mundo sofrendo com a falta de alimentos básicos para sobreviver. A fome não é apenas uma
questão de necessidades básicas não atendidas, mas também uma violação dos direitos hu-
manos fundamentais. É uma realidade que não podemos mais ignorar. Acredito firmemente
que a fome não é um problema insolúvel. Temos os recursos, a tecnologia e a capacidade de
erradicar essa terrível realidade. No entanto, isso requer um compromisso coletivo, uma ação
conjunta de todos os setores da sociedade.
Nosso papel é mobilizar recursos, criar parcerias e implementar políticas eficazes para enfren-
tar essa crise. Ações nessa linha estão previstas dentro do plano Brasil sem Fome. Com ele, va-
mos trabalhar em conjunto com organizações não governamentais, empresas, instituições de
ensino e a sociedade civil para desenvolver soluções sustentáveis e de longo prazo.
Precisamos solidificar uma abordagem multifacetada. Primeiro, investindo em programas de
transferência de renda como o Bolsa Família, também com ações de educação alimentar e,
também, atuar no fortalecimento dos sistemas de distribuição de alimentos, garantindo que
ninguém seja deixado para trás.
Também é essencial abordar as causas subjacentes da fome, como a pobreza, a desigual-
dade e a falta de acesso a serviços básicos. Nós, no MDS, estamos trabalhando para criar
oportunidades econômicas, promover a inclusão social e garantir que todos tenham acesso a
uma renda digna.Mas, acima de tudo, vamos lembrar que a fome não é apenas um problema
estatístico. São vidas humanas que estão em jogo. Cada pessoa que passa fome é alguém
que merece dignidade, respeito e uma chance justa na vida. Vamos lutar por elas, porque é
nosso dever humano.
O combate à fome não é apenas uma questão de caridade, mas uma questão de justiça. É uma
batalha que devemos travar juntos, com coragem, determinação e compaixão. Vamos nos unir
como uma comunidade, como uma nação, e mostrar ao mundo que a fome não tem lugar em
nosso tempo.
Eu acredito que podemos fazer a diferença. Juntos, podemos erradicar a fome e construir um
futuro onde todos tenham acesso a alimentos adequados e suficientes. Vamos ser a mudança
que queremos ver no mundo. Juntos, vamos vencer essa batalha!

Roberta Aline/MDS

11 | Ação e mobilização no combate a fome no Brasil REVISTA CONGEMAS EDIÇÃO ESPECIAL


Raoní LIbório - UNICEF

André Quintão Silva


Secretário Nacional de Assistência Social, Ministério
de Desenvolvimento e Assistência Social, Família e
Combate à Fome – MDAS.

12 | Desafios para a superação da pobreza e da fome no Brasil REVISTA CONGEMAS EDIÇÃO ESPECIAL
Agradeço ao Colegiado Nacional de Gestores Municipais de Assistência Social (CONGEMAS)
por este espaço na revista e pela oportunidade do diálogo federativo. Os municípios são atores
chave no funcionamento da gestão compartilhada, descentralizada e participativa do Sistema
Único de Assistência Social (SUAS).
É por intermédio da atuação cotidiana e coletiva de gestores (as), trabalhadores (as), conse-
lheiros (as), usuários (as), Entidades e Organizações de Assistência Social/OSC e instituições de
formação que a política de Assistência Social se materializa nos territórios e na vida das famílias
brasileiras.
Os municípios tiveram um papel preponderante na trajetória de implementação do SUAS no
Brasil. Após quase duas décadas de implantação, o SUAS está presente em praticamente todos
os municípios brasileiros, com uma rede de atendimento robusta e capilarizada.
Segundo dados do Censo SUAS 2022, são mais de 8,5 mil Centros de Referência de Assistência
Social (CRAS), mais de 2,8 mil Centros de Referência Especializado de Assistência Social (CRE-
AS), 237 Centros de Referência para População em Situação de Rua (Centro POP) e mais 6,5 mil
unidades de acolhimento.
O Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico), o Benefício de Pres-
tação Continuada (BPC) e o Programa Bolsa Família (PBF) são conquistas da sociedade brasi-
leira no campo das políticas públicas e exemplos mundiais de tecnologias sociais efetivas de
enfrentamento à pobreza e à fome, com impacto para os beneficiários e para a dinamização
das economias locais.
O CadÚnico funciona como o grande elo que permite conhecer as famílias de baixa renda e
integrar transferência de renda com acesso a serviços e direitos básicos.

13 | Desafios para a superação da pobreza e da fome no Brasil REVISTA CONGEMAS EDIÇÃO ESPECIAL
Cerca de 47% da população brasileira está no 15,5%, atingindo cerca de 33 milhões de
CadÚnico, o que corresponde a mais de 96 mi- pessoas. Nesse contexto, em 2022, o Bra-
lhões de pessoas1 . Quase 56 milhões de pesso- sil, lamentavelmente, voltou para o Mapa
as são beneficiárias do Programa Bolsa Famí- da Fome, do qual havia saído em 2014.
lia (PBF)2 e quase 5,4 milhões são beneficiárias
do Benefício de Prestação Continuada (BPC)3.
Segundo dados do Registro Mensal
Estes resultados, que são fundamentais de Atendimento (RMA), no período de
para o enfrentamento da pobreza e da fome 2017 a 2022, os atendimentos individu-
no país, não teriam sido alcançados sem o alizados nos CRAS cresceram 86%, pas-
compromisso e o engajamento dos muni- sando de 21,5 milhões para 40 milhões.
cípios brasileiros na identificação e inclu-
são da população em situação de maior É notável o empenho dos municípios para
vulnerabilidade no CadÚnico e na promo- absorver o crescimento da demanda por
ção de seu acesso a benefícios e serviços. atendimento no SUAS, mesmo em um
contexto de retração dos repasses regu-
Nos últimos anos, os municípios desem- lares dos recursos do cofinanciamento
penharam, ainda, um papel de suma im- federal.
portância na sustentação do SUAS em
um contexto notadamente adverso, mar- Dados do RMA mostraram, ainda, que,
cado pela pandemia da COVID-19, pelo no segundo trimestre de 2020, a deman-
aumento da pobreza e da fome e, para- da por Benefícios Eventuais (BE) dobrou,
doxalmente, pela retração do cofinancia- passando de 14,3% para 28,9% do total
mento federal para a política de Assistên- de atendimentos realizados nos CRAS.
cia Social. Estudo do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada - IPEA (SOUZA; HE- Assim, no período analisado, a conces-
CKSHER; OSORIO, 2022) constatou que, são de Benefícios Eventuais pelos mu-
entre 2020 e 2021, o país atingiu seu nicípios - desconsiderando os Auxílios
maior patamar de pobreza desde 1990. por Natalidade e por Morte – também
aumentou, saltando de 852 benefícios
De acordo com estudo da Rede Brasileira concedidos no primeiro trimestre para
de Pesquisa em Soberania e Segurança 2.610 no segundo trimestre de 2020
Alimentar – Rede PENSSAN (2022), de 2018
para 2022, o percentual de brasileiros em
situação de insegurança alimentar gra-
ve quase triplicou, passando de 5,8% para

Waldemar Neto

1 Dados de Julho/2023. Fonte: Disponível em: https://olheparaafome.com.br/wp-content/uploads/2022/06/Rtorio-II-VIGISAN-2022.pdf Consultado em 06.10.2023.

2 Dados de Setembro/2023. Fonte: RI de Programas e Ações do MDS. Disponível em: https://olheparaafome.com.br/wp-content/uploads/2022/06/Relatorio-II-VIGISAN-2022.pdf Consultado em Dados

de Julho/2023.

3 Fonte: RI de Programas e Ações do MDS. Disponível em: http://blog.mds.gov.br/redesuas/sistemas/consultas-publicas/ Acesso em: 06.10.2023.

14 | Desafios para a superação da pobreza e da fome no Brasil REVISTA CONGEMAS EDIÇÃO ESPECIAL
A população negra, as mulheres, as crianças, fícios da política de Assistência Social, em
os adolescentes e os Grupos Tradicionais e 2022, o orçamento destinado pelo governo
Populacionais Específicos - que abrangem, anterior na PLOA 2023 para serviços e pro-
por exemplo, as pessoas em situação de rua, gramas do SUAS foi reduzido ao patamar
os povos indígenas e os povos e as comunida- de R$ 50,7 milhões – o que representa me-
des tradicionais – estão entre os públicos mais nos de 4% da estimativa de recursos ne-
afetados pela pobreza e pela fome no Brasil. cessários para a manutenção destas ofer-
Segundo dados do Ministério do Desenvolvi- tas sem alteração do patamar de cobertura.
mento e Assistência Social, Família e Combate
à Fome (MDS), em março de 2023, 69% dos be- Para enfrentar esse quadro dramático, uma
neficiários do PBF eram negros e cerca de 45% das primeiras medidas adotadas pelo atual
eram crianças e adolescentes de até 17 anos. governo, ainda durante a transição, foi a ar-
ticulação com o Congresso Nacional, que re-
sultou na recomposição do orçamento da As-
Quase metade das famílias beneficiárias do sistência Social, por meio da PEC nº 32/2022.
PBF eram famílias chefiadas por mulheres
com filhos (47%). No caso do Benefício de
Prestação Continuada, 68% dos beneficiá-
rios com deficiência eram negros; e dentre
as pessoas idosas beneficiárias, 59% eram
negras e praticamente 60% eram mulheres.

Nessa direção, ainda, o estudo da Rede Brasi-


leira de Pesquisa em Soberania e Segurança
Alimentar (2022) identificou que a inseguran-
ça alimentar nos domicílios com crianças de
até 10 anos de idade praticamente dobrou de
2020 para 2021, passando de 9,4% para 18,1%.
Além disso, constatou que 65% dos lares co-
mandados por pessoas negras e 64,1% dos
lares chefiados por mulheres estavam em
insegurança alimentar no período analisado.

Em contraposição ao cenário observado nos


últimos anos de adensamento da fome, da
pobreza e da demanda por serviços e bene-

Assim, de R$ 50,7 milhões na PLOA 2023, que possibilitou à União reestabelecer a re-
o orçamento da Assistência Social desti- gularidade dos repasses dos recursos federais
nado à manutenção dos programas e ser- aos municípios e honrar compromissos do
viços socioassistenciais foi elevado ao pa- governo federal com a gestão compartilhada
tamar de R$ 2,3 bilhões na LOA 2023. do SUAS e com a proteção das populações
Essa recomposição do orçamento por meio em situação de maior vulnerabilidade so-
da PEC nº 32/2022 foi uma primeira grande cial, mais afetadas pela pobreza e pela fome.
vitória no percurso de reconstrução do SUAS,

15 | Desafios para a superação da pobreza e da fome no Brasil REVISTA CONGEMAS EDIÇÃO ESPECIAL
Outra medida estruturante para o enfrenta- de 2023 foram realizadas mais de 2 milhões de
mento do aumento da fome e da pobreza, novas concessões do PBF.
adotada no início da gestão do atual gover-
no, foi a retomada do Programa Bolsa Família, O fortalecimento do SUAS, a retomada e o
com a composição do benefício com valores aprimoramento do Programa Bolsa Famí-
per capta, ou seja, considerando o número de lia e o PROCADSUAS integram, ainda, outra
pessoas de cada família. importante estratégia adotada pelo gover-
no federal para o enfrentamento da pobreza
Essa lógica do cálculo do benefício está funda- e da fome no país: o Plano Brasil Sem Fome.
mentalmente atrelada à trajetória eficiente do
Programa no enfrentamento da pobreza, so-
Mídia Ninja
bretudo entre crianças e adolescentes, o que
lhe conferiu reconhecimento mundial. Com os
aprimoramentos realizados no PBF, nenhuma
família recebe menos do que R$ 600 e todas
as pessoas da família, independentemente da
idade, têm direito a uma renda mínima.

As famílias beneficiárias com crianças de 0


a 6 anos recebem um acréscimo de R$ 150
por criança; e aquelas que possuem crianças
a partir de 7 anos e adolescentes até 18 anos
recebem um adicional de R$ 50 por criança
ou adolescente. As famílias beneficiárias com
gestantes ou nutrizes têm direito, ainda, a um
acréscimo de R$ 50 por cada gestante ou nu-
triz.

Como parte da reestruturação das políticas de


enfrentamento à pobreza e à fome no país, a
atual gestão lançou, no início de 2023, o Pro-
grama de Fortalecimento Emergencial do
Atendimento do Cadastro Único no SUAS – o
PROCAD/SUAS.

Pactuado nas instâncias do SUAS, o Programa


é resultado de uma parceria entre a Secreta-
ria Nacional de Assistência Social (SNAS) e a
Secretaria de Avaliação, Gestão da Informação
e Cadastro Único (SAGICAD). Tem como obje-
tivo fortalecer a busca ativa e a identificação
eficiente das famílias mais afetadas pela po- Lançado por meio do Decreto nº 11.679, de
breza, com sua inclusão e atualização cadas- 31 de agosto de 2023, o Plano tem como ob-
tral; e, ainda, tratar inconsistências em regis- jetivo reduzir a insegurança alimentar e
tros no CadÚnico. nutricional e a pobreza, com estratégias
intersetoriais que integram esforços do go-
O PROCAD/SUAS destinou cerca de 200 mi- verno e da sociedade civil. A expectativa é
lhões de reais aos estados, ao Distrito Federal retirar novamente o país do Mapa da Fome,
e aos municípios. A expectativa com a busca com 80 ações estruturadas em três eixos:
ativa é localizar as famílias mais afetadas pela I - acesso à renda, redução da pobre-
pobreza e pela fome, especialmente aquelas za e promoção da cidadania; II - seguran-
pertencentes aos Grupos Populacionais Tra- ça alimentar e nutricional - alimentação
dicionais e Específicos – GPTE,como a popula- adequada, da produção ao consumo; e
ção em situação de rua e os povos indígenas. III - mobilização para o combate à fome.
Segundo dados do MDS, de março a setembro

16 | Desafios para a superação da pobreza e da fome no Brasil REVISTA CONGEMAS EDIÇÃO ESPECIAL
Roberta Aline/MDS

Hermes de Paula

A elaboração do Plano Nacional de Alimenta- Na linha de recomposição das instâncias


ção no SUAS, que vai integrar SUAS e Sistema colegiadas do SUAS, merece destaque, ain-
Nacional de Segurança Alimentar e Nutricio- da, o fortalecimento do caráter deliberativo
nal (SISAN) com o objetivo de ampliar o acesso do Conselho Nacional de Assistência Social
dos beneficiários do SUAS à alimentação sau- (CNAS) e a intensa agenda de trabalho em
dável, é uma das ações inovadoras previstas curso, que envolveu, dentre outras ações:
no Brasil sem Fome. Dentre outras ações inte- Reuniões Trimestrais, com o CNAS e os Con-
gradas que preveem a participação do SUAS selhos de Assistência Social Estaduais e do
no Brasil sem Fome, destacam-se aquelas Distrito Federal; Reuniões Regionais, que
que visam alcançar as populações mais afeta- tiveram como objetivo central fomentar a
das pela pobreza e pela fome – como a popu- participação dos usuários no processo con-
lação negra, as mulheres, os povos indígenas, ferencial de 2023; e a Reunião Descentrali-
s povos e as comunidades tradicionais e a po- zada e Ampliada do CNAS, em Salvador, em
pulação em situação de rua. Como exemplo, maio de 2023.
podemos citar a construção de diretrizes para
a qualificação do atendimento a estes públi- Também não poderia deixar de mencio-
cos; o fortalecimento das equipes volantes nar o intenso engajamento do CNAS e dos
da Proteção Social Básica e do atendimento Conselhos nas diferentes esferas para a re-
à população em situação de rua; e a elabora- alização do processo conferencial 2023, de
ção de protocolo de integração entre SUAS, forma democrática, com a participação de
Sistema único de Saúde (SUS) e SISAN para a conselheiros (as), especialistas, gestores (as),
identificação e atenção às situações de inse- trabalhadores (as), usuários (as) e Entidades
gurança alimentar e nutricional. e Organizações de Assistência Social/OSC.
Com o tema da 13ª Conferência Nacional de
No início de 2023, a SNAS retomou também a Assistência Social “Reconstrução do SUAS:
regularidade das reuniões da Comissão Inter- O SUAS que temos e o SUAS queremos”, o
gestores Tripartite (CIT), demarcando nosso CNAS está mobilizando nacionalmente o
compromisso com o diálogo interfederativo e debate acerca do necessário fortalecimento
com a gestão compartilhada do SUAS. Aten- do SUAS e da agenda urgente de enfrenta-
dendo às reivindicações dos gestores da As- mento da fome e redução da pobreza, das
sistência Social, três Câmaras Técnicas da CIT desigualdades e das desproteções sociais.
foram instituídas, com o objetivo de debater:
o cofinanciamento da política e a Portaria MC O enfrentamento da fome e da pobreza são
nº 2362/2019; o Programa Primeira Infância questões complexas que exigem esforços in-
no SUAS/ Programa Criança Feliz, que está tegrados interfederativos, entre as diferentes
em processo de reordenamento para sua in- políticas públicas e entre governo e socieda-
tegração ao Serviço de Proteção Social Básica de civil. A priorização destas agendas tem sido
no Domicílio; e a atenção no SUAS a migran- um compromisso político do governo federal.
tes e refugiados, uma realidade crescente e
desafiadora no país.

17 | Desafios para a superação da pobreza e da fome no Brasil REVISTA CONGEMAS EDIÇÃO ESPECIAL
No delineamento de estratégias de enfrenta- Progressiva recomposição do orçamento da
mento e alteração dessa realidade temos recor- União para a Assistência Social, para repasse
rido ao aprendizado acumulado, à abertura para de recursos aos entes condizente com: va-
a inovação e, ainda, ao diálogo interfederativo, lores pactuados de repasse do cofinancia-
à participação social e à transparência pública, mento federal; cobertura de serviços pres-
que são elementos salutares às democracias. tados e ainda não cofinanciados; demandas
de expansão de serviços socioassistenciais;
Para além do alcance de um patamar dig- e apoio a novos serviços tipificados;
no de sobrevivência à população brasilei-
Reordenamento do Programa Primeira In-
ra, nosso objetivo no combate à fome e à
fância no SUAS/ Programa Criança Feliz,
pobreza é enfrentar também as desigual-
com ampliação da cobertura de municípios
dades de renda, raciais, étnicas e de gêne-
e do público atendido;
ro, tendo como horizonte a defesa da jus-
tiça social, da equidade e da inclusão social. Revisão do Programa de Enfrentamento ao
Trabalho Infantil (PETI), com retomada do
Quero também ressaltar que, em 2023, os en- cofinanciamento federal;
contros regionais do CONGEMAS e do Fórum Apoio ao Plano Nacional de Convivência Fa-
Nacional de Secretários (as) de Estado de As- miliar e Comunitária, incluindo o estímulo
sistência Social (FONSEAS), as Conferências ao fortalecimento do Serviço de Acolhimen-
de Assistência Social Municipais, Estaduais to em Família Acolhedora e a novas modali-
e do Distrito Federal nos possibilitaram es- dades de acolhimento, como o acolhimento
paços privilegiados para o debate, a parti- conjunto mãe/filho (s);
cipação social e o exercício da democracia.
Reorganização do trabalho com a popula-
Após uma intensa participação da SNAS nes- ção de rua, em especial nas metrópoles e
tes espaços e de uma ampla escuta de diver- grandes cidades, em articulação com polí-
sos atores, quero aqui registrar alguns desafios ticas de Saúde, Habitação e Geração de Tra-
emergentes constatados e convidar a todos balho e Renda;
para a continuidade do debate, com vistas à Apoio à estruturação do SUAS Indígena e de
construção de uma agenda nacional de re- Povos e Comunidades Tradicionais;
construção do SUAS e de futuro para a política
Fortalecimento da integração entre SUAS e
de Assistência Social. Assim, dentre os desafios
Instituto Nacional do Seguro Social (INSS),
constatados, destaco os elencados a seguir:
buscando aprimorar procedimentos e facili-
tar o acesso ao Benefício de Prestação Con-
tinuada (BPC);
Melhoria da infraestrutura física dos equi-
pamentos do SUAS, com apoio à amplia-
ção, reforma e construção de CRAS, CREAS
e Centro POP, com projetos de construção
padronizados para atendimento mais hu-
manizado aos cidadãos;
Diagnóstico de demandas e ampliação da
mobilidade e conectividade (móvel e nos
equipamentos) do SUAS;
Fortalecimento do PROCAD/SUAS, das es-
tratégias de inclusão e atualização cadastral
e da busca ativa, com ampliação de equipes
volantes do SUAS;

18 | Desafios para a superação da pobreza e da fome no Brasil REVISTA CONGEMAS EDIÇÃO ESPECIAL
Estruturação da Política de Promo- Articulação com o Congresso Nacional para
ção da Igualdade Racial do SUAS; convergência da destinação de emendas par-
lamentares individuais e de bancada impositi-
Atualização e ampliação do Serviço de Pro- vas com as prioridades estabelecidas no SUAS;
teção em Situações de Calamidades Pú-
blicas e de Emergências, visando consoli- Reavaliação e fortalecimento do Ser-
dar uma ampla proteção social adaptativa; viço de Proteção Social a Adolescen-
tes em Cumprimento de Medida Socio-
Aprimoramento da atenção aos migran- educativa de Liberdade Assistência e de
tes e refugiados no SUAS, em parce- Prestação de Serviços à Comunidade;
ria com outras políticas, Estados, Distri-
to Federal, Municípios e outros atores; Construção de estratégias para o for-
talecimento da vigilância socio-
Instituição de estratégias de proteção vol- assistencial no âmbito do SUAS;
tadas a crianças e adolescentes em si-
tuação de orfandade decorrente de Diálogo intersetorial e integração de es-
crimes violentos ou de contextos de pan- forços, sobretudo entre SUS e SUAS, para
demia, emergências ou calamidades; consolidar no país uma Política de Cuida-
dos e qualificar a atenção a pessoas que de-
Garantia da participação ativa do SUAS no pendem de cuidados e a seus cuidadores.
Plano Brasil sem Fome, com maior integra-
ção com o SISAN e o SUS para o enfrentamen-
to da insegurança alimentar e nutricional;

Reestabelecimento da PNEP SUAS com es-


tratégias de capacitação e formação de Finalizando, convido a todos à continui-
trabalhadores (as), conselheiros (as) e ges- dade do debate e ao engajamento na re-
tores (as); discussão e estruturação de alter- construção do SUAS e no fortalecimento
nativas para a educação popular, voltada da política de Assistência Social no Brasil.
aos usuários (as); e instalação da Mesa Na-
cional de Negociação Permanente do SUAS; Que as deliberações da 13ª Conferên-
cia Nacional de Assistência Social pos-
Garantia do pleno funcionamento da CIT e sam, a partir das reflexões sobre o SUAS
do CNAS, respeitando a gestão comparti- que temos e da vocalização das deman-
lhada e democrática, a construção interfe- das da população em âmbito nacional,
derativa, a participação e o controle social; nos projetar rumo ao SUAS que queremos.

Apoio técnico e fortalecimento do vín-


culo com as Entidades e Organizações
da Assistência Social / OSCs que com-
põe a Rede Socioassistencial do SUAS;

Atualização da Norma Operacional Básica


de Recursos Humanos do SUAS, buscando
adequar o perfil das equipes às novas exi-
gências e demandas da sociedade brasileira;

Modernização da gestão financeira e contábil


e dos sistemas informatizados do SUAS, obje-
tivando alcançar maior agilidade e efetivida-
de na utilização dos recursos repassados pelo
Fundo Nacional de Assistência Social, inclusi-
ve com ampliação do assessoramento técnico;

19 | Desafios para a superação da pobreza e da fome no Brasil REVISTA CONGEMAS EDIÇÃO ESPECIAL
Panitan

Marcia Lopes
Ex-Ministra de Desenvolvimento Social e Combate à
Fome do Governo Lula, Consultora na área.

10
20| |Desafios
Desafiospara
paraaasuperação
superaçãoda
dapobreza
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dafome
fomeno
noBrasil:
Brasil:pacto
pactofederativo
federativoeeoopapel
papelestratégico
estratégicodo
doSUAS
SUAS
No Brasil, a fome sempre foi denunciada por
“A dor te dói pelo avesso, diferentes atores e em diversos momentos
históricos. Os protagonistas desta luta en-
Perdida nos teus escuros. frentaram bravamente o campo das dispu-
É como alguém que come tas pela terra, pela produção, pelos interes-
ses comerciais, por grandes corporações, por
Não o pão, mas a fome”. modalidades de legislações que defendem
a vida como negócio no campo e na cidade.
(Thiago de Mello, 1965) A fome, o não acesso ao direito humano à alimen-
tação e tudo o que se desdobra, foram apartados
de qualquer responsabilidade pública, estatal.
Os desafios para superar a Fome no Bra-
sil são muito antigos e reiteram as con- Assim, historicamente, a fome serviu como ob-
tradições de um modelo excludente e, jeto de bandeiras e ações ora de cunho político
portanto, de natureza estrutural, o que re- eleitoreiro, ora como missão voluntária, religio-
chaça a ideia de que a Fome se constitui sa, mesmo operada por setores da administra-
num fenômeno natural ou circunstancial. ção pública federal, estaduais e municipais.

A Fome é a consequência mais perversa das A adoção das conhecidas “cestas básicas”,
desigualdades aqui no Brasil e em todo o como “solução aos famintos” datam de séculos,
mundo. Aproximadamente, 1 bilhão de pes- imprimindo um caráter emergencial para uma
soas no mundo passam fome, dentre os 8 questão estrutural, que deveria ser uma das cen-
bilhões do planeta. E não se trata da falta tralidades das políticas econômicas e sociais.
de alimentos, nem em quantidade e nem
em qualidade, mas, porque nessa área, o ci- Com a Lei Orgânica de Assistência Social –
clo de produção até o acesso da população LOAS (Lei nº 8.742/93) e a implementação do
aos alimentos e a água não se completa. Sistema Único de Assistência Social - SUAS,
as cestas de alimentos passaram a integrar os
Há produção de alimentos suficien- benefícios eventuais, como direito, mas não
tes para atender as necessidades nu- como estratégia permanente de responder à
tricionais na quantidade e qualida- fome. Cada vez mais, articular e integrar po-
de para toda a população brasileira. líticas públicas intersetorialmente, respeitan-
E a meta deve ser a universalização de do os territórios tem sido um grande desafio.
acesso à segurança alimentar e nutricional.

Lembrar que a Constituição Federal de 1988


consagrou os direitos sociais no artigo 6º, in-
cluindo tardiamente, em 2010 e com muita Freepik
mobilização do Conselho Nacional de Se-
gurança Alimentar e Nutricional - Consea,
do Grupo de Trabalho Fome Zero, da Câma-
ra Interministerial de Segurança Alimentar
e Nutricional –- Caisan e dos movimentos
sociais, a alimentação como direito básico.
Com a constitucionalização do direito hu-
mano à alimentação, passamos a ter, assim,
positivado o dever do Estado brasileiro em
assegurar o direito universal à alimentação
ao povo brasileiro, inclusive, respeitando-se
a diversidade de culturas em cada território.

21 | Desafios para a superação da pobreza e da fome no Brasil: pacto federativo e o papel estratégico do SUAS
Sabemos o quanto no país, o processo de Sérgio Amaral / MDS
produção dos alimentos tem lado e interes-
ses explícitos, que não a prioridade de acabar
com a fome e com a insegurança alimentar e
nutricional. Por outro lado, o Brasil também
trilhou caminhos exitosos com experiências
consolidadas pelo estado e/ou pela socieda-
de civil provando que políticas públicas efeti-
vas resolvem a mazela da fome no país. Para
destacar dois exemplos, tem-se na década de
1990 a iniciativa da Ação da Cidadania Contra
a Fome e a Miséria protagonizada pelo que-
rido Betinho, uma iniciativa que persiste até
hoje. E a partir de 2003, a estratégia Fome
Zero no governo Lula, foi capaz de mobilizar
as forças políticas da sociedade, recursos pú-
blicos, programas e serviços de várias políti-
cas públicas que alavancaram a produção e
o acesso aos alimentos integrando Estado e
sociedade na construção de um Sistema Na-
cional de Segurança Alimentar e Nutricional,
normatizado no contexto de uma Rede de
SAN envolvendo todo o ciclo de produção,
abastecimento, comercialização e acesso
aos alimentos, com ênfase no fortalecimen-
to do pacto federativo e no controle social.

De 2003 aà 2016, tal processo foi mobi-


lizador e referência mundial, alterando
substancialmente os indicadores advin-
dos da fome, como: mortalidade infantil,
desnutrição, doenças crônicas, isolamen-
to, evasão escolar, violências, entre outros.

O Brasil, enfim, sai do Mapa da Fome em


2014, tendo assimilado nas políticas pú-
blicas, os princípios centrais de SAN e o
modo de executar e integrar ações que
chegassem a toda população brasileira.

O Brasil passou a ter Planos de SAN, Câ-


maras Interministeriais de SAN (CAI-
SANs), intersetoriais, Conseas (Con-
selhos de SAN), Conferências de SAN,
ForunsFóruns, Redes, sempre conclamando
as três esferas de governo e sociedade civil.

22 | Desafios para a superação da pobreza e da fome no Brasil: pacto federativo e o papel estratégico do SUAS
Sérgio Amaral
Roberta / MDS
Aline / MDS

Os desafios sempre foram incessantes, dada a gravidade dos indicadores de desi-


gualdades no país, as diversidades sócio territoriais, as constantes crises econômi-
cas e políticas, interesses antagônicos, processos crônicos de seletividades no fun-
cionamento do estado, o que sempre retardou o acesso aos direitos da população.

Viu-se o que foi de 2016 a 2022, quando tragicamente o executivo federal comanda e realiza um des-
monte de todas as políticas públicas jamais visto, com desfinanciamento em todas as áreas, ruptura
do pacto federativo, neste caso, que ocorreu a paralização e/ou extinção dos programas e projetos de
SAN e interrupção da implementação do SISAN no país, novamente com o fechamento do Consea.
A ameaça do Brasil voltar ao Mapa da Fome se concretizou e estudos e pesqui-
sas da rede PENSAN, que passou a divulgar números e as condições de vida da popu-
lação brasileira, e que muito rapidamente voltaram à condição de fome e inseguran-
ça alimentar. São 33 milhões de pessoas com fome, 119 milhões de pessoas que não se
alimentam adequadamente todos os dias, entre tantos dados assustadores e inaceitáveis.

E como nesse campo não há “meio prato feito”, não há fatores isolados que justifiquem a fome.
Será preciso novamente, vencer grandes desafios que ensejam a reconstrução de cada área, de
cada política pública, do fortalecimento do pacto federativo, da gestão pública comprometida e
descentralizada, da tomada de decisões que abram novos rumos para a consolidação de um Siste-
ma Público (SISAN), inovador, intersetorial, territorializado, cumprindo a CF/88 e a LOSAN de 2006.

Destacam-se, nesse sentido, alguns desafios para a superação da FOME, diante do novo contexto
político e institucional:

Assegurar a distribuição de renda de forma equitativa e mecanismos de acesso rápido aos alimen-
tos;

Assegurar o poder de compra do Salário MínimoSalário-Mínimo;

Criar políticas públicas para a geração de emprego e renda, respeitando o perfil da população em
sua diversidade nos territórios;

Ampliar a cobertura da proteção social, considerando o Cadúnico, com acesso aos serviços e bene-

23 | Desafios para a superação da pobreza e da fome no Brasil: pacto federativo e o papel estratégico do SUAS
Ampliar a cobertura da proteção social, considerando o Cadúnico, com acesso aos serviços e
benefícios da Assistência Social, como a rede de CRAS, CREAS, Centros Pop, Acolhimentos,
priorizando a população em situação de extrema pobreza e maior vulnerabilidade;

Incentivar a produção da Agricultura Familiar, a começar pela Reforma Agrária;

Retomar, fortalecer e expandir programas como o PAA, o PNAE e equipamentos como os res-
taurantes populares, bancos de alimentos, cisternas, e acesso rápido aos alimentos nos casos
de emergências e calamidades;

Desenvolver ações para que o país produza mais, gastando menos, com prioridade aos peque-
nos produtores e iniciativas coletivas locais;

Adotar atitudes responsáveis em relação ao meio ambiente, cumprindo a legislação pertinen-


te, para que o clima não comprometa a produção;

Criar estratégias para incentivar a alimentação diversificada e culturas agrícolas regionais;

Conter a disparada dos preços dos alimentos, por meio do retorno e do fortalecimento dos
mercados reguladores e da Conab;

Desenvolver medidas efetivas de combate ao desperdício;

Construir estratégias diversificadas, com prioridade à nutrição de crianças e gestantes;

Criar as condições necessárias de recursos e gestão para consolidar o Sistema Nacional de Se-
gurança Alimentar- SISAN em todo o país.

Pacto federativo
e compromissos conjuntos

A partir dos desafios destacados, ressalta-se o A Constituição Federal de 1988 reitera o Pacto
papel de cada ente federado na implantação Federativo brasileiro, envolvendo as três esfe-
ao programa Brasil Sem Fome. O país pode ras de governo: união, estados e municípios,
ter um projeto comum na execução das po- com suas atribuições e responsabilidades.
líticas públicas, na articulação federativa e
na relação Estado e sociedade, respeitando a Tal tema foi ganhando complexidade consi-
grande diversidade socio territorial e regional. derando as novas legislações, a política fis-
cal e tributária, debates do fundo público,
O Brasil tem 203 milhões de habitantes vi- demandas da sociedade, das novas tecno-
vendo em 26 estados, mais o DF. São 5.570 logias, das conquistas por direitos, das exi-
municípios, sendo a grande maioria de até gências pela efetividade das gestões públi-
20.000 habitantes.São 5 grandes regiões cas, dos indicadores sociais, crescimento
(Norte -7 estados, Nordeste - 9, Centro Oes- das desigualdades, desmontes das políticas
te - 3, Sudeste - 4 e Sul - 3), com característi- sociais, crescimento das violências e pre-
cas muito próprias em termos geográficos, conceitos e o flagelo da Fome, entre outros.
culturais, econômicos, demográficos, sociais,
históricas, racial, étnica, de gênero e tan-
tas diversidades de seus povos originários.

24 | Desafios para a superação da pobreza e da fome no Brasil: pacto federativo e o papel estratégico do SUAS
Embora existam entidades fortes represen- Uma agenda comum como essa de um “Brasil
tando as três esferas de governos, principal- Sem Fome” de fato pode ser um elo importante
mente as entidades municipalistas, cada ente pra além de um Programa, se houver real com-
tem atuações distintas e pode dar significa- promisso e disposição tática para implemen-
dos novos na construção de uma agenda co- tar as ações de combate e prevenção a fome.
mum que fortaleça o ente, a região, os terri-
tórios, assegurando identidade, a revelação O Documento Brasil Sem Fome evidencia as
de suas potencialidades, particularidades, possibilidades de serem executadas ações di-
construção de estratégias na implementação retas conforme as necessidades e indicadores.
das políticas públicas setoriais e intersetoriais. Nenhuma política pública se efetiva sem
um bom diagnóstico, planejamento, de-
No caso da Fome, cada ente continua com finição de metodologias, dimensões dos
suas atribuições, mas de modo especial a exe- investimentos, escala, ações continu-
cução de políticas, programas, financiamen- as, equipes, articulação, comunicação,
to, dos níveis nacional e estaduais recaem sistema de avaliação e monitoramento.
nos municípios porque ali está a população.

A experiência do Fome Zero mostrou que hortas comunitárias; abrir restaurantes popu-
apenas das 35 ações integrantes, a prio- lares; melhorar a qualidade da alimentação
ridade inicial em 4 ações com escala na- escolar; incentivar a construção de sistemas
cional, fez um movimento que deu for- sustentáveis de produção de alimentos; in-
ça e foi orientando os próximos passos. cluir a população em situação de rua e de vul-
Cada ente além de assumir o compromisso nerabilidade social nos programas de trans-
ético e político, foi se colocando como parcei- ferência de renda do governo federal, como
ro que integrou o projeto maior contra a fome. por exemplo o Bolsa Família; aproveitar as
estruturas e equipamentos existentes da As-
Do ponto de vista de perfil sócio econômico, o sistência Social para acompanhar a entrada
Cadastro Único registra informações de todas das pessoas nos programas e acompanhar
as famílias que atendem o critério de renda o desenvolvimento nutricional das crianças,
(1/2 salário mínimosalário-mínimo por pessoa mães e gestantes; incentivar organizações so-
da família ou até 3 salários mínimossalários- ciais locais que lutam para combater a fome;
-mínimos por família), totalizando hoje 44 incentivar a pesca artesanal, a alimentação
milhões de famílias e 96 milhões de pessoas. local; fazer busca ativa; campanhas sobre ali-
Importante saber que o Cadastro Único para mentação saudável e contra o desperdício.
Programas Sociais pode abarcar inúme- conjunto de medidas previstas no Brasil Sem
ros programas, das várias políticas públicas, Fome, entre elas: ampliar a renda dos peque-
assegurando acesso facilitado às famílias, nos produtores; criar hortas comunitárias; abrir
como: Bolsa Família, Tarifa Social de Ener- restaurantes populares; melhorar a qualidade
gia, Taxas de concurso, MCMV, entre outros. da alimentação escolar; incentivar a constru-
ção de sistemas sustentáveis de produção de Brasil
Agência
Assumir e integrar a agenda comum nacio- alimentos; incluir a população em situação de
nal sem dúvida é a melhor forma de atuar de rua e de vulnerabilidade social nos programas
modo propositivo para superar a fome e sair de transferência de renda do governo federal,
novamente do Mapa da Fome. Cada instância como por exemplo o Bolsa Família; aproveitar
federativa ganha relevância ao se apropriar as estruturas e equipamentos existentes da
de suas realidades e formular políticas públi- Assistência Social para acompanhar a entra-
cas que correspondam as demandas da popu- da das pessoas nos programas e acompanhar
lação, tendo em vista a perspectiva de gestão o desenvolvimento nutricional das crianças,
compartilhada e descentralizada, interseto- mães e gestantes; incentivar organizações so-
rial, territorializadas, envolvendo também as ciais locais que lutam para combater a fome;
instâncias de controle social nas três esferas. incentivar a pesca artesanal, a alimentação
local; fazer busca ativa; campanhas sobre ali-
É possível adotar um conjunto de medidas mentação saudável e contra o desperdício.
previstas no Brasil Sem Fome, entre elas: am-
pliar a renda dos pequenos produtores; criar

25 | Desafios para a superação da pobreza e da fome no Brasil: pacto federativo e o papel estratégico do SUAS
crianças no trabalho infantil, vítimas de
O papel estratégico abuso sexual, violências contra a mulher,
idoso, pessoa com deficiência, famílias,
da Assistência Social pessoas e grupos em situação de risco e ví-
timas de todo tipo de abandono, discrimi-
na superação da fome nações, não acesso às necessidades básicas.

Nesse sentido, a fome e suas expressões,


ganham centralidade nas demandas apre-
Superar a fome deve ser um com- sentadas pela população usuária do SUAS,
promisso ético político, prioridade do principalmente nos momentos de crises
Estado e da sociedade civil. A pala- e ausência de serviços públicos condizen-
vra de ordem deveria ser sempre: ne- tes com as diferentes realidades no país.
nhum brasileiro/a passando fome!
O papel da política de assistência social na supe-
A partir da CF/88, o modelo de estrutura ração da fome, portanto, se dá pelo conjunto de
e gestão das políticas públicas passou a serviços e benefícios ofertados, desde a identi-
apontar como diretriz central a universali- ficação das famílias e população que buscam,
zação de acesso aos direitos, na perspec-
tiva descentralizada, participativa e terri-
torial. Nesse contexto, a Seguridade Social
brasileira passa a abranger a Saúde, a Pre-
vidência e a Assistência Social como políti-
cas públicas no âmbito da proteção social.

A Assistência Social, instituída como polí-


tica setorial, direito do cidadão e dever do
Estado, busca assegurar o acesso aos ser-
viços e benefícios a toda população que
dela necessitar como direito à proteção
social (artigo 223 da CF/88). Considerando
as funções de Defesa de Direitos, Prote-
ção Social e Vigilância Socioassistencial, a
política de assistência social é executada
pelo SUAS - Sistema Único de Assistência
Social, em todo território nacional, tendo
como base de referência e prioridade de
atenção, as famílias inscritas no Cadastro
Único (44 milhões), devendo garantir as
cinco seguranças socioassistenciais: Aco-
lhida, Renda, Convivência Familiar e Co-
munitária, Apoio e Auxílio e Autonomia.

Para tanto, o SUAS é composto por uma


rede de serviços (Cras, Creas, Centro Pop,
Acolhimentos, entre outros) e benefícios
de renda (BPC e Bolsa Família) e eventuais
(documentação, auxílio funeral, aluguel
social, cestas de alimentos, mosquetei-
ros, conforme legislação local), voltados a
garantir o acesso à proteção social da po-
pulação, nas mais diversas formas de des-
proteção, a exemplo: pessoas em situação
de rua, migrantes e refugiados, crianças
no trabalho infantil, vítimas de abuso se-

26 | Desafios para a superação da pobreza e da fome no Brasil: pacto federativo e o papel estratégico do SUAS
principalmente os CRAS, tendo acesso ao
Léu Britto
Cadastro Único como base de inclusão em
inúmeros programas sociais; articulação ter-
ritorial e atuação em rede, explicitando as
desproteções e responsabilidades do Estado;
oferta de cestas de alimentos, como benefício
eventual; estímulo aos projetos locais de aces-
so à alimentação e a garantia de renda, possi-
bilitando aos usuários/as, o acesso à alimenta-
ção como segurança alimentar e nutricional.

O Suas integra o conjunto de políticas públi-


cas locais, regionais e territoriais que poten-
cializam a perspectiva intersetorial e visão
de totalidade na oferta de serviços, com a
participação da sociedade e usuários, em de-
fesa da proteção social integral e ampliada.

Em relação à Fome, não pode haver nenhuma


condescendência ou negligência por parte do
Estado na execução das políticas públicas. É
preciso garantir segurança alimentar e nutri-
cional, gerada por um Sistema integrado e in-
tersetorial em reconstrução no Brasil - o SISAN,
para rapidamente retirarmos o Brasil do Mapa
da Fome, reduzirmos a pobreza e as desigual-
dades, de modo a assegurar dignidade, direitos.

27 | Desafios para a superação da pobreza e da fome no Brasil: pacto federativo e o papel estratégico do SUAS
Roberta Aline / MDS

Eliane Aquino
Secretária Nacional de Renda de Cidadania – SENARC/MDS.

Eutalia Barbosa Rodrigues


Assistente Social, mestre em Serviço Social pela UFT, Diretora
de Condicionalidades na SENARC/MDS.

Daniela Spinelli Arsky


Servidora pública do MDS, mestre em Ciências Sociais pela
UFRRJ, Coordenadora-geral de Acompanhamento das
Condicionalidades – SENARC/MDS.

28 | O novo bolsa fámilia e a atuação intersetorial REVISTA CONGEMAS EDIÇÃO ESPECIAL


Introdução O Bolsa Família e a
intersetorialidade
Após o rompimento, em 2016, do pacto para o enfrentamento
social inaugurado em 2003, o Brasil vol-
ta ao mapa da fome com o registro, no
da pobreza
ano de 2022, de cerca de 33 milhões de
pessoas em situação de insegurança ali-
mentar pelo não acesso a alimentação, A pobreza é uma forte expressão da ques-
conforme dados levantados pela Rede tão social identificada pela ausência ou
Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa insuficiência de renda, e também de-
em Soberania Alimentar e Nutricional). terminada por sistemático processo de
O cenário, no âmbito do SUAS (Sistema restrição aos direitos e oportunidades.
Único de Assistência Social), encontra- É necessário considerar como determina-
do em 2023 revela a dificuldade de aces- ção social, que, no Brasil, a pobreza tem cor,
so aos direitos sociais básicos, enorme gênero e endereço, ou seja, ela ronda a vida
desarticulação com as demais políticas das mulheres, principalmente mulheres ne-
públicas, desfinanciamento da rede de gras, crianças e jovens.Neste sentido, o novo
serviços socioassistenciais, programa de Programa Bolsa Família, instituído pela Lei n.
transferência de renda com um dese- 14.601, de 19 de junho de 2023, compreende
nho bastante equivocado, resultado de a pobreza como um fenômeno multidimen-
uma absoluta desestruturação do Cadas- sional, gerada pelas profundas desigualda-
tro Único e a extinção do Bolsa Família. des sociais de classe, gênero, raça/cor/etnia e
No contexto da diretriz de “reconstruir o outras opressões No PBF, a transferência de
país”, o governo Lula reinstitui o Progra- renda condicionada, associada à integração
ma Bolsa Família (PBF), que tem como de ações intersetoriais no âmbito de diversas
uma das principais prioridades o cuida- políticas sociais públicas, reforça a importân-
do e atenção à Primeira Infância e às fa- cia da igualdade no acesso aos direitos sociais.
mílias que precisam de mais proteção.
O PBF faz parte do SUAS, e integra a Polí-
O governo federal cumpri o compromis- tica Nacional de Assistência Social (2004)
so com a transferência de renda de no no campo dos Benefícios sociassisten-
mínimo R$ 600,00 de benefício familiar, ciaissocioassistenciais, que, por meio da
além dos benefícios variáveis e adicionais transferência direta de renda às famílias
para criança de até 6 anos (R$ 150,00), pobres visa o combate à fome, à pobre-
crianças e adolescentes de 7 a 18 anos, za e outras formas de desproteção social.
gestantes e nutrizes (R$ 50,00). O paga-
mento dos benefícios do PBF tem como
objetivo primeiro, garantir que as mais
de 21 milhões de famílias atualmente be-
Roberta Aline / MDS
neficiárias, possam ter comida no prato,
manter as crianças e adolescentes na es-
cola e ter acesso ao atendimento básico
de saúde e acompanhamento sociofami-
liar nos serviços do SUAS. Isto deve possi-
bilitar o resgate da perspectiva de futuro.

29 | O novo bolsa fámilia e a atuação intersetorial REVISTA CONGEMAS EDIÇÃO ESPECIAL


Compreendendo o acesso à renda como um articulação e ação intersetorial para promo-
direito constitucional, o Bolsa Família é um ver a proteção social das famílias beneficiárias.
programa de transferência de renda condicio-
nada que cumpre parte da escalada gradual, Como princípio organizador na sua imple-
daquilo que preconiza a Constituição Federal mentação, o PBF conta com dois níveis de
no Art° 6º, Parágrafo Único. O Programa está intersetorialidade: 1) interação com as áreas
ancorado em três eixos básicos: alívio imediato de educação e saúde – importante eixo para
da pobreza (por meio do acesso à renda); rup- a ruptura do ciclo intergeracional de pobreza
tura do ciclo intergeracional da pobreza (com – por meio das condicionalidades que são o
o acompanhamento das condicionalidades); acompanhamento educacional e o acompa-
e desenvolvimento das famílias (por meio da nhamento e cuidado em saúde; e 2) integração
articulação intersetorial com as demais polí- de ações para promoção das famílias e apoio
ticas sociais para a superação da situação de à superação da situação de vulnerabilidade e
vulnerabilidadsvulnerabilidade e pobreza). pobreza, podendo envolver variadas áreas das
políticas públicas. (Caderno de Estudos, 2016)
O arranjo institucional do Programa tem dois A autora Nuria Cunill (2016) entende que
pilares: a gestão compartilhada entre os três a intersetorialidade é utilizada em sen-
entes federativos e o trabalho intersetorial. As- tidos amplos e por diferentes atores. Ao
sim, reconhece que a pobreza envolve várias abordarmos a intersetorialidade entre se-
dimensões evidenciando a necessidade de tores governamentais, a autora destaca,

Não se tem em vista exclusivamente a melhoria do desempenho na prestação dos serviços públicos.
Ainda que a questão do desempenho possa estar presente, a perspectiva torna-se mais abrangente e
se centra expressamente na solução do problema que se quer enfrentar, lembrando que se o proble-
ma é multicausal, a integração setorial pode melhorar sua abordagem integral. Isso significa que é a
procura da integralidade na abordagem de um determinado problema ou situação social que coloca
como central a questão da relação entre diferentes setores do governo... a intersetorialidade implica
não somente que os diversos setores do governo entreguem a um mesmo público específico os serviços
que são próprios de cada um, mas também, de maneira articulada, atendam às necessidades sociais,
ou previnam problemas que tenham na sua origem causas complexas, diversas e relacionadas entre si.
(BRASIL, 2016, 36)

Luiz Carlos Murauskas

30 | O novo bolsa fámilia e a atuação intersetorial REVISTA CONGEMAS EDIÇÃO ESPECIAL


No caso do Programa Bolsa Família, a dimen- seja por meio do acompanhamento familiar
são intersetorial é vista como uma estratégia clássico ou por meio de alternativas coletivas
essencial para enfrentar a situação de pobre- e de educação popular voltadas para as fa-
za e vulnerabilidade em que vivem mais de 21 mílias beneficiárias do PBF. Nas pactuações
milhões de famílias beneficiárias (Sistema de vigentes sobre o acompanhamento familiar,
Benefícios, agosto de 2023), visando a promo- prevalece a norma de 2009, (Resolução CIT nº
ção do acesso a mais direitos sociais, a equi- 19/2009) que institui o protocolo de gestão in-
dade e a ruptura do ciclo de pobreza. Desta tegrada limitado a obrigatoriedade do acom-
forma, a gestão de condicionalidades requer panhamento das famílias em fase do não cum-
um trabalho intersetorial e integrado com primento ou não acesso ao preconizado nas
capacidade de impactar, por meio de acom- condicionalidades do PBF, o que nos parece
panhamento familiar, educacional e de saú- bastante insuficiente no alcance dos serviços
de, milhões de beneficiários e beneficiárias. socioassistenciais. Dessa forma, é fundamen-
tal a ampliação
Yolanda Simone do debate sobre pactuações
A cada dois meses, temos o resultado do acom-
panhamento educacional que tem como mí-
nimo atingir 60% de frequência escolar para
crianças de 4 e 5 anos e 75% de frequência
escolar para crianças e adolescentes entre 6 e
17 anos. Atualmente são 19 milhões de crian-
ças e adolescentes que devem ser acompa-
nhados no ingresso e permanência na escola.
Os resultados atuais do acompanhamento,
demonstram que 14 milhões tiveram a frequ-
ência escolar registrada no Sistema Presença
do Ministério da Educação (Sistema de Condi-
cionalidades, agosto de 2023). Esse dado nos
desafia a construir estratégias para localizar
os quase 5 milhões de estudantes benefici-
ários do PBF que não foram acompanhados.

Quanto ao acompanhamento da atenção em é fundamental a ampliação do debate so-


saúde, referente à vacinação e ao desenvol- bre pactuações que garantam no âmbi-
vimento nutricional para a primeira infância to dos serviços socioassistenciais o acom-
(crianças até 7 anos incompletos) e pré-natal panhamento familiar como forma de
para gestantes, os dados são registrados duas garantir mais proteção social no âmbito
vezes ao ano, ou seja, a cada seis meses a rede do SUAS, além da transferência de renda.
municipal de saúde precisa informar o resul-
tado do acompanhamento das crianças e mu- Além do acompanhamento familiar, a gestão
lheres, que somam atualmente mais de 30 das condicionalidades é de responsabilidade
milhões de pessoas. Os resultados de agosto da gestão da política de Assistência Social no
de 2023 demonstram que 26,5 milhões foram âmbito dos estados e municípios. Para isso, a
acompanhadas e tiveram suas informações atuação conjunta entre as áreas da proteção
registradas no Sistema Bolsa Família na Saú- social básica e a vigilância sociassistencialso-
de, operacionalizado pelo Ministério da Saúde. cioassistencial é fundamental para a análise
dos dados referentes ao acesso das famílias
Considerando o princípio da indissociabi- aos serviços e outros direitos, que entre ou-
lidade entre serviços e benefícios no âm- tras questões, devem direcionar o trabalho
bito da tradição da política de assistência social com as famílias no âmbito do SUAS.
social, destacamos o necessário e amplo O PBF, resumidamente, tem quatro ações bá-
debate no âmbito do trabalho social com sicas: cadastramento das famílias, gestão de
famílias, seja por meio do acompanha- benefícios, acompanhamento de condiciona-
mento familiar clássico ou por meio de alter- lidades. Em todas elas, as três esferas de go-
nativas coletivas e de educação popular vol- verno têm atribuições e responsabilidades.

31 | O novo bolsa fámilia e a atuação intersetorial REVISTA CONGEMAS EDIÇÃO ESPECIAL


Além do compartilhamento de atribui- Roberta Aline / MDS
ções, outras duas características prin-
cipais do Programa são a intersetoriali-
dade e a descentralização: os princípios
norteadores da gestão compartilhada
do Programa Bolsa Família consideram
a necessidade de uma execução com ca-
ráter intersetorial, descentralizada, onde
haja a conjugação de esforços entre os
entes federados, gestores das políticas
sociais, com participação da sociedade,
controle social e articulação em rede.

Sobre a questão intersetorial no nível 1 –


mencionado anteriormente, o PBF traz
uma inovação às formas de transferir re-
cursos aos entes federados. Um modo
“materializado” de avaliar a interseto-
rialidade do ponto de vista de articula-
ção com os Ministérios da Educação e
da Saúde, para o acompanhamento das
condicionalidades, é o resultado do traba-
lho em conjunto das áreas de assistência
social, saúde e educação com o resulta-
do do Índice de Gestão Descentralizada
(IGD). Ele consiste no apoio financeiro aos
governos subnacionais, a partir da gestão
por resultados. Em 2006, o MDS passou
a apoiar financeiramente os municípios
em suas atividades de gestão do PBF.

No caso dos estados, o apoio ocorreu em


2008. O IGD é um indicador apurado men-
salmente, que varia de 0 a 1 e mede três
índices, onde se é possível inferir algum
grau de intersetorialidade: um relativo
ao cadastramento de famílias (registro e
atualização dos dados no Cadastro Úni-
co) e dois relativos ao acompanhamento
das condicionalidades (registro do resul-
tado semestral de saúde e do resultado
bimestral de educação). (ARSKY, 2019)

A necessidade de articulação interse-


torial e interfederativa é muito clara no
desenho do PBF. A formulação e regula-
mentações do programa é de responsa-
bilidade do governo federal por meio de
pactuações e deliberações nas instâncias
do SUAS e a implementação descentra-
lizada aos governos locais, que se encar-
regam dos arranjos necessários à gestão
dos benefícios e das condicionalidades,
de forma que se deva garantir a oferta e
o acesso aos serviços básicos de saúde,
educação e assistência social à população
beneficiária.

32 | O novo bolsa fámilia e a atuação intersetorial REVISTA CONGEMAS EDIÇÃO ESPECIAL


A oferta do serviço socioassistencial é muito p l a n a l to . g ov. b r/c c i v i l _0 3 /c o n s t i t u i c a o /
presente no cadastramento das famílias bene- constituicao.htm>. Acesso em: 5 jul. 2019.
ficiárias, na orientação sobre as regras do PBF BRASIL. Casa Civil. Lei n. 14.601 de 19 de
e no acompanhamento familiar, que deve ser junho de 2023. Brasília, 1988. Disponí-
ofertado prioritariamente às famílias que es- vel em: https://legislacao.presidencia.
tão em não cumprimento de condicionalida- gov.br/atos/?tipo=LEI&numero=14601&a-
des, conforme determina as normativas vigen- no=2023&data=19/06/2023&ato=fa7cXW610M-
tes. A oferta dos serviços de educação e saúde ZpWT573>. Acesso em: 31 ago. 2023.
deve ser assegurada pelo Poder Público, para BRASIL. Ministério do Desenvolvimen-
que as famílias possam cumprir as condicio- to Social e Combate à Fome. Secreta-
nalidades na perspectiva de garantirem seus ria Nacional de Assistência Social. Po-
direitos e superarem a situação de pobreza. lítica Nacional de Assistência Social
– PNAS/2004. Brasília, 2005b. Disponível em:
O maior desafio da gestão do Novo Bolsa Família <https://www.mds.gov.br/webarquivos/pu-
com certeza é implementar uma nova agenda blicacao/assistencia_social/Normativas/
intersetorial e integrada com as demais políti- PNAS2004.pdf>. Acesso em: 5 jul. 2019.
cas com uma forte articulação interfederativa BRASIL. Ministério do Desenvolvimen-
capaz de somar esforços para ampliar a prote- to Social e Combate à Fome. Secreta-
ção social e promover o desenvolvimento so- ria Nacional de Assistência Social. Pro-
cial com autonomia das famílias beneficiárias. tocolo de Gestão Integrada de Serviços,
Benefícios e Transferências de Renda no âm-
Considerações finais: bito do SUAS. Brasília, 2009. Disponível em:
Este breve texto sobre o Programa Bolsa Fa- < h t t p s : // w w w . m d s . g o v . b r / w e b a r q u i -
mília e a intersetorialidade traz uma análise do v o s /p u b l i c a c a o /a s s i s t e n c i a _ s o c i a l /
programa no contexto de pobreza como uma P r o t o c o l o % 2 0 d e % 2 0 g e s t a o /p r o t o c o -
forte expressão da questão social multidimen- lo-de-gestao-integrada-de-servicos-bene-
sional, a qual deve ser problematizada a partir ficios-e-transferencias-de-renda-no-ambi-
de outras dimensões para além da restrição de to-do-suas.pdf >. Acesso em: 21 set. 2023.
renda, e enfrentada por meio da articulação BRASIL. Ministério do Desenvolvimento So-
entre as diversos políticas públicas setoriais. cial e Combate à Fome. Secretaria Nacional de
Avaliação e Gestão da Informação. Caderno
de Estudos – Desenvolvimento Social em De-
O Bolsa Família atua na lógica da integração bate, número 26. Brasília, 2016. Disponível em:
de benefícios e serviços, entendendo a trans- <https: //aplicacoes.mds.gov.br/sagirmps/
ferência de renda e o acesso aos demais di- ferramentas/docs/Caderno%20de%20Es-
reitos sociais para a garantia de cidadania. tudos%2026.pdf>. Acesso em: 31 ago. 2023.
CUNILL-GRAU, Nuria. A Roberta intersetorialidade
Aline / MDS
Integrar ações identificadas nos territórios que nas novas políticas sociais: uma abordagem
possam complementar o percurso de vida das analítico-conceitual. In: Caderno de Estu-
famílias beneficiárias, com certeza promove- dos – Desenvolvimento Social em Debate,
rá a porta de saída do ciclo intergeracional e número 26. Brasília, 2016. Disponível em:
determinado da POBREZA. É o que se almeja <https: //aplicacoes.mds.gov.br/sagirmps/
para uma população historicamente excluída ferramentas/docs/Caderno%20de%20Es-
e marcada pelas discriminações sociais que, tudos%2026.pdf>. Acesso em: 31 ago. 2023.
ainda hoje, determinam o futuro de gran- SEN, A. Desenvolvimento como Liberda-
de parcela da classe trabalhadora brasileira. de. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
https: //pesquisassan.net .br/2o -inqueri-
Referências Bibliográfica to -nacional-sobre -inseguranca-alimen-
ARSKY, D. S. Percepções sobre as condicio- t a r- n o - co n tex to - d a - pa n d e m i a - d a - cov i -
nalidades do Programa Bolsa Família – o di- d-19-no-brasil/. Acesso em 21 set. 2023.
reito, o controle e a obrigação. (Dissertação
de Mestrado). Rio de Janeiro: UFRRJ, 2019.
BRASIL. Casa Civil. Constituição da Re-
pública Federativa do Brasil de 1988. Bra-
sília, 1988. Disponível em: <http://www.

33 | O novo bolsa fámilia e a atuação intersetorial REVISTA CONGEMAS EDIÇÃO ESPECIAL


Ratão Diniz

Fundo das Nações Unidas para a Infância – UNICEF

34 | A pobreza multidimensional e o eterno desafio da intersetorialidade em prol dos direitos das crianças e adolescentes no Brasil
Pobreza infantil multidimensional
e seus usos para a política pública

A pobreza infantil pode ser entendida sob mui- der esta multidimensionalidade na pesquisa
tas perspectivas. Em verdade, as especificida- empírica dos últimos anos sobre o assunto.
des da infância e da adolescência demandam Em muitas das linhas de pesquisa exis-
que tenhamos perspectivas mais diversas tentes, busca-se compreender a intensi-
sobre as eventuais privações que interferem dade das privações, ou seja, o quão fre-
em seu desenvolvimento. Todos os marcos quentes e graves são as privações para as
normativos internacionais e nacionais deixam crianças, assim como as sobreposições de pri-
isso bem claro, ao estabelecerem que o úni- vações em prejuízo dos mesmos indivíduos.
co enfoque de direitos possível ao se tratar
da infância é o enfoque da proteção integral. Em muitas das linhas metodológicas, o enfo-
que dos direitos das crianças está presente
A tradução da doutrina da proteção integral na definição do que vem a ser pobreza não-
para o viés mais negativo da violação dos di- -monetária, quase sempre com um sentido de
reitos, portanto, demanda uma visão multi- acesso a serviços públicos. Nestes casos, tam-
dimensional. Uma das formas que o debate bém é muito comum que princípios de direitos
acadêmico e das políticas públicas concreti- humanos se imiscuam nos critérios de defini-
zaram tal visão se deu por meio do conceito ção da pobreza multidimensional, em espe-
de pobreza infantil multidimensional. Há dis- cial a indivisibilidade dos direitos humanos.
tintas formas de conceituar e de compreen-

Selma Bandeira

35 | A pobreza multidimensional e o eterno desafio da intersetorialidade em prol dos direitos das crianças e adolescentes no Brasil
Quando aplicado às medidas de pobreza multidimensional, tal princípio, especificamente,
indica que todas as dimensões são igualmente importantes, já que todos os direitos são re-
levantes para o pleno desenvolvimento nas diferentes etapas: primeira infância, crianças e
adolescentes. Tal decisão metodológica é bastante coerente com o próprio princípio da pro-
teção integral, tão forte no arcabouço normativo brasileiro, e significa que todas as violações
de direitos poderiam, em tese, compor um indicador de pobreza infantil multidimensional.

A principal limitação, nestes casos, é a existência de dados que expressem as violações dos va-
riados direitos.As aplicações práticas deste tipo de análise também podem ajudar a explicar as
distintas escolhas metodológicas. Para aplicações mais voltadas à identificação de beneficiários
de políticas públicas, a adoção de múltiplas dimensões como critério pode ser desafiadora para
a factibilidade da própria política pública, tendo em vista a própria dialética presento no movi-
mento das sociedades, logo, ao surgirem novas demandas surgem também novas necessidades.

Nestes casos, portanto, são muito comuns critérios monetários, à exemplo dos
programas de transferência de renda. Além desta explicação prática para a ado-
ção de linhas de pobreza monetária, há também uma explicação teórica, já que
a renda é uma dimensão diferenciada, na medida em que pode explicar mui-
tas outras dimensões, sendo uma proxy possível em nome dos aspectos práticos.

Mario Tama

Para outras aplicações, contudo, a perspectiva multidimensional se mostra bastante útil, não
apenas para compreender a realidade, mas também para auxiliar em sua transformação. Re-
ferimo-nos, por exemplo, à importância de se ter uma só régua coligada as reais necessidades
populacionais, não partindo do pressuposto do que se espera que fosse adequado, mas, atenta
aos reais significados dos fenômenos que afloram nas sociedades, para identificar e monitorar
prioridades para a autoridade central, para o centro de governo, ou para a função de planeja-
mento de um ente governamental. Uma metodologia de identificação da pobreza multidimen-
sional permite, portanto, que tais atores tenham um mapa de necessidades, que intuitivamen-
te pode se transformar em um critério para a definição de prioridades de políticas públicas.

36 | A pobreza multidimensional e o eterno desafio da intersetorialidade em prol dos direitos das crianças e adolescentes no Brasil
Se a realidade é multidimensional, é preci- debate mais propositivo do combate à po-
so que a política pública tenha ferramentas breza infantil em suas muitas dimensões.
para observar essa diversidade no planeja- Antes, porém, apresentam-se alguns dados
mento das soluções. Nesse sentido, medidas sobre o que estamos entendendo por po-
de pobreza infantil multidimensional fun- breza infantil multidimensional. Ao final, o
cionam como um mapa de necessidades texto levanta possibilidades e propostas de
que pode auxiliar na definição de um por- políticas públicas e ações governamentais.
tfólio de ofertas, sejam elas ofertas de or-
çamento público, novas políticas ou ajustes
nas existentes (de escopo, de cobertura etc.).

Mas, o debate em torno da complexa reali- A pobreza infantil


dade e problemas sociais precisa ir além da multidimensional no Brasil
priorização no momento do planejamento,
pois, em muitos casos, a definição de priori-
dades ocorre ainda em uma perspectiva se- O Brasil possui ao menos 31,9 milhões de me-
torializada, até porque muitas das funções e ninas e meninos (60,3% do total) vivendo na
processos governamentais estão organizados pobreza, em suas múltiplas dimensões, a sa-
por “caixinhas” setoriais, compartimentali- ber, renda, alimentação, educação/analfa-
zados, operacionalizados de maneira prag- betismo, moradia, água, saneamento, infor-
mática, mantendo foco na superficialidade mação e trabalho infantil (UNICEF, 2023a).
dos fenômenos sociais. O orçamento tem
sempre uma unidade orçamentária e pro- O esforço do UNICEF em medir a pobre-
cessos de distribuição e prestação de contas za multidimensional para o público de 0 a
dos recursos igualmente fechados em áreas 18 anos inicia-se em 2018, e é atualizado em
separadas de políticas públicas. Isso, obvia- 2023 em dois relatórios com dados que per-
mente, cria incentivos para que a gestão e os fazem os anos de 2017 a 2021 (UNICEF, 2023a),
resultados tenham sempre um selo setorial. e, mais recentemente, incorporando os anos
de 2016 e 2022 (UNICEF, 2023b, no prelo).
O ponto que queremos alcançar é que a com-
preensão da pobreza multidimensional e sua
Gráfico 1: Percentual de crianças e adoles-
tradução para o mundo do desenho e da im-
centes com alguma privação em 2022
plementação de políticas públicas também
precisa considerar o eterno desafio da interse-
torialidade. Para isso, a compreensão da multi-
dimensionalidade é apenas parte dos desafios.
O principal caminho está relacionado à imple-
mentação da intersetorialidade nas estruturas
e nos processos públicos, de modo a endereçar
não apenas cada desafio setorial que se torna
aparente em uma dada dimensão da pobreza,
mas também as interrelações entre privações,
exclusões e as diferentes vulnerabilidades a
que as meninas e meninos estão expostos.

E sobre isso, o Sistema Único de Assistência


Social Brasileiro, o SUAS, tem uma série de li-
ções e aprendizados. Ainda que haja muito es-
paço de melhora para as distintas conforma-
ções que o SUAS assume em cada território e
Fonte: Elaboraçãoprópria com
em cada realidade, o presente texto buscará PNADC anual 1ª Entrevista
ressaltar suas contribuições para o debate

37 | A pobreza multidimensional e o eterno desafio da intersetorialidade em prol dos direitos das crianças e adolescentes no Brasil
Além de um olhar mais amplo sobre os direitos das crianças, e da quantida-
de delas em situação preocupante, o que os dados demonstram não são no-
vidades para o que os trabalhadores do SUAS estão acostumados a observar:

i) percentuais de privação muito maiores nas regiões Norte e Nordes-


te do país (com dois estados em cada uma dessas regiões com percen-
tuais de pobreza multidimensional maiores que 90% - Mapa 1, a seguir);
ii) desigualdades raciais proeminentes, pois a pobreza multidimensional para crianças
negras (68,9%) é mais de 20 pontos percentuais maior que para crianças brancas (48,3%);
iii) desafios muito distintos (composição da pobre-
za) a depender do estado em que observamos, e, por fim;
iv) desafios de médio e longo prazos vindos da crise decorrente da pandemia de COVID-19.

Mapa 1: Percentual de crianças e adolescentes com alguma privação por Unidade da


Federação, em 2022

Fonte: Elaboração própria com PNADC Anual 1ª Entrevista

38 | A pobreza multidimensional e o eterno desafio da intersetorialidade em prol dos direitos das crianças e adolescentes no Brasil
Trata-se de um olhar amplo sobre a pobre- Um exemplo extremo: 40,3% das crianças
za infantil, olhar esse que mostra as espe- de sete anos em 2022 eram analfabetas, en-
cificidades de cada território, e fortalece a quanto em 2019 esse percentual era de 20,5% 4.
necessidade de uma atuação multiprofis-
sional e intersetorial para problemas de vida Do mesmo modo, enquanto mapa de deman-
que não são segmentados em setores. das sensível às prioridades de cada território,
O último relatório (UNICEF, 2023b) mostra, a pesquisa mostra que os desafios no estado
por exemplo, efeitos amplos do afastamento de São Paulo estão mais concentrados nos
prolongado de um grupo grande de crian- temas de moradia, renda e educação, que
ças e adolescentes do ambiente escolar. Vi- aqueles que enfrenta Rondônia, dominado
vemos atualmente uma crise de aprendi- pela privação na dimensão saneamento (60%
zagem que ainda levará algum tempo para das crianças sofrem com alguma privação
ser endereçada. nesta dimensão).

O SUAS e a intersetorialidade

Como toda metodologia, há nuanças nem sempre captadas por uma pesquisa em compara-
ção a outras. Neste caso emblemático, dados do SAEB recentemente apresentados pelo INEP
apontam que a crise de aprendizagem decorrente do fechamento das escolas nas crianças
do 2º ano do ensino fundamental (etapa de ensino em que crianças de sete anos são muito
frequentes), era muito maior do que captado pela PNAD, com percentuais de 39,7% em 2019 e
56,4% em 2021.

Como já mencionado, o SUAS foi criado para contribuir a lidar com os desafios da multidimen-
sionalidade da pobreza. Além disso, se a solução para o caráter multifacetado da pobreza é a
intersetorialidade, o SUAS está em posição de destaque, já que tal tipo de atuação está no DNA
do SUAS.

Para manter o paralelo, este “DNA” intersetorial do SUAS é composto por uma série de “nucleo-
tídeos”, já que o Sistema Único da Assistência Social promove a convergência e a coordenação
entre as diferentes políticas, seja por meio do apoio à operacionalização de uma série de outras
políticas públicas nos municípios, característica que acaba facilitando sua ação corrente de
referenciamento de seus beneficiários a outros serviços.

Aqui merece uma referência ao relevante papel do SUAS junto àquelas ofertas mais óbvias,
como o Cadastro Único, o Programa Bolsa Família (PBF) e o Benefício de Prestação Continua-
da (BPC), mas também propiciando as condições para facilitar o acesso de seus beneficiários
à educação, à saúde, às políticas de habitação e de alimentação, dentre outras. É de extrema
relevância também o apoio que o SUAS oferece à população para acesso à documentação, ao
credenciamento, e outros requisitos de políticas diversas, além das ações diárias de educação
em direitos para propiciar a que acessem programas e políticas de outros setores.

4 Como toda metodologia, há nuanças nem sempre captadas por uma pesquisa em comparação a outras. Neste
caso emblemático, dados do SAEB recentemente apresentados pelo INEP apontam que a crise de aprendizagem
decorrente do fechamento das escolas nas crianças do 2º ano do ensino fundamental (etapa de ensino em que
crianças de sete anos são muito frequentes), era muito maior do que captado pela PNAD, com percentuais de 39,7%
em 2019 e 56,4% em 2021.

39 | A pobreza multidimensional e o eterno desafio da intersetorialidade em prol dos direitos das crianças e adolescentes no Brasil
O DNA intersetorial está tão presente no SUAS, Contudo, ainda que o SUAS tenha sido de-
que suas equipes e trabalhadores acabam por senhado com tais características, e cuja
conhecer as especificidades das diferentes po- operação local promova acessos a diversos
líticas no território, o que oferece oportunida- outros espaços de políticas públicas pela po-
des impares para construções de programas pulação mais vulnerabilizada, nem sempre
socias e políticas públicas de enfrentamento a relação entre o SUAS e os demais serviços
à questões que muitas vezes podem passar é flui, a e organizada por fluxos interseto-
despercebidas, contribuindo para a constru- riais desenhados, comunicados e funcionais.
ção de vínculos e pontos de contato sistemá-
tico com outros serviços, super importantes Por esse motivo, na atual edição 2021-2024
para que performem melhor a ação de refe- do Selo UNICEF, com 2.023 municípios da
renciamento, para dar apenas um exemplo. Amazônia Legal e Semiárido participando,
a metodologia da iniciativa foi proposta de
Em síntese, a atuação do SUAS pode ser ca- forma a abarcar ações intersetoriais em sete
paz de alcançar soluções a problemas de Resultados Sistêmicos, incluindo um resul-
déficit educacional motivados, por exem- tado específico para assistência social, “Pro-
plo, por desafios que perpassam áreas como teção Social e Atenção Integral para Famí-
saúde, habitação e insuficiência de renda. lias Vulneráveis via Serviços Intersetoriais”.
Além disso, sua visão ampla da pobreza e da
vulnerabilidade social também se traduz em João Ripper / UNICEF
atendimentos e ações de acompanhamento
familiar capazes de potencializar benefícios
de renda, como os providos pelo BPC e PBF,
uma associação comprovadamente efetiva
para o bem-estar geral das famílias (Bossu-
roy, et.al., 2022; Roelen et.al. 2017), além de
eficiente sob a ótica dos recursos públicos
aplicados vis-à-vis os resultados alcançados.

Propostas para aplacar Entre os seus objetivos, está o incentivo aos


municípios para que se dediquem a construir
a pobreza infantil tais fluxos de modo deliberado, e seguindo nor-
multidimensional via mativas, indicadores e metas alinhadas com
os princípios e orientações técnicas do SUAS.
intersetorialidade Uma vez construídos, espera-se que esses flu-
xos impactem em melhores serviços, além de
contribuírem para que o processo de compar-
Até este ponto, vimos que uma perspectiva tilhamento de demandas de mais de um ser-
multidimensional da pobreza infantil permite viço ocorra de modo mais organizado e fluido.
um olhar mais amplo para a realidade brasi-
leira, que é útil ao planejamento, implemen- Para isso, é importante que o incentivo que o
tação e ao monitoramento das políticas públi- Selo UNICEF tem promovido desde 2021 te-
cas em benefício das crianças e adolescentes. nha seguimento, seja localmente, trabalhan-
do para que fluxos se tornem protocolos, seja
Vimos também que para endereçar esta por parte de estados e da União, para apoia-
perspectiva por meio de políticas públicas é rem a que tenhamos a intersetorialidade fun-
preciso um olhar intersetorial, e que o SUAS cionando não apenas no DNA do SUAS, mas
tem em seu DNA, tanto a multidimensiona- da saúde, da educação, e até mesmo aperfei-
lidade, quanto a intersetorialidade como vi- çoando o SUAS para que haja maior integra-
sões e modus operandi de seus processos. ção entre a proteção social básica e a especial.

40 | A pobreza multidimensional e o eterno desafio da intersetorialidade em prol dos direitos das crianças e adolescentes no Brasil
Laís Abramo
Secretária Nacional de Cuidados e Família do Ministério
de Desenvolvimento e Assistência Social, Família e
Combate à Fome.

4131| Rumo
| A pobreza
à construção de umaePolítica
multidimensional o eternoNacional
desafio dade Cuidados no Brasil
intersetorialidade REVISTA
em prol dos CONGEMAS
direitos das crianças EDIÇÃO ESPECIAL
e adolescentes no Brasil
Todas as pessoas demandam cuidados ao longo da vida. Por isso, o cuidado deve ser entendido
como uma necessidade e um direito inerentes à condição humana. O cuidado é também um
bem público essencial para o funcionamento da sociedade, das empresas e das economias.

Na vida cotidiana a palavra cuidado tem muitos e diversos significados: “cuidar da casa”,
“cuidas das crianças”, “cuidar da saúde”, entre muitos outros. Neste artigo nos referimos ao
cuidado como um trabalho cotidiano de produção de bens e serviços necessários à repro-
dução e a sustentação da vida e das sociedades e à garantia do bem-estar das pessoas. Em
outras palavras, o trabalho de cuidado é aquele que possibilita que as necessidades materiais
e emocionais das pessoas sejam atendidas. Inclui, entre muitas outras, atividades como ninar,
dar banho e brincar com um bebê; apoiar uma pessoa idosa ou com deficiência a se alimen-
tar e trocar de roupa, caso não consiga fazê-lo sozinha; cozinhar, organizar e limpar a casa.

Esse trabalho pode ser exercido no espaço doméstico, de maneira não remunerada,
ou ofertado por trabalhadoras e trabalhadores remunerados, como trabalhadoras do-
mésticas, cuidadoras/es de pessoas idosas ou com deficiência e profissionais de diver-
sas áreas das políticas públicas (a exemplo da assistência social, educação e saúde).

Apesar de todas as pessoas necessitarem cuidados, especialmente nas etapas do ci-


clo da vida ou em determinadas condições em que é menor a sua autonomia e maior
a sua dependência, nem todas as pessoas cuidam. A responsabilidade pela provisão
de cuidados é distribuída desigualmente na sociedade brasileira: ela é atribuída prin-
cipalmente às famílias e, dentro delas, às mulheres. Assim, a imensa carga de ativida-
des cotidianas de gestão, sustentação e reprodução da vida, como a preparação de ali-
mentos e o apoio às mais diversas atividades do cotidiano aos membros da família, tem
sido historicamente realizada pelas mulheres no interior de seus próprios domicílios.

A sobrecarga do trabalho de cuidados é ainda mais acentuada para as mulheres negras, as


mais pobres e aquelas que vivem em territórios com maior carência de serviços de cuidado,
como a zona rural e as periferias urbanas. Isso impõe fortes barreiras à conclusão das suas tra-
jetórias educacionais e à sua inserção no mercado de trabalho e na vida pública em igualdade
de condições com os homens, contribuindo para a reprodução da pobreza e da desigualdade.

42 | Rumo à construção de uma Política Nacional de Cuidados no Brasil REVISTA CONGEMAS EDIÇÃO ESPECIAL
Com efeito, de acordo com a PNAD Contínua (PNAD-c) de 2021, o principal moti-
vo pelo qual 30% das mulheres de 14 anos e mais (e apenas 2% dos homens) não es-
tavam procurando emprego era justamente a necessidade de cuidar de crian-
ças e outros parentes ou da casa. Entre as mulheres com filhos/as de 0 a 3 anos essa
proporção chegava a 62%5. Esse é também o principal motivo pelo qual 21,6% das mulhe-
res de 15 anos ou mais que não estudam exclusivamente não tem rendimentos próprios6.

Mas, além de injusta e desigual, a atual orga- as crianças que permanecem sem supervisão
nização social dos cuidados no Brasil é insus- de adultos, cuidando de outras crianças, ex-
tentável. A transformação das dinâmicas de- postas ao trabalho infantil7, ou pessoas idosas
mográficas, culturais e econômicas impacta sem apoio para atividades cotidianas.
diretamente nas necessidades e capacidade
de provisão de cuidados das famílias, intensi- Torna-se assim crucial o investimento em
ficando uma verdadeira “crise dos cuidados”: políticas de cuidados que aumentem a dis-
por um lado o acelerado processo de envelhe- ponibilidade e a qualidade da sua prestação,
cimento populacional – e de feminização des- contribuindo para o bem-estar das pessoas.
se envelhecimento –- tem como consequên- E que, concomitantemente, liberem o tempo
cia um significativo aumento das demandas das mulheres, ampliando as possibilidades
de cuidados para as pessoas idosas; por outro, de conclusão de suas trajetórias educacionais
a queda nas taxas de fecundidade tem leva- e de formação profissional e de inserção no
do a uma redução no número de pessoas dis- mercado de trabalho e, ainda, de lazer e des-
poníveis nas famílias para ofertar o cuidado. canso. Trata-se de uma medida fundamental
Importante mencionar, ainda, que a consoli- para a igualdade no mundo do trabalho e a
dação da presença das mulheres no mercado autonomia econômica das mulheres, e, por-
de trabalho não resultou no maior comparti- tanto, para o aumento da renda das famílias,
lhamento dos trabalhos domésticos e de cui- com importantes efeitos sobre a redução da
dados não remunerados nas famílias com os pobreza e da fome.
homens ou, ainda, na maior oferta de bens e
serviços de cuidados pelo Estado ou pelas em- Compreendendo os desafios postos e com a
presas. clareza de que é necessário transformar essa
injusta, desigual e insustentável organização
Neste contexto, a ausência ou insuficiência dos social dos cuidados, o presidente da Repúbli-
serviços públicos de cuidados –- como educa- ca, Luiz Inácio Lula da Silva, instituiu um Gru-
ção infantil, escola integral, aqueles dirigidos po de Trabalho Interministerial (GTI)8, coorde-
a pessoas idosas e com deficiência, cozinhas nado conjuntamente pela Secretaria Nacional
solidárias e lavanderias coletivas –- reforça a de Políticas de Cuidados e Família do Minis-
sobrecarga de trabalho doméstico e de cuida- tério do Desenvolvimento e Assistência Social,
dos não remunerados exercido pelas mulhe- Família e Combate à Fome e pelo Ministério
res. Essa realidade penaliza principalmente as das Mulheres, cuja missão é formular um diag-
famílias em situação de pobreza, que, devido nóstico sobre a organização social dos cuida-
à impossibilidade de adquirirem tais serviços dos no Brasil (identificando as necessidades e
no mercado, precisam se apoiar em arranjos as ofertas de cuidados atualmente existentes)
informais e muitas vezes precários. Esses ar- e elaborar a proposta da Política e do Plano
ranjos também podem oferecer riscos para as Nacional de Cuidados.
pessoas que necessitam de cuidados, como

5 https://mds.gov.br/webarquivos/MDS/7_Orgaos/SNCF_Secretaria_Nacional_da_Politica_de_
Cuidados_e_Familia/Arquivos/Nota_Informativa/Nota_Informativa_N_1.pdf

6 https://oig.cepal.org/es/indicadores/poblacion-sin-ingresos-propios-sexo. Dados da PNAD-c para 2021

7 https://mds.gov.br/webarquivos/MDS/7_Orgaos/SNCF_Secretaria_Nacional_da_Politica_de_
Cuidados_e_Familia/Arquivos/Nota_Informativa/Nota_Informativa_N_3.pdf.

8 Decreto nº 11.460, de 30 de março de 2023.


O GTI, instalado no dia 22 de maio, é formado raça, etnia, classe, territoriais, deficiência e ida-
por 17 ministérios e três entidades convidadas de.
permanentes (IBGE, IPEA e Fiocruz).
O desenho da política deverá incluir um diver-
O processo de elaboração da Política e do sificado rol de políticas de diferentes tipos:
Plano Nacional de Cuidados, com um caráter
intersetorial e inter federativo, parte do prin- serviços - como creches, centros de atenção
cípio de que já existem no Brasil importantes diurna e serviços de atenção domiciliar;
políticas e sistemas – como o Sistema Único
de Assistência Social (SUAS), o Sistema Único garantia de tempos para cuidar - como li-
de Saúde (SUS) e a rede pública de educação cenças maternidade, paternidade, parentais e
que atuam diretamente na provisão e gestão para acompanhamento de dependentes;
de cuidados e no compartilhamento das res-
ponsabilidades com quem cuida. recursos e benefícios - que viabilizem o apoio
às famílias no exercício do cuidado - como o
Por outro lado, se constata que ainda é pre- Benefício de Prestação Continuada e o Pro-
ciso avançar na integração e articulação das grama Bolsa Família;
ofertas, tanto para aumentar a capacidade
de resposta desses sistemas e redes, quanto regulação de parâmetros de qualidade para
para avançar na garantia do atendimento de os serviços de cuidados e de garantia de di-
demandas específicas da população em cada reitos trabalhistas e previdenciários de quem
território. Existem, ainda, importantes lacunas cuida de forma remunerada; e
a serem superadas por meio da expansão da
cobertura, qualificação da oferta, criação de transformação cultural - a partir de campa-
novas políticas e serviços ou, ainda, sua ade- nhas e debates que favoreçam o reconheci-
quação a partir da “ótica dos cuidados”. mento e valorização do trabalho de cuidados,
bem como a sua corresponsabilização social e
Os objetivos principais da Política Nacional de por gênero.
Cuidados do Brasil, considerando que o papel
do Estado é fundamental na garantia do direi- O diálogo com a sociedade civil, estados, mu-
to ao cuidado, são os seguintes: nicípios e com o poder legislativo é funda-
mental para a formulação e a implementação
1. Garantir o direito ao cuidado a todas as pes- da Política e do Plano Nacional de Cuidados.
soas que dele necessitem; Em especial, para a Secretaria Nacional de Po-
líticas de Cuidado e Família, e para o MDS no
2. Garantir o trabalho decente a todas as tra- seu conjunto, é fundamental o diálogo com os
balhadoras e trabalhadores remuneradas/os atores constitutivos do SUAS.
do cuidado;
Nesse sentido, a SNCF agradece o espaço con-
3. Valorizar, redistribuir e reduzir o traba- cedido pelo Congemas para participação nos
lho de cuidados não remunerado, possibilitan- Encontros Regionais e Nacional, que tem sido
do a liberação do tempo das mulheres; de extrema valia para a escuta e o debate de
percepções e contribuições ao desenho da
4. Promover uma cultura de corresponsabili- Política Nacional de Cuidados. Estendemos o
dade em relação à provisão de cuidados entre convite às trabalhadoras e aos trabalhadores e
homens e mulheres no interior das famílias e gestoras e gestores da Política Nacional de As-
entre as famílias, as comunidades, o Estado, o sistência Social a contribuírem na construção
mercado e as empresas; da Política Nacional de Cuidados, para que
possamos avançar na construção de uma so-
5. Reconhecer e enfrentar as desigualdades ciedade justa, democrática e sustentável para
estruturais que conformam a atual organiza- todas as pessoas.
ção social dos cuidados no país: de gênero,

44 | Rumo à construção de uma Política Nacional de Cuidados no Brasil REVISTA CONGEMAS EDIÇÃO ESPECIAL
Mancio Lima

45 | Rumo à construção de uma Política Nacional de Cuidados no Brasil REVISTA CONGEMAS EDIÇÃO ESPECIAL
Prefeitura de São Paulo

Simone Aparecida Albuquerque


Diretora do Departamento de Proteção Social Básica – SNAS/MDS.
Assistente social (PUC- MG), Especialista em Sistemas de Saúde pela
Escola Nacional de Saúde Pública. Mestre em Promoção da Saúde e
Prevenção da Violência pela UFMG.

Deborah Akerman
Coordenadora Geral de Serviços e Programas de Proteção Social Básica
as Famílias- DPSB /SNAS/MDS. Psicóloga (UFMG). Especialista em
Gestão de Assistência Social (FJP). Mestre em Psicologia Social (UFSJ).

46 | Papel estratégico dos CRAS, no combate às desigualdades e respeito as diversidades no SUAS


O Brasil historicamente sempre foi marcado O Sistema constituiu unidades estatais e desde
por uma perversa desigualdade social. A de- 2004, trouxe para a responsabilidade do Estado
cisão de organizar a Assistência Social, em o dever de proteção. A constituição desta rede
modelo sistémico de gestão compartilhada com capilaridade nacional possibilitou acesso
com os entes subnacionais, descentralizado a proteção socioassistencial para milhões de
e participativo, definida pela IV Conferência brasileiros. O boletim 11 do observatório das
Nacional de Assistência Social em 2003 pos- desigualdades da Fundação João Pinheiro e
sibilitou que tal política, contribuísse para do Conselho Regional de Economia (2021, p.
diminuir a desigualdade social no Brasil. 14) demonstra a evolução da oferta de serviços:

Desde a promulgação da Lei Orgânica da As- (...) com mais de 11 mil centros de referência em todo
sistência Social (LOAS) em 1993, que a Assis- o país, mas de 17 mil serviços tipificados, mas de 3
tência Social colabora com a oferta igualitária mil serviços de acolhimento e abrigamento para
de proteção. O Sistema Único de Assistência crianças, jovens e idosos em condições de extrema
vulnerabilidade, com mais de 160 mil vagas e com
Social (SUAS) desmercantiliza os seus serviços
uma rede de 420 mil trabalhadores do SUAS.
e benefícios ao proibir a cobrança do acesso
aos mesmos, inclusive de sua rede privada.

EBC

Segundo este Boletim, não só a oferta de ser- de renda e serviços, com a consequente am-
viços ampliou o acesso da população a Assis- pliação do orçamento da Assistência Social
tência Social, mas a segurança de renda, outro tiveram correlação direta na desigualdade
pilar do SUAS, por meio do Programas Bolsa de renda medida pelo índice de GINI. O re-
Família e o Benefício de Prestação Continu- ferido índice é um instrumento para medir o
ada (BPC), que também tiveram incremen- grau de concentração de renda em determi-
to expressivo, sendo que o Programa Bolsa nado grupo, apontando a diferença entre o
Família passou de 1,2 milhões de famílias em rendimento dos mais ricos e dos mais pobres.
2003 participando dos programas de trans- Foi constatado que as relações entre o volu-
ferência de renda antes de serem unificados me do gasto social, como indicador indireto
no Bolsa Família para 14 milhões em 2018. E da atenção dada às políticas sociais, e a de-
em relação ao BPC, considerando a expan- sigualdade de renda, evidenciaram a queda
são entre 2004 e 2018, esse número qua- no incide de GINI com o aumento de investi-
se que dobrou no período de 13 anos, totali- mento em gastos sociais (Fundação João Pi-
zando 4,7 milhões de beneficiários em 2019. nheiro; Conselho Regional de Economia, 2021).
A arquitetura da Proteção Social que combi-
nou aumento da cobertura de transferência

47 | Papel estratégico dos CRAS, no combate às desigualdades e respeito as diversidades no SUAS


Este modelo de integração entre serviços e abandono, desproteção e violação de direitos.
benefícios, compreende a vulnerabilidade so- Esta conquista adquirida da sociedade brasi-
cial como resultado de vários processos de leira em cobertura e organização da Proteção
exclusão estruturais da sociedade brasileira, Social neste modelo e os resultados na vida
apostando que os serviços socioassistenciais da população sofreu forte recrudescimento
têm grande potencial para contribuir com a com o desfinanciamento e desconfiguração
igualdade entre gêneros, raças e territórios. em seus princípios de universalidade, equida-
São os serviços socioassistenciais os respon- de, articulação entre serviços e benefícios e
sáveis, em grande parte, pela oferta intangí- gestão compartilhada e participativa. A crise
vel do direito socioassistencial. É nos serviços sanitária trazida pela pandemia da COVID-19
que se acolhe o caráter relacional da produção foi agravada pela crise política e econômi-
e reprodução humana, que produzem e / ou ca que atingiu o SUAS como um todo e par-
reproduzem afeto, cuidado, respeito, diálogo ticularmente a Proteção Social Básica (PSB).
ou podem evidenciar situações de violência,

A retomada de um governo democrático e popular coloca na agenda a reconstrução do SUAS


e consequentemente da PSB. Muitos desafios se colocam neste momento de reconstrução e
necessidade de avanço na PSB.

Importante assinalar como ficou evidencia-


O CRAS como referência do na pandemia, o CRAS como locuslócus
territorial de proteção territorial de proteção e referência para as
socioassistencial famílias nos territórios. Considerado como
trabalho essencial, foi no CRAS que a popu-
lação se aglomerou em filas para conseguir
O Centro de Referência da Assistência Social acessar benefícios e serviços para sua sobre-
(CRAS) é unidade pública estatal descentrali- vivência. Segundo o último Censo SUAS, o
zada da política da Assistência Social, respon- número de CRAS no Brasil neste período se
sável pela organização e a oferta de serviços manteve praticamente o mesmo, demons-
de Proteção Social Básica. O CRAS inaugurou trando o esforço que os municípios fizeram
na Assistência Social processo de atendimento para a manutenção destas Unidades, a des-
às famílias em seus territórios, na perspectiva peito do desfinanciamento federal ocorrido.
das ações preventivas aos agravos das vulne-
rabilidades, situando a segurança da convi- Marcelo Camargo
vência e do fortalecimento de vínculos como a
estratégia para o trabalho social com famílias.

O CRAS deve ofertar obrigatoriamente o PAIF-


Serviço de Proteção e Atendimento Integral a
Família, com o objetivo precípuo de proteger
os direitos das famílias e apoiá-las no desem-
penho da sua função protetiva. É também
nos CRAS que se dá o acesso e vinculação
dos usuários do Bolsa Família e BPC ao Sis-
tema de Proteção, oportunizado pelo CadÚ-
nico. Por este cadastro acessam a transferên-
cia de renda e passam a ter, caso necessário,
e aceitem, o acompanhamento nos serviços.

48 | Papel estratégico dos CRAS, no combate às desigualdades e respeito as diversidades no SUAS


Muitos desafios se colocam neste momento ção e reformas de CRAS para acolher e
de reconstrução e necessidade de avanço na adequar às especificidades dos territórios.
PSB: o primeiro deles se refere à concepção Todos os dispositivos apontados acima são
e consolidação de sua estrutura e funciona- necessários, entretanto uma direção funda-
mento, em um modelo que é disputado por mental para a reconstrução e avanço na or-
concepções que confundem a oferta do SUAS ganização do SUAS, especialmente na PSB
com seu público, como se todas as necessida- passa necessariamente por reconhecer as
des das famílias pobres e vulneráveis fossem desigualdades e as diversidades de raça, et-
responsabilidade da Assistência Social, man- nia, classe, gênero LGBTQI+ presentes nos
tendo assim a histórica subsidiariedade do territórios. O princípio da territorialização es-
SUAS às outras políticas sociais. Neste senti- tabelecida pela Política Nacional de Assistên-
do é imperativo a construção de protocolos cia Social (PNAS 2004) significa “o reconhe-
de intersetorialidade com as políticas sociais. cimento da presença de múltiplos fatores
sociais e econômicos que vulnerabilizam fa-
Além disto, é necessário ressignificar a atu- mílias e comunidades”. Há hoje a decisão do
ação da PSB/PAIF na perspectiva da pre- Plano Decenal de Assistência Social que seja
venção e proatividade, com o fortalecimen- aprofundada a análise territorial para além
to da Busca Ativa e reconhecimento que dos portes estabelecidos para os municípios.
as desproteções vivenciadas pelas famílias,
ainda que particularizadas são estruturais. O Departamento de Proteção Social Básica
está realizando análises para aprofundar as
Nas condições estratégicas para materializar melhores intervenções para gerar igualdade e
estas proposições acima, é fundamental, a ex- equidade entre as regiões, municípios e terri-
pansão da cobertura e reajuste dos pisos, a fim tórios no acesso a proteção socioassistencial.
de possibilitar o reconhecimento e valoriza- Cabe definir como devem ser as unidades e
ção dos trabalhadores, com equipes suficien- ofertas para melhor atender a região Amazô-
tes (atualização da NOB RH SUAS) e condições nica, territórios rurais, comunidades tradicio-
de trabalho adequados. Importante também nais, metrópoles e tantos outros territórios.
a definição de uma política de constru-

Trabalho Social com Famílias e Territórios


na PSB para o enfrentamento das desigualdades sociais.

Em pesquisa realizada por ANDRADE; PEREIRA (2019) verificou-se que o público do CRAS é
constituído majoritariamente por mulheres negras que nunca participaram de ações relacio-
nadas às questões de gênero e raça. Para as autoras é imprescindível buscar a superação das
inserções desiguais das mulheres e pessoas negras, em especial das mulheres negras, integran-
do a temática dos eixos gêneros e raça na Assistência Social, de modo transversal e interseccio-
nal. O conceito sociológico de interseccionalidade aborda as interações e marcadores sociais
como gênero, raça, etnia e classe social entre outros, nas vidas das minorias e tem evidenciado
que os múltiplos sistemas de organização das relações de poder, configurados como opres-
sões que relacionam-se entre si, se sobrepõem e precisam ser enfrentados articuladamente.

O processo de reconhecimento das desigualdades não é fácil e envolve dispositivos ide-


ológicos, políticos e subjetivos. Nossa sociedade criou poderosos dispositivos para a ma-
nutenção de privilégios através da ilusão de liberdade e igualdade de oportunidades.

49 | Papel estratégico dos CRAS, no combate às desigualdades e respeito as diversidades no SUAS


SOUZA, (2009) chama esta ideologia de jus- O princípio da territorialização estabeleci-
tificação da desigualdade social, que leva ao da pela Política Nacional de Assistência So-
esquecimento da determinação social e, por cial (PNAS 2004), materializado pela insta-
esse dispositivo, permite a noção do méri- lação do CRAS nos territórios com maior
to individual, onde se atribui culpa ou res- vulnerabilidade, não pode ser visto apenas
ponsabilidade individual às famílias ou pes- como um dispositivo político administrati-
soas pela situação em que se encontram. vo da gestão, naperspectiva territorial, mas
significa “o reconhecimento da presença de
Alia-se a esse debate a temática da subjeti- múltiplos fatores sociais e econômicos que
vidade associada ao conceito cunhado por vulnerabilizam famílias e comunidades”.
SAWAIA (2004) como sofrimento ético-políti-
co, sendo este a denominação das emoções Portanto, é preciso avançar na perspectiva de
provocadas pelo reconhecimento negativo/ um TSF não só territorializado, mas, essencial-
desvalorizado que se faz de uma pessoa ou mente, em um trabalho a ser realizado a partir
grupo social, onde as diferenças são vividas do território - trabalho social territorial (KOGA,
como desigualdades e discriminação social, 2015). Desta forma, o trabalho Social com Fa-
colocando empecilhos na emancipação dos mílias deve ser entendido de forma mais am-
sujeitos discriminados e mantidos hierarqui- pla como Trabalho Social com o Território.
camente desiguais. Torna-se fundamental,
portanto, fortalecer as dimensões normativas, Participação é um dos princípios do SUAS e
éticas, políticas, teóricas e metodológicas do é por meio dela que ações políticas de defe-
Trabalho Social com Famílias que reconheçam sa dos direitos socioassistenciais são desen-
as desigualdades sociais presentificadas nas volvidas. Esta direção passa necessariamente
famílias e territórios e operem a partir delas. pelo fortalecimento da atuação da PSB/PAIF
em ações que fortaleçam o protagonismo
A despeito de experiencias inovadoras re- da população, coletivizando suas demandas.
alizadas nos municípios, o Trabalho Social O TSF, portanto, não pode ter caráter meramen-
com Famílias no PAIF ainda tem se proces- te pedagógico e deve recorrer às metodologias
sado em práticas tradicionais na forma de participativas, incorporando outras dimensões
reuniões, grupos socioeducativos, passeios da análise e da transformação da realidade.
ou oficinas de artesanato, em que predo-
minam ofertas e aquisições baseadas em Para MIOTO, citando Baptista:
necessidades individuais, sem vinculação (...) o trabalho social precisa ter indignação social
com as questões dos territórios e sem par- e política capaz de movimentar as pessoas e pa-
ticipação coletiva das populações que ali ciência pedagógica para respeitar caminhos, de-
residem, prevalecendo uma relação verti- cisões que reforcem as capacidades das pessoas e
calizada entre quem coordena e quem par- resgatem sua autoestima e sua dimensão cidadã.
ticipa das atividades ainda na perspectiva (BAPTISTA, 2003, p. 124,125 apud MIOTO,2015, p.30).
de regulação da vida familiar (KOGA, 2015 ).

Prefeitura de Itapevi

50 | Papel estratégico dos CRAS, no combate às desigualdades e respeito as diversidades no SUAS


Para SAWAIA (2004) é pela via dos afetos e da dos indivíduos, famílias e territórios e o en-
emoção, que são dimensões importantes da frentamento das desigualdades sociais
subjetividade que podem ser produzidas for- no nosso país. de dos indivíduos, famí-
ças que aumentem as chances de emancipa- lias e territórios e o enfrentamento das
ção e promovam o necessário movimento da desigualdades sociais no nosso país.
heteronomia para autonomia. A autonomia,
não pode ser entendida apenas como inde-
Referência Bibliográfica:
pendência financeira, mas como capacida-
ANDRADE, Priscilla Maia; PEREIRA , Lucélia Luiz,
de de decidir, optar, eleger objetivos, metas A (In)visibilidade de Gênero e Raça na Assistên-
e crenças, é condição fundamental para que cia Social: estudo de caso nos Centros de Referên-
sejam alcançados os objetivos de participa- cia de Assistência Social . In: O Social em Ques-
ção social e, principalmente, para que se re- tão - Ano XXII - nº 45 - Set a Dez/2019 p. 57 – 80
conheça a força do grupo, da organização e CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Re-
das lutas coletivas. ferencias técnicas para atuação de psicólo-
gas (os) no CRAS / SUAS Brasília. CFP, 2021
Assim, o TSF deve ser sistemático, pro- FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO; CONSELHO REGIONAL
DE ECONOMIA DE MINAS GERAIS. Proteção Social,
cessual, de caráter contínuo, e pautar-se desigualdades e pobreza: Como as políticas públicas
no reconhecimento de que todas as pes- podem promover ou enfraquecer a cidadania social.
soas são capazes de produzir conheci- In : Observatório das desigualdades. Boletim número
mento para o processo de transformação 11, 2021.GRAHAM, Adriana Pacheco da Silva; BRAHIM,
da realidade. É na interpretação da reali- Valéria .– Guia Prático: Trabalho social com famílias.
Rio de Janeiro: Associação Terra dos Homens, 2013
dade em confronto com as prerrogativas MIOTO, Regina Célia Damaso. Documento técni-
do SUAS que se encontram os elemen- coorientador para subsidiar o seminário nacional
tos para a construção de um processo sobre trabalho social com famílias na PNAS à luz
participativo e coletivo do trabalho so- das avaliações sobre a produção acadêmica na
cial. Nos arranjos participativos assegu- área da Assistência Social e a produção institucio-
nal do MDS sobre trabalho social com famílias re-
ra-se também a dimensão relacional da alizadas nos produtos anteriores. Produto de Con-
convivência que favorecem a criação ou sultoria SNAS/ MDS. Brasília, Setembro de 2015
fortalecimento de vínculos, que possibili- SAWAIA, Bader. O sofrimento ético-políti-
tam a construção de leituras e releituras co como categoria de análise da dialética ex-
das situações vivenciadas em particular e clusão/inclusão. In Sawaia, Bader. As arti-
manhas da exclusão: análise psicossocial e
pelo coletivo, e a mobilização para desen- ética da desigualdade social. São Paulo: Vozes,2004
volver estratégias para o enfrentamento SOUZA, Jessé. (2009) Ralé brasileira:
das questões adversas que se impõem quem é e como vive. Belo Horizonte : Editora UFMG.
na família e na relação com o território. KOGA, Dirce. Subsídios para delimitação do ter-
ritório de Proteção Social Básica/PSB do SUAS
nos diferentes portes municipais, com enfo-
Neste sentido, atualização sobre o Pro- que nos territórios intraurbanos, a partir do es-
tocolo de Gestão Integrada de Serviços tudo da concepção de território para a Políti-
Benefícios e Transferência de Renda, ca Nacional de Assistência Social. Produto de
bem como o desenvolvimento de orien- Consultoria SNAS/ MDS., Brasília, maio 2015.
tações técnicas para o trabalho coletivo
na PSB serão fundamentais para incidir
no fortalecimento de estratégias de rea-
lização do Trabalho Social na perspectiva
do reconhecimento das diversidades e
enfrentamento das desigualdades. Em
consonância com o Plano Decenal de
Assistência Social (2016-2026), os esfor-
ços desta gestão continuarão sendo na
direção da universalização do SUAS, com
respeito à diversidade e à heterogeneida-

51 | Papel estratégico dos CRAS, no combate às desigualdades e respeito as diversidades no SUAS


UNICEF

Letícia Bartholo
Secretária de Avaliação, Gestão da Informação e
Cadastro Único do Ministério de Desenvolvimento e
Assistência Social, Família e Combate à Fome.

52 | Por mais proteção no território: A importancia do cadastro único para vigilância socioassistencial
O direito à proteção social é garantido por meio de intervenções públicas orientadas por in-
formações, diagnósticos e planejamento. Superar a cultura do imediato e a atuação baseada
apenas em demandas emergenciais ou espontâneas é uma forma de qualificar o atendimen-
to à população, evitar vazios de proteção e organizar a oferta de serviços socioassistenciais.

Para isso, é necessário ter informações disponíveis e organizadas que possibilitem a leitura do ter-
ritório: a caracterização dos perfis das pessoas e famílias vulneráveis e a identificação das neces-
sidades da população. É a partir dessa ideia que gostaria de iniciar, nesta revista do CONGEMAS,
o diálogo com gestores (as), trabalhadores (as) e controle social do SUAS (Sistema Único de Assis-
tência Social) sobre a utilização do Cadastro Único como ferramenta de vigilância socioassistencial.

A Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS) traz, em seus artigos 6º e 2º, os objeti-
vos da Vigilância Socioassistencial e do Cadastro Único como instrumento de prote-
ção social. A integração entre as ações de vigilância socioassistencial e o Cadastro Úni-
co permite dimensionar as demandas sociais, qualificar a oferta dos serviços e benefícios e
garantir o acesso a programas sociais. Mas, para que tal possibilidade se concretize, é fun-
damental a importância de um triplo olhar vigilante, que seja amplo, analítico e atuante.

Além de amplo, o olhar vigilante também deve ser analítico, ao direcio-


nar o uso dos dados do Cadastro Único para potencializar a realização de diag-
nósticos, ações de planejamento, busca ativa, monitoramento e avaliação.
De acordo com a NOB SUAS/2012, a operacionalização da vigilância socioassistencial
tem o objetivo de auxiliar as equipes dos serviços a planejar e avaliar sua atuação, am-
pliar o conhecimento sobre as características da população e realizar ações de busca ativa.
Para isso, é necessário diálogo entre as duas áreas administrativas - Cadas-
tro Único e Vigilância Socioassistencial. Dados do último Censo Suas indicam
que somente 20,1% das gestões municipais do Cadastro Único elaboram análi-
ses utilizando os dados do Cadastro Único, percentual que precisa ser ampliado.
Não só a vigilância socioassistencial pode se beneficiar deste olhar analíti-
co, mas todo o planejamento municipal. Lembremos que informações em ní-
vel municipal só estão disponíveis no Censo Populacional do IBGE a cada 10 anos.
Num intervalo entre um recenseamento e outro, portanto, um registro adminis-
trativo qualificado como o Cadastro Único torna-se uma ferramenta de expres-
sivo potencial para que gestores de todas as áreas das políticas públicas identi-
fiquem e atendam as demandas das populações e territórios mais vulneráveis.
Para que o Cadastro Único permita tal planejamento, é necessário, como dito, que suas infor-
mações sejam fidedignas e qualificadas. Este compromisso com a qualidade dos dados do
Cadastro Único nas três esferas de governo está previsto na NOB SUAS/2012 e deve ser obser-
vado por todos os entes federados. De forma análoga, o aperfeiçoamento da gestão do Cadas-
tro Único é um processo contínuo, tendo como pilares a articulação federativa e o apoio aos
municípios, por meio de ações de e inteligência, integração e interoperabilidade de dados.

No apoio aos municípios, ressalto a importância do PROCAD SUAS (Programa de Fortaleci-


mento Emergencial do Atendimento do Cadastro Único), pactuado pela União em feve-
reiro de 2023 com os entes municipais e estaduais e deliberado pelo Conselho Nacional de
Assistência Social - CNAS. O objetivo do PROCAD SUAS é permitir que as capacidades ins-
titucionais de municípios, estados e Distrito Federal sejam ampliadas, viabilizando ações de
qualificação das informações do Cadastro Único que dependem da realização de novas en-
trevistas de inclusão ou atualização cadastral. O PROCAD SUAS tem como metas prioritárias
a verificação de cadastros unipessoais e a busca ativa a GPTEs (Grupos e Povos Tradicionais
Específicos) e outras populações vulnerabilizadas, tais como pessoas idosas, com deficiên-
cia, crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil e população em situação de rua.

Na dimensão de integração e inteligência de dados, sublinho a integração entre o Cadas-


tro Único e o CNIS (Cadastro Nacional de Informações Sociais), realizada pela primeira vez

53 | Por mais proteção no território: A importancia do cadastro único para vigilância socioassistencial
em junho de 2023, por meio do povoamento dos dados de renda coletados no CNIS no
Cadastro Único. Essa iniciativa permitiu correções, evitou distorções e, principalmen-
te, facilitou o trabalho dos entrevistadores e a vida das pessoas e famílias cadastra-
das, pois elas não precisarão de deslocar aos Centros de Referência de Assistência Social
(CRAS) para prestar novamente informações que já são conhecidas pelo poder público.

Trabalhar pela fidedignidade dos dados do Cadastro Único é aperfeiçoar o conheci-


mento do poder público sobre realidade social, o que possibilita um terceiro olhar da
vigilância socioassistencial, o olhar atuante. Este olhar se materializa em interven-
ções, inclusive no trabalho social com pessoas e famílias vulneráveis. É o conhecimen-
to sobre a realidade social que permite distinguir as necessidades das famílias e seus
componentes nos contextos socioambientais onde estão inseridas, o que torna impres-
cindível o uso dos dados do Cadastro Único no cotidiano dos serviços socioassistenciais.
São dados que permitem conhecer as características das pessoas e famílias, dos territórios
onde residem, seu nível de escolaridade e seu grau de acesso ao mundo do trabalho, bem como
quem são essas famílias a partir das variáveis de gênero, raça, faixa etária, situação de deficiên-
cia, entre outras. Essas informações são essenciais para pensar os fatores e processos que vul-
nerabilizam as famílias. A experiência do Prontuário SUAS eletrônico é um exemplo que mostra
o potencial da integração do Cadastro Único com os registros de acompanhamento familiar.

No processo histórico de consolidação do SUAS, o Cadastro Único vem sendo crescente-


mente utilizado nas unidades de atendimento socioassistencial: CRAS, CREAS e, Centros
Pop, estabelecendo-se uma relação de sincronia com o conjunto de entregas do SUAS.
De acordo com o Censo SUAS/2022, é perceptível o avanço da inserção do Cadastro Úni-
co nas dinâmicas de atendimento na rede socioassistencial. Para aprofundar a aproxi-
mação do Cadastro Único com a oferta de serviços socioassistenciais e a vigilância so-
cioassistencial, é necessário repensar atribuições e estruturas administrativas. É preciso
também ter equipes de referência para assegurar o trabalho conjunto e complemen-
tar das equipes do Cadastro Único, da vigilância socioassistencial e da oferta de serviços.

O esforço de aproximar Cadastro Único e vigilância socioassistencial tem sido um dos pi-
lares da atuação da SAGICAD. Para isso, temos trabalhado no reforço das capacidades ins-
titucionais dos municípios e estados, seja via cofinanciamento efetuado pelo Procad-SUAS,
seja via ações de formação e capacitação para o exercício da gestão pública. Temos tam-
bém aprimorado e construído ferramentas informacionais que auxiliam a ação da Vigilân-
cia Socioassistencial, no que se destaca o lançamento do Observatório do Cadastro Único.

A integração entre serviços, transferência de renda e Cadastro Único marca o


objetivo da gestão federal inaugurada em 2023 no MDS. Afinal, esta integra-
ção é um caminho fundamental para retomar um SUAS fortalecido e reconhecido,
condição necessária para que o Brasil supere a fome, a pobre-
za e as diversas dimensões de desigualdade que marcam nosso país.

Gráfico 1: Percentual de CRAS, CREAS e Centro Pop com locais para atividades de operacionalização do Cadastro único

Fonte: Censo SUAS 2022

54 | Por mais proteção no território: A importancia do cadastro único para vigilância socioassistencial
Fábio Dias

Aldaíza Sposati
Professora titular sênior da PUCSP, pesquisadora do
CNPq e do NEPSAS/PUCSP, pesquisadora e analista
da política de assistência social desde 1984, militante
da Associação Rede Brasileira de Renda Básica- RBRB,
ativista na Luta pelo direito de proteção a orfandade de
crianças e adolescentes.

55 | Por mais proteção no território: A importancia do cadastro único para vigilância socioassistencial
A Tipificação Nacional dos Serviços Socioassis- to, é a de gerar garantias para que um direi-
tenciais – TNSS, promulgada em 11 de novembro to, no caso a proteção socioassistencial, seja
de 2009, por resolução do Conselho Nacional afiançado em nível quanti qualitativo onde e
de Assistência Social -CNAS, significouavanço quando demandado. É bastante equivocado
para a unidade de gestão dapolítica de as- nominar a parceria na gestão de um serviço
sistência social em todo o território brasileiro. socioassistencial como rede privada quando
resultante de um contrato com o órgão pú-
Esse avanço institucional garantiu, no Esta- blico para realizar uma dada atenção. Assim,
do brasileiro, a presença de atenções e cui- a terminologia correta é de gestão direta e/
dados provedores de direitos de seguridade ou gestão em parceria. Ao mesmo tempo, or-
social e preservadores da dignidade huma- ganizações da sociedade civil ainda podem
na de cidadãs e cidadãos brasileiros que, em operar serviços similares sob gestão privada
seu cotidiano, enfrentam fragilidades, es- e com recursos mobilizados da sociedade e
tigmatização e violências individuais, fami- não do orçamento público. Neste caso po-
liares e coletivas que precarizam seu viver. dem optar pelo vínculo SUAS não oneroso.
Há mais de uma década esses serviços so-
Essas precarizações constituem desprote- cioassistenciais foram caracterizados e por
ções sociais quequerem respostas protetivas isso, tipificados. Todavia, essa regulação não
de serviços socioassistenciais. A assistência significou a padronização de quantidade e
social, embora ainda mantenha em funcio- qualidade de atenções no patamar de direi-
namento construções históricas seculares, tos sociais. Com certeza o espalhamento do
que remontam a expressões filantrópicas Sistema Único de Assistência Social - SUAS
organizadas pela sociedade civil desde Brasil em todo o país, ao longo dos seus quase 20
Colônia, teve sua até então exclusiva gênese anos, tendeu a agir como catalisador de di-
privada, alterada pela Constituição de 1988. versidades de desproteções sociais que aca-
bam por exigir, em nome da equidade, da
Esta legalizou a assistência social como política justiça social e da democratização da gestão
de Estado e direito de cidadania, o que passou o alargamento do alcance de normas de co-
a exigir da gestão estatal a oferta de atenções bertura das atenções e cuidados face à di-
de proteção social distributiva, isto é, financia- versidade e implicações múltiplas do real.
das pelo orçamento público estatal ocupan-
do espaço de gestão na burocracia estatal. Após mais de uma década cabe a releitura
dessa tipificação face ao real. O Censo Suas
A presença no Estado brasileiro na pro- apresenta dados de execução do SUAS des-
visão da proteção social distributiva, in- de os 5.568 municípios, e neles distingue
cludente da assistência social e da saúde serviços socioassistenciais tipificados e não
como partes da seguridade social brasileira, tipificados. Muitas questões cercam esse de-
foi um grande avanço desmercadoriza- bate. Esta breve discussão pretende identi-
do e desfilantropizado afirmador do dever ficar alguns campos de questões e indicar
e da responsabilidade do Estado brasilei- referências para que seu debate, ao se apro-
ro com o direito a proteção social estatal. fundar, encontre bons e resolutivos caminhos.

Desse fato não pode ser concluído que tenha Os serviços socioassistenciais têm sido equa-
ocorrido a estatização ou a negação da filan- cionados sob a função de proteção social
tropia da sociedade civil. A cobertura estatal da política de assistência social (PNAS-04.
deve ser coletiva e para todos. A cobertura fi- Ocorre que, as duas outras funções, vigilân-
lantrópica mantém sua significativa impor- cia e defesa de direitos socioassistenciais,
tância, todavia nunca se ocupa da totalidade não têm recebido igual tratamento ocupan-
dos que demandam a cobertura de uma dada do lugar de procedimento complementar
desproteção/necessidade. A qualidade de um da função proteção social. Discutir serviços
serviço filantrópico, ao contrário do Estado, socioassistenciais próprios a essas funções
não reside na extensão de sua cobertura. A parece ser necessário para que se efetive a
responsabilidade do Estado, em contrapon- política pública estatal de proteção social.

56 | Por mais proteção no território: A importancia do cadastro único para vigilância socioassistencial
Serviço
Socioassistencial

Serviço socioassistencial público é uma unidade de gestão democrática do SUAS, que mantem,
por meio de equipe interdisciplinar de trabalhadores, relação direta com cidadãs e cidadãos de
um dado território, ou com vivência de uma determinada situação de desproteção social, e nele
produz escuta, desenvolve atenções, e medidas de alcance de seguranças sociais mantendo re-
lação de complementaridade intersetorial e vínculo de cobertura em rede. Ele deve contar com
trabalhadores - gerais e especializados- para ofertar modalidades de atenções e cuidados a cidadã
e ao cidadão, independentemente de idade, sexo, etnia, para superação de desproteções sociais
vivenciadas. Operam por meio de processos e técnicas próprios ao campo psicossocial - estendido
ao domínio de conhecimentos das ciências humanas, sociais, da pedagogia e do direito - para pro-
visão de cuidados e atenções, valendo-se de meios e aquisições na garantia de segurança sociais.

Serviço é uma unidade operadora, com recursos de orçamento público, no âmbito de uma
política social pública. Refere-se ao lócus onde ocorre a atenção, cuidados e aquisições a uma
necessidade ou desproteção. A atenção prestada em um serviço de uma política social públi-
ca é um direito de cidadania. A concepção de serviço de uma política social pública é distin-
ta de uma ação social privada, filantrópica, de benemerência ou caritativa. O Serviço público
orienta-se pelo coletivo, não se limita a atender aos que a ele chegam, pois deve identificar a
demanda reprimida; deve manter trato transparente dos recursos públicos, a gestão democrá-
tica operada por um processo social que atribui direito à fala de trabalhadores e de usuários.

Raul Spinassé

57 | Por mais proteção no território: A importancia do cadastro único para vigilância socioassistencial
A condição de operação de um ser-
viço público em parceria com uma
Lógica adotada em 2009
organização da sociedade civil, não que preside a tipificação
significa a ruptura com a supres-
são do caráter público da atenção, dos serviços
nem a ausência do caráter de-
mocrático de gestão que implica
socioassistenciais
na defesa do direito de cidadania
e de manifestação democrática. A lógica de operação adotada em 2009 é presi-
dida pelo significado concreto da proteção so-
O vínculo SUAS na relação de par- cial que implica na certeza da/o cidadã/o contar
ceria precisa estar visível para que com. Isto é, proteção social é sempre algo rela-
a atenção ao usuário não leve a su- cional, uma exterioridade. Em outras palavras,
bentender que sua atenção seja algo que está fora de condições/capacidades
uma benesse privada e não de uma do próprio indivíduo ou de sua família e que,
parceria pela concretização de di- demanda ser suprido serviço socioassistencial
reitos. A ocultação da parceria para público.
os usuários, torna-se um modo de
fragilizar e de fragmentar o campo Tem ocorrido equívoco entre municípios que
democrático da gestão do SUAS. caracterizam como um novo tipo de serviço so-
cioassistencial o modo pelo qual abordam um
A tipificação distingue os campos indivíduo ou uma família, se na sede do serviço
de ação de cada serviço socioas- ou no seu domicílio. A presença do agente do
sistencial, reconhecendo institu- CRAS ou do CREAS no domicílio é um modo de
cionalmente a particularidade da abordagem do método do trabalho social, mas
desproteção social apresentada de não um outro serviço. Visitar uma família no
que se ocupa (seu objeto), e a se- seu domicílio por vezes permite maior conheci-
gurança social que deve afiançar mento das relações de convívio familiar. O ser-
como um direito a quem o procura viço de proteção à família, PAIF/PAEFI -Prote-
(seu objetivo) e os processos de atu- ção e Atenção Integral (especializada) à Família
ação e provisão que adota e conta. pode ser exercido na sede do Cras (ou do CRE-
AS quando especializado) ou no domicílio da fa-
Na construção da Política Nacio- mília. Como se declara na saúde, a diversidade
nal de Assistência Social de 200 4 está no campo da estratégia e não da finalidade.
(PNAS-04) foi consensuado que a
atenção a ser prestada implicaria Com certeza, se faz necessário entender que a
em identificar níveis de comple- rede pública não deve ter, por valor, a fragmen-
xidade da atenção requerida face tação, o que leva ria a uma multiplicidade de
ao agravo da desproteção social nomes de serviços. A direção é a construção de
– como estágio de insegurança, unidade com complementaridade pela exten-
abandono e isolamento, vitimiza- são da cobertura. Isto significa que a perspec-
ção, dependência- e as implica- tiva não é a de multiplicar nomenclaturas em
ções de complexidade da resposta. serviços similares mas sim, admitir modalida-
Embora seja muito difícil ocor- des no mesmo tipo de serviço. Nomes fantasia,
rer uma desproteção social de- customizados a interesses conjunturais, redu-
sembaraçada de outras si- zem densidade e o significado da presença da
tuações, foi adotada uma a rede pública de atenção. Deve-se estar atento
gradação entre um nível básico e para essa ocorrência em serviços sob parceria.
outro especial e este, distinto en-
tre média e alta complexidade9.

9 Quanto maior a demanda de um lugar provedor de acolhimento cotidiano e institucional maior é


a intensidade de complexidade especial. Ao revés é considerado um serviço especializado de mé-
dia complexidade aquele em que a família e o indivíduo que a ele acorre, por ter seus direitos viola-
dos, conta com vínculos familiares e comunitários pois não estariam rompidos como no caso anterior.

58 | Por mais proteção no território: A importancia do cadastro único para vigilância socioassistencial
Nota-se distorção no trato do serviço socioa- a provisão em um serviço. Tratam de modo
ssistencial operado como um direito de cida- a identificar necessidade com elegibilidade.
dania, não pode ter a renda do indivíduo ou Os serviços socioassistenciais são dirigidos a
de sua família como critério de elegibilida- desproteções sociais, por isso, são de seguridade
de da cidadã/ão a ser atendido em um servi- social. O que elege a atenção é a presença de des-
ço. Assim, como não se aplica ter CADÚnico proteção social e não o quanto ganha o cidadão.
para poder frequentar uma escola, ou uma
unidade de saúde, não cabe exigi-lo para O horizonte não é a gratuidade, mas a con-
estar num centro de convivência do SUAS. dição de acesso pelo direito à dignidade hu-
mana. É descabido obrigar a ter inscrição no
A justificativa dessa distorção nasce de uma Cadastro Único para que possa frequentar um
interpretação neoliberal pautada numa ilogici- serviço socioassistencial. Trata-se de um modo
dade, que ao referir a assistência social a uma de gerir orientado pela formação de um apar-
política social a quem dela necessitar, inter- theid e não, pela universalidade da cidadania.
preta que seu usuário tem que ser um neces-
sitado, ou alguém que não possui poder aqui- Escola, unidade de saúde não exigem Cadas-
sitivo de compra no mercado. Toda atenção tro Único de seus usuários que também utili-
em qualquer política social é para quem dela zam do SUAS.
necessitar, pois assim se diz ser universal. É a
necessidade que movimenta o cidadão para

59 | Por mais proteção no território: A importancia do cadastro único para vigilância socioassistencial
A lógica que preside a tipificação de serviços
socioassistenciais, pela PNAS- 04, inclui o vín-
Tipificação de serviços culo de cada serviço socioassistencial com
socioassistenciais uma unidade de referência ao nível de prote-
ção/desproteção social vivenciado entre básico
e porte populacional ou especial. Essa unidade de referência opera
uma mediação entre o requerente que busca
a proteção socioassistencial e a oferta dos ser-
viços existentes. Como se percebe é uma uni-
Ao que parece, o porte populacional de dade de referência para o requerente como
uma cidade pode exigir determinados para a gestão da oferta da atenção buscada.
serviços ou sua substituição. Essa é uma Essa condição das unidades de referência aca-
questão que está a merecer discussão e ba por exigir a concepção de referência como
levanta outra decisão como a de garan- uma segurança social, o que torna sem senti-
tir a homogeneidade de oferta de ser- do sua ação se confinada a um mero encami-
viços do SUAS em todos os entes fede- nhamento. Este devolve ao requerente a situa-
rativos, face às alterações populacionais ção que o levou à unidade, sem obter resposta.
ou mesmo, a características singulares.

Ao que parece não basta conside-


Freepik
rar serviços não tipificados, mas gera-
dos por uma tipificação municipal e/
ou estadual. Para tanto deveriam ter
sua aprovação na CIB, na CIT, no CNAS?

Faz-se necessário esclarecimentos para


ocorrer consenso de entendimento so-
bre a natureza e especificidade do ser-
viço socioassistencial. Toma-se de saída
o entendimento de serviço como oferta
de ação continuada que deve concre-
tizar universalidade de acesso a quem
dele necessitar

Tipificação de serviços
socioassistenciais e cen-
tros de referência

Analisar alterações na tipificação de


serviços socioassistenciais exige em
primeiro plano que se tome a decisão
quanto à manutenção/alteração do cri-
tério fundante da distinção tipológica
dos serviços socioassistenciais: grau de
complexidade da desproteção social re-
lacional vivenciada e combinada à pre-
Freepik
sença/ruptura de vínculos familiares.

60 | Por mais proteção no território: A importancia do cadastro único para vigilância socioassistencial
O Centro de Referência de Assistência Social – CRAS O CREAS não possui limite de abran-
é uma unidade pública estatal da Política de Assis- gência territorial e opera a organiza-
tência Social, de gestão municipal, com base terri- ção e coordenação da rede de ser-
torial determinada que procede acolhimento, escu- viços socioassistenciais de média
ta e gera referências e atenção para as demandas e alta complexidade. O CREAS não
de desproteção social da população de sua área de constou da PNAS-04, mas da lei nº
abrangência, na qual organiza e coordena a rede de 12435/2011. A mediação da gestão
serviços socioassistenciais de baixa complexidade. de serviços tipificados por níveis de
O Centro de Referência Especializado de Assistên- complexidade medidos por Cen-
cia Social-CREAS é uma unidade pública estatal da tros de Referência foi revisitada no
política de Assistência Social, de gestão municipal momento em que o CNAS aprovou
estadual ou regional, que procede acolhimento, a tipificação de serviços de média
complexidade para a população em
escuta e gera referências e atenção para as de-
situação de rua, incorporando: Ser-
mandas de pessoas ou famílias em situação de ris- viço de Acolhimento Institucional;
co social, vítimas de violência, discriminação e/ou Serviço de Acolhimento em Repú-
violação de direitoslias e indivíduos em situação blica; Serviço de Acolhimento em
de risco pessoal e social, por violação de direitos. Família Acolhedora; Serviço de Pro-
teção em Situações de Calamidades
Públicas e de Emergências em 2009
Diangela Menegazzi
e instituiu o Centro de Referência Es-
pecializado de População de Rua10.

Uma das questões que vem se apre-


sentando diz respeito ao alcance das
unidades de referência (CRAS e CRE-
AS) do SUAS, enquanto operadoras e
partícipes do Sistema de Garantia de
Direitos sobretudo quanto a crian-
ças e adolescentes (SGDCA). Há um
reclamo de CRAS e CREAS quanto a
receber demandas de unidades da
Justiça e do Ministério Público, com
prazos de resposta. Alguns conside-
ram ser uma conduta equivocada,
por trazer mais trabalho a equipes
já desfalcadas. Outros consideram
que responder a tempo e hora é algo
incompatível ao CRAS e ao CREAS,
não só pelo frágil quadro de trabalha-
dores, mas também, pela ausência
de domínio da matéria em questão.
Nesse quadro tais demandas são per-
cebidas como abusivas da parte da
Justiça perante os trabalhadores do
CRAS e do CREAS. Seria essa a per-
cepção caso examinássemos com ri-
gor a presença no Suas da operação
relacional das funções do SUAS na
vigilância e defesa socioassistencial?
k
10 Essa modalidade de Centro de Referência foi considerada uma unidade de proteção social especial de média complexidade, sob
caráter público estatal, sendo suas operações marcadas pela intersetorialidade. Foi previsto pelo Decreto Nº 7.053/12/2009 em de-
corrência da criação da Política Nacional para a População em Situação de Rua. O Centro POP é uma unidade pública de referência
para atenção especializada de um público específico. Em sua dinâmica realiza atenções individuais e coletivas, oficinas e atividades
de convívio e socialização, além de ações que incentivem o protagonismo e a participação social das pessoas em situação de rua.
O endereço do Centro POP é utilizado individualmente pela população usuária para constar em sua documentação e referência.

61 | Por mais proteção no território: A importancia do cadastro único para vigilância socioassistencial
Junto às questões sobre a tipificação de serviços socioassistenciais tem se apresentado de-
mandas para ampliação de modalidades de centros de referência por segmentos da popula-
ção, um deles seria dirigido a idosos. Essa demanda exige que se faça uma distinção: serviços
tipificados devem estar presentes no SUAS em todas as cidades brasileiras? Qual é a exigên-
cia para instalação e funcionamento de um serviço socioassistencial do SUAS face ao porte
populacional do município? Quais critérios regem essa diversidade? Por sua vez, quanto aos
Centros de Referência, já é considerado como norma o fato de que em municípios de peque-
no porte até 20 mil habitantes não sejam instalados CREAS face a sua demanda rarefeita.

No caso há a modalidade de CREAS regional, intermunicipal, consorciado. Do mesmo modo,


serviços de alta complexidade não encontram demanda para sua instalação em pequenos
municípios. Um serviço que já consta da tipificação e pode ser alternativa ao Centro de Aco-
lhida para Crianças e Adolescentes no pequeno município é a Família Acolhedora. A unidade
de nominação permite a construção da identidade da atenção que deve ser promovida pela
política de forma continuada e de identidade coletiva. A categoria serviço socioassistencial, ao
lado da categoria unidade de referência, são espaços físicos e institucionais em que é ofertada
a provisão relacional de cuidados e atenções da proteção social distributiva de assistência so-
cial. A oferta de atenções e cuidados é complementada pelo acesso a benefícios monetários. v

A relação entre serviços socioassistenciais


e benefícios monetários
Uma das intensas discussões sobre os rumos da gestão do SUAS no governo fede-
ral colocou a centralidade na relação entre serviços socioassistenciais e benefícios mo-
netários: deveriam ter gestão independente sim ou não? Seriam eles frentes de ges-
tão isoladas ou deveriam ser complementares? De fato, a lógica bancária de gestão de
benefício financeiro para milhões de brasileiros encontra abrigo em algoritmos, na in-
teligência artificial-IA e nos caixas eletrônicos. Por sua vez o serviço socioassistencial é de
operação relacional que identifica a/o cidadã/ão-usuário como presença ativa no proces-
so de gestão e possibilita sua presença e participação social em fóruns e representações.

Os beneficiários, por sua vez, não contam com meios de escuta, comuni-
cação, presença, representação. Esta temática não incidiu na relação en-
tre benefícios e serviços ou no trato de beneficiários e usuários de serviços.

A literatura internacional sobre proteção social contém uma particularização sobre a re-
lação entre benefício monetário e prestação de cuidados ou prestação de serviços, sen-
do nominada tal relação de “Cash and Care” ou “Cash plus Care11”. É preciso entender que
a decisão entre fragmentar e/ou unificar a operação de cuidados e atenção proteti-
va articulada com auxílio monetário não se reduz a uma opinião quanto a um ou ou-
tro formato de burocracia institucional, e sim, à análise dos nexos entre as duas dimen-
sões fundados no conhecimento extraído da pesquisa sobre os efeitos mútuos que
produzem no enfrentamento das desproteções sociais agudizadas pela pauperiza-
ção social, sobretudo pós-pandemia acompanhada de desmanche de políticas sociais.
Com tudo isso não se pode deixar de se ter presente que a proteção so-
cial estatal deve ter por valor intrínseco a não distinção do outro pela racia-
lização, pelo gênero, pela religiosidade, pela subordinação, mas sim, guiar-
-se pelo valor do pertencimento como princípio organizador da proteção relacional.

11 Textos da Unicef, e da Organização Internacional “Save the Children”, apontam em base de experiências empíricas múlti-
plas, para a necessidade de combinar, de modo compassado, o suporte financeiro, a famílias ou crianças, com apoio di-
reto ou indireto a necessidades e a direitos que promovam a redução de impactos e minimização de riscos. (cf. UNI-
CEF, Learning from six government-led and UNICEF supported cash plus programmes in Eastern and Southern Africa,
março de 2023: https://www.unicef.org/esa/media/12516/file/Synthesis-SP-Nutrition-Case-Studies-2022.pdf; Save the Children

62 | Por mais proteção no território: A importancia do cadastro único para vigilância socioassistencial
Marcello Casal Jr

Clara Carolina de Sá
Diretora do Departamento de Gestão do SUAS da Secretaria
Nacional de Assistência Social, Advogada e Especialista em Gestão
Pública.

Paulo Eugenio Clemente Junior


Coordenador de Projetos da Secretaria Nacional de Assistência
Social, Antropólogo e Especialista em Gestão Pública.

Ana Paula Campos Braga Franco


Servidora do Ministério de Desenvolvimento e Assistência Social,
Família e Combate à Fome, Assistente Social e Especialista em
Gestão Pública.

63 | Gestão do SUAS Agenda e instrumentos necesários para fortalecer a democracia e promover direitos
A implantação da Vigilância Socioassistencial e da Gestão do Trabalho e Educação Permanente
no SUAS estão previstas na LOAS e na NOBSUAS como responsabilidades dos entes (União, Es-
tados, Distrito Federal e Municípios). Para além da presença nos normativos, ambas as áreas são
estratégicas para garantir uma gestão mais democrática, participativa e para promover direitos a
usuários e trabalhadores. A qualidade dos serviços socioassistenciais disponibilizados à socieda-
de depende da estruturação do trabalho, da qualificação e valorização das(os) trabalhadoras(es)
atuantes no SUAS e de uma Vigilância, como área e como função da Política de Assistência Social.

No que tange à Gestão do Trabalho e Educação Permanente, a precarização do trabalho no


SUAS tem se apresentado como desafio central da gestão do Sistema. O Censo SUAS 2022 re-
trata que há muito o que avançar, especialmente na desprecarização dos vínculos de trabalho.
Como se observa no gráfico abaixo, das 437.900 trabalhadoras e trabalhadores do SUAS, ape-
nas 27% são servidores públicos estatutários ou empregados públicos celetistas. Os outros 73%
encontram-se nos vínculos temporários, terceirizados ou são empregados do setor privado.

64 | Gestão do SUAS Agenda e instrumentos necesários para fortalecer a democracia e promover direitos
Somados todos os equipamentos e a gestão, Mapeamento de competências: compreendido
são 342.961 trabalhadoras mulheres (78%) e como instrumento de gestão para aprimorar as
94.939 trabalhadores homens (22%) na Assis- ofertas do SUAS e alcance de suas finalidades,
tência Social. Quanto ao nível de escolaridade, considerando o conjunto de conhecimentos,
são 43% com nível superior, considerando gra- habilidades e atitudes requeridas pelos SUAS.
duação, especialização, mestrado e doutora-
do. Quanto à formação, lideram as categorias Produção de orientações e supervisão técnica.
de Assistente Social, com 14%, Psicólogo, com Escolas estaduais e nacional do SUAS: iden-
7%, e Pedagogo, com 6%. tificação, aproximação e apoio às escolas já
existentes e às que se pretendem instituir.
Uma das formas de qualificar as(os) traba-
lhadoras(es) é a educação permanente, cujos
Núcleos de educação permanente do
princípios e diretrizes encontram-se normati-
SUAS: importante entender o funcio-
zadas na Política Nacional de Educação Per-
namento dosnúcleos em andamen-
manente do SUAS – PNEP/SUAS.
to, e fortalecer as ações do NUNEP/SUAS.
Aprovada pelo Conselho Nacional de Assis-
tência Social – CNAS, por meio da Resolução dentificação de novas demandas e dese-
nº 04, de 13 de março de 2013, a PNEP/SUAS nho de novas ofertas de capacitação para o
representa uma grande contribuição ao pro- SUAS, considerando as novas complexida-
cesso de aprimoramento da gestão do SUAS. des vivenciadas pelas (os) trabalhadoras(es).
“Nos marcos da implementação da Gestão do Tra-
balho do SUAS, portanto, a adoção dessa política
se associa a um conjunto de iniciativas que con-
tribuem para a desprecarização das condições de
trabalho e para a valorização dos trabalhadores,
como forma de promover a profissionalização do
Sistema e a melhoria contínua da qualidade da
oferta e do provimento dos serviços e benefícios
socioassistenciais”.
(Brasil, 2013, pág. 31-32)
Na perspectiva da retomada da centralidade
da função estratégica da Gestão do Trabalho
e da Educação Permanente para o SUAS, re-
toma-se agendas fundamentais que foram
outrora interrompidas e retiradas da agenda
nacional. Por meio das instancias fundamen-
tais que operam os compromissos do pacto
federativo, reinicia-se e propõe-se um debate
amplo sobre fortalecimento e visibilidade da
área de gestão do trabalho, a partir de algu-
mas agendas centrais, tais como:

Retomada do pacto federativo e apoio téc-


nico às equipes estaduais, com valorização
das (os) trabalhadoras(es): diálogo retomado
com equipes estaduais e do Distrito Federal.

Condições de trabalho e saúde do trabalhador:


compreender os riscos e agravos relaciona-
dos às condições de trabalho vivenciadas no
SUAS a fim de se construir ações relacionadas
à visibilidade, centralidade, promoção e pro-
teção das (os) trabalhadoras(es) do Sistema.

65 | Gestão do SUAS Agenda e instrumentos necesários para fortalecer a democracia e promover direitos
Para a Vigilância Socioassistencial, a implantação em todos os municípios é fun-
damental para transformar os dados que são produzidos no território em in-
formação e conhecimento. As informações analisadas pela Vigilância permi-
tem avaliar e monitorar as ofertas que estão sendo realizadas, compará-las com
riscos e vulnerabilidades de usuários (as) e verificar se existem falhas ou vazios de cobertura.

As informações permitem à gestão municipal tomar melhores decisões e baseá-


-las em evidências. Decisões como a alocação de recursos humanos, localização ide-
al de unidades socioassistenciais, cobertura dos serviços e a realização de busca ati-
va são fundamentadas a partir de dados produzidos/sistematizados pela Vigilância.

Em um estudo realizado pelo TCU e pela equipe da Secretaria Nacional de As-


sistência Social – SNAS/MDS, verificou-se que municípios com Vigilância forma-
lizada acompanhavam 36% mais famílias e realizavam 250% mais atendimen-
tos no CRAS do que os municípios sem Vigilância, e obtiveram resultados até 15%
melhores nos indicadores de Desenvolvimento IDCRAS,IDCREAS e IDConselho.

Segundo dados do Censo SUAS, o percentual de municípios que declarou possuir área de
Vigilância Socioassistencial instituída formal ou informalmente passou de 55%, em 2010,
para 70%, em 2013. Entretanto, a partir de 2013 o percentual de implantação da Vigilân-
cia se estabiliza, oscilando para baixo nos primeiros anos de mandato da gestão municipal,
e subindo ligeiramente nos últimos.

Considerando a distribuição por Região, ve- maiores dificuldades para a implantação da


rifica-se que a Região Nordeste apresenta Vigilância ocorrem nos municípios de pe-
melhores resultados, bem acima da mé- queno porte: quanto maior o porte do mu-
dia nacional, e a Região Sul apresenta os nicípio, maior a implantação da Vigilância
piores. Outro achado importante é que as Socioassistencial, como mostra a Figura 3.

66 | Gestão do SUAS Agenda e instrumentos necesários para fortalecer a democracia e promover direitos
Dados do Censo SUAS apontam que em 61% dos municípios não havia ne-
nhum trabalhador exercendo atividades de Vigilância na gestão. Esse percentu-
al chega a 71% nos municípios de pequeno porte I e 46% nos de pequeno porte II.
Se considerarmos apenas aqueles municípios que dispunham de ao menos um técni-
co de Vigilância, outro problema constatado foi a rotatividade entre uma gestão e ou-
tra: 47% dos técnicos da Vigilância tinham vínculo estável com a gestão (servidor estatutá-
rio ou CLT), e mais de 80% deles permaneceram na função ano a ano. Entretanto, quando
muda a gestão municipal, o percentual daqueles que continuam na função cai para 58%.
A fim de avançarmos na superação dessas distorções e ausências, uma ação nacional fun-
damental no âmbito do SUAS passa por estimular a implantação da Vigilância Socioa-
ssistencial por meio do apoio técnico, conforme atribuições da Norma Operacional Bá-
sica, e da efetivação do desenho e implementação de financiamento específico para
área da gestão e Vigilância Socioassistencial, em articulação com os entes federados.

Referências
BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). Con-
selho Nacional de Assistência Social (CNAS). Resolução nº 269, de 13 de dezem-
bro de 2006. Aprova a Norma Operacional Básica de Recursos Humanos do Sis-
tema Único de Assistência Social – NOB-RH/SUAS. Brasília, DF: MDS; CNAS, 2006.
BRASIL. Lei nº 12.435, de 6 de julho de 2011. Altera a Lei nº 8.742, de 7 de dezem-
bro de 1993, que dispõe sobre a organização da Assistência Social. Brasília, DF: 2011.
BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). Conselho Na-
cional de Assistência Social (CNAS). Resolução nº 33, de 12 de julho de 2012. Aprova a Nor-
ma Operacional Básica da Assistência Social – NOB/SUAS. Brasília, DF: MDS; CNAS, 2012.
BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome – MDS. Conselho Na-
cional de Assistência Social (CNAS). Resolução nº 04, de 13 de março de 2013. Aprova a Po-
lítica Nacional de Educação Permanente do SUAS – PNEP/SUAS. 1ª ed. Brasília: MDS, 2013.

67 | Gestão do SUAS Agenda e instrumentos necesários para fortalecer a democracia e promover direitos
Juliana bezerra

Profa. Dra. Luziele Tapajós


Pesquisadora do Departamento de Serviço Social da
Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC onde é
docente aposentada/voluntária. Foi titular da Secretaria de
Avaliação e Gestão da Informação – SAGI/MDS entre 2009 a
2011 e Presidente do CNAS entre 2012 e 2014. Atua na área de
assessoria e consultoria na área de políticas sociais, gestão da
informação e vigilância socioassistencial. Doutora em Serviço
Social e PósDoutora pela PUCSP.

68 | A importância (e desafios) da efetivação da Vigilância Socioassistencial


A centralidade do recurso e da estratégia Vigilância Socioassistencial está consolida-
da como compreensão, como se pode aferir nas tantas assertivas sobre a matéria: ou
como função da PNAS, ou como objetivo do Sistema Único de Assistência Social - SUAS
no âmbito da gestão e suas diferentes e complementares responsabilidades, entre algu-
mas delas. Todavia esta consolidação, neste nível e por si só, não faz com que a Vigilância
Socioassistencial se configure na concretude do real cotidiano do SUAS, conforme prer-
rogadoprorrogado na LOAS, na Política Nacional, na NOBSUAS e demais regramentos.

Não resta dúvida que é inquietante avaliar a Vigilância Socioassistencial sob esta perspectiva,
mas é essencial fazê-lo. E mais, é urgente. Este texto se propõe a trazer à tona alguns argu-
mentos, ainda que rapidamente, sobre o universo de tal disparidade: o reconhecimento da
importância e potência da função Vigilância Socioassistencial e sua ainda inexpressiva efeti-
vação no cotidiano do SUAS.

Este domínio, o da Vigilância Socioassistencial, mento do SUAS com a condição de qualificar


se responsabiliza por gerar referências, parâ- os instrumentos de gestão do sistema, já que
metros e insumos que favoreçam o desenvolvi- seus produtos elucidam sobre os aspectos da
mento das ações no interior da política pública. realidade no contexto ampliado onde aconte-
Deve atuar sobre o conhecimento dos riscos e ce o direito - territórios e vivências -, firmam
vulnerabilidades e análise de pertinência entre as bases para processos de formulação da po-
as demandas dos usuários e as ofertas dos ser- lítica, incrementam processos de intervenção
viços e benefícios socioassistenciais, na pers- profissional, fundamentam descobertas, com-
pectiva do território em um visão de totalida- põem análises, entre outras possibilidades.
de. Esta particularidade distingue a grandeza
desta função da política de Assistência Social. Assim compreendida e organizada nivela
a Assistência Social às melhores práti-
Compreendida como um processo a ser exe- cas de administração pública e repre-
cutuadoexecutado de maneira a gerar produ- senta uma irrefutável via, não a única,
tos, é preciso afirmar que a Vigilância Socioa- para a eficácia das soluções públicas.
ssistencial é mais que uma função da política
de Assistência Social, mas também, a um só
tempo e por diversas formas, recurso, estra-
tégia e objetivo do sistema de proteção social.
É recurso, porque incrementa o desenvolvi-

69 | A importância (e desafios) da efetivação da Vigilância Socioassistencial


Escorada por indicadores e pesquisas, este re- sas são admissíveis vários argumentos, porém
curso tem a autoridade de apontar o aperfeiço- é importante ter cautela sobre esta análise e
amento de rumos e assentar os alicerces para de forma nenhuma deixar de endossar que é
o êxito ou, pelo menos, tem a aptidão de orien- nossa responsabilidade não se render a impro-
tar as ações em torno das questões públicas. visos no campo de decisão e ação de política
social. Apenas assim é possível cumprir o sen-
Como estratégia, ativar a Vigilância Socioassis- tido estratégico da função Vigilância Socioas-
tencial na área de gestão do SUAS possibilita a sistencial fazendo como que as decisões sobre
transição de um trabalho espontaneísta a uma o SUAS não sejam respaldadas em impressões
ação potencializada por inferências analíticas, genéricas, mas em convicções, tanto no que dizFreepik
segundo as quais é possível chegar a premis- respeito à realidade social concreta como ao
sas, proposições e pressupostos congruentes fomento de alternativas e estratégias de inter-
com as diversas situações: planejamento, orga- venção. As novas modalidades de deciframen-
nização, execução de ações, no que concerne to da realidade, franqueadas por pelo avanço
à gestão e serviços e medidas para monitora- tecnológico, podem e devem beneficiar um
mento e avaliação, produzindo, sistematizan- exercício recorrente de reflexões para as ações
do e analisando informações territorializadas: e atuação no campo das políticas públicas.
Conforme Jannuzzi (2016), para que as políti-
O ponto de partida e de chegada da Vigilância cas sociais possam cumprir seus objetivos es-
Socioassistencial está na sua travessia cotidiana pecíficos, é impreterível elaborar informação
pela dinâmica da realidade que acontece nas ci- e estudos de diferentes naturezas utilizando
dades, nos bairros, nos locais de atendimento, nas uma combinação plural de metodologias.
famílias chamadas de usuárias ou beneficiárias. A
Afinal, quando a LOAS, em 2011, define a Vi-
Vigilância Socioassistencial não consegue ser re-
alizada como função da política pública, se não gilância Socioassistencial como objetivo dei-
estiver conectada com o mundo real da gestão e xa evidente que a estrutura de gestão não
da prestação de serviços da política de assistência pode prescindir de informações, não deve
social. (BRASIL, 2013) apoiar-se em intuição, palpites ou percep-
ções aleatórias: organizar dados, produzir
Para cogitar a Vigilância Socioassistencial nes- diagnósticos, fomentar estudos se torna a
ta condição estratégica é preciso se desven- blindagem obrigatória contra o espontaneís-
cilhar de concepções e lógicas baseadas em mo e o gatilho para gerar referências para a
análises rasas e aligeiradas tais como algumas: leitura da realidade, para a deflagração de
comparar a Vigilância Socioassistencial ao uso processos de planejamento ajustados com
de sistemas de informação, de monitoramen- os cenários e alinhados com as decisões.
to ou de avaliação; relacionar Vigilância Socio- Fato é que este objetivo no campo da políti-
assistencial com fiscalização e controle de ter- ca pública de Assistência Social se materia-
ritório e população; limitar a condição desta liza em atividades concretas nos três níveis
área, no aracabouço administrativo, pela mar- de governo, e assim deve ser, para poder
gem das impossibilidades, ausência de condi- construir resultados esperados e cumprir
ções de infraestrutura com a célebre contrapo- atribuições complementares. O sentido de
sição: como dar corpo à esta função, quando desenvolver artefatos, produtos da vigilân-
há ‘tanto a fazer no campo da proteção social’, cia e socializar as informações precisa forta-
cristalizar a Vigilância Socioassistencial como lecer a cadeia de decisão coletiva para a ga-
função irrelevante, e por tal, não privilegiada rantia e acesso ao direito, tanto na relação
no âmbito das estruturas de gestão do SUAS, entre os entes federativos, destacando a im-
com pouca ou com nenhuma visibilidade, pre- portância da Comissão Intergestores Tripar-
sente por vezes apenas como item de ‘funcio- tite, das Comissões Intergestores Bipartite
nagrama’, sem efetividade na vida da política. - CIB’s e dos Conselhos de Assistência Social.

É preciso atentar que estes paralelos diver-


gentes representam desafios reais, porém, e
que podem ter diferentes razões e sobre es-

70 | A importância (e desafios) da efetivação da Vigilância Socioassistencial


Enfim, quando se evidencia a importância desta função da política de Assistência So-
cial infere-se primordialmente sobre a necessidade de alterar, e radicalmente, a forma
como a área se relaciona com dados, informação e conhecimento gerando referências,
indicativos, indicadores e diferentes métricas para viver e averiguar o real, seu movimen-
to e dinâmica, antever cenários e agir em consequência, ou seja criando um espaço de
efervescência analítica no campo da Assistência Social que não pode mais ser acessório,
mas sim primordial. Organizar esta função é construir um universo de análise - um do-
mínio de inteligência típica da Assistência Social -, o que é bastante inovador, porque é
k disto que se ocupa a Vigilância Socioassistencial: conhecer o cotidiano da vida das pes-
soas e suas condições concretas de existência, lugares, hábitos, necessidades e deman-
das, divisando não só aspectos relacionados à precarização, mas também recursos e
potencialidades das diferentes realidades. Este é um movimento de muitas vias e vieses.
As respostas que a função deve fornecer para que a Assistência Social desen-
volva política de prevenção e monitoramento credencia a área a criar a inte-
ligência típica e própria – a da Assistêcia Social – não apenas com estatísticas
próprias municipais e estaduais e nacionais que revelem as particularidades (ne-
gativas ou positivas) do processo de desenvolvimento da política, mas com o reco-
nhecimento da necessária interseção de bases de tantos dados gerados no cam-
po do direito social do Brasil, e sobretudo, como as advertências da realidade:

Trata-se de saber ler as estatísticas contidas em diversos bancos de dados infinitos, fazer o cruzamento
das informações e contextualizar a informação à luz da análise das dinâmicas, tensões e entraves dos
territórios e dos pressupostos teóricos que fundamentam o trabalho social. A produção de conhecimen-
tos para a gestão das políticas públicas não começa e termina na simples coleta de dados. A análise
contínua é o que insere o diferencial da ação, recombinando vários instrumentos, fases, referenciais,
sistematizações e reflexões críticas sobre os dados levantados.

(BRASIL, 2013)

71 | A importância (e desafios) da efetivação da Vigilância Socioassistencial


Ocorre que sistematizar informação de boa Jannuzzi, P. de M. A importância da informação
qualidade e gerar conhecimento aparenta estatística para as políticas sociais no Brasil:
não fazer parte ainda das prioridades no âm- breve reflexão sobre a experiência do passado
bito da gestão do SUAS. Conhecer a realidade para considerar no presente. Revista Brasi-
(vivências, territórios, necessidades, deman- leira De Estudos De População, 35(1), 1–10. ht-
das e ações) não é dispor dados em planilhas, tps://doi.org/10.20947/S0102-3098a0055, 2018.
tabelas, transformá-la em gráficos ou retratá-
-la em mapas, porém sim compreendê-la em
suas tão diferentes modulações e tão ímpares
vivências. As ambiguidades em torno do con-
ceito da função Vigilância Socioassistencial pa-
recem francamente comprometer a sua efeti-
vação, diminuindo-lhe os méritos e propósitos.

Parece ser fato, então, que a disparidade en-


tre o reconhecimento da importância e po-
tência da função Vigilância Socioassistencial
e sua ainda inexpressiva efetivação no coti-
diano é permeada de circunstâncias a serem
conhecidas e obstáculos a serem superados,
o que não ocorre, e nem ocorrerá, sem pro-
blemas. É preciso debruçar-se sobre os ca-
minhos para executar esta função em sua in-
teireza, com menos força no discurso e mais
força na sua implantação da Vigilância no
cotidiano da política. E aí aparecem questões
de extrema gravidade como financiamento,
conhecimento técnico, vontade política (co-
nhecer e revelar podem ser irrelevante em
alguns contextos conservadores), correspon-
sabilidades dos entes federados e suas com-
petências específicas, entre algumas a serem
seriamente avaliadas. Entretanto, o poder
do conhecimento estratégico, consubstan-
ciado por esta ‘inteligência típica’ respalda
a política no curso da efetividade com deci-
sões assertivas para o alcance de resultados.

Parece não restar dúvida: quanto mais se re-


conhece a importância e grandeza desta fun-
ção, a potência deste objetivo e a utilidade
deste recurso mais se desconstrói a disparida-
de aqui rapidamente aventada, o que repre-
senta um importante caminho para efetivar
a função Vigilância Socioassistencial no seu
lugar devido na política de Assistência Social.

Referências:
BRASIL, CapacitaSUAS - Caderno 3. Vigilância
Socioassistencial: Garantia do Caráter Público
da Política de Assistência Social / Ministério do
Desenvolvimento Social e Combate à Fome,
Centro de Estudos e Desenvolvimento de Pro-
jetos Especiais da Pontifícia e Universidade Ca-
tólica de São Paulo – 1 ed. – Brasília: MDS, 2013.
72 | A importância (e desafios) da efetivação da Vigilância Socioassistencial
Jorge William

Denise Colin
Assistente Social do Ministério Público do Paraná.
Ex-Secretária Nacional de Assistência Social.

73 | A relação e a integração operacional entre o SUAS e o sistema de justiça


A instituição de um sistema de proteção social
não contributivo, que torne acessível e recla-
mável o direito social inscrito na Constituição
Federal de 1988 e positivado enquanto política
pública para quem dela necessitar, foi conso-
lidado pela política de assistência social como
resposta qualificada aos impactos da socieda-
de capitalista contemporânea no espectro do
Estado Social. Por sua vez, os órgãos que inte-
gram o Sistema de Justiça são imprescindíveis
para a operacionalização do Estado Democrá-
tico de Direito. A convergência mencionada
encontra assento nos objetivos comuns de de-
fesa intransigente e asseguramento dos direi-
tos sociais e dos direitos socioassistenciais, o
que os torna em profunda sinergia na relação
interinstitucional estabelecida entre o Sistema
Único de Assistência Social - SUAS (Lei Orgâni-
ca de Assistência Social nº 8.742/93, alterada
pela Lei nº 11.435/11)26 e o Sistema de Justiça.

Se, por um lado, apresentam similaridade de da procedimentalização das necessidades


propósitos, por outro comparece uma imen- humanas e do direcionamento para a ju-
sa diferenciação de estrutura e de funciona- dicialização das políticas públicas. Todavia,
mento, desde o entendimento do conceito de possuem competências distintas (judiciais
sistema, até o uso e significado de nomencla- e extrajudiciais), e são formadas por car-
turas e o conjunto de atribuições e prestações reiras próprias, que possuem movimenta-
públicas. O SUAS se caracteriza como um sis- ções frequentes nas entrâncias e instâncias.
tema único, padronizado em todo Brasil, es-
truturado por níveis hierarquizados de prote- O Poder Judiciário é o órgão com a respon-
ção social básica e especial, de média e alta sabilidade de administrar a Justiça, e tem
complexidade, organicamente relacionados, por função jurisdicional a tutela dos direitos
assentadas nos princípios organizativos da subjetivos, dos direitos fundamentais e dos
universalidade, gratuidade, integralidade da direitos individuais abstratos. Representa,
proteção social, intersetorialidade e equidade, portanto, o Estado, na missão de aplicar as
e tendo como diretrizes estruturantes a matri- leis, vigiar sua execução, solucionar confli-
cialidade sociofamiliar, a territorialidade, a des- tos e reparar violações às relações jurídicas.
centralização das ofertas e o cofinanciamen-
to compartilhado entre os entes federativos. O Ministério Público é uma instituição per-
manente, essencial à função jurisdicional do
Já o Sistema de Justiça é composto por dife- Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem
rentes órgãos públicos, que integram o orde- jurídica, do regime democrático e dos inte-
namento jurídico-político do Estado brasileiro, resses sociais e individuais indisponíveis. Atua
quais sejam, o Poder Judiciário, o Ministério no âmbito individual e coletivo, por meio de
Público e a Defensoria Pública, todos dota- ações preventivas, punitivas e de fiscaliza-
das de independência e autonomia política, ção, bem como de fomento à estruturação
financeira e administrativa, e com garantias e oferta qualificada de políticas públicas.
de unicidade/unidade, indivisibilidade, vita-
liciedade, inamovibilidade e independência 26
Inseriu o Sistema Único de Assistência Social na Lei
funcional, conforme previsão constitucional. Orgânica de Assistência Social – LOAS, tornando o con-
junto de serviços, programas, projetos e benefícios so-
E, tradicionalmente, possuem um modo cioassistenciais um direito reclamável.
bastante peculiar de operar o direito, com
predominância das demandas individu-
ais em detrimento das coletivas, por meio

74 | A relação e a integração operacional entre o SUAS e o sistema de justiça


O art. 31, da LOAS, imputou ao Ministé- e organização da política de assistência so-
rio Público o dever de zelar pelo efeti- cial; da realidade local e regional traduzida
vo respeito aos direitos nela impostos. pelo diagnóstico socioterritorial; dos proces-
sos internos de trabalho, frente a inúmeras
A Defensoria Pública é instituição perma- causalidades que podem ser identificadas.
nente e essencial à administração da Justiça,
com incumbência de prestar orientação ju- Sob estas bases, o que era para propiciar a
rídica, e garantir a defesa e a promoção dos atuação interinstitucional na vertente do as-
direitos humanos, dos direitos individuais e seguramento de direitos, na prática, tem re-
coletivos, de forma integral e gratuita, em sultado em requisições inadequadas para a
todos os graus, aos que comprovarem insu- rede de proteção socioassistencial e, no ex-
ficiência de recursos, como forma de assegu- tremo, na desconfiguração dos fundamen-
rar o direito do cidadão de acesso à Justiça. tos do Sistema Único de Assistência Social,
como por exemplo: realização de perícias e
A despeito das especificidades dos respecti- diligências; inquirição de vítimas e acusados;
vos Sistemas, há que se considerar a diver- oitivas para fins judiciais; produção de pro-
sidade de legislações e normativas públicas vas de acusação; pareceres para guarda ou
que visam o acesso e usufruto dos direitos tutela de crianças/adolescentes, idosos, pes-
sociais, estando submetidas à interv enção soas com deficiência ou transtorno mental
dos órgãos do Sistema de Justiça, e que pos- de forma impositiva aos gestores/trabalha-
suem estreita relação com as seguranças e dores dos serviços de acolhimento, salvo nos
prestações do SUAS, tais como as relativas à casos previstos em lei; acompanhamento do
defesa de direitos das crianças e dos adoles- processo de adoção ou de guarda assistida
centes, dos idosos, das pessoas com defici- de crianças e adolescentes; averiguação de
ência, da população em situação de rua, da denúncia de violação de direitos (violência,
igualdade racial, da população LGBTQIAPN+, maus tratos) de crianças e adolescentes, ido-
de gênero, dos migrantes, assim como da- sos, pessoas com deficiência, mulheres; defi-
quelas que primam para enfrentar a multipli- nição do instrumental a ser utilizado e deter-
cidade de violências e violações de direitos. minação direta aos prestadores para inclusão
em serviços e benefícios socioassistenciais.
Tal aproximação determina que a convivên-
cia entre os Sistemas em comento ocorra
segundo dois vieses: i. nos procedimentos
extrajudiciais, com a finalidade de subsidiar
decisões que promovam a proteção da po-
pulação em situação de vulnerabilidade e
risco pessoal e social; na realização das vi-
sitas institucionais; na solicitação de acom-
panhamentos pelos serviços socioassisten-
ciais ou para a concessão de benefícios; no
fomento ao efetivo funcionamento da rede
de proteção e dos conselhos de assistência
social; ii. nas ações judiciais, quando da apli-
cação de medidas de proteção ou de socio-
educação; na judicialização para acesso ao
benefício de prestação continuada - BPC,
entre outras possibilidades de articulação.

Mas este cenário, por vezes, encontra-se en-


volto em tensionamentos devido ao baixo
domínio, pelos atores envolvidos, das atri-
buições institucionais correspondentes; da
lógica de estruturação e funcionamento dos
respectivos órgãos; dos princípios, diretrizes,

75 | A relação e a integração operacional entre o SUAS e o sistema de justiça


Unicef/ Raoni Libório

A superação destas dificuldades encontra- Ademais, vislumbra-se a adoção de ações e


-se amparada em um arcabouço legal que medidas que efetivamente orientem para a
disciplina os procedimentos a serem adota- imprescindível articulação entre o SUAS e o
dos pelas unidades e integrantes do Poder Sistema de Justiça, algumas já em andamen-
Judiciário (Recomendação CNJ nº 36/14) e do to (instituição de Mesa de Diálogo e Negocia-
Ministério Público (orientações do Conselho ção Permanente do SUAS com o Sistema de
Nacional do Ministério Público para atuação Garantia de Direitos e o Sistema de Justiça,
dos Promotores e Procuradores de Justiça), as- pelo município de Belo Horizonte/MG - Porta-
sim como dos gestores e trabalhadores da po- ria SMASAC nº 088/2019; regulamentação da
lítica de assistência social (Nota Técnica SNAS Rede Intersetorial de Atenção, Proteção e Pre-
nº 02/16), corroborada pelas legislações que venção às Situações de Vulnerabilidade, Viola-
estabelecem as competências das políticas ção de Direitos e Risco Pessoal e Social, com-
setoriais e dos órgãos do Sistema de Justiça posta por órgãos gestores das políticas sociais
(Estatuto da Criança e do Adolescente na área setoriais e de defesa de direitos, e do Sistema
da proteção e da socioeducação; Estatuto do de Justiça, no município de São José dos Pi-
Idoso; Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com nhais/PR - Decreto Municipal nº 3.144/2018; im-
Deficiência; Lei Maria da Penha; Lei de garan- plantação de sistema informacional eletrônico
tia de direitos da criança e do adolescente víti- compartilhado entre as políticas setoriais e os
ma ou testemunha de violência, entre outras). órgãos do Sistema de Justiça, como procedeu
o município de Cascavel/PR; reordenamento

76 | A relação e a integração operacional entre o SUAS e o sistema de justiça


namento das ofertas do SUAS em função das novas demandas alinhado com os órgãos
do Sistema de Justiça, pelo município de Foz do Iguaçu/PR); a criação do Centro de Apoio
Operacional de Assistência Social no âmbito do Ministério Público do Estado do Paraná,
e tantas iniciativas que podem ser implementadas nas seguintes dimensões: de norma-
tização; de capacitação; de intercâmbio de informações; de gestão integrada e qualificada.

Na dimensão de normatização, cabe editar resoluções e notas conjuntas que regulem a


atuação integrada do Sistema Único de Assistência Social - SUAS, do Sistema de Garantia
de Direitos - SGD, e do Sistema Nacional de Medidas Socioeducativas - SINASE com os ór-
gãos integrantes do Sistema de Justiça. Outra possibilidade recai na realização de reuniões
sistemáticas com as instâncias de representação nacional (Comissão Intergestores Triparti-
te – CIT, Conselho Nacional de Assistência Social - CNAS, Conselho Nacional dos Direitos da
Criança e do Adolescente - CONANDA, Conselho Nacional dos Direitos do Idoso – CNDI, Con-
selho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência - CONADE, Fórum de Secretários de
Estado de Assistência Social - FONSEAS, Colegiado Nacional dos Gestores Municipais de As-
sistência Social - CONGEMAS, Fórum Nacional de Dirigentes Governamentais de Entidades
Executoras de Políticas de Promoção e Defesa da Criança e do Adolescente - FONACRIAD,
Conselho Nacional do Ministério Público - CNMP, Conselho Nacional de Justiça – CNJ, en-
tre outros) e seus correspondentes em âmbito estadual e municipal. E ainda a constitui-
ção da Comissão Permanente da Política de Assistência Social junto ao Conselho Nacional
dos Procuradores-Gerais de Justiça dos Ministérios Públicos Estaduais e da União – CNPG.

Na dimensão de capacitação, faz-se imprescindível a disseminação, para as carreiras jurí-


dicas, do conhecimento sobre o SUAS nos currículos dos cursos de direito, e a previsão no
programa dos concursos de ingresso e dos cursos de vitaliciamento e de formação conti-
nuada. Por sua vez, para os gestores e trabalhadores do SUAS, cabe a incorporação do tra-
balho social interdisciplinar a ser desenvolvido na gestão e na prestação dos serviços pelas
disciplinas de formação acadêmica correspondentes, e a discussão acerca da relação com
o Sistema de Justiça como conteúdo do plano de capacitação permanente – CapacitaSU-
AS. Em ambos os sistemas é fundamental o estímulo à produção e à propagação de diag-
nósticos, estudos, teses, pesquisas, planos estratégicos intersetoriais, glossários dos ter-
mos utilizados e das competências próprias das áreas. Este alinhamento é passível de ser
estabelecido junto às Escolas da Magistratura, no Poder Judiciário, e do Ministério Público.

iStock

77 | A relação e a integração operacional entre o SUAS e o sistema de justiça


Na dimensão de intercâmbio de informações, comporta a produção, o trata-
mento, a divulgação e o acesso continuado aos dados e sistemas informacio-
nais que assessorem a intervenção de cada órgão envolvido, fundamentem a ela-
boração de materiais de subsídio, e monitorem as situações de violação de direitos.

A dimensão da gestão integrada compreende a construção conjunta de protocolos interinsti-


tucionais definindo as atribuições inerentes aos órgãos concernentes, acompanhados de fluxos
operacionais de atendimento, com referência e contrarreferência. Dispõe, também, da constitui-
ção da Rede de Proteção Social, composta por órgãos gestores e prestadores das políticas sociais
e do sistema de justiça, alinhada com a realização de reuniões periódicas para discussão de temas,
casos e procedimentos, assim como o fomento ao efetivo funcionamento dos Conselhos, com
foco na paridade e no caráter deliberativo, e no cumprimento das deliberações das Conferências.
E, por fim, há que se apontar aspectos a serem superados em ambos os Sistemas.

Na vertente do SUAS, cabe a composição das equipes de referência que ainda não atendem
aos parâmetros da NOB-RH/2006; a superação de vínculos trabalhistas precarizados e da alta
rotatividade dos trabalhadores; a efetivação de programa de capacitação permanente para
a qualificação do trabalho social; a instituição de arranjos organizacionais para cobertura de
atendimento da proteção social especial nos municípios de pequeno porte; a equiparação da
atenção no meio urbano e rural; a universalização das ofertas; o aprimoramento de parâmetros
nacionais para o trabalho social com famílias e com adolescentes em cumprimento de medi-
das socioeducativas; o fortalecimento do trabalho em rede intersetorial e interinstitucional.

Na vertente do Sistema de Justiça, vale atentar para o cumprimento das Resolu-


ções do CNJ e do CNMP; realização de concursos públicos, a fim de que os trabalha-
dores do SUAS não venham a ocupar lacunas de equipes interprofissionais dos ór-
gãos do Sistema; alinhamento conceitual e dos instrumentais técnicos, delimitando as
responsabilidades das respectivas equipes, para superar as requisições improcedentes.

78 | A relação e a integração operacional entre o SUAS e o sistema de justiça


Rafael Sarasol

Régis Spindola
Diretor do Departamento de Proteção Social Especial do
Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Fa-
mília e Combate à Fome (MDS/SNAS), Advogado, Mestre
em Educação pela UFMG/FaE.

79 | A relação e a integração operacional entre o SUAS e o sistema de justiça


Nos últimos anos, o Sistema de Justiça tem vil, o controle social e a participação popular.
se destacado pela participação energéti-
ca na definição de políticas públicas no país. Os elementos iniciais citados até aqui, per-
Com a política pública de assistência social meiam e interferem diretamente na relação
não foi diferente. A centralidade do judiciá- e integração operacional entre o SUAS e o
rio na tomada de decisões sobre grandes te- Sistema de Justiça. E, entre os atores e atri-
mas nacionais, estaduais, distrital e munici- zes que executam o SUAS ganham a nome-
pais têm gerado aplausos e críticas, e exige ação de “judicialização”, conotação referente
de nós, gestores, trabalhadores, conselheiros a uma ação do Sistema de Justiça sobre as
e estudiosos dos Sistema Único de Assistên- políticas de assistência social de forma inva-
cia Social - SUAS uma reflexão cuidadosa. siva, mas por vezes justificada por uma pos-
sível inoperância do poder executivo. Essa
De forma preliminar, é oportuno resgatarmos situação se materializa por exemplo a partir
questões organizacionais que permeiam estes de requisições e encaminhamentos do Siste-
dois Sistemas, as quais os aproximam pelos elos ma de Justiça, direcionados ao SUAS e con-
de interseção e objetivos comuns de proteção siderados indevidos por não constituírem
às famílias e indivíduos, mas também aqueles funções desta política. Mas será que esse fe-
que os distanciam seja pela linguagem própria nômeno pode ser chamado de Judicialização?
de cada área e, ou, pelos diferentes instrumen-
tos de regulação que organizam cada Sistema. Para BARROSO (2009), judicialização pode ser
compreendida por:
Diferente do SUAS, que se estrutura a par-
tir de uma diretriz de gestão de comando Judicialização significa que algumas questões de
único das ações em cada esfera de governo, larga repercussão política ou social estão sendo
o Sistema de Justiça é composto por dife- decididas por órgãos do Poder Judiciário, e não
rentes organizações (Poder Judiciário Esta- pelas instâncias políticas tradicionais: o Congresso
Nacional e o Poder Executivo – em cujo âmbito se
dual e Federal, Ministério Público Estadual
encontram o Presidente da República, seus minis-
e Federal, Defensoria Pública Estadual e da térios e a administração pública em geral. Como
União, Advocacia Pública Municipal, Esta- intuitivo, a judicialização envolve uma transferên-
dual e da União e Advocacia Privada), que cia de poder para juízes e tribunais, com altera-
têm autonomia funcional, procedimentos ções significativas na linguagem, na argumenta-
próprios, funções e normativas específicas. ção e no modo de participação da sociedade. O
fenômeno tem causas múltiplas. Algumas delas
Ademais, a política pública de assistência so- expressam uma tendência mundial; outras estão
cial a partir de seus marcos normativos inau- diretamente relacionadas ao modelo institucional
gurou um novo formato de proteção aos usu- brasileiro (Barroso, 2009, p.12).
ários, focada não mais na lógica segmentada
em públicos específicos e faixas etárias, mas, A judicialização da política não chega na so-
estruturada a partir da matricialidade socio- ciedade brasileira simplesmente por uma von-
familiar. Já o Sistema de Justiça, de forma tade individual de cada um dos juízes e juízas,
predominante, se organiza a partir de recor- é resultado legítimo decorrente das garan-
tes etários e marcadores de vulnerabilidade, tias constitucionais que colocou a sociedade
para ilustrar podemos citar a Vara da Infân- brasileira em transformações (TONELLI,2016).
cia e Juventude, Promotoria Especializada
no Combate à Violência Doméstica, Defen- Desta forma, a Judicialização é um fenômeno
soria Pública da Pessoa Idosa, entre outros. por vezes necessário, quando encontra no judi-
ciário uma via de controle e réplica a determi-
Esta organização resulta do Sistema de Jus- nada política pública excludentes, ou seja, uma
tiça, uma intervenção mais pautada no indi- possibilidade de garantir direitos, de grupos
víduo e menos no coletivo, por isso muitas específicos que não estão representadas ade-
ações individuais direcionadas ao SUAS, que, quadamente no poder legislativo e executivoe
em contrapartida se organiza a partir de pro- que encontram no judiciário um espaço para
teção social coletiva, considerando os aspec- terem seus direitos garantidos e respeitados.
tos do território, o fortalecimento da relação
democrática entre Estado e sociedade ci-

80 | A relação e a integração operacional entre o SUAS e o sistema de justiça


Assim, podemos aferir que embora exista ju-
dicialização no SUAS, quando por exemplo o
Sistema de Justiça define sobre a formulação
e execução desta política pública, o princi-
pal ponto de incômodo das equipes de refe-
rência e gestores remetem a falta de fluxos,
protocolos e incompreensão sobre os objeti-
vos, alcance e provisões dos serviços, progra-
mas, projetos e benefícios socioassistenciais.

Contudo, esta soma de encaminhamentos e


requisições que extrapolam as competências
do SUAS e de judicialização da política pú-
blica, produzem efeitos graves ao SUAS, pois
quebram a cultura do planejamento (aplica-
ção de recurso, sobrecarga das equipes, ges-
tão da área), impossibilitam o tempo da aná-
lise da equipe de referência e os critérios de tema de Justiça, elenca os principais anseios
priorização e inserção nos serviços, confron- na relação operacional entre os dois sistemas.
tam a autonomia técnica, produzem preca-
rização das ações de proteção social básica Importante registrarmos também os sig-
e especial e fragilizam a relação entre a rede. nificativos avanços que marcam essa rela-
ção, com iniciativas do Sistema de Justiça,
Oportuno a atenção das equipes de referên- do Executivo, dos Conselhos de Classe e do
cia e dos gestores e gestoras do SUAS para Controle Social, e que contribuem na for-
não induzirem a judicialização das questões mulação de respostas ao Sistema de Jus-
que são de resolução da própria política de as- tiça e no alinhamento entre as atrizes e
sistência social. Quando o SUAS transfere ao atores envolvidos, as quais destacamos:
sistema de justiça a responsabilidade da con-
dução do trabalho social com as famílias ea
Tomaz Silva
organização dos serviços socioassistenciais,
convocamos juízes, promotores e defenso-
res públicos a uma relação vertical em sobre-
posição a horizontalidade necessária a uma
rede de proteção, bem como, fomentamos
encaminhamentos e requisições equivoca-
das e judicialização de processos de proteção.

Não estamos falando de um fenômeno novo,


o pedido de providência ao Conselho Nacio-
nal de Justiça (CNJ), produzido pelo Conse-
lho Federal de Serviço Social (CFSS), de 22
de janeiro de 2014, enumerado e reconhe-
cido como Ofício nº 41/2014, apresenta um
dossiê das requisições feitas pelo Sistema de
Justiça, Conselhos Tutelares, Delegacias Es-
pecializadas e outros que atingem a classe
profissional dos assistentes sociais, vincula-
dos à Política Nacional de Assistência Social.

De forma mais ampla, a Pesquisa IPEA: As rela-


ções entre o Sistema Único de Assistência So-
cial – SUAS e o Sistema de Justiça (2014/2015),
a partir de entrevistas nas diferentes regiões
do país, com trabalhadoras/es do SUAS e do Sis

81 | A relação e a integração operacional entre o SUAS e o sistema de justiça


2012

Parecer Jurídico do Conselho Federal de Serviço Social 2014


(CFESS) nº 10, de 05 de março de 2012, que trata sobre a deter-
minação emanada do Poder Judiciário, mediante Intimação
a assistentes sociais lotados em órgãos do Poder Executivo
e outros para elaboração de estudo social, laudos, pareceres/ Provimento do CNJ nº 36 de 05 de maio de
Caracterização de imposição pelo Poder -Judiciário, de tra- 2014, que dispõe sobre a estrutura e proce-
balho não remunerado, gerando carga de trabalho excessiva; dimentos das Varas da Infância e Juventude.

Carta de Brasília (2014), para a moderni-


zação do controle da atividade extrajudi-

2016 cial pelas corregedorias do Ministério Público;

2016
Recomendação CNMP nº 33, de 5 de abril de 2016, que dispõe
sobre diretrizes para a implantação e estruturação das Pro-
motorias de Justiça da Infância e Juventude no âmbito do Mi-
nistério Público dos Estados e do Distrito Federal e Territórios.
Nota Técnica N.º 02/2016/SNAS/MDS que trata so-
bre a relação entre o Sistema Único de Assistên-
cia Social- SUAS e os órgãos do Sistema de Justiça;

2019

2019
Resolução nº 06/2019 do Conselho Federal de Psico-
logia (CFP), de 29 de março de 2019, que institui re-
gras para a elaboração de documentos escritos pro-
duzidos pela (o) psicóloga (o) no exercício profissional;
Resolução n.º 299/2019, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ),
que normatiza a oitiva de crianças e adolescentes vítimas e tes-
temunhas de violência sexual e violência doméstica, e a cria-
ção do Protocolo Brasileiro de Entrevista Forense com Crian-
ças e Adolescentes Vítimas ou Testemunhas de Violência;

2020

Orientação Normativa do Conselho Federal de Serviço Social


(CFESS) nº 04/2020, de 28 de abril de 2020, que dispõe sobre 2021
o sigilo profissional e a participação de assistente social como
testemunha ou perito/a em processos que envolvam usuário/a;

Resolução CNJ nº 425 de 8 de outubro de 2021, que instituí, no


âmbito do Poder Judiciário, a Política Nacional Judicial de Aten-
ção a Pessoas em Situação de Rua e suas interccionalidades;

2023

2023
Resolução CNAS nº 119/2023 aprova parâmetros para
a atuação do SUAS na relação com o Sistema de Jus-
tiça e outros Órgãos de Defesa e Garantia de Direitos
Nota Técnica nº 02/2023 do Conselho Federal de Psico-
logia (CFP), de 06 de abril de 2023, que dispõe sobre as
demandas do Sistema de Justiça às psicólogas e aos
psicólogos que atuam em serviços do Sistema Único de As-
sistência Social (SUAS) e do Sistema Único de Saúde (SUS);

82 | A relação e a integração operacional entre o SUAS e o sistema de justiça


A Resolução CNAS nº 119/2023 aprova parâmetros para a atuação do SUAS na relação com o
Sistema de Justiça e outros Órgãos de Defesa e Garantia de Direitos, merece destaque, pois no
âmbito do executivo federal e do Conselho Nacional retoma o debate da relação operacional
e integração entre os sistemas, reafirma a necessidade do diálogo e o conteúdo atualizado
da Nota Técnica SNAS 02/2016 que dispõe sobre a relação do SUAS com o Sistema de Justiça,
estabelece parâmetros internos ao SUAS na relação com o Sistema de Justiça e em especial
se posiciona a respeito de suas próprias competências na relação com o sistema de justiça.

Assim, para uma relação harmônica nos municípios, é fundamental que a União e o Estados se
responsabilizem no fomento desta pauta, instituído espaços formais de diálogos institucionais,
construção de protocolos, fluxos, instruções operacionais e demais regulações que defendem
a integração operacional entre o SUAS e o Sistema de Justiça. Afinal, acreditamos que a oposi-
ção da pobreza não é a riqueza, mas a Justiça, e como disse Leonardo Boff, precisamos enten-
der que Justiça não é judicialização e que todos precisamos de Justiça (ALBUQUERQUE, 2010).

Referências Bibliográficas
ALBUQUERQUE, Mariana. A judicialização, a Justiça e o po-
bre. Associação dos Defensores Públicos do Estado do Ceará, 2010.
BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Suffra-
gium - Revista do Tribunal Regional Eleitoral do Ceará, Fortaleza, v. 5, n. 8, p. 11-22, jan./dez. 2009.
BRASIL. . Lei 8.742. Dispõe sobre a organização da Assistência So-
cial e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 8 de dez, 1993.
BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Secretaria Na-
cional de Assistência Social. Norma Operacional Básica da Assistência Social (NOB-
SUAS). Brasília, MDS/SNAS, Resolução CNAS nº 33 de 12 de dezembro de 2012
BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Nota Téc-
nica nº 02/2016SNAS/MDS - Nota Técnica sobre a relação entre o Sistema Úni-
co de Assistência Social – SUAS e os órgãos do Sistema de Justiça. Brasília, 2016.
COSTA. Ana Paula Mota, org. As relações entre o Sistema Único de Assistência Social –
SUAS e o sistema de justiça / Ministério da Justiça, Secretaria de Assuntos Legislativos.
-- Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria de Assuntos Legislativos (SAL) : IPEA, 2015.
SPINDOLA, Regis Aparecido Andrade. A Dimensão Especializada da Proteção So-
cial Especial no SUAS: Da concepção à prática! E-book GESUAS, Belo Horizonte, 2022.
SPÍNDOLA, R. A. A. Entre o Direito a Educação e a Educação do Direi-
to: Adolescências, Medidas Socioeducativas e Proteção Social. 2019.
158f. Dissertação (Mestrado em Educação). UFMG. Belo Horizonte/MG.
TONELLI, Maria Luiza Quaresma. Judicialização da políti-
ca. Coleção o que saber? Fundação Perseu Abramo. São Paulo, 2016.

83 | A relação e a integração operacional entre o SUAS e o sistema de justiça


Danillo França/ MDS

Jose Arimateia de Oliveira


Mestrando em Avaliação de Políticas Públicas (UFC) e
Diretor Executivo do FNAS.

Fabio Santos de Gusmão Lobo


Especializando em Gestão Pública (ENAP) e Coordenador
Geral de Prestação de Contas do FNAS.

84 | Financiamento do SUAS - A retomada do diálogo com os entes federados e o compromisso com


fundo a fundo regular, automático e democrático!
O Sistema Único de Assistência Social (SUAS) Esse contexto, que hora tende as questões so-
comporta a gestão tripartite formada pela ciais e hora aos desejos do processo político,
União, estados e municípios. O financiamento sendo esse último (caráter político)
do SUAS se utiliza da mesma metodologia de
ocorrido durante o período de 2017 a 2022, teve
concepção do campo das políticas públicas
papel e fator decisivo no tocante da condução
brasileiras, mas com a prerrogativa da discri-
da Política de Assistência Social e isso acabou
cionaridade, diferente do que se aplica para
redefinindo e descaracterizando os aspectos
os casos da educação e saúde. E neste viés se
técnicos e de atuação do Fundo Nacional de
situa o financiamento da política de assistên-
Assistência Social. Essa memória está viva nas
cia social no contexto do cofinanciamento do
lutas travadas nos últimos anos para garantir
SUAS que requer o compromisso dos entes
que o sistema permanecesse em pé.
federados, de tal modo que relativizando a si-
tuação da integralidade de rede, e dentro da O SUAS é conceituado na PNAS como um sis-
complexidade dos serviços, projetos, benefí- tema de gestão descentralizada e participati-
cios e programas socioassistenciais, se consti- va que vem organizar e regulamentar as ações
tui assim um dos principais desafios da gestão socioassistenciais no território nacional com
no âmbito municipal, pois é nesse lugar que a a padronização dos serviços, a qualidade no
vida acontece. (OLIVEIRA, 2021) atendimento, a nomenclatura dos serviços, os
indicadores para avaliação e resultados, rede
Nesse macro processamento de ideias, vive-
socioassistencial, dentre outros. Desta fei-
mos um momento de retomada e reconstru-
ta, quando se fala em gestão compartilhada,
ção dos pilares do SUAS e o Fundo Nacional
especifica-se as competências da União, dos
de Assistência Social tem um papel estraté-
Estados, dos Municípios e do Distrito Federal
gico e protagonista nesse processo: a prática
e o cofinanciamento feito por cada uma des-
do diálogo continuado com ambos os entes,
sas esferas, conjuntamente, com a mobiliza-
visando aprimorar a gestão financeira e orça-
ção e participação da sociedade civil. (BRASIL,
mentária, dando suporte e assessoramento
2004). Desta forma, conforme Silveira (2022,
técnico, o que ainda é um desafio imenso de-
p.35).,
vido a lacuna em que se abriu desde 2017 com
os atores aos quais se faltou o diálogo. Além e resultados, rede socioassistencial, dentre
dos desafios operacionais de executar a polí- outros. Desta feita, quando se fala em gestão
tica de assistência social em país continental compartilhada, especifica-se as competên-
e com imensa diversidade que é o Brasil, vi- cias da União, dos Estados, dos Municípios e
vemos um novo momento que visa construir do Distrito Federal e o cofinanciamento feito
pontes firmes para uma política afirmativa no por cada uma dessas esferas, conjuntamente,
campo da proteção social. com a mobilização e participação da socieda-
de civil. (BRASIL, 2004). Desta forma, confor-
A professora Aldaíza nos relembra que às in-
me Silveira (2022, p.35).,
tempéries que de tempo em tempo nossa
política pública passa, são provadas entre mo- [...] reafirma que no caso da política de assistência
delos de governos menos conservadores ou social, as ofertas se materializam pela provisão de
serviços, programas, projetos e benefícios socio-
mais conservadores, visto que:
assistenciais, sendo estruturada em um sistema
A Assistência Social no Brasil foi entrelaçada unificado, o SUAS, com modelo de gestão partici-
pelos processos políticos e econômicos do pativo, entre os três entes federados, organizações
país desde seus primórdios, mesmo que na e entidades vinculadas. Nesse desenho e na con-
sua origem não se compreendesse a pobreza e cretude do SUAS como política pública, requer um
financiamento condizente com as demandas da
os outros problemas sociais como expressões
sociedade e das desproteções sociais.
da questão social, esses eram camuflados sob
o formato de acontecimentos isolados e a po-
breza como algo pertencente ao indivíduo, e
não a um contexto social (SPOSATI, et al.,2014)

85 | Financiamento do SUAS - A retomada do diálogo com os entes federados e o compromisso com


fundo a fundo regular, automático e democrático!
O financiamento público da PAS é estabelecido pela CF/1988 em seu art.195, que preco-
niza: “A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indire-
ta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Es-
tados, do Distrito Federal e dos Municípios e das contribuições sociais” (BRASIL, 1988).

Segundo Castro (2012, p.79), “a Carta Magna, ratificando o aspecto do planejamen-


to e democratização do processo de discussão sobre o atendimento às necessi-
dades de Assistência Social”, ganhando assim institucionalidade, porém de for-
ma tardia apenas em 1993, o que segundo ela: “numa conjuntura completamente
adversa ao fortalecimento do Estado e ampliação de direitos sociais, a sua organização ga-
nha legalidade, mas não prevê vinculação de recursos que lhe dê sustentação.” (2012, p.80)

Nosso grande dilema enquanto política pública é a não previsão constitucional da obrigatorieda-
de de investimentos mínimos fixos no orçamento público para a gestão e serviços da Assistência
Social, o que impacta consequentemente na capilaridade de unidades púbicas que ofertam um
leque de serviços, programas, benefícios e projetos. Ao horizonte visualizamos a real necessidade
da aprovação da PEC 383/2017 que garante a aplicação de no mínimo 1% da Receita Corrente Liquida
para a gestão do SUAS e seus serviços. Essa é uma luz que pode garantir mais segurança no plane-
jamento e na entrega de serviços com maior eficiência e efetividade a população usuária do SUAS.

Com a retomada do diálogo com os entes federados, o FNAS, em conjunto com as ações es-
tratégicas da Secretaria Nacional de Assistência Social, tem se empenhado em assegurar e
pactuar saída para a melhor execução dos recursos fixados discricionariamente no orçamento
e ao mesmo tempo buscando recompor os valores de cofinanciamento pactuado na Comissão
Intergestora Tripartite - CIT e deliberado pelo Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS).

Para além da retomada do diálogo, ocorre uma articulação desde a transição entre novembro e
dezembro de 2022, onde o governo transitório buscou articular com o congresso a recomposi-
ção do orçamento do SUAS, tendo êxito com a obtenção de 83% dos recursos necessários para os
Blocos da Proteção Social Básica e Proteção Social Especial, devido ao governo anterior ter en-
caminhado Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) no valor de 66 milhões de reais aproxima-
damente, o que garantiria o financiamento para o SUAS por apenas 13 dias, 4 horas e 8 minutos.
Para apenas manter o SUAS funcionando com orçamento em 100% do Pactuado

86 | Financiamento do SUAS - A retomada do diálogo com os entes federados e o compromisso com


fundo a fundo regular, automático e democrático!
em CIT, sem atualização de qualquer valor das ações orçamentárias ordinárias, seriam necessários
o valor de R$ 4.126.600.000,00, sem adicionar a Ação Orçamentária 219G que é ligada a emendas
parlamentares. Mesmo sem essa dimensão estar completa e no que tange o necessário para manu-
tenção do SUAS, esse aumento de orçamento representa 3.959% em relação a PLOA apresentada.

No acumulado do ano de 2023 (janeiro a agosto12) os valores transferidos aos municípios, es-
tados e distritos federal já chegam à marca histórica de R$ 1.621.973.769,77 (um bilhão e seis-
centos e vinte e um milhões e novecentos entes federados comparados ao mesmo período de
2022.No mesmo mês, foi efetivamente pago a referência do mês de julho do Índice de Gestão
Decentralizada do Programa Bolsa Família (IGD-PBF) o valor de R$ 59.829.255,00. Essa trans-
ferência de recurso é realizada por meio do FNAS, parceria firmada entre Secretaria Nacional
de Assistência Social e Secretaria Nacional de Renda e Cidadania visando fortalecer a Gestão
do Programa junto aos entes federados. No acumulado de 2023, o volume de repasses do IGD-
-PBF chega ao total de R$ 519.748.317,30 distribuídos nos estados e municípios de todo o Brasil.

12 Dados Extraídos em 31 de agosto de 2023.

87 | Financiamento do SUAS - A retomada do diálogo com os entes federados e o compromisso com


fundo a fundo regular, automático e democrático!
No panorama geral, apresentamos os seguintes dados oficiais de repas-
ses feitos pela modalidade fundo a fundo no exercício de 2023 até 31 de agosto.

No acúmulo do primeiro semestre de 2023, de valores repassados com referência de ja-


neiro a julho aos municípios, estados e ao Distrito Federal chegou à marca de R$
2.141.722.087,07 (dois bilhões e cento e quarenta e um milhões e setecentos e vinte e dois
mil e oitenta e sete reais e sete centavos), conforme demonstrado e detalhado acima no
gráfico, contendo sua distribuição por serviços e seus componentes, além dos progra-
mas executados diretamente dentro do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), de-
monstrando assim o compromisso com fundo a fundo regular, automático e democrático.
Para os próximos meses a previsão de repasse aos entes é de 1,07 bilhões de re-
ais nos componentes e blocos de financiamento aqui já apresentados. Toda-
via, precisamos da recomposição de componentes como IGD-SUAS, Primeira Infân-
cia no SUAS e mais 20% para os serviços visando atender 100% do valor pactuado.
Há muito a ser feito, e necessitamos da articulação conjunta de gestores das três esfe-
ras de governo, sociedade, controle social, seguimentos da sociedade e poder legislativo
para que possamos reafirmar por meio de um novo pacto federativo a partir da aprovação
da PEC 383/2027, que traz a luz e a perspectiva da garantia constitucional dos mínimos ne-
cessários para se prover oferta de serviços do tamanho da demanda existente e o aprimo-
ramento da Gestão do SUAS no território Brasileiro visualizando a dinâmica dos fatores
amazônico, semiárido, das calamidades, de crises migratórias e fatores fronteiriços, em um
compromisso social, ético e democrático afirmado nesse novo momento de reconstrução e
de repensar o SUAS que temos e o SUAS que queremos depois de 18 anos de sua criação.

Referências Bibliográficas:
CASTRO, Iêda Maria Nobre de. Pacto federativo e financiamento da assis-
tência social. TEMPORALIS, Brasília (DF), ano 12, n.23, p.69-96, jan./jun. 2012.
OLIVEIRA, J. A. de. Sistema Único de Assistência Social, seu Modelo de Financiamen-
to Aplicado na Prática Municipal de Aratuba - 2021 41 f.: Trabalho de Conclusão de Cur-
so (graduação) - Universidade Federal do Ceará, Faculdade de Economia, Administra-
ção, Atuária e Contabilidade, Curso de Bacharelado em Administração Pública, 2021.
SILVEIRA, Jucimeri Isolda. SUAS em números: projeto e realidade social no contexto de pan-
demia: vol. 1 / Jucimeri Isolda Silveira (organizadora). – 1.ed. – Curitiba, PR :NDH-PUCPR, 2022.
SPOSATI, A. O.; BONETTI, D. A.; et al. Assistência na trajetória das políti-
cas sociais brasileiras: uma questão em análise. 12. ed. São Paulo: Cortez, 2014.

88 | Financiamento do SUAS - A retomada do diálogo com os entes federados e o compromisso com


fundo a fundo regular, automático e democrático!
Jonathan Lins

Cláudia Francisca de Amorim


Diretora do Departamento de Benefícios Assistenciais -
DBA/SNAS/MDS.

89 | Papel do SUAS na garantia dos serviços de prestação continuada REVISTA CONGEMAS EDIÇÃO ESPECIAL
A Constituição Federal de 1988 marca o início Assistência Social deu largos passos para a
da construção do sistema de seguridade so- sua consolidação como política pública ga-
cial não contributiva. É a partir deste diploma rantidora de direitos sociais: a Lei nº 8.742, de
que o Estado brasileiro passa a reconhecer a 7 de dezembro de 1993 (Lei Orgânica da As-
proteção social enquanto um direito de todos, sistência Social – LOAS), a ratificou enquan-
independentemente de haver contribuição to uma política de proteção social, descen-
à Previdência Social. Com a promulgação da tralizada e participativa; foram realizadas
Carta Magna, edificou-se a Seguridade Social 12 Conferências Nacionais de Assistência So-
que, além da Previdência, é constituída por cial desde 1995; e foram aprovados os textos
outras duas políticas públicas: a Saúde, de da Política Nacional de Assistência Social de
caráter universal e a Assistência Social, des- 1998 (PNAS/1998), revisitado em 2004, e das
tinada a quem dela necessitar com a oferta Normas Operacionais Básicas (NOB), além
de seus serviços, programas, projetos e bene- de diversos Decretos, Portarias e Resoluções
fícios, incluindo a garantia de renda por meio que regulamentam os serviços, programas,
do Benefício de Prestação Continuada (BPC). projetos e benefícios da Assistência Social.
Inscrito entre os objetivos da Assistência So-
cial na Constituição Federal, o BPC é um be- A Assistência Social é uma política execu-
nefício assistencial que surge no contexto da tada por meio do Sistema Único de As-
Assembleia Constituinte, quando grupos liga- sistência Social – SUAS. Com o SUAS,
dos às pessoas com deficiência apresentaram reforçou-se a concepção da gestão da po-
a Emenda Popular nº 77, de 1987, fixando o lítica de Assistência Social como um sis-
pagamento mensal de um salário mínimosa- tema integrado no qual se faz imperativo
lário-mínimo assistencial às pessoas com de- a articulação das três esferas de governo.
ficiência incapazes de se manter. Ao tramitar Organizada de forma federativa e descentrali-
a proposta, o Poder Constituinte optou por in- zada, a Assistência Social contempla diversos
cluir também as pessoas idosas, considerando serviços, programas, projetos e benefícios, in-
o grande contingente de pessoas deste grupo cluindo a garantia de renda por meio do BPC.
que, assim como as pessoas com deficiência, Tais ofertas visam a proteção social dos indivídu-
não contavam com proteção no campo previ- os e famílias, além da vigilância socioassisten-
denciário. Ao final do processo, o texto consti- cial e da defesa de direitos, que são garantidos
tucional promulgado apresentou a seguinte no contexto das provisões socioassistenciais.
redação, que permanece até os dias atuais:
Voltado para garantir segurança de renda/
Art. 203. A assistência social será pres- sobrevivência juntamente com os benefícios
tada a quem dela necessitar, inde- eventuais (destinados a contingências em si-
pendentemente de contribuição à se- tuações de vulnerabilidade temporária, nas-
guridade social, e tem por objetivos: cimento, morte e calamidades), o BPC é um
(...) V - a garantia de um salário mínimosa- benefício individual e intransferível. O benefí-
lário-mínimo de benefício mensal à pes- cio tem seu reconhecimento enquanto direito
soa portadora de deficiência e ao idoso que atrelado à adoção de critérios de elegibilidade,
comprovem não possuir meios de prover quais sejam: as características individuais que
à própria manutenção ou de tê-la provi- provocam desvantagens na busca pela satis-
da por sua família, conforme dispõe a lei. fação das necessidades básicas, advindas do
ciclo de vida, no caso das pessoas idosas, com
Com a instituição do BPC, o Poder Públi- 65 anos ou mais; ou das limitações no desem-
co passou a ter o dever de garantir renda, penho de atividades e restrição na participa-
sem exigir contrapartidas, aquelas pessoas ção social, relativas às pessoas com deficiên-
com maior dificuldade de participação so- cia. Trata-se de um benefício não contributivo,
cial, especialmente no mundo do trabalho. com parcelas continuadas, orçamento defini-
O BPC materializa, portanto, o princípio da do e regras próprias, constituindo um direito so-
solidariedade social ao assegurar o paga- cial, que integra as Proteções Sociais do SUAS.
mento de uma renda mensal digna a dois
públicos prioritários da Assistência Social – Regulamentado pela LOAS e pelo De-
pessoas idosas e pessoas com deficiência. creto nº 6.214, de 26 de setembro de
A partir da Constituição Federal de 1988, a 2007, o BPC passou por diversas

90 | Papel do SUAS na garantia dos serviços de prestação continuada REVISTA CONGEMAS EDIÇÃO ESPECIAL
alterações normativas desde a sua criação. tribui para o acesso ao BPC. Num mundo
Nesse período foram alterados, por exem- cada vez mais tecnológico, que demanda
plo, o corte de renda familiar per capita para fluência digital até para acesso às ofertas
acesso e manutenção do benefício, o con- públicas e onde as etapas de operaciona-
ceito de família, a definição de deficiência, a
lização do BPC são realizadas por meio
idade de acesso para as pessoas idosas, entre
de sítios e aplicativos eletrônicos, o papel
outros pontos. Destaca-se, também, o alcan-
ce do BPC, que conforme dados do Depar- dos técnicos de referência por meio da
tamento de Benefícios Assistenciais – DBA, orientação e apoio aos requerentes tem
em julho de 2023, o número de beneficiários sido fundamental para assegurar o aces-
totalizou 5.395.845, sendo 2.930.537 pessoas so daqueles que fazem jus ao benefício.
com deficiência e 2.465.308 pessoas idosas. Os trabalhadores do SUAS cotidianamen-
te realizam atendimentos de importân-
A gestão do BPC é realizada pelo Ministério cia fundamental para a proteção do pú-
do Desenvolvimento e Assistência Social, blico do BPC. São esses trabalhadores
Família e Combate à Fome - MDS, a quem que identificam usuários com perfil para
compete, nos termos do art. 2º do regula- acessar o benefício, orientam sobre os cri-
mento anexo ao Decreto nº 6.214, de 2007: térios de acesso, informam os documen-
tos necessários para o requerimento e
(...) a implementação, a coordenação- apoiam o preenchimento de formulários,
-geral, a regulação, o financiamento, o quando necessário. Nos CRAS os reque-
monitoramento e a avaliação da pres- rentes ou beneficiários do BPC são enca-
tação do benefício, sem prejuízo das ini- minhados para os serviços socioassisten-
ciativas compartilhadas com Estados, ciais da Política de Assistência Social e
Distrito Federal e Municípios, em conso- para outras políticas públicas e nos CRE-
nância com as diretrizes do SUAS e da AS são encaminhados e acompanhados
descentralização político administrativa. junto às Delegacias Especializadas, aos
Órgãos de Defesa de Direitos (Conselho
Já a operacionalização do BPC cor- Tutelar, Ministério Público, Poder Judici-
re a cargo do Instituto Nacional do ário, Defensoria Pública), entre outros.
Seguro Social – INSS, nos termos do
art. 3º deste mesmo regulamento.
O BPC pode ser uma porta de entrada para
o SUAS, à medida que seus beneficiários,
assim como os beneficiários do Programa
Bolsa Família, são públicos prioritários
para o atendimento e acompanhamento
familiar, conforme previsto no Protocolo
de Gestão Integrada de Serviços, Bene-
fícios e Transferência de Renda do SUAS
(Resolução CIT nº 7, de 10 de setembro de
2009). A partir da concessão do BPC, os be-
neficiários e suas famílias são visibilizados
para atendimento pelos serviços socioas-
sistenciais, com vistas a um atendimento
integral, voltado para garantir as segu-
ranças de acolhida, convívio e autonomia.

Além disso, o SUAS, por meio dos Centros


de Referência de Assistência Social – CRAS,
e dos Centros de Referência Especializa-
dos de Assistência Social – CREAS, con-

91 | Papel do SUAS na garantia dos serviços de prestação continuada REVISTA CONGEMAS EDIÇÃO ESPECIAL
Outro aspecto a ser pontuado é que o Cadas-
tro Único para Programas Sociais do Governo
Federal – CadÚnico é obrigatório para fins de
requerimento e manutenção do BPC desde
2016 e hoje quase a totalidade do cadastra-
mento é realizado pela Assistência Social mu-
nicipal e do DF. O CadÚnico também é uma
forma de visibilizar os beneficiários do BPC
para acesso não só à Assistência Social, mas
também para outras políticas públicas. Dados
referentes ao mês de julho de 2023 produzi-
dos pelo Departamento de Benefícios Assis-
tenciais (DBA/SNAS/MDS) apontam que, atu-
almente, 5.330.911 beneficiários do BPC estão
no CadÚnico, o que representa 98,8% do total.

Embora seja claro o papel das equipes


de referência do SUAS na orientação e
encaminhamentos para acesso a direi-
tos, é fundamental que nas atribuições
das equipes estejam definidas orien-
tações para acesso ao BPC. Muitos téc-
nicos realizam esse apoio como uma
iniciativa própria ao identificar poten-
ciais beneficiários e suas necessidades.

É necessário aprofundar o debate sobre


o papel dos equipamentos públicos da
Assistência Social e das equipes de refe-
rência e sua atuação em relação aos re-
querentes e beneficiários do BPC. Esse
debate passa pela reafirmação do BPC
como um benefício socioassistencial, pela
capacitação de gestores e equipes de tra-
balhadores do SUAS sobre as regras de
acesso e permanência, a legislação do be-
nefício, e o perfil do público beneficiário;
e, também, pelo fortalecimento da gestão
do BPC nas três esferas de governo. Além
disso, uma maior aproximação dos profis-
sionais com essa temática trará ganhos
significativos para a proteção dos benefi-
ciários do BPC, uma vez que aprimora o
processo de integração entre os serviços
e os benefícios, promovendo maior efeti-
vidade das ações da Assistência Social no
sentido de ampliar proteção social para
pessoas idosas e pessoas com deficiência.

92 | Papel do SUAS na garantia dos serviços de prestação continuada


Lara Ely

Luciano Márcio Freitas de Oliveira


Sociólogo e Assistente Social. Atualmente está na Coordenação-Geral
da Proteção Social Especial de Média Complexidade da Diretoria de
Proteção Social Especial na Secretaria Nacional de Assistência Social
do Ministério do Desenvolvimento Social, Assistência Social, Família e
Combate à Fome - MDS.

Mônica Alves Silva


Cientista Social e Mestre em Educação. Atualmente Analista Técnica
de Políticas Sociais, na Coordenação de Proteção Social Especial de
Média Complexidade, da Secretaria Nacional de Assistência Social, do
MDS.

Bárbara César Cavalcante


Assistente Social. Atualmente Analista Técnica de Políticas Sociais, na
Coordenação de Proteção Social Especial de Média Complexidade, da
Secretaria Nacional de Assistência Social, do MDS.

93 | Proteção social à população de rua e o aprimoramento das ações do SUAS


Introdução

No contexto brasileiro, a preocupação com a presença de pessoas vivendo nas ruas das ci-
dades emerge a partir de década de 1930 proporcionando a elaboração de um modelo ins-
titucional que visava responder ao fenômeno em destaque. Contudo, é somente a par-
tir do final da década de 1980 que se percebe o crescimento do debate acadêmico e de
novas respostas governamentais sobre as pessoas que vivem e sobrevivem nas ruas, ini-
cialmente nas principais metrópoles do país, mas tornando-se visível no contexto das cida-
des médias e tomando novos direcionamentos nos anos 2000, como aponta Oliveira (2012).

Nesse sentido, para compreendermos as mudanças que ocorreram sobre a compre-ensão do


segmento social em tela, o presente texto tem como objetivo discorrer sobre as alterações em-
preendidas nas respostas institucionais, através dos diferentes modelos de atenção à popula-
ção em situação de rua, que transitaram de uma responsabilidade indivi-dual para obrigação
de proteção social por parte do estado brasileiro. O texto está organi-zado em dois momentos
e as considerações finais. O primeiro apresenta a síntese dos as-pectos sócio-históricos que ca-
racterizam as diferentes respostas à situação de rua no país; o segundo destaca a constituição
da rede de atenção socioassistencial à população em si-tuação de rua a partir da organização
do Sistema único de Assistência Social. As conside-rações finais apresentam alguns desafios
postos para o modelo de atenção ao segmento dos adultos em situação de rua.

Rivaldo Gomes

95 | Proteção social à população de rua e o aprimoramento das ações do SUAS


to de um modelo institucional – no contexto
citado, afirmou-se um modelo para responder
Aspectos sócio-históricos à questão da mendicância ancorado na rela-
e as repostas institucionais ção benemerência e repressão materializado
nas seguintes instituições: (i) os albergues
à população em situação noturnos (ofertava pernoite com prazo de-
de rua: o engendramendo terminado); (ii) as rondas policiais realizadas
pelos agentes de segurança pública (locali-
de um modelo. zar e retirar compulsoriamente das ruas); (iii)
a instalação de chácaras e/ou fazendas para
abrigar os recolhidos pelas rondas (institui-
ções distantes das cidades para não permitir
o retorno); (iv) as prisões (classificados como
A partir da década de 1930, as respostas insti- vadios “inveterados”); (v) e os manicômios
tucionais voltadas para questão da presença (como forma de retirada do convívio social).
dos “mendigos” estavam amparadas na rela-
O modelo institucional que se consolidou
ção benemerência e repressão, pois a situação
nas décadas de 1930 e 1940 continuou como
de rua (classificada no período como mendi-
resposta principal à questão da mendicância
cância) era tratada como uma contravenção
nas grandes cidades brasileiras, contudo, a
penal, conforme o ordenamento jurídico do
partir de 1970, período marcado pelo grande
período. Nessa perspectiva, as respostas insti-
afluxo de migrantes para a região Sudeste do
tucionais estavam baseadas no “saber policial”
país, o discurso constituído sobre a presença
, ou seja, as práticas cotidianas de intervenção
de pessoas vivendo nas ruas passa a reforçar
em relação à pobreza no espaço urbano, es-
a responsabilidade individual pela situação,
pecificamente aos considerados mendigos,
especificamente demarcando a culpa dos mi-
versavam entre a pressão policial e a bene-
grantes pelos constantes deslocamentos, pelo
merência religiosa, e segundo as análises de
desemprego e pela vida na rua. Mediante tal
Oliveira (2017), estabeleceu-se, no período ci-
contexto, novas práticas institucionais agre-
tado, uma modelagem institucional ancorada
garam-se às existentes, tais como: (i) a inten-
nas seguintes ações: 1) a prática do “desterro”
sificação de ações focadas no recolhimento
– consistia em enviar os classificados como
compulsório justificado pela “Operação Inver-
“mendigos” para outras cidades. Como exem-
no” através dos agentes da segurança públi-
plo, destaca-se a cidade de São Paulo que,
ca e da Promoção Social (como por exemplo
através do programa desenvolvido pelo gover-
na cidade de São Paulo); (ii) a instalação de
no do estado, enviava os “mendigos” para as
unidades para o atendimento aos migrantes,
cidades do interior, estas devolvendo-os para
articuladas com os plantões policiais, nas es-
a capital. Essa prática inaugurou uma técnica
tações ferroviárias e rodoviárias para evitar a
de circulação dos indesejados pelas cidades
presença dos “migrantes indesejados” nas ci-
paulistas, posteriormente por outras regiões
dades, como a criação dos CETREMs (Central
do país, através da mobilidade de pessoas por
de Triagens e Encaminhamentos); (iii) a insti-
meio de passagens ferroviárias e/ou rodovi-
tuição de um sistema telefônico para “denun-
árias como forma de expulsão daqueles que
ciar” a presença de “mendigos” nas ruas das
não pertenciam à cidade; 2) a aliança estraté-
cidades, operacionalizado pelas equipes das
gia entre a polícia e os grupos benemerentes
rondas policiais; (iv) a emergência das “cam-
– segundo as análises apresentadas por Mar-
panhas” institucionais realizadas por diversos
tins (1998), utilizando a cidade de São Paulo
municípios com o objetivo de “conscienti-
como exemplo, a autora ressalta a constitui-
zar” a sociedade para a não doação de esmo-
ção de um acordo entre os grupos beneme-
las nos espaços públicos (OLIVEIRA, 2017).
rentes e a segurança pública no sentido de re-
colher, compulsoriamente, os mendigos para
as delegacias e, após a triagem policial, todos
eram levados para os albergues como uma
punição alternativa para não serem presos
por contravenção penal; 3) o estabelecimen-

96 | Proteção social à população de rua e o aprimoramento das ações do SUAS


Com a crise econômica brasileira no período conscientização crítica sobre a realidade
após o “milagre” econômico, a partir de me- vivenciada e busca conjunta de estratégias
ados dos anos 1980 intensificou-se o deba- para sua superação a partir do reconheci-
te sobre o aumento das pessoas vivendo nas mento do seu potencial, protagonismo e
ruas. A equação relacionando a diminuição
do acesso a direitos. Esta abordagem tor-
dos postos de trabalho, a rotatividade intensa
nou-se referência em especial na atenção
da reinserção dos trabalhadores na produção
(seja ela formal ou não) e a baixa qualifica- a crianças e adolescentes em situação de
ção da mão de obra, acabou por gerar o de- rua e junto a outros diversos movimentos
semprego em massa e, com isto, o “sair para sociais, acadêmicos e políticos contribuiu
a rua” (BARROS, 2004; VIEIRA, 1997). Nesse para a elaboração e instituição da Consti-
sentido, os fatores estruturais e conjunturais tuição Federal de 1988, que representou
como migração e desemprego foram apon- um grande avanço ao estabelecer a cen-
tados como as principais causas da existên- tralidade do direito e da cidadania e a res-
cia de pessoas vivendo nas ruas das grandes ponsabilidade do Estado em sua garantia.
cidades no período. Assim sendo, emergiram
novas formas de respostas à situação de rua, Fabio Rossi
especialmente à intervenção estatal (no âm-
bito municipal) na condução de ações para
o enfrentamento à questão. Como algumas
ações características do período, destacam-
-se: (i) a realização das primeiras contagens
sobre a população de rua, como por exemplo,
o primeiro censo da população de rua na cida-
de de São Paulo; (ii) a ampliação dos serviços
de acolhimento (modelo dos albergues notur-
nos); (iii) criação das primeiras experiências
de casas de convivência (diurnas) em parce-
ria com organizações sociais; (iv) projetos de
inclusão produtiva, especificamente para os
catadores de materiais recicláveis; (v) inicia-
tivas de Lei Municipal para a população de No início dos anos 2000, ampliou-se o de-
rua, como exemplo na cidade de São Paulo14. bate sobre as pessoas que encontram nas
ruas sua sobrevivência e, aos poucos, essa
Importante mencionar que neste período temática ganhou importância na agenda
também houve um movimento intenso de pública federal. Esse deslocamento para
atuação junto às pessoas em situação de a gestão federal foi resultado de alguns
rua na perspectiva do direito e da dignida- fatores, tais como: (i) a sensibilidade, à
de, compreendendo esta questão de for- época do Presidente Lula com a questão,
ma muito mais complexa, multifatorial e a partir da visita aos catadores de mate-
relacionada ao modelo societário desigual riais recicláveis em dezembro de 2003 na
e excludente, contrariando as teses de res- cidade de Belo Horizonte, fazendo per-
ponsabilização individual. Dentre os expo- manecer em sua agenda anual até o úl-
entes deste movimento podemos desta- timo ano de seu governo, propiciando a
car o professor e intelectual Paulo Freire participação da população em situação
e a pedagogia conhecida como Educação de rua no encontro; (ii) o massacre de 7
Social de Rua. O trabalho, sob esta pers- pessoas em situação de rua região central
pectiva baseava-se na constituição de vín- da capital paulista, tragédia noticiada na
culo entre os profissionais (educadores) e imprensa nacional e internacional, pro-
a população em situação de rua e, a par- vocando gestores públicos (municípios,
tir deste, a construção de um processo de estados e a união) sobre políticas públicas
troca e aprendizagem mútua, reflexão e
14 Projeto de Lei 207/94, proposto pela vereadora Aldaíza Sposati que apresentava a Política de Atenção à População
de Rua sendo aprovada em 1997.

97 | Proteção social à população de rua e o aprimoramento das ações do SUAS


específicas direcionadas à população em situação de rua; (iii) a incorporação desse segmento
social como público-alvo das políticas sociais, especificamente na política de assistência social
através da alteração da Lei Orgânica de Assistência Social, em 2006; (iv) o fortalecimento do
protagonismo das pessoas em situação de rua, agora organizados enquanto movimento social.

Como resultados das mudanças empreendidas por parte do Estado brasileiro, destacaram-
-se: 1) a I Pesquisa Nacional da População em Situação de Rua, realizada entre os anos de
2007 e 2008, que estimou um total 50 mil pessoas vivendo nas ruas da cidades brasileiras
acima de 300 mil habitantes; 2) a realização do II Encontro Nacional da população em situ-
ação de rua, no ano de 2009, que proporcionou um debate entre pessoas em situação de
rua, gestores, pesquisadores, movimentos sociais sobre a importância de uma política nacio-
nal; 3) o Decreto que instituiu a Política Nacional para a População em Situação de Rua e
seu comitê assinado no dia 23/12/2009 no encontro anual entre a população em situação de
rua e o Presidente Lula. Como pontos fundamentais apresentados pelo referido Decreto, res-
salta-se: o Estado brasileiro reconhece o segmento social da população em situação de rua
como sujeitos de direito à proteção social pública; para o enfrentamento dessa situação de
extrema violação de direitos é necessário respostas articuladas entre as diferentes políticas
públicas; a criação do Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Polí-
tica para a População em Situação de Rua como mediador dessa nova proposta de gestão.

Rede socioassistencial de atenção à população em


situação de rua: o novo modelo proposto pelo SUAS

Mediante o contexto exposto e os novos elementos instituídos pelo Sistema Único de Assis-
tência Social, destaca-se aprovação da Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais
(Resolução nº 109 CNAS de 11 de novembro de 2009) que apresentou uma nova modelagem
para as ofertas dos serviços socioassistenciais voltados a atenção à população em situação
de rua, organizados segundo os níveis de proteção, sendo: 1) Proteção social especial de mé-
dia complexidade: Serviço Especializado em Abordagem Social e Serviço Especializado para
Pessoas em Situação de rua (ofertado no Centro Pop ou CREAS); 2) Proteção social especial
de alta complexidade: Serviços de Acolhimento para Adultos e Famílias (modalidades Casa
de Passagem e Abrigo Institucional) e Repúblicas (processo de saída da situação de rua). Des-
sa maneira, o campo de atuação da Proteção Social Especial foi instituído para garantir as
seguranças socioassistenciais15 às famílias e indivíduos em situações de violação de direitos.

15 Seguranças de acolhida, de renda, de convívio ou vivência familiar, comunitária e social; desenvolvimento de


autonomia e apoio e auxílios.

98 | Proteção social à população de rua e o aprimoramento das ações do SUAS


Agência Brasil

O Serviço Especializado em Abordagem Social pode ser ofertado nos CREAS, Centros
Pops ou outras Unidades referenciadas, tem como direcionamento o trabalho planeja-
do de aproximação, escuta qualificada e construção de vínculos de confiança com pes-
soas e famílias em situação de violação de direitos que utilizam os espaços públicos como
forma de moradia e sobrevivência. Para o desenvolvimento das ações, a metodologia pro-
posta, fundamentada na Educação Social de Rua, deve considerar os aspectos basila-
res do serviço: a identificação das situações, o estabelecimento de vínculos de confian-
ça e a articulação com a rede de atenção socioassistencial e demais políticas públicas.

De acordo com a Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais (BRASIL, 2009), os Servi-
ços de Acolhimento Institucional (Abrigos Institucionais e Casas de Passagem) e as Repúblicas
integram a proteção social especial de alta complexidade do Sistema Único de Assistência
Social - SUAS. A especificidade desses serviços está na oferta de atendimento integral, com vis-
tas a garantir condições de estadia com qualidade, convívio, endereço de referência para aco-
lher, com privacidade, pessoas em situação de rua e as situações de desabrigo por abandono,
migração, ausência de residência ou pessoas em trânsito e sem condições de autossustento.

Mediante a descrição dos serviços socioassistenciais para os adultos em situação de rua, apresen-
ta-se a oferta dos serviços nas regiões brasileiras, conforme pode-se observar no quadro abaixo:

Quadro 1: distribuição dos serviços socioassistenciais


de atenção à população em situação de rua por região

Região/Unidades/ Centro Serviço Serviços de Republicas


Serviços Pop Especializado em Acolhimento
Abordagem para Adultos e
Social Famílias
Norte 12 26 54 00
Nordeste 61 113 107 06
Sudeste 114 239 567 38
Centro-Oeste 15 31 88 00
Sul 41 87 181 15

99 | Proteção social à população de rua e o aprimoramento das ações do SUAS


vagas de pernoite (reatualizando as práticas
Considerações do velho albergue noturno); a acolhida e o
trabalho social perpassam por normas rígidas
Finais para a permanência nos serviços, produzindo
critérios de exclusão aos usuários, operaciona-
lizando com base em mérito e não no direito;
Conforme destacado nos tópicos, ao apre-
sentar a constituição sócio-histórica dos di- c) em determinados locais, para acesso das
ferentes modelos, estes estão apoiados: 1) pessoas em situação de rua ao Centro Pop
no pensamento conservador que responsa- é necessário a realização de cadastro apre-
biliza o sujeito pela sua situação resultando sentando algum documento pessoal, a com-
em práticas repressivas/benemerentes, de provação da situação de rua e a permanên-
caráter corretivo, que caracterizou boa par- cia na cidade por um período. Ou ainda, a
te das respostas ao fenômeno, instituindo o unidade Centro Pop está voltada exclusiva-
paradigma benemerente/repressivo; 2) no mente para o atendimento com passagens
reconhecimento desse fenômeno enquan- rodoviárias para os classificados como mi-
to resultado da desigualdade social exis- grantes e trecheiros, ofertando atendimen-
tente no país, ensejando a implantação e a tos pontuais para as pessoas em situação de
reorganização da rede de atenção, de res- rua, desconsiderando o aspecto basilar des-
ponsabilidade pública, ao segmento social se serviço que é a garantia de um espaço
citado, através do paradigma do direito16. de convivência (a partir do desejo dos usu-
ários) e o acompanhamento especializado.
Nesse sentido, no processo de instituição e
reorganização do modelo vigente, um dos Mediante os exemplos citados, e a consta-
primeiros aspectos identificados foi o acopla- tação da coexistência dos elementos sócio-
mento dos paradigmas citados, ou seja, a jun- -históricos no contexto atual, ressalta-se a
ção das orientações postas para os serviços importância de compreender a interferência
socioassistenciais, decorrentes do processo das velhas práticas instituídas visando ultra-
de mudanças na política de assistência social, passá-las, assim como redirecionar as ações
com as práticas sociais anteriormente existen- e aprimorar os serviços a partir dos princípios
tes. Resumindo, parte-se de um discurso base- postos pelo Sistema Único de Assistência So-
ado na garantia do acesso aos serviços como cial e pelas seguranças socioassistenciais.
um direito, mas na sua dimensão operativa,
no cotidiano dos serviços, ainda se observa Edu Gárcia
elementos influenciados pelas respostas con-
servadoras (base do paradigma benemeren-
te/repressivo) como nos seguintes exemplos:

a) quando o Serviço Especializado em Abor-


dagem Social é pressionado, no seu trabalho
social, para a retirada das pessoas das ruas,
reatualizando a velha resposta da ronda (in-
fluência do “saber policial”) desconsiderando
que os principais objetivos desse serviço, sob
a concepção da responsabilidade pública es-
tabelecida, consistem na identificação dessa
situação de violação de direitos, no estabe-
lecimento de vínculos e na oferta da política
de assistência social e demais políticas públi-
cas, ou seja, , trata-se de um serviço de pro-
teção direta a este usuário e não da cidade;

b) unidades de acolhimento para adultos e fa-


mílias direcionadas apenas para garantia das 16 Oliveira (2017).

100 | Proteção social à população de rua e o aprimoramento das ações do SUAS


Outro ponto essencial que contribuirá para o fortalecimento dos serviços socioassistenciais é
compreender que o enfrentamento ao fenômeno da situação de rua acontece de forma articula-
da e intersetorial, para isso dispõe-se da Política Nacional de Inclusão da População em Situação
de Rua (Decreto 7.053, de 23 de dezembro de 2009), compreendendo que: (i) os serviços socioas-
sistenciais são essenciais nas respostas protetivas, mas esses serviços apresentam respostas es-
pecíficas e precisam da complementariedade de outras políticas públicas de educação, trabalho,
saúde, cultura, segurança pública e, principalmente a política de habitação; (ii) para isso, torna-se
essencial a instituição da política municipal para a população em situação de rua, ancorada nas
diretrizes nacionais, articuladas e com apoio dos estados e união; (iii) a elaboração de diagnós-
ticos qualificados e protocolos para o atendimento e acompanhamento integrado entre as dife-
rentes políticas públicas; (iv) garantir a participação da sociedade civil que atua com a população
em situação de rua e, principalmente, fomentar a participação dos usuários nos processos de-
cisórios, especificamente na elaboração da política municipal e no reordenamento dos serviços.

Por fim, ao observar a distribuição da rede de atenção socioassistencial, torna-se urgente a ex-
pansão dos serviços em todas das regiões do país, para isso é primordial a garantia do orçamento
fixo, de no mínimo 1% da receita corrente líquida dos orçamentos federal, estadual e municipal
para o SUAS. E, aliado ao processo de expansão da rede de atenção à população em situação de
rua, considerando o seu aprimoramento, é urgente afastar-se das velhas práticas (conforme apre-
sentado ao longo do texto), avaliar os serviços (novas modalidades e metodologias) e processos
de trabalho (efetivação da educação permanente no SUAS) e ressaltar a potencialidade do mo-
delo proposto pelo SUAS que, complementado com as ações das demais políticas públicas, con-
tribuirá para a garantia da dignidade das pessoas que vivem e sobrevivem nas ruas, promovendo
possibilidades de superação dessa situação de extrema vulnerabilidade e de violação de direitos.

Referências bibliográficas:
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exceção e a experiência política brasileira. 2004. Dissertação (Mestrado em So-
ciologia) - Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Faculdade de Filoso-
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MARTINS,SílviaH.Z.Artíficesdoócio:mendigosevadiosemSãoPaulo(1933-1942).Londrina:Eduel,1998.
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mento dos moradores de rua de São Carlos e a emergência de uma população. 2012.
148 p. Dissertação (Mestrado em Sociologia). Programa de Pós-Graduação em So-
ciologia, Centro de Ciências Humanas da Universidade Federal de São Carlos, 2012.
;O Alcance da Proteção Social à População em Situação de Rua: a fuga do para-
digma do direito. 310 p. Tese (Doutorado em Serviço Social e Política Social) – Pro-
grama de Pós-Graduação em Serviço Social e Política Social do Centro de Es-
tudos Sociais Aplicados da Universidade Estadual de Londrina. Londrina, 2017.
VIEIRA, Maria Antonieta Costa; ROSA, Cleisa Moreno Maffei. Popula-
ção de rua: quem é, como vive, como é vista. São Paulo: Hucitec, 1997.

101 | Proteção social à população de rua e o aprimoramento das ações do SUAS


André Dib

Bárbara Pereira dos Cravos


Socióloga e Especialista em Direitos Humanos Internacionais. É Analista de Políticas Sociais da Coordenação de
Atenção ao Migrante e Refugiado no SUAS (DPSE/SNAS/MDS) e Coordenadora Suplente do Subcomitê Federal para
Acolhimento e Interiorização (SUFAI).

Clara Clariana Ribeiro de Matos


Psicóloga e Especialista em Direitos Humanos na América Latina. É Assistente Sênior de Proteção na Coordenação
de Atenção ao Migrante e Refugiado no SUAS - DPSE/SNAS/MDS.

Cinthia Barros dos Santos Miranda


Socióloga, Coordenadora-Geral de Serviços de Proteção em Calamidades Públicas e Emergências do SUAS - DPSE/
SNAS/MDS.

Mônica Alves Silva


Cientista Social e Analista Técnica de Políticas Sociais no MDS, Coordenadora de Proteção Social Especial de Média
Complexidade - DPSE/SNAS/MDS.

Niusarete Margarida de Lima


Psicóloga com Especialização em Gestão de Projetos Sociais e Gestão de Pessoas e Inclusão e Reabilitação de Pessoas com
Deficiência. É Gerente de Projeto da Secretaria Nacional de Assistência Social, Coordenadora de Atenção ao Migrante e
Refugiado no SUAS e Coordenadora do Subcomitê Federal para Acolhimento e Interiorização (SUFAI)- DPSE/SNAS/MDS.

102 | Papel do SUAS na Proteção Social de migrantes, Refugiados e Apátridas


O Brasil possui uma extensa dimensão geográ- Já os apátridas são aqueles que não são
fica, com mais de 16 mil quilôme-tros de frontei- consideradas como nacionais por nenhum
ras, sendo, portanto, a terceira maior fronteira Estado, segundo a sua legislação, nos ter-
do mundo. Possui 588 muni-cípios localizados mos da Convenção sobre o Estatuto dos
na faixa de fronteira, dos quais 33 possuem ci- Apátridas de 1954, promulgado pelo De-
dades gêmeas. Essa ex-tensão fronteiriça se creto nº 4.246, de 22 de maio de 202217.
conecta por terra com 10 dos 12 países sul-a- Conhecer cada um desses públicos e o en-
mericanos. Além disso, o Brasil é o segundo tendimento sobre a condição que os faz cru-
país do mundo com mais aeroportos e possui zar a fronteira, possibilita que seja realizado
o porto mais importante da América Latina, um trabalho mais efetivo no âmbito da as-
desempenhando um papel significativo como sistência social e demais políticas públicas.
um ponto central de mi-gração na região.

Outro ponto a se ressaltar, é que a história mi-


gratória do Brasil é, de fato, rica e complexa,
moldada por uma variedade de fatores que
vão desde as migrações internas entre regi-
ões do país até os fluxos migratórios interna-
cionais provenientes de diferentes partes do
mundo. A cultura brasileira é marcada pela
ascendência migratória seja ela eu-ropeia,
africana, latina, japonesa, síria e outras. Assim,
somos muitos filhos e netos de migrantes.

A migração é um direito inalienável do ser


humano. A Declaração Universal dos Direitos
Humanos de 1948 traz em seu artigo 14 que
“cada pessoa tem o direito a buscar e gozar
de asilo em outros países sem sofrer perse-
guição”. E o crescente deslocamento humano
tem sido uma realidade, nos últimos tempos,
tem exigido um trabalho intersetorial para
dar conta dos fluxos migratórios para o Bra-
sil, principalmente nas regiões de fronteira.

No rol da legislação brasileira, nossa Car- A legislação brasileira está na vanguar-


ta Magna garante direitos iguais para todas da mundial de uma legislação inclusi-
as pessoas que residem no país, sejam na- va, com instrumentos que não crimi-
cionais, refugiados ou migrantes. A defini- nalizam a mobilidade humana e que
ção de imigrantes e apátridas está contem- permitem a regularização e permanência
plada na Lei de Migração (Lei 13.445/2017). em território brasileiro a qualquer momento.
Nela, imigrantes são definidos como pes-
soas nacionais de outro país, que traba- Segundo estes normativos, os migran-
lham ou residem e se estabelecem tem- tes e refugiados têm direitos em con-
porária ou definitivamente no Brasil. No dições de igualdade com os nacio-
nais, sem discriminação em razão da
que se refere a questão do refúgio, a de-
nacionalidade ou de sua condição migratória.
finição é dada pela Lei do Refúgio (Lei
9.474/1997) e delineia que são pessoas que O Brasil é, portanto, um país de portas abertas.
cruzam a fronteira para fugir de situações
de fundado temor de perseguição ou si-
17 Convenção sobre o Estatuto do Apátrida, Decreto Fe-
tuação de grave e generalizada violação deral n. 4.246, de 2002: http://www.planalto.gov.br/cci-
de direitos humanos. vil_03/decreto/2002/d4246.htm

103| Papel do SUAS na Proteção Social de migrantes, Refugiados e Apátridas


No âmbito da Assistência Social cabe destacar estados e municípios brasileiros, essa referên-
que Lei Orgânica de Assistência Social nº 8.742, cia de liderança atua como uma espé-cie de tra-
de 199318, alterada pela Lei no. 12.435, de 2011 dutor dos anseios do grupo, possibilitando co-
que dispõe sobre a organização da Assistência municação referente as questões pertinentes
Social e do Sistema Único de Assistência Social, à sociedade de recepção e esclarecendo para
o SUAS, segue a mesma lógica da constituição as equipes socioassistenciais questões, per-
e dos demais normativos, sendo para “quem cepções e entendimentos do grupo migrante.
dela necessitar”, seja nacional ou estrangeiro. Outra atuação que tem se mostrado efetiva
é a de parceria com especialistas, a exemplo
É importante destacar que, mesmo o imigran- de profissional antropólogo contemplada nas
te indocumentado tem direito de ser atendi- equipes técnicas de referência que realizam
do no SUAS. Nesses casos, as equipes do SUAS trabalhos e atendimentos com esses públicos.
devem atuar também no encaminhamento Os atendimentos devem considerar a história
do indivíduo não documentado para a realiza- desses povos e sua forma de compreender
ção dos procedimentos de regularização do- conceitos como: “família”, “vulnera-bilidades”,
cumental pertinentes. Migrantes e refugiados “doença”, “cuidado” e “saúde”, entre outros.
podem acessar os serviços, programas, proje- Na própria organização da atuação, percebe-
tos, e benefícios da Assistência Social seguindo -se a necessidade de adaptação das respostas.
os critérios estabelecidos no âmbito do SUAS. Esta reconfiguração se dá no trabalho de aten-
dimento da população afegã, por exemplo,
Nada mais justo que iniciar a fala sobre o com a organização da oferta de alimentos halal
atendimento de refugiados e migrantes (que obedecem a regramentos específicos de
no SUAS falando sobre a “acolhida”, que é o abate de animais, de acordo com a Lei Islâmica).
contato inicial qualificado com a família ou
indivíduo, momento de compreensão da re-
alidade pela escuta das necessidades e de- AFP Photo
mandas dos atendidos e de publicizar as in-
formações sobre a rede socioassistencial,
bem como das demais políticas setoriais. As
equipes de referência do SUAS devem uti-
lizar a escuta qualificada de modo a promo-
ver a adequação das ações e metodologias
no trabalho social com esses grupos. E os de-
safios já se colocam neste momento inicial.

Além dos desafios de comunicação e estra-


nhamento cultural, o SUAS não está isento da
assimetria nas relações e da xenofobia. É co-
mum relatos que colocam o migrante no papel
do “outro”, como um ator externo e, às vezes,
inclusive como uma ameaça ao grupo social.

De modo a prover a este público uma políti-


ca culturalmente adequada deve-se contem-
plar estratégias para viabilizar comunicação,
a importância de se compreender e buscar
superar a barreira linguística e cultural exis-
tente. Nesse cenário, conhecer o público com
que se trabalha é parte fundamental deste
processo. A figura de mediadores culturais
tem sido estratégias utilizadas com sucesso
por muitos
18 https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8742com-
pilado.htm

104 | Papel do SUAS na Proteção Social de migrantes, Refugiados e Apátridas


Na questão da migração indígena venezuelana, também, fica visível a necessidade de se
organizar espaços de acolhimento que contemplem elementos dessas culturas, como a
organização de espaços como redários ao invés de camas ou colchonetes; ou com e estru-
turação de fogareiros a lenha para o preparo da comida e trabalho artesanal. O apoio e pos-
sibilidade de construção da autonomia perpassam possibilidades de apoiar projetos de ge-
ração de renda que partam das habilidades manuais, artísticas e tradicionais desses grupos.

A especificidade indígena traz desafios no trabalho socioassistencial. Neste contexto, a Conven-


ção nº 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais delineia o direito desses povos à autodetermina-
ção e ao consentimento livre, prévio e informado. Isto significa que a abordagem de trabalho será
conduzida a partir de diálogos e consultas prévias sobre qualquer tema que possa afetar a dinâ-
mica desses grupos. Nesse sentido, se faz fundamental integrar as pessoas das etnias atendidas
nas decisões, articular entendimentos com lideranças e grupos representativos, além da realiza-
ção de consultas a especialistas e universidades. Trata-se de um processo de negociação com as
comunidades e, deste modo, deve se garantir a compreensão de todos durante a elaboração e vi-
vência de acordos, regras, ofertas dos serviços, considerando possibilidades e limites existentes.

Ao trabalhar a Assistência Social enquanto direito, deve-se compreender que migrantes e re-
fugiados têm direito a acesso pleno à política pública de assistência social. Dentro desta dinâ-
mica, a definição de qual nível de complexidade de proteção social, serviço, benefício ou estra-
tégia de ação esses indivíduos deverão acessar dependerá da análise da situação específica e
das demandas apresentadas.

Nesta lógica, se faz primordial a incorpora- A LOAS delineia a responsabilidade dos en-
ção de aspectos socioculturais no atendi- tes. À União, estados e municípios cabe o
mento e na valorização destes povos. O tra- cofinanciamento. Já à União e estados cabe
balho social com a população migrante e também o apoio técnico. E a execução de ser-
refugiada deve contemplar o entendimento viços é de responsabilidade de estados e mu-
de que esses grupos passaram por ruptu- nicípios. Entretanto, situações de emergên-
ras profundas em múltiplos vínculos (com o cia demandam soluções urgentes de curto,
seu país, seu pertencimento a um local, sua médio e longo prazo, com avaliação e revisão
rede de apoio) e cabe à assistência social constantes. Grandes fluxos migratórios por
contribuir para a reestruturação de trajetó- crise humanitária contemplam um cenário
rias de vida, a reconstrução de vínculos (ago- de vulnerabilidades, riscos e violações de di-
ra com um novo território, com uma nova reito. São necessários arranjos complexos para
rede de apoio, com uma nova comunidade). respostas adequadas e efetivas: intersetoriais,
O encaminhamento e acesso a políti- corresponsáveis, integradas e horizontais.
cas públicas locais, a inserção em espa-
ços de proteção e convívio comunitário No fluxo Venezuelano, denota-se que o Minis-
possibilitam essa reconstrução e o al- tério do Desenvolvimento e Assistência Social,
cance da autonomia e protagonismo. Família e Combate à Fome (MDS) tem acom-
panhado a demanda específica da chegada
Outro aspecto importante do trabalho social desse grupo desde 2016, quando os primei-
com famílias migrantes é o reconhecimento ros indígenas (da etnia Warao) começaram
das oportunidades que esta população traz. a ficar em situação de rua em Pacaraima e
São indivíduos que tem consigo conhecimen- em Boa Vista, em Roraima. A situação foi se
tos, culturas, vivências, habilidades técnicas e complexificando com grupos cada vez maio-
linguísticas de seus países de origem, e que res nas ruas das cidades, em alojamentos ou
vem ensinar e se integrar às práticas culturais, ocupações espontâneas, com aumento pro-
sociais e econômicas brasileiras. Relembran- gressivo de situações de violações de direitos.
do que o Brasil e toda sua riqueza cultural foi
constituída por esta multiplicidade de origens.

105 | Papel do SUAS na Proteção Social de migrantes, Refugiados e Apátridas


Os serviços locais passaram a registrar ca), onde são decididos temas pertinentes a
grandes aumentos de atendimento, com regularização migratória, documental e aten-
o sufocamento das redes de políticas pú- dimentos pertinentes a chegada desses gru-
blicas locais. É nesse contexto que foi ins- pos no Brasil; b) Subcomitê de Acolhimento e
tituída a federalização da atuação na fron- Interiorização de Imigrantes em Situação de
teira e deu-se origem à Operação Acolhida. Vulnerabilidade, coordenado pelo MDS, onde
são debatidos e decididos temas pertinentes
A Operação Acolhida, é uma estratégia do ao acolhimento da população venezuelana
Governo Federal para regularização migra- nos abrigos federais e seu deslocamento vo-
tória, documental e acolhimento emergen- luntário para outra partes do país, por meio
cial das populações migrantes e refugiadas da Interiorização; c) Subcomitê Federal para
que cruzam a fronteira brasileira, constituída Ações em Saúde responsáveis por decisões
por um Comitê Federal de Assistência Emer- pertinentes ao atendimento na área de saúde
gencial (CFAE) composta pelos Ministros de no âmbito da Operação. A Operação Acolhida
Estado de múltiplas pastas e é implementa- tem se destacado não apenas por sua ampli-
da por três Subcomitês: a) Subcomitê de Re- tude, mas pela colaboração integrada de di-
cepção, Identificação e Triagem (coordenado versos atores, incluindo mais de 120 organiza-
pelo Ministério da Justiça e Segurança Públi- ções entre agências da ONU e sociedade civil.

Dentro desta dinâmica, as Ações da Operação Acolhida estão organizadas em 3 eixos: Orde-
namento da fronteira, abrigamento e interiorização. O Ordenamento da fronteira, contempla a
estruturação de Postos de Recepção, Identificação e Triagem nos municípios de Pacaraima e
Boa Vista, em RR. Nesses locais, os migrantes que cruzam a fronteira têm acesso a procedimen-
tos de regularização migratória: autorização de residência ou protocolo de refúgio; emissão
de documentos como o CPF e a carteirinha do SUS; inserção no Cadastro Único; imunização;
atendimento de casos específicos de proteção; encaminhamento para a rede local de serviços
e para acolhimento emergencial. O eixo de acolhimento é coordenado pelo MDS que atua
em parceria com Agências das Nações Unidas e organizações da Sociedade Civil. O abriga-
mento de refugiados e imigrantes é uma das principais demandas locais. A oferta de espaços
seguros, com equipe de referência preparada para o atendimento especializado e articulação
com outras políticas públicas é ação fundamental para a garantia de direitos dos diferentes
grupos que chegam ao Brasil. Em setembro de 2023, são mais de 10 mil pessoas acolhidas em
7 abrigos federalizados e alojamentos de pernoite na região19. Nos primeiros meses de 2023, o
aprimoramento e a integração do Cadastro Único para Programas Sociais à Operação Acolhida
foram priorizados, facilitando o rápido acesso de refugiados e migrantes ao Programa Bolsa
Família e demais programas sociais
Já o eixo interiorização, também coordena- sociedade civil, entidades socioassistenciais e
do pelo MDS, implica no deslocamento vo- Agências das NaçõesUnidas são partes funda-
luntário de refugiados e imigrantes a outros mentais da estratégia. O foco da Interiorização
estados e municípios brasileiros. Esse des-lo- é proporcionar a autonomia dos refugiados e
camento é realizado por meio de diferentes imigrantes venezuelanos de modo a fomen-
modalidades que vão desde a estruturação de tar sua inserção social no território brasileiro, o
abrigos em municípios parceiros, como por painel com as informações sobre a interioriza-
meio de vaga de emprego sinalizada e reuni- ção está disponível para consultas públicas20.
fi-cação familiar e social, contribuindo para re-
dução da sobrecarga da rede local de Roraima. A abordagem do Brasil ao fluxo de refugiados
e migrantes da Venezuela está estruturada,
A Interiorização implica num processo de atu- organizada e ganhou reconhecimento inter-
ação que demanda a articulação com gesto- nacional. No entanto, esse fluxo para o Brasil
-res dos estados e municípios de destino em não diminuiu, não apresenta perspectivas de
diferentes áreas de atuação além da Assis- diminuição futura e a vulnerabilidade dessas
tência Social. Parcerias com organizações da

19 https://hcr.pages.gitlab.cartong.org/opsmap/opsmap-brazil/
20 http://aplicacoes.mds.gov.br/snas/painel-interiorizacao/

106 | Papel do SUAS na Proteção Social de migrantes, Refugiados e Apátridas


pessoas está se intensificando. O dia -rantia de direitos e autonomia da popula-
a dia dos serviços prestado atualmen- ção a partir do acesso às diversas políticas
te sentem essa complexidade e pres- públi-cas. Além do fomento à participação
são e são colocados à prova todos os dias. social, bem como organizações próprias
dos grupos, numa atuação não focada ape-
O Brasil tem avançado no enfoque da migra- nas em respostas emergenciais – mas tam-
ção orientado aos direitos humanos, com pos- bém no âmbito dos serviços continuados.
tura voltada para as relações diplomáticas com A sensibilização da comunidade de acolhida
outros países, fomentando novos movimentos é um ponto primordial de atuação, visando o
migratórios para o país. O governo federal tem enfrentamento de discriminações e amplia-
feito novos reconhecimentos da condição de ção dos espaços de integração. É importante
refugiado, nossas portarias que facilitam a re- buscar parcerias para o fomento da econo-
gularização migratória e um trabalho intenso mia solidária e inclusão produtiva, com valo-
na consolidação do instrumento do visto hu- ri-zação das economias próprias das comuni-
manitário. No início de 2023, o Brasil retornou dades. Além disso, se faz primordial revisar e
ao Pacto Global para Migrações Seguras, Or- criar normativos que respaldem os gestores,
denadas e Regulares. O Mi-nistério da Justiça como exemplo a revisão da Portaria 90/2013
e Segurança Pública institui grupo de traba- que já está nos estudos internos da SNAS.
lho que visa estruturar e re-gular a Política Na-
cional de Migrações. O Ministério das Relações Algumas perspectivas se colocam no âmbito
Exteriores tem realiza-do forças-tarefas no ex- da questão migratória no SUAS, cabe desta-
terior no sentido de dar maior acesso ao visto car o momento de reconstrução da política
humanitário. Além disso, há movimentações de assistência social. A priorização do tema
de estruturar equipes dedicadas a questão da da migração e do refúgio pode ser observa-
migração no Minis-tério dos Direitos Humanos da na criação de uma Coordenação específica
e Cidadania e Ministério da Saúde. Portanto, a para o trabalho desta temática (no âmbito da
migração para o Brasil não pode ser entendida Proteção Social Especial). A pauta migratória
como uma questão pontual e o SUAS precisa está presente no planejamento estratégico
se estruturar para recepção desta população. do MDS – “Meta 4.49: Reformular os norma-
tivos e os protocolos de atuação do Sistema
Há uma necessidade de comunicação entre Único de Assistência Social - SUAS voltados
os territórios, referentes ao mapeamento e ao atendimento de emergências, inclusive
pla-nejamento do deslocamento das popula- relacionadas a migrantes e refugiados, e de
ções migrantes no país – formação de redes calamidade pública, visando maior agilida-
inter-regionais. O atendimento, nas diferentes de e qualidade de respostas, considerando
ofertas do SUAS, a esses grupos deve forta- etapas preventivas, de respostas e recupera-
lecer estratégias e metodologias adequadas, ção, até 2025. Meta 4.50: Aprimorar o atendi-
que promovam senso de pertencimento, de mento socioassistencial a migrantes, refugia-
direito e de respeito às suas culturas e povos, dos e vítimas do trabalho escravo, até 2026”.
aumentando a adesão, conhecendo e consi-
derando hábitos alimentares, meios tradicio- Um destaque nesse sentido é a estrutura-
nais de vida e moradia, línguas faladas e a for- ção da Câmara Técnica de Migrantes e Refu-
ma como compreendem a saúde e as relações giados na Comissão Intergestora Tripartite,
de parentesco e família. Deve-se primar pela constituída na primeira reunião CIT de 2023
promo-ção de habilidades, interesses e ex- e tem possibilitado pensar a atuação socioa-
periências da população beneficiária no pro- ssistencial para além da resposta emergen-
cesso de construção de soluções e respostas. cial. Nesse sentido, refletir como esse públi-
co dever ser incluído no âmbito dos vários
A questão migratória perpassa as várias po- serviços e equipamentos socioassistenciais.
líticas públicas, assim a lógica de atua-ção
deve estar embasada pela intersetorialida-
de, buscando-se fortalecer a rede correspon-
-sável, parceira e com clareza de seus papéis
e ampliar a partir do trabalho em rede a ga-

107 | Papel do SUAS na Proteção Social de migrantes, Refugiados e Apátridas


A reflexão que tem sido feita permeia dis- tema Único de Assistência Social – SUAS:
cussões sobre a necessidade de novos ti- norma operacional básica (NOB/SUAS). Bra-
pos de serviços, além do delineamen- sília, DF: MDS, 2012. Acesso em: 19/09/2023.
to de responsabilidades de cada um dos Ministério do Desenvolvimento, Assistência
entes no atendimento a este público. Social, Família e Combate à Fome. Politica-
Um ponto importante da atuação no âmbito Política nacional de assistência social. Bra-
da temática em pauta se dá na reestrutura- sília, DF: MDS, 2004. Disponível em:< http://
ção do GDIN – Grupo de Discussão Indígena www.sesc.com.br/mesabrasil/doc/Pol%C3%A-
Nacional, coordenado pelo MDS, por meio do Dtica-Nacional.pdf>. Acesso em: 19/09/2023
Subcomitê Federal para Acolhimento e Inte- Ministério do Desenvolvimento, Assistência
riorização-SUFAI – que visa o planejamento e Social, Família e Combate à Fome. Portaria
articulação de ações (intersetoriais) voltadas nº 90, de de 3 de setembro de 2013. Dispõe
para população migrante e refugiada indíge- sobre os parâmetros e procedimentos rela-
na, agora coma presença da FUNAI e Minis- tivos ao cofinanciamento federal para oferta
tério dos Povos Indígenas. A articulação com do Serviço de Proteção em Situações de Ca-
Ministérios parceiros possibilita respostas lamidades Públicas e Emergências. Brasília.
mais completas de dimensão intersetorial, Comissão Intergestores Tripartite do Sistema
fundamentais para um atendimento integral Único de Assistência Social. Resolução nº 2,
dos grupos que chegam ao território brasi- de 24 de dezembro de 2019. Pactua o reco-
leiro a exemplo da área da educação indí- nhecimento da situação de vulnerabilidade
gena da SECADI, do Ministério da Educação. por crise humanitária em todo território na-
Assim, a questão da migração e de refúgio cional para fins de cofinanciamento federal
tem impactado municípios e estados em do Serviço de Proteção em situações de Ca-
todo o Brasil. Trata-se de uma demanda que lamidade Pública e de Emergências. Brasília.
permeia diferentes fluxos nos últimos anos, Lei n. 13.445, de 24 de maio de 2017. Institui a Lei
com diferentes trajetórias de vida que pre- de Migração. Diário Oficial da União, Brasília, 25
cisam ser reconstruídas e onde cada uma de maio de 2017a. Disponível em: http://www.
dessas pessoas importa. O atendimento in- planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/
tegral a esses grupos é um dos grandes de- lei/L13445.htm Acesso em: 19/09/2023
safios atuais do Sistema Único de Assistên- Lei nº 9.474, de 22 de julho de 1997. De-
cia Social e deve ser encarado não como fine mecanismos para a implementa-
uma questão de fronteiras e sim como uma ção do Estatuto dos Refugiados de 1951,
questão de proteção do Estado brasileiro. e determina outras providências. Dispo-
nível em: http://www.planalto.gov.br/cci-
Referências Bibliográficas: vil_03/leis/l9474.htm Acesso 19/09/2023.
BRASIL. Constituição da República Federa- DECRETO Nº 4.246, DE 22 DE MAIO
tiva do Brasil de 1988. Disponível em: https:// DE 2002. Promulga a Convenção so-
www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ bre o Estatuto dos Apátridas. Disponível
constituicao.htm. Acesso em: 19/09/2023. em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/de-
Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei n. creto/2002/d4246.htm Acesso 19/09/2023.
8.742, de 7 de dezembro de 1993. Dispõe ONU - ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNI-
sobre a organização da Assistência So- DAS. Declaração Universal dos Direitos Hu-
cial e dá outras providências. Diário Ofi- manos de 1948. [1948]. Disponível em: Dis-
cial da União, 8dez.1998.Disponível em:< ponível em: http://www.unicef.org/brazil/pt/
http: //www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/ resources_10133.html Acesso em: 19/09/2023.
L8742compilado.htm>. Acesso em: 19/09/2023.
Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei n. 12.435,
de 6 de julho de 2011. Altera a Lei n o 8.742,
de 7 de dezembro de 1993, que dispõe sobre a
organização da Assistência Social. Diário Ofi-
cial da União, 7 jul. 2011. Acesso em: 19/09/2023.
Ministério do Desenvolvimento, Assistên-
cia Social, Família e Combate à Fome. Se-
cretaria Nacional de Assistência Social. Sis-

108 | Papel do SUAS na Proteção Social de migrantes, Refugiados e Apátridas


Laura Lopes/AFP

Cinthia Barros dos Santos Miranda


Socióloga, Coordenadora-Geral de Serviços de Proteção em Calamidades
Públicas e Emergência no SUAS do Departamento de Proteção Social Especial
da Secretaria Nacional de Assistência Social (SNAS/MDS).

Regis Spíndola
Advogado, Mestre em Educação, Especialista em Práticas Socioeducativas,
Diretor do Departamento de Proteção Social Especial da Secretaria Nacional de
Assistência Social (SNAS/MDS).

Vera Lucia Campelo da Silva


Administradora, Coordenadora Serviços de Proteção em Calamidades Públicas
e Emergência no SUAS do Departamento de Proteção Social Especial da
Secretaria.

109 | A atuação do SUAS em situações de Calamidade Públicas e de Emergências


A nível global, as perspectivas futuras dese- O segundo elemento é o cenário vulne-
nham cenários nos quais será mais comum rável, que são condições que apresentam
a ocorrência de desastres. Os prognósticos uma maior suscetibilidade ou fragilidade
são de elevada ocorrência de eventos decor- diante de potenciais incidentes, são comu-
rentes da deterioração ambiental, de mu- nidades economicamente desfavorecidas
danças climáticas e da sobrecarga das cida- que têm limitado acesso a recursos e in-
des. Segundo estudos recentes, o Brasil será fraestrutura básica, como encostas, fave-
uma das regiões do mundo mais afetada pelo las, zonas ribeirinhas, locais densamente
aquecimento global . Estes eventos extremos povoados e mal planejados, entre outros.
tendem a ocorrer de forma mais frequente, E o terceiro elemento são os danos econô-
com mais intensidade e com impactos con- micos e sociais. As consequências dos even-
comitantes. No entanto, a complexidade e o tos adversos: perda de vidas humanas, danos
efeito cumulativo dessas emergências só au- à saúde, empobrecimento e perda da fonte
mentarão o número de pessoas e bens afe- de renda, perda das casas, propriedades e
tados, com o crescimento das perdas, se não bens, isolamento social, sentimentos de não
atuarmos de maneira preventiva e proativa. pertencimento e diversos outros. Estas con-
sequências podem se dar no curto, médio e
longo prazo. E afetam aspectos objetivos e
Desastre, território subjetivos do indivíduo, família e comunidade.

e pobreza. Nenhum destes três aspectos é aleatório.


Há territórios mais propícios a eventos ad-
versos e estes são geralmente ocupados por
...os desastres no Brasil não deveriam ser conside- famílias e indivíduos que estão em maior si-
rados como ruptura de um cenário de normalida- tuação de vulnerabilidade social. E são estas
de cujo substrato fosse uma cidadania preexisten- famílias que tem a menor capacidade e resi-
te, mas como a culminância de mazelas que desde liência em relação aos danos e prejuízos. Há
sempre estiveram ali, mal resolvidas embora natu- também populações em maiores vulnerabili-
ralizadas. (Valencio, 2010, s/p). dades com recortes de gênero, raça e outras
características. Assim, como comunidades in-
Segundo o Ministério da Integração e De- dígenas, ribeirinhas, quilombolas, que sofrem
senvolvimento Regional, desastre é o “re- exclusão nas decisões políticas relacionadas
sultado de eventos adversos, naturais, tec- aos territórios que habitam. Há populações
nológicos ou de origem antrópica, sobre o que migram ou são deslocadas para áreas de
cenário vulnerável exposto à ameaça, cau- maior risco. Portanto, os desastres para estas
sando danos humanos, materiais ou ambien- populações estão vinculados a lógica socio-
tais e consequentes prejuízos econômicos”21. espacial anterior aos eventos adversos. Ter-
ritório é um dos elementos chave da Política
Neste conceito, três elementos são fundamen- Nacional de Assistência Social, isso porque
tais, o primeiro é o evento adverso, que é uma há o reconhecimento da relação indivíduo-
ocorrência indesejada, inesperada e prejudicial. -território na reprodução da pobreza e desi-
Fenômenos como terremotos, chuvas, inunda- gualdade. E este é um elemento chave para
ções, secas, ciclones, entre outros sempre exis- entendermos os desastres e seus impactos.
tiram na natureza, no entanto, sabemos que a
Reprodução/ Secom Acre
atuação do homem influi sobre a natureza, au-
mentando a frequência e intensidade destes.

Agregado a este, também são con-


siderados eventos adversos, aciden-
tes industriais, derramamento de pro-
dutos químicos, estouro de barragens,
produzidos pela ação tecnológica humana.

21 https://legislacao.presidencia.gov.br/atos/?tipo=LEI&numero=12608&ano=2012&ato=cf8ETRU1kMVpWT18a

110 | A atuação do SUAS em situações de Calamidade Públicas e de Emergências


Michel Sanderi

Ações assistenciais
de caráter de emergência

Art. 12. Compete à União: III - atender, em conjunto com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios,
às ações assistenciais de caráter de emergência. (Lei Orgânica de Assistência Social, art.12).

A Assistência Social é uma política pública de caráter sociopolíti-


co, pois tem em sua essência, a leitura da realidade e um posicionamen-
to em relação a exclusão social. Partindo deste pressuposto, compete a
Assistência Social utilizar sua concepção sociopolí-tica para repensar o seu pa-
pel em emergências. Iniciando pelo próprio conceito de emer-gência no SUAS.

A Resolução CIT nº 2 de 24 de dezembro de 2019 pactuou o reconhecimento da si-


-tuação de vulnerabilidade por crise humanitária em todo território nacional para
fins de cofinanciamento federal do Serviço de Proteção em situações de Calamida-
de Pública e de Emergências, regido pela Portaria 90/2013. Um primeiro exemplo de
emergência no SU-AS, não reconhecida pelo Sistema Nacional de Proteção e Defesa
Civil. E devemos nos perguntar, se há outras situações de grave violação de direitos
onde é necessária a atuação do SUAS de forma emergencial e na prevenção de riscos.

“Eu não sei qual o papel da Assistência Social em emergências”, “a Assistên-


cia Social não tem nada a ver com as Mudanças Climáticas, isso é coisa para es-
tudiosos de meio ambiente”, “a Assistência Social não pode fazer nada para se
preparar para um desastre, atuamos na resposta”, “desastres são eventos na-
turais, não podem ser alterados”, “em um desastre, cabe a Assistência Social,
distribuir itens e oferecer abrigo”. Estas ainda são falas comuns entre os ope-
radores do SUAS, que precisam ser problematizadas, refletidas e orientadas.

111 | A atuação do SUAS em situações de Calamidade Públicas e de Emergências


A inserção da Assistência Social nas situações emergenciais teve início com a implemen-
tação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), sendo mencionada na Lei Orgâni-
ca da Assistência Social (LOAS), na Política Nacional de Assistência Social (PNAS), nas Nor-
mas Operacionais Básicas (NOB) e na Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais.
No entanto, apesar da compreensão da relação entre emergências e SUAS, ainda é neces-
sário, por um lado, uma reflexão sociopolítica do papel da Assistência Social em emergên-
cia e, por outro, lado ferramentais para a operacionalização da atuação do SUAS. Um não
pode ser desagregado do outro, com o risco de se cair novamente nos velhos mecanis-
mos patrimoniais, clientelistas, racistas e assistencialistas, os quais o SUAS tem enfrentado.

Nesse cenário, cada vez mais se torna necessário ampliar a capacidade do SUAS no enfrenta-
mento dessas situações, com prioridade para a constituição de uma atuação conjunta de todos
os atores envolvidos.

Diretrizes para a atuação


da Assistência Social
em contexto de emergência

Este documento sinaliza que o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) não pode se eximir de sua
responsabilidade nos contextos de desastres e emergências diversas e que, atuando junto a outras polí-
ticas e setores, deve resguardar a sua especificidade. (Diretrizes para Atuação da Assistência Social em
contexto de Emergência Socioassistencial, p.17)
Atualmente em revisão, as “Diretrizes para Atuação da Assistência Social em contexto de
Emergência Socioassistencial” já trazem elementos significativos a fim de aprofundar o enten-
dimento sobre qual o papel da Assistência Social nas emergências, apresentando um conjunto
de ações a ser empreendido antes, durante e após contextos de emergência, considerando-se
as especificidades e competências de cada ente nas três esferas de governo.

As Diretrizes organizam-se em seis eixos de atuação, sendo: i) Gestão Legal, Administrativa e


Orçamentária, ii) Vigilância Socioassistencial, iii) Trabalho Social com as Famílias e indivíduos, iv)
Benefícios Socioassistenciais e transferência de renda, v) Acolhimento e Articulação e vi) Interse-
torialidade. Cada eixo traz a responsabilidade de cada ente (federal, estadual e municipal/distri-
tal), e estão dispostos em três fases de atuação: pré-emergência, emergência e pós-emergência.

Entes Federados

Convém observar que a Lei Orgânica de Assistência Social – LOAS, em seu artigo 12, prevê
uma atuação integrada e compartilhada entre União, estados, Distrito Federal e municí-
pios. A responsabilidade compartilhada entre as três esferas de governo, além de advir das
diretrizes do SUAS, decorre da natureza complexa das situações críticas e emergenciais
que demandam esforço conjunto para prevenção e enfrentamento dos danos sofridos pe-
las populações atingidas. Cabe à União, aos Estados e Municípios assegurarem as con-
dições para prevenir tais situações e garantir que indivíduos e famílias, quando atingi-
dos por emergências, recebam a proteção necessária e tenham seus direitos assegurados.

112 | A atuação do SUAS em situações de Calamidade Públicas e de Emergências


Tradicionalmente, a União, os estados e os municípios são responsáveis pelo cofinancia-
mento, enquanto a União e os estados também devem oferecer apoio técnico. A execução
dos serviços é de competência dos estados e municípios. No entanto, emergências reque-
rem soluções rápidas em curto, médio e longo prazo, demandando avaliação e revisão con-
tínua. Cenários de crise apresentam um contexto de vulnerabilidades, riscos e violações de
direitos, portanto, abordagens complexas e integradas são necessárias para garantir respostas
adequadas e eficazes, sendo estas intersetoriais, compartilhadas, integradas e abrangentes.

Rovena Rosa
Proteção Integral

Apesar do Serviço específico estar inserido se aplica ao trabalhador do CRAS, CREAS,


na Proteção Social Especial de Alta Comple- Centro Dia, Centro POP, no órgão gestor, en-
xidade, a atuação do SUAS em emergência tre outros vinculados aos SUAS. E se esten-
demanda uma abordagem abrangente que de aos profissionais que atuam na vigilância
congrega serviços, programas, projetos e be- socioassistencial, benefícios socioassisten-
nefícios socioassistenciais. Isso implica que, ciais e programas. Cada emergência é úni-
caso o profissional que esteja envolvido no ca, mas todas as áreas possuem ações que
Serviço de Acolhimento, poderá ser convo- podem ser adaptadas para uma resposta
cado para atuar na emergência. O mesmo eficaz diante de uma situação emergencial.

Eixos de atuação

Os objetivos e provisões da atuação do SUAS gências, mobilizar recursos para execução


em emergência visam garantir ao usuário a dos serviços necessários para atendimentos
segurança de sobrevivência, de acolhida e das famílias e indivíduos, assegurar estrutu-
de convívio ou vivência familiar. Seguindo ra e capacidade física para as ofertas socio-
os eixos do documento de diretrizes, temos: assistenciais necessários ao contexto viven-
ciado, efetuar os procedimentos necessários
Na Gestão Legal, Administrativa e Orçamen- a solicitação de cofinanciamento federal etc.
tária cabe ao Gestor de Assistência Social
avaliar as normativas relacionadas as emer-

113 | A atuação do SUAS em situações de Calamidade Públicas e de Emergências


A Vigilância Socioassistencial deverá produzir, sistematizar e analisar as informações de forma
tempestiva e confiáveis, possibilitando assim a realização de diagnósticos e planejamentos das
ações que serão realizadas tanto pela gestão quanto pelos atores que atuam nas situações de
emergência e calamidade.
Os Benefícios Socioassistenciais compreende os Benefícios Eventuais-BE e os Benefício de
Prestação Continuada-BPC, aquele destina-se aos cidadãos e às famílias com impossibilidade
temporária de arcar com o enfrentamento de contingências sociais, devendo ser ofertados no
âmbito dos serviços socioassistenciais, são serviços prestados em forma de bens, serviços ou
pecúnia diante de situações de vulnerabilidade que surgem ou se agravaram em decorrência
de nascimentos, mortes, situações de vulnerabilidade temporária, calamidade pública e emer-
gências. Já o BPC destina-se às pessoas idosas com idade igual ou superior a 65 (sessenta e
cinco) anos e às pessoas com deficiência, de qualquer idade, que não possuem condições de
prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família. Para aqueles que já recebem
o BPC, é possível realizar adiantamento de parcelas, se em emergência. Família afetadas po-
dem ter fatores que as levam a ser novos beneficiários. Neste eixo temos, também, o Programa
Bolsa Família que diante do contexto de emergência realizam ações especiais para garantir às
famílias e indivíduos o acesso ao pagamento dos benefícios do Programa: quebra do escalo-
namento de pagamento; declaração especial de pagamento emitida pelo Gestor Municipal e
Prorrogação dos prazos para Atualização Cadastral. Além disso, os técnicos devem ficar atentos
para a correta marcação de situações adversas no Sistema de Condicionalidades – SICON.
O atendimento das famílias e indivíduos afetados pela emergência deve ser realizado pelos
dois níveis de proteção: a proteção social básica e a proteção social especial (CRAS e CREAS),
o Trabalho Social com Família deve estar articulado aos serviços existentes no território para
garantir os encaminhamentos à rede socioassistencial e a outras políticas públicas, visando
garantir e ampliação dos direitos e seguranças sociais. É bem comum as atividades de escuta,
oficinas e grupos serem interrompidas durante uma situação adversa. No entanto, ressalta-se
a importância da escuta neste momento de angústia, medo e luto. Além disso, é importante
também fomentar a organização e associativismo das famílias afetadas, a fim de que elas pos-
sam pleitear participar das decisões sobre o seu futuro pós-desastre.
No Acolhimento, temos tanto a necessidade de possível reorganização dos acolhimentos já
existentes, como a criação de alojamentos emergenciais para acolher os desabrigados da
emergência. Para estes espaços, é possível acessar os recursos do cofinanciamento federal,
que será descrito mais abaixo.
A situação de calamidade e/ou emergências demanda atuação articulada da Assistência Social
com os demais atores envolvidos, principalmente junto à Defesa Civil, no que se refere ao pla-
nejamento, execução e monitoramento das ações realizadas. A Articulação e a Intersetorialida-
de visam desenvolver ações e políticas públicas setoriais voltadas à proteção social das famílias
e indivíduos afetados

114| A atuação do SUAS em situações de Calamidade Públicas e de Emergências


Etapas

Em relação às etapas, o documento de Dire- sociedade civil parceiras.


trizes, os separa em três: pré-emergência (pre-
A Assistência lida com o reestabelecimento
venção, preparação e mitigação), emergência
das atividades rotineiras, mas também lidan-
(resposta) e pós-emergência (recuperação).
do, às vezes, a longo prazo com as consequ-
No que se refere a fase de pré-emergência, o
ências do desastre, apoiando as ações de re-
desastre com sua diversidade e aumento de
construção não apenas das infraestruturas,
frequência nos últimos anos, têm suscitado
mas das trajetórias de vida.
diálogos globais. Isso se reflete no estabele-
cimento do Marco de Sendai pela ONU, que
realocou a ênfase da gestão pós-desastre para Públicos Específicos
a gestão pré-desastre, ampliando a discussão
para abordar de maneira mais aprofundada a
prevenção, a mitigação e a preparação para A concepção de públicos prioritários tam-
desastres. Além disso, essa evolução abraça bém deve ser considerada em emergência e
uma visão mais centrada na humanidade ao não é uma novidade dentro do SUAS. Ela tem
tratar das respostas e da recuperação. Esta como objetivo assegurar os direitos de todos
é uma conversa ain da muito incipiente no os cidadãos, levando em consideração suas
SUAS, mas que tem um papel central! O cará- particularidades. As diretrizes do documen-
ter protetivo e preventivo da Assistência Social to enfatizam essa abordagem ao tratar das
tem que atuar não apenas na resposta pon- emergências, identificando três grupos es-
tual às situações, mas também na construção pecíficos que demandam atenção especial: 1)
da resiliência das pessoas e das cidades. dependentes de cuidados; 2) características
Apoio técnicos rotineiros, elaboração de estu- específicas; e 3) características resultantes do
dos sobre o tema, participação em grupos de desastre. Os dois primeiros grupos já são defi-
discussão sobre a gestão de riscos, capacita- nidos pela LOAS e PNAS, enquanto o terceiro
ção e preparação das equipes e comunidades, é específico para situações de desastre.
participação na elaboração de planos de con- Nas emergências, a dependência se torna
tingência, reconhecimento de populações em uma característica que pode ampliar rapi-
áreas degradadas, preparação de fluxos de tra- damente a vulnerabilidade das pessoas. Isso
balho, participação de simulados, articulação acontece porque o cuidador pode estar igual-
constante com a Defesa Civil, utilização dos mente afetado ou porque o desastre pode
mecanismos de comunicação com o usuário criar novas barreiras ao bem-estar individual,
para avisar sobre possíveis eventos futuros são como dificuldades de transporte, acessibili-
exemplos práticos que já podem ser feitos pela dade ou comunicação. É igualmente impor-
Assistência Social em momento anterior aos tante garantir que os grupos prioritários ou
eventos. Mas é preciso ainda mais fundo! Preci- com necessidades específicas não se tornem
samos pensar que é função da Assistência So- ainda mais negligenciados durante emergên-
cial ser protagonista na vocalização de deman- cias. Os povos e comunidades tradicionais, por
das dos usuários e de situações de desproteção exemplo, frequentemente residem em áreas
e desterritorialização, que levam estas famílias naturalmente isoladas e podem ficar isolados,
estarem mais suscetíveis a desastres. sem acesso a bens e serviços durante uma
Durante a emergência, a Assistência Social emergência. Além disso, emergências podem
atua na execução da política de Assistência criar situações específicas que levam pessoas
em todos os eixos de atuação, implementan- que anteriormente não estavam em situação
do alojamentos provisórios; identificando as de vulnerabilidade a necessitar da assistência.
famílias, concedendo e entregando benefícios As vulnerabilidades podem se acumular e au-
eventuais; realizando o trabalho social com mentar o risco da população.
famílias; acionando a rede socioassistencial e
demais políticas públicas e organizações da

115 | A atuação do SUAS em situações de Calamidade Públicas e de Emergências


O Serviço de Proteção em Situações de Calamidades
Pública e Emergênciase o cofinanciamento Federal

O Serviço de Proteção em Situações de Ca- to de qualquer cofinanciamento destinado


lamidades Pública e Emergências está pre- às ações de emergência no âmbito federal.
visto na Resolução do Conselho Nacional de
Assistência Social (CNAS) nº 109/2009, que Com a situação reconhecida, o município
aprova a Tipificação Nacional de Serviços pode solicitar o recurso para execução do
Socioassistenciais, e é regulamentado pela Serviço de Proteção em Situações de Ca-
Portaria MDS nº 90/2013. O cofinanciamen- lamidades Públicas e Emergências, desde
to tem como objetivo prover apoio material que tenha mais de 50 pessoas acolhidas nos
e proteção integral à população atingida por alojamentos provisórios. O valor de referên-
situação de emergência ou calamidade pú- cia atual é de R$ 20 mil mensal para cada
blica, por meio de alojamentos provisórios. grupo de 50 pessoas desabrigadas; este va-
lor pode aumentar nas seguintes condições:
Os recursos do cofinanciamento visam dar a) se o município tiver lei de bene-
acesso a provisões para necessidades bási- fícios eventuais regulamentada;
cas, ter acesso a espaço provisório de acolhida b) se a situação emergencial im-
para cuidados pessoais, repouso e alimenta- pactar maior quantitativo de pesso-
ção ou dispor de condições para acessar ou- as com vulnerabilidades específicas;
tras alternativas de acolhimento e segurança c) se a quantidade de pessoas atingi-
de convívio ou vivência familiar, comunitária das for superior a 10% da população local.
e social, ter acesso a serviços e ações interse-
toriais para a solução da situação enfrentada. O município pode solicitar o recurso mensal-
mente, durante o período de vigência do reco-
A Portaria MDS 090/2013 em seu Art. 7º esta- nhecimento federal, podendo haver prorroga-
belece um rol de critérios para o município ção do cofinanciamento federal durante a etapa
se tonar elegível ao recebimento do cofinan- de desmobilização de ações emergenciais para
ciamento federal para execução do serviço, o restabelecimento dos serviços socioassisten-
inicialmente deve ser realizado a adesão ao ciais até o limite de 12 (doze) meses, a contar
serviço que se dá por meio da assinatura do do encerramento do reconhecimento federal.
Termo de Aceite, com aprovação do Conse- O recurso destina-se à manutenção dos alo-
lho Municipal de Assistência Social. O mu- jamentos provisórios que foram implanta-
nicípio/estado pode formalizar o aceite an- dos para acolher famílias e indivíduos que
tes, durante ou após a situação vivenciada. ficaram desabrigados, sendo possível a utili-
Recomenda-se que a adesão seja realizada zação para estruturar o espaço de acolhida, ,
antes que a situação ocorra, e que o Serviço contratação dos profissionais que irão atuar
seja acionado quando houver necessidade. na logística do espaço, contratação dos pro-
fissionais do SUAS, , aquisição de todos os
Quando ocorrer uma situação de emergência itens destinados ao atendimento das pessoas
ou calamidade, o município deverá declarar acolhidas, como: alimentação, vestuário, kits
a situação de emergência por meio de De- de higiene, material de limpeza, entre outros.
creto, tal declaração irá subsidiar o Ministério
da Integração e Desenvolvimento Regional É muito importante que seja observada a ne-
(MIDR) a proceder com tramites para o re- cessidade de estruturar serviços de acolhi-
conhecimento federal da situação de emer- mento provisório, privilegiando, sempre que
gência. O reconhecimento da situação de possível, opções de acolhimento emergencial
emergência ou calamidade é condição para
tornar o município elegível ao recebimen-

116 | A atuação do SUAS em situações de Calamidade Públicas e de Emergências


Yolanda Simone
Nosso foco é a Assistência Social e, portanto,
é crucial ter um profundo conhecimento do
nosso escopo de atuação. Esse escopo está
claramente definido nas normativas e diretri-
zes que fundamentam o SUAS, como a LOAS,
PNAS, Tipificação Nacional, entre outras.

Fundamental terminar este tex-


to com a perspectiva de agenda fu-
tura para a temática, assim, é preciso:

Criar espaços de discussão e debate, de


forma a fomentar a disseminação de uma
não institucional para atender de forma dig- cultura para a atuação em emergências;
na às necessidades de famílias e indivíduos
desabrigados ou desalojados (especialmente Rever as normativas e publicações re-
quando se tratar de núcleos familiares), nesses lativas a temática, com especial, pactua-
casos é possível a utilização do recurso para: ção e deliberação pelas instâncias do SUAS;

a) acolhimento emergencial na rede hote-


Rever o cofinanciamento federal, em espe-
leira: locação temporária pelo poder públi-
cial, a portaria 90, ampliando o escopo para
co, por meio de contrato de hospedagem
além da atuação junto aos desabrigados;
(hotéis, pousadas, dentre outros) para se-
rem utilizados como moradia provisória;
Aprofundar a atuação da Assistên-
cia Social na gestão de risco a de-
b) acolhimento emergencial em moradia
sastres, não apenas nas respostas;
provisória: locação temporária pelo poder
público de moradia para cada grupo fa-
miliar, desde que tenha total pertinência Recolocar o desastres eminentemente de
com o serviço e por tempo determinado; cunho social, como o intenso fluxo migrató-
rio e situação de grave violação de direitos;
c) acolhimento emergencial em aloja-
mento provisório: por meio da utilização Fortalecer e fomentar a estruturação de uma
de locais disponíveis na rede: clubes, igre- rede da sociedade civil que atua em desastres;
jas, escolas, associações, entre outros.
Fomentar a qualidade das ofer-
tas do SUAS, através da Educa-
ção Permanente e do Apoio Técnico;
Considerações Finais
Definir equipes que possam atu-
ar de forma continuada com a temática;
É importantíssimo entender o papel da
Assistência Sociam em emergências. Du- Fomentar e fortalecer o diálogo intersetorial
rante uma a emergência, os profissionais para definir parâmetros de colaboração mú-
muitas vezes têm a tendência de que- tua com o Defesa Civil, Saúde, Habitação, Sis-
rer agir de maneira ampla, sem conside- tema de Garantia de Direitos, entre outros e
rar o âmbito específico de sua atuação.
Fomentar a participação dos usuários e o Con-
A emergência não justifica que a políti- trole Social nas decisões relativas a atuação do
ca de Assistência Social seja responsável SUAS, em especial, em decisões relativas a re-
pela resposta médica, habitacional, de de- construção e autonomia de sua trajetória de vida.
fesa civil ou educacional do município.

117 | A atuação do SUAS em situações de Calamidade Públicas e de Emergências


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Conselho Nacional de Proteção e Defesa Civil
– CONPDEC. Autoriza a criação de sistema de
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senvolvimento Regional. Instrução Nor-
mativa n. 1, de 24 de agosto de 2012. Po-
lítica Nacional de Defesa Civil. Brasília:
Secretaria Nacional de Defesa Civil, 2007.
_____. Ministério da Integração e do Desenvolvi-
mento Regional. Instrução Normativa n. 2, de 6
de dezembro de 2016. Estabelece procedimen-
tos e critérios para a decretação de situação de
emergência ou estado de calamidade pública
pelos Municípios, Estados e pelo Distrito Fede-

118 | A atuação do SUAS em situações de Calamidade Públicas e de Emergências


João Ripper/ UNICEF

Márcia Pádua Viana


Servidora pública do MDS desde 2007, assistente social,
especialista em políticas públicas e mestre em políticas
públicas e desenvolvimento.

119 | A Lei 13.431/2017 e suas implicações para a proteção de crianças e adolescentes


vítimas ou testemunhas de violência do âmbito do SUAS
Raoní Libório

Historicamente a Assistência Social tem um papel muito importante no atendimento de crian-


ças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência e outras violações de direitos no Brasil,
desde antes da implementação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) a exemplo do Pro-
grama Sentinela, até o advento do SUAS, quando o foco no enfrentamento das violências se torna
mais intenso com a Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais, que regulamenta servi-
ços de caráter preventivo e serviços para enfrentamento, reparação ou mitigação das violações
de direitos. Importante ressaltar que crianças e adolescentes são o principal público atendido
no âmbito do Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos (PAEFI)
ofertado pelo Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) representando
mais de cinquenta porcento dos atendimentos dessa unidade, conforme dados do registro
mensal de atendimentos de 2022. E apesar de ser uma das principais políticas de atenção as
crianças e adolescentes em situação de violência não havia parâmetros para esse atendimento.

Segundo a Childhood Brasil22, pesquisas apontam que meninos e meninas eram ouvidos (as),
muitas vezes ao longo de um processo judicial, repetindo e revivendo a situação de violência para
diversos órgãos da rede de proteção, investigação e responsabilização. A repetição traz prejuí-
zos para o desenvolvimento da criança e do adolescente, pois reproduz sofrimentos e é danoso
para a consecução do processo judicial, em razão do risco de indução, produção de falsas me-
mórias, entre outros. Desse modo, em 2017, a Lei nº13.431 é aprovada com o objetivo de enfrentar
um problema social relevante: a proteção de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas
de violência e evitar a revitimização. Para isso, estabelece novos procedimentos e responsabi-
lidades para os atores do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente (SGD)23.

Essa Lei origina-se de um processo de debate em torno da revitimização de crianças e


adolescentes durante o processo de apuração das situações de violência, especialmente,

22 Escuta Protegida de Crianças e de Adolescentes Vítimas ou Testemunhas de Violências: Aspectos teóricos e


metodológicos. 2020, pág. 288.
23 O SGD é integrado por ações do Estado, que envolvem políticas públicas, Sistema de Justiça e órgãos de defesa
de direitos, além de organizações da sociedade civil, sendo constituído por 03 eixos de atuação: promoção; defesa;
e controle da efetivação dos direitos humanos (Resolução CONANDA nº 113 de 19/04/2006

120 | A Lei 13.431/2017 e suas implicações para a proteção de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas
de violência do âmbito do SUAS
na inquirição de crianças e adolescentes em razão de violência sexual, que gerava forte revitimi-
zação. É evidente que havia a necessidade de modificar a maneira como crianças e adolescentes
eram atendidos diante de uma situação de violência e são inegáveis os esforços trazidos pela Lei
13.431/2017 nesse sentido. Entretanto, sua implementação traz desafios, dúvidas, interpretações
divergentes, explicitando conflitos, sobreposições e ausências que já estavam presentes no SGD.

No caso específico do SUAS, que possui objetivos e forma própria de atuação, é neces-
sário todo um investimento em capacitações e articulações para incorporar novas me-
todologias, fluxos e protocolos intersetoriais para corresponder às demandas de prote-
ção e evitar a revitimização. Além disso, exige um amplo conhecimento técnico, ético
e metodológico das equipes de referência e comprometimentos dos(as) gestores(as)
para cumprir sua finalidade, sem assumir atribuições que não são do campo protetivo.

Cabe lembrar que, no Brasil, o modelo de atenção às crianças e adolescentes passou por diferentes
concepções, sendo modificado ao longo do tempo. Partindo da total omissão do Estado brasileiro,
perpassando a concepção que segregava crianças e adolescentes - especialmente aqueles que
os pobres, até chegar a Constituição Federal de 1988, em que houve a reconfiguração da atenção
a esse público. A CF 88 e algumas outras legislações protetivas surgiram em um contexto de forte
mobilização da sociedade civil organizada e dos organismos internacionais de direitos humanos.

Na esteira das diretrizes da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança (1989) surgiu
o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, Lei nº 8.069/1990), que deu origem ao Sistema
de Garantia de Direitos e que instituiu uma nova doutrina, onde crianças e adolescentes são
considerados sujeitos de direitos. Portanto, uma mudança de paradigma saindo da doutrina
da situação irregular, cujos “menores” eram objeto das ações de caridade, ou de correção e
repressão, passando para a doutrina da proteção integral, cujas crianças e adolescentes são
sujeitos de direito que devem ser considerados e respeitados pelo seu valor presente. Portan-
to, uma mudança de concepção que veio reorientar a atenção à infância e à adolescência no
Brasil e que segue sendo aprimorada com a incorporação de novas legislações e metodologias.

Assim, no âmbito do SGD surge a Lei nº 13.431/2017 que altera o ECA para estabelecer mecanismos
para prevenir e coibir as situações de violência contra crianças e definir as medidas de proteção e
assistência aplicáveis para as vítimas ou testemunhas de violência, ou seja, estabelece direitos es-
pecíficos para crianças e adolescentes em situação de violência e aplica-se a crianças e adolescen-
tes de 0 a 17 anos, sendo facultativa para as vítimas e testemunhas de violência entre 18 e 21 anos.

“discurso ou prática institucional que submeta crianças e adolescentes a procedimentos desne-


cessários, repetitivos, invasivos, que levem as vítimas ou testemunhas a reviver a situação de vio-
lência ou outras situações que gerem sofrimento, estigmatização ou exposição de sua imagem”
(Brasil, 2018, art. 5º). Ou seja, a revitimização reitera as práticas anteriores ao ECA, em que crianças e
adolescentes não eram sujeitos de direitos e seus interesses não eram atendidos prioritariamente.

Paulo Hebmuller

121 | A Lei 13.431/2017 e suas implicações para a proteção de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas
de violência do âmbito do SUAS
O Decreto nº 9.603/2018, que regulamenta a a seguir, pois consegue descrever mais
Lei nº 13.431/2017, conceitua a revitimização detalhadamente cada procedimen-
como “discurso ou prática institucional que to, quem os realiza e com que objetivos:
submeta crianças e adolescentes a procedi-
mentos desnecessários, repetitivos, invasivos,
que levem as vítimas ou testemunhas a revi- Depoimento especial Escuta especializada
ver a situação de violência ou outras situações
que gerem sofrimento, estigmatização ou
exposição de sua imagem” (Brasil, 2018, art. Procedimento
realizado pelos
5º). Ou seja, a revitimização reitera as práticas
Procedimento de órgãos da rede de
anteriores ao ECA, em que crianças e adoles- oitiva da criança e do proteção nos
centes não eram sujeitos de direitos e seus in- adolescente perante campos da educação,
teresses não eram atendidos prioritariamente. autoridade policial ou da saúde, da
judiciária. assistência social, da
O histórico do atendimento de crianças e segurança pública e
adolescentes revela que havia muita revitimi- dos direitos humanos.
zação de crianças e adolescentes e essa era
resultante da baixa qualidade dos serviços Com o objetivo
em razão de limitação de recursos financei- de assegurar o
Visa a acompanhamento da
ros, estruturais e humanos; ausência de flu-
responsabilização vítima ou da
xos formalmente instituídos e dificuldades de judicial do suposto testemunha de violên-
estabelecer ações articuladas e colaborativas autor da violência. cia, para a superação
entre as políticas do SGD; ausência de capa- das consequências da
citação dos profissionais; não responsabili- violação sofrida.
zação dos autores de violência; entre outros.

Todos esses fatores geravam a revitimiza- Deverá ser Limitada estritamente


ção tanto pela morosidade e descontinuida- regido por ao necessário para o
de dos atendimentos, quanto pela exausti- protocolos com cumprimento de sua
indicação de ser finalidade de proteção
va repetição do relato da violência, que fazia
realizado apenas uma social e de provimento
com que as crianças e adolescentes vives- única vez. de cuidados.
sem novamente os sentimentos negativos
relacionados à situação de violência, tornan-
do-os novamente vítimas da mesma situa- Visa a coleta de
ção. Por isso, a Lei considera a revitimização evidências dos Não tem o escopo
como uma forma de violência institucional. fatos ocorridos no de produzir prova
âmbito do processo para o processo de
Portanto, para que crianças e adolescentes investigatório investigação e de
sejam protegidos nas situações de violên- produção de provas. responsabilização.
cia (física, psicológica, sexual, patrimonial,
institucional), a Lei nº 13.431/2017 estabele-
ceu duas formas de realizar a chamada es- A Lei e Decreto não
cuta protegida de crianças e adolescentes Será gravado em
áudio e vídeo. estabeleceram que
vítimas ou testemunhas de violência: Es- deva ser gravada.
cuta Especializada e Depoimento Especial.
Deverá ser Deve ser realizada por
conduzido por profissional
É necessário diferenciar as duas formas de autoridades capacitado.
escuta, estabelecendo suas naturezas dis- capacitadas.
tintas para se evitar sobreposições e, con-
sequentemente, a revitimização. Como o Escuta especializada e o depoimento especial serão realiza-
dos em local apropriado e acolhedor, com infraestrutura e
texto da Lei n° 13.431/2017 apresenta uma espaço físico que garantam a privacidade da criança ou do
definição bastante resumida sobre a Es- adolescente vítima ou testemunha de violência. A Lei e o
Decreto não estabeleceram que deverá ser em sala com fi-
cuta Especializada, o Decreto 9.203/2018 nalidade específica ou exclusiva para a escuta especializada.
foi também utilizado na comparação

122 | A Lei 13.431/2017 e suas implicações para a proteção de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas
de violência do âmbito do SUAS
Desde modo, depreende-se que a escuta es- processo efetivamente protetivo, demanda
pecializada é procedimento ou mesmo um uma mudança de paradigma, onde a voz da
conjunto de interações com a criança e ao criança é considerada e também seu silên-
adolescente, vítima ou testemunha de violên- cio. Uma escuta protegida deve ser baseada
cia, perante a rede de proteção, com o objetivo na atenção inclusive ao não dito, uma postu-
de obter informações para a acolhida e o pro- ra de atenção e corresponsabilidade de todas
vimento de cuidados e proteção. A escuta es- os(as) profissionais de todas as políticas que
pecializada não tem conotação investigativa e atendem a esse público. Tanto na revelação
não busca coletar provas contra os agressores, espontânea, quanto na identificação de si-
mas visa proteger as vítimas ou testemunhas, nais e indícios, é fundamental que se ado-
que relatam apenas o necessário para que os tem as providências necessárias, incluindo
profissionais entendam o que ocorreu e as- a notificação ao Conselho Tutelar, conforme
sim possam fornecer os cuidados necessários. fluxo e protocolo previstos em seu âmbito.
Além do mais, sempre que possível, a busca
por informações deve ser prioritariamente jun- Mukunda
to aos familiares ou responsáveis protetivos.

não devem indagá-los sobre os fatos de violência


ocorridos, e elas devem sempre acontecer em um
contexto de procedimentos preventivos da vitimi-
zação secundária, ou seja, em ambientes amigá-
veis que lhes assegurem condições de privacida-
de e proteção. Os procedimentos devem incluir os
convites à narrativa livre (perguntas abertas), a es-
cuta sem interrupções e o registro por escrito das
manifestações verbais e comportamentais que,
espontânea e voluntariamente, fizer a criança ou
o(a) adolescente. (Childhood, 2023 pág 23).

Pode-se afirmar que a escuta especializada é


um importante instrumento para que os pro-
fissionais da rede de proteção realizem seus
estudos sociais e obtenham informações ne-
cessárias para compreensão do contexto socio-
familiar e da capacidade protetiva, para a ava-
liação para elaboração ou adaptação do Plano
de Acompanhamento Familiar ou Individual,
para contribuir na restituição de direitos, para
a avaliação dos impactos da violência, das suas
consequências ou sequelas, bem como para
avaliação das medidas de proteção cabíveis.

Atenção também deve ser dada quando hou-


Não resta dúvidas que a escuta protegida
ver uma revelação espontânea, que pode
pode ocorrer de duas formas, mas que cada
ocorrer em qualquer unidade ou serviço, e
uma delas possui objetivos, responsáveis e
para qualquer profissional que a criança ou
ritos próprios. Portanto não cabe ao SUAS
adolescente estabeleça vínculo de confian-
incorrer em questionamentos que extrapo-
ça. Além do mais, os(as) trabalhadores(as) da
lem suas finalidades de proteção e possam
rede de proteção em seu cotidiano devem
ser confundidos com os objetivos do depoi-
estar atentos(as) aos indícios e sinais de vio-
mento especial, mesmo quando atuar em
lência (existência de hematomas, queimadu-
unidades intersetoriais, como os Centros In-
ras e fraturas pelo corpo; mudança brusca de
tegrados. No caso da Assistência Social, o aten-
comportamento, uso de álcool e outras dro-
dimento protetivo possui caráter de acolhida
gas, autoflagelação, entre outros), pois um

123 | A Lei 13.431/2017 e suas implicações para a proteção de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas
de violência do âmbito do SUAS
e acompanhamento, não se restringin- de trabalho, com foco na interdisciplinarida-
do a busca de qualquer confirmação da de, para o enfrentamento e prevenção as si-
violência. Conforme previsão pelo Decre- tuações de violência. Esse é o desafio a ser en-
to 9.603/2018, no âmbito do SUAS, poderão frentado pelo SUAS e pelas demais políticas.
ser adotados os seguintes procedimentos:
Cabe ressaltar que a violência é um proble-
I - elaboração de plano individual e familiar de ma social multifacetado, com raízes histó-
atendimento, valorizando a participação da crian- ricas, culturais, sociais, ambientais, estrutu-
ça e do adolescente e, sempre que possível, a pre- rais. É, portanto, uma questão complexa, cuja
servação dos vínculos familiares; II - atenção à compreensão precisa extrapolar o contexto
vulnerabilidade indireta dos demais membros da
individual ou familiar. É preciso intervir na
família decorrente da situação de violência, e so-
licitação, quando necessário, aos órgãos compe- questão dos determinantes e consequên-
tentes, de inclusão da vítima ou testemunha e de cias da violência e não apenas no trabalho
suas famílias nas políticas, programas e serviços individualizado com as famílias e indivíduos.
existentes; III - avaliação e atenção às situações de Ou seja, pressupõe compreender que as si-
intimidação, ameaça, constrangimento ou discri- tuações vividas no âmbito familiar têm rela-
minação decorrentes da vitimização, inclusive du- ção com o contexto social mais amplo, con-
rante o trâmite do processo judicial, as quais deve- siderando as dimensões: estrutural, como a
rão ser comunicadas imediatamente à autoridade desigualdade social e macrossocial como o
judicial para tomada de providências; e IV - repre- sistema político, ordem econômica, entre ou-
sentação ao Ministério Público, nos casos de falta
tras. Atuar para enfrentar vulnerabilidades
de responsável legal com capacidade protetiva
em razão da situação de violência, para colocação do campo relacional impõe ir além do senso
da criança ou do adolescente sob os cuidados da comum, sob pena de sobrecarregar, culpa-
família extensa, de família substituta ou de serviço bilizar, invisibilizar os indivíduos, seja por sua
de acolhimento familiar ou, em sua falta, institu- faixa etária, classe, ou gênero, entre outros.
cional. (BRASIL, 2018).
Assim, a violência, além de complexa é um
fenômeno que não tem fronteiras e atinge
Na Assistência Social, o principal instrumen-
crianças e adolescentes independentemen-
to de sua operacionalização são os profissio-
te de classe, sexo, idade, religião, raça ou et-
nais que atuam no atendimento direto aos
nia. Há uma grande diversidade de situa-
(às) usuários (as), em uma relação marcada
ções de violação e de públicos atendidos, e,
pela proximidade, constituição de vínculos
portanto, toda essa complexidade requer
e subjetividade em que a implementação é
conhecimento teórico-metodológico, habi-
extremamente relevante e precisa ser vista,
lidades de articulação, diálogo e construção
não como um processo linear, mas algo em
de parcerias, além de compromisso ético
constante processo de construção e aprendi-
em prol da proteção integral das crianças e
zados. A existência de Orientações Técnicas
adolescentes, com o estabelecimento de flu-
e processos de capacitação e formação con-
xos e processos de trabalho diferenciados,
tinuados são necessários para que os atores
considerando inclusive a gravidade e urgên-
que compõem as diferentes serviços e insti-
cia das situações, para evitar que a violên-
tuições do SUAS compreendam a lógica da
cia se perpetue e ou até mesmo se agrave.
garantia de direitos que deve pautar a sua
atuação, abstendo-se de julgamentos morais,
O reconhecimento de que a prevenção e o
ou atendimentos baseados nas lógicas da ca-
enfrentamento da violência são direitos hu-
ridade e do assistencialismo. A Assistência So-
manos e requerem um processo amplo, que
cial deve articular seus serviços internamen-
envolve diversas políticas públicas, ou seja, a
te, entre todos os seus níveis, garantindo a
compreensão interdisciplinar do problema
referência e a contrarreferência, e articulação
público da violência é pré-requisito para que
com outras políticas públicas, a fim de asse-
haja medidas mais efetivas de enfrentamento.
gurar um amplo conjunto de direitos sociais
somente possíveis com a atuação conjunta
de vários profissionais das equipes dos CRAS,
CREAS e outros equipamentos, de modo que
consigam desenvolver métodos integrados

124 | A Lei 13.431/2017 e suas implicações para a proteção de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas
de violência do âmbito do SUAS
Portanto, para que haja uma prática efetivamente não-revitimizante, todos os ato-
res do SGD devem ser agentes de proteção, mesmo aqueles implicados na responsa-
bilização dos autores de violência. Inclusive, a principal mudança proposta na Lei n°
13.431/2017 reside justamente na necessidade de que a proteção de crianças e adoles-
cente seja considerada em todas as intervenções, de todos os trabalhadores do SGD, inde-
pendentemente de seu cargo ou local de lotação. Nesse sentido, as intervenções devem:

considerar à condição peculiar de sujeito em desenvolvimento;

serem precoces, mínimas e urgentes;

permitir que crianças e adolescentes se expressem livremente nos assuntos que lhes dizem
respeito e também respeitem o seu silêncio;

considerar a diversidade; identidade e o estágio de desenvolvimento das crianças e adolescen-


tes;

considerar direitos específicos devido à condição de vítima ou testemunha de violência (prote-


ção da intimidade, confidencialidade, proteção contra intimidação, entre outros);

reconhecer os entrelaçamentos de inúmeras violências que podem estar presentes;

retirar a situação de violência contra crianças e adolescentes da invisibilidade (não tratar de


forma banalizada);

adotar procedimentos específicos para o atendimento culturalmente adequado de crianças e


jovens indígenas ou pertencentes aos demais povos e comunidades tradicionais;

garantir acessibilidade.

Bruno Itan

125 | A Lei 13.431/2017 e suas implicações para a proteção de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas
de violência do âmbito do SUAS
Em resumo, as intervenções devem sempre blicaFederativadoBrasil.Brasília/DF:Senado,1988;
considerar o superior interesse da criança e do BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente: Lei
adolescente, compreendendo suas necessida- Federalnº8069,de13dejulhode1990:Brasília,1990;
des de forma integral. Logo, é preciso fazer com BRASIL, Presidência da República. Lei Or-
que instituições distintas, com objetivos especí- gânica da Assistência Social: Lei nº 8.742,
ficos, modos de atuar diferentes e até mesmo de 7 de dezembro de 1993, publica-
de diferentes poderes consigam atuar de ma- da no DOU de 8 de dezembro de 1993;
neira integrada, complementar, ágil e efetiva. BRASIL. Tipificação Nacional de Serviços
A efetivação da Lei 13.431/2017 demanda que Socioassistenciais (reimpressão 2014). Re-
as instituições e atores envolvidos sejam dota- solução CNAS nº 109/2009, de 11 de no-
dos de novas capacidades, formas de atuação vembro de 2009. Brasília: MDS, 2014;
e comunicação, devendo ser criados mecanis- BRASIL. Estabelece o Sistema de Garan-
mos institucionalizados de coordenação, como: tia de Direitos da Criança e do Adoles-
comitês de gestão colegiada, fóruns, grupos de cente Vítima ou Testemunha de Violên-
trabalho intersetoriais para o estabelecimento cia. Lei nº 13.431/2017, de 4 de abril de 2017;
de planejamento, monitoramento, fluxos, pro- BRASIL. Decreto 9.603, de 10 de de-
tocolos e formas de comunicação entre a rede, zembro de 2018. Brasília: 2018;
onde a superposição de tarefas seja evitada; a BRASIL. Ministério da Cidadania. Parâme-
cooperação entre os órgãos, os serviços, os pro- tros de Atuação do Sistema Único de Assis-
gramas seja priorizada; os mecanismos de com- tência Social (SUAS) no Sistema de Garan-
partilhamento das informações sejam estabe- tia de Direitos da Criança e do Adolescente
lecidos; e o papel de cada instância ou serviço Vítima ou Testemunha de Violência. Brasí-
e o profissional de referência esteja definido. lia: 2020. Disponível em: http://blog.mds.gov.
br/redesuas/wpcontent/uploads/2020/03/
Em âmbito federal há um esforço de integração SUAS_garantia_direitos_crian%C3%A7as_ado-
intersetorial que precisa ser retomado e fortale- lescentes_vitimas_testemunhas_violencia;
cido, com a implementação do Fluxo Geral da BRASIL. Fluxo Geral na Lei Nº 13.431/2017: Es-
Escuta Protegida e seu respectivo guia24, onde cuta Especializada e do Depoimento Especial
são definidas ações integradas junto aos órgãos no Atendimento a Crianças e Adolescentes
responsáveis pelos serviços de atendimento. Vítimas ou Testemunhas de Violência e Guia
Além dessa iniciativa, a SNAS também partici- para sua Implantação. 2022. Disponível em: ht-
pa da Comissão Intersetorial de Enfrentamento tps://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/seus-direi-
as Violências contra Crianças e Adolescentes. tos/politicas-de-justica/EJUS/fluxo-geral-lei-
Em âmbito setorial, a SNAS, em colaboração -13-431-de-2017-atualizado-em-26_10_2022.pdf;
com outras instâncias do SUAS, elaborou e dis- Childhood Brasil, Secretaria Nacional dos Direitos
ponibilizou orientações técnicas25 e um Curso da Criança e do adolescente – Ministério dos Di-
EAD sobre Atenção no SUAS a Crianças e Ado- reitos Humanos e da Cidadania (MDHC). Guia de
lescentes Vítimas ou Testemunhas de Violên- Escuta Especializada: conceitos e procedimen-
cia26. São iniciativas importantes, mas ainda é tos éticos e protocolares/Benedito Rodrigues dos
preciso avançar, pois, apesar de o Brasil ter uma Santos, Itamar Batista Gonçalves – São Paulo, Bra-
legislação protetiva dos direitos das crianças sília: Childhood Brasil: SNDCA:, 2022 – 2023, 127.
e adolescentes considerada avançada, ainda Disponível em: phttps://www.gov.br/mdh/pt-br/
existe muito a ser realizado para que os direitos navegue-por-temas/crianca-e-adolescente/aco-
sejam verdadeiramente efetivados: um cami- es-e-programas/GuiaEscutaEspecializada_Con-
nho permeado de desafios, mas um caminho ceitoseProcedimentosticoseProtocolares.pdf
possível e necessário, para que crianças e ado- VIANA, Márcia Pádua. Escuta protegi-
lescentes possam crescer livres da violência. da de crianças e adolescentes pelo CRE-
AS: proteção ou revitimização? Disser-
Referências Bibliográficas: tação (mestrado). Brasília: IPEA, 2020.
BRASIL.Constituição(1988).ConstituiçãodaRepú-

24 Iniciativa que reuniu diversos órgãos do Poder Executivo, Poder Judiciário, Polícia Civil, Ministério Público e De-
fensoria Pública com vistas a garantir a adequada implementação das novas legislações sobre a escuta protegida.
25 Parâmetros de Atuação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) no Sistema de Garantia de Direitos da
Criança e do Adolescente Vítima ou Testemunha de Violência. Brasília: 2020. Disponível em: http://blog.mds.gov.
br/redesuas/wpcontent/uploads/2020/03/SUAS_garantia_direitos_crian%C3%A7as_adolescentes_vitimas_testemu-
nhas_violencia.
26 https://moodle.cidadania.gov.br/ead/course/index.php?categoryid=164

126 | A Lei 13.431/2017 e suas implicações para a proteção de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas
de violência do âmbito do SUAS
Jucimeri Isolda Silveira
Professora do Programa de Pós-Graduação em Direitos
Humanos e Políticas Públicas (strito senso) e do Curso de
Serviço Social; Assessora Técnica do Colegiado Nacional
de Gestoras/es de Municipais de Assistência Social.

127 | CENÁRIO SOCIOECONÔMICO, VIOLÊNCIAS, PANORAMA DO SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA E A AGENDA CONS-
TRUÍDA NOS ENCONTROS DO CONGEMAS
O tema do 23º Encontro Nacional do CONGE- de fundos públicos, e organização da política
MAS, “Reconstrução do Sistema Único de As- nas três esferas de governo, é potencializada
sistência Social: o desafio coletivo na elimina- pelo marco fundamental da constituição de
ção da fome e da pobreza, na ampliação da um sistema continuado e unificado: o SUAS.
proteção social no Brasil”, parte da retomada
e da qualificação das bases estruturantes do Seguindo as diretivas da Constituição Fede-
SUAS, do pacto federativo, o que implica, ne- ral e da LOAS, o SUAS é um sistema público
cessariamente, o desenvolvimento urgente não-contributivo, descentralizado e partici-
da capacidade de o Estado brasileiro garan- pativo que tem como finalidade primordial a
tir condições institucionais para enfrentar as gestão do conteúdo específico da assistên-
consequências das desigualdades, agravadas cia social no campo da proteção social bra-
no contexto de pandemia de Covid19, e re- sileira, como definido na Norma Operacional
estruturar um amplo e universal sistema de do Sistema Único de Assistência Social edi-
proteção social, com atuação estratégica da tada em 2005 (NOB/SUAS/05) e atualizada
política de Assistência Social, integrada com em 2012 (NOB/SUAS/12). Como sistema es-
demais políticas sociais e econômicas. Assim, tatal, possibilita uma nova dinâmica de go-
para “ampliar a proteção social e fortalecer a vernança democrática, tendo com diretriz
democracia, por um Brasil humanamente di- primordial o a universalização da cobertu-
verso e socialmente justo”, lema do Encontro ra de serviços e ações no âmbito local, com
Nacional, é fundamental considerar as múl- priorização de territórios mais desiguais.
tiplas vozes do SUAS, o projeto de recosntru-
çãoreconstrução produzido no período de
resistência e fragilização do sistema, as diver-
sidades e demandas por novas estratégias.
Motin

O desenho dos Encontros Regionais e Nacio-


nal do Congemas buscou oportunizar a apre-
sentação de iniciativas inovadoras, tanto dos
municípios, como do governo federal, consi-
derando o novo arranjo do Ministério de De-
senvolvimento e Assistência Social, Família e
Combate à Fome – MDAS e a agenda do SUAS.
Objetivou, ainda, o aprofundamento do deba-
te sobre os desafios centrais na qualificação
do SUAS, na construção de uma nova ética
que orienta as ações coletivas no enfrenta-
mento da questão social, o que implica, ne-
cessariamente, o fortalecimento das políticas
sociais e o fortalecimento da luta social co-
letiva pela definição de reformas estruturan-
tes, como uma reforma que garanta a justiça
tributária, e a revogação de contrarreformas,
notadamente a trabalhista e o marco fiscal
imposto pela Emenda Constitucional nº 95/16.

O processo de implementação da Lei Or- O SUAS é, notadamente, uma das princi-


gânica de Assistência Social – LOAS (Lei nº pais inovações institucionais do Estado bra-
8.742/93) é revelador de mudanças institucio- sileiro na democracia recente, no âmbito de
nais e políticas indispensáveis para demarca- sistemas de proteção social, especialmen-
ção do direito à assistência social no âmbito te pelos seguintes avanços e aspectos:
do sistema protetivo brasileiro. A diretriz da
descentralização político-administrativa, con-
substanciada na instituição de fóruns, con-
selhos, instâncias de pactuação e regulação

128 | CENÁRIO SOCIOECONÔMICO, VIOLÊNCIAS, PANORAMA DO SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA


E A AGENDA CONSTRUÍDA NOS ENCONTROS DO CONGEMAS
i) construção de dispositivos relacionados v) adoção de dispositivos indutores de ca-
à concepção de uma política pública esta- pacidades de gestão, com definição de pa-
tal, particularmente, na provisão de segu- râmetros de avaliação e de ordenamen-
ranças tipificadas e padronizadas em uni- to dos municípios em níveis de gestão;
dades públicas estatais e referenciadas
nos territórios mais desiguais e precariza- vi) implantação de novos instrumentos de
dos quanto à provisão de políticas públicas; gestão, especialmente o Pacto de Aprimora-
mento do Suas, para acelerar os objetivos da
ii) lógica de repasses continuados e perma- assistência social e consolidar o pacto federa-
nentes de recursos, fundo a fundo, a partir tivo quanto às corresponsabilidades dos entes
de critérios técnicos, orientados por princí- federados no cofinanciamento, na qualificação
pios fundamentais em gestão pública e sis- e na universalização da cobertura territorial;
temas de proteção social, como a plena uni-
versalização, a integralidade da proteção, vii) primazia da responsabilidade estatal e re-
com expansões qualificadas e progressivas; gulação de novas bases para a relação com
as organizações da sociedade civil na pres-
iii) territorialização de serviços, vi- tação de serviços e na defesa e garantia de
sando à universalização de acessos; direitos; entre outros aspectos que caracte-
rizam a institucionalidade deste sistema de
iv) profissionalização da prestação de servi- proteção com caráter distributivo e protetivo
ços, com definição de bases normativas que (SILVEIRA, 2009; SILVEIRA, 2014)
visam a desprecarização das condições éti-
cas e técnicas e dos vínculos de trabalho, vi-
sando a qualidade dos serviços prestados;

É fundamental demarcar que o sistema protetivo não contributivo é composto por políti-
cas sociais setoriais, particularmente o Sistema Único de Saúde - SUS, o SUAS e o Sistema
Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – SISAN. Este conjunto de sistemas se inte-
gram com as políticas de garantia e defesa de direitos, produzidas a partir das lutas em di-
reitos humanos, protagonizadas por sujeitos coletivos e de direitos, como mulheres, pes-
soas idosas, juventude, pessoas com deficiência, povos indígenas, pessoas LGBTQIA+,
povo negro, povos tradicionais; por movimentos sociais, organizações da sociedade civil.
Desse modo, as políticas setoriais demandam forte articulação de pautas advindas das lu-
tas sociais pela dignidade humana, pela efetivação de condições de real igualdade e liber-
dades plenas. Daí a importância da reconstrução das políticas sociais e do Estado, diante
da distribuição recente e das desproteções, impulsionar medidas e políticas que enfrentem
as consequências da colonolialidade, do modelo moderno-colonial-patriarcal, para efe-
tivamente reduzir as desigualdades (SILVEIRA et al, 2021; SILVEIRA in COSTA et al, 2022).

A agenda de reconstrução do requer, inevitavelmente, aprimoramentos que depen-


dem da efetivação das corresponsabilidades dos entes federados, com efetiva supe-
ração dos gargalos identificados nos processos avaliativos e a implantação de inova-
ções e pactuações que solucionem as desproteções sociais e enfrentem desigualdades,
especialmente racial, de gênero e social, tendo como parâmetros os cenários socioeconô-
micos regionais e nacional, assim como o II Plano Decenal de Assistência Social (2016-2026).

A análise do cenário nacional, construído a partir dos dados do Portal Assistên-


cia Social nos Municípios27 e de outras fontes confiáveis, permite identificar de-
safios centrais que estão diretamente relacionados com a fragilização das políti-
cas sociais nos últimos anos, sobretudo pelo desfinancimento, expressão cruel das
políticas neoliberais que subordinam os direitos ao ajuste fiscal, à ausência de políticas públi-
cas que promovam o desenvolimentodesenvolvimento sustentável e o dinamismo econômico.

27 https://assistenciasocialnosmunicipios.org/ Os dados foram produzidos e sistematizados com apoio do pesqui-


sador Tiago Barbosa e operacional/técnico da LabSocial, gestora do Portal Assistência Social nos Municípios.

129 | CENÁRIO SOCIOECONÔMICO, VIOLÊNCIAS, PANORAMA DO SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA


E A AGENDA CONSTRUÍDA NOS ENCONTROS DO CONGEMAS
1. Cenário sócio econômico

As demandas por proteção social possuem relação com a realidade socioeconô-


mica do Brasil, as frágeis políticas econômicas e reformas que efetivamente pro-
mova igualdade social. Fatores como baixo dinamismo econômico, concentração
de renda e insuficiência na provisão de políticas sociais, agravam a questão social.

Grráfico 1: Dinamismo econômico

Fonte: Banco Mundial (2023);

É possível observar que ocorreu um crescimento real (além da inflação) da renda média brasilei-
ra de menos de 50% entre 1990 e 2022 (32 anos). Observa-se um crescimento econômico maior
entre 2004 e 2013. Destaca-se, nesse sentido, que o baixo dinamismo econômico impacta dire-
tamente na renda e na pobreza, assim como as políticas econômicas e as condições políticas e
institucionais na provisão de serviços e benefícios sociais, ou seja, na materialização dos direitos.

Gráfico 2: Taxa de participação de pessoas que trabalham ou buscam emprego


(% 14 anos ou mais)

Fonte: IBGE (2023);

130 | CENÁRIO SOCIOECONÔMICO, VIOLÊNCIAS, PANORAMA DO SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA


E A AGENDA CONSTRUÍDA NOS ENCONTROS DO CONGEMAS
As taxas nacionais permitem identificar que entre 60% e 64% da população em idade ati-
va trabalham ou buscam emprego no país, sendo o trabalho a principal fonte de renda dos
brasileiros. Contata-se uma queda nos rendimentos em 2020 devido à pandemia, com re-
cuperação lenta posterior. Os dados possibilitam perceber desigualdades regionais e baixa
capacidade de geração de renda. Mas cabe um questionamento, ainda, sobre a qualidade
das ocupações e a desproteção social, especialmente diante da contrarreforma trabalhista.

Gráfico 3: Taxa de desocupação - % 14 anos ou mais

Fonte: (IBGE 2023);

A desocupação possui muita relação com políticas econômicas federais, mas também esta-
duais. Ocorre uma redução nas taxas a partir de 2021, atingindo níveis de 2014 em 2022, mas
ainda assim são desafiadoras tendo em vista a relação entre desemprego e ocupações pre-
carizadas com o aumento da pobreza, da fome e demais expressões da desigualdade social.

Grafico 4: Indice de Gini

Fonte: IBGE (2023);

131 | CENÁRIO SOCIOECONÔMICO, VIOLÊNCIAS, PANORAMA DO SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA


E A AGENDA CONSTRUÍDA NOS ENCONTROS DO CONGEMAS
O índice de Gini, que mede a desigualdade de Observa-se que a taxa de pobreza se reduz em
renda, permite identificar uma certa regulari- 2020 devido ao Auxílio Emergencial, aumen-
dade, uma concentração de renda e maior de- ta em 2021 com descontinuidade do Auxílio
sigualdade nas regiões Nordeste e Norte, assim Emergencial para maior nível da série. Ocorre
como na relação entre as regiões, ao tempo uma redução em 2022, mas continua elevada.
em que as desigualdades analisadas em es-
cala se reproduzem em todo o país. O índice Gráfico 6 - Taxa de pobreza extrema - % menos
de Gini reduziu moderadamente em 2020 em de US$ 1,9 per capita ao dia (dólares PPC de
função do Auxílio Emergencial, mas aumentou 2011)
no ano seguinte, realidade que deve ser mais
bem analisada diante do novo Bolsa Família.
A melhoria na capacidade de renda e a re-
dução da pobreza, como pode ser observado
em regiões com maior concentração de ren-
da, demostram o efeito positivo e rápido da
transferência de renda, como pode ser perce-
bido na evolução da taxa de pobreza. Entre-
tanto, cabe alertar a multidimensionalidade
da pobreza e a falta de políticas permanentes
para dar sustentabilidade da redução que de-
veria ser acelerada, diante da Agenda 2030.

Gráfico 5: Taxa de pobreza extrema - % menos Fonte: IBGE (2023).2011)


de US$ 1,9 per capita ao dia
(dólares PPC de 2011) As taxas de pobreza são mais elevadas nas
regiões Nordeste e Norte, reflexo das insufi-
ciências das políticas sociais e do dinamis-
mo econômico local, mas, sobretudo, das
desigualdades históricas. A pobreza é mul-
tidimensional, sendo que a transferência de
renda possui um impacto imediato impor-
tante, mas insuficiente para a superação de
demais carecimentos como a fome, como
pode ser observado a seguir, uma vez que a
pobreza reduziu no contexto de pandemia,
mas a insegurança alimentar aumentou.
Daí a importância de políti-
cas integradas e permanentes.
Fonte: : IBGE, 2023

Observa-se que a taxa de pobreza se reduz em


2020 devido ao Auxílio Emergencial, aumen-
ta em 2021 com descontinuidade do Auxílio
Emergencial para maior nível da série. Ocorre
uma redução em 2022, mas continua elevada.

132 |CENÁRIO SOCIOECONÔMICO, VIOLÊNCIAS, PANORAMA DO SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA


E A AGENDA CONSTRUÍDA NOS ENCONTROS DO CONGEMAS
Gráfico 7: Insegurança alimentar em 2022 (% dos domicílios)

Fonte: PENSANN, 2022.

As taxas de insegurança alimentar grave são mais elevadas no Norte e Nordeste, redu-
zem até 2013, aumentam substancialmente já em 2018, antes da pandemia, dobram
ou triplicam com a pandemia. Destaca-se que 58,7% dos domicílios brasileiros em al-
gum grau de insegurança alimentar – 59,5% Centro-Oeste, 68% Nordeste, 71,6% Norte,
64,6% Sudeste e 48,2% Sul. A fome atinge um quarto dos nortistas e mais de um quinto
dos nordestinos em 2022, sendo um problema em todo o Brasil e que deve ser priorizado.

2. Violências e demandas

As taxas de insegurança alimentar grave são grau de insegurança alimentar – 59,5% Cen-
mais elevadas no Norte e Nordeste, redu- tro-Oeste, 68% Nordeste, 71,6% Norte, 64,6%
zem até 2013, aumentam substancialmente Sudeste e 48,2% Sul. A fome atinge um quar-
já em 2018, antes da pandemia, dobram ou to dos nortistas e mais de um quinto dos
triplicam com a pandemia. Destaca-se que nordestinos em 2022, sendo um problema
58,7% dos domicílios brasileiros em algum em todo o Brasil e que deve ser priorizado.

133 | CENÁRIO SOCIOECONÔMICO, VIOLÊNCIAS, PANORAMA DO SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA


E A AGENDA CONSTRUÍDA NOS ENCONTROS DO CONGEMAS
Gráfico 8: taxa de homicídios por 100 mil habitantes

Fonte: IEPA (2023).

134| CENÁRIO SOCIOECONÔMICO, VIOLÊNCIAS, PANORAMA DO SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA


E A AGENDA CONSTRUÍDA NOS ENCONTROS DO CONGEMAS
Observa-se um aumento na taxa de hHomicídios de 1980 a 2002, que se reduziram entre 2003
e 2010, e aumentaram até 2017, com tendência de redução nos últimos anos. A taxa atual de
mortes violentas é bastante superior à taxa dos anos 1980, mas menor que anos 2000 e 2010.
Em todos os anos, taxa ficou acima de 12, em certos anos o dobro desse valor. Valores acima de
10 são considerados epidêmicos pela OMS, o que mostra o alto índice de violência brasileiro.

Gráfico 9 - Taxa de homicídio por 100 mil habitantes.

Fonte: IPEA (2023).

As taxas de mortes violentas cresceram em todas as regiões na década de 1990. Re-


gião Sudeste teve queda desde década de 2000 que persistiu em 2010, liderada por
São Paulo. Norte, Nordeste e Centro-Oeste mais violentos no período atual. Nos anos
de 1990 era o Sudeste que apresentava maiores taxas, tendência que se reverteu.
A taxa de homicídio de homens jovens é bem mais elevada que a geral, sen-
do que a diferença aumentou, de duas vezes nos anos 1980 para mais de quatro ve-
zes nos anos 2010. Trata-se do grupo demográfico mais vulnerável à violência letal.
A violência é um fenômeno complexo e multideterminado, possui relação com as es-
truturas de opressão, aspectos culturais e relacionais. Daí a importância de um con-
junto de políticas preventivas, de educação em direitos humanos, de responsabiliza-
ção, novas formas de resolução de conflitos, inteligência policial, entre outros fatores.
Para uma análise da cobertura do SUAS considerando as demandas decorrentes de confli-
tos que resultaram em violências é importante apresentar dados do SINAN totalizados.

135 | CENÁRIO SOCIOECONÔMICO, VIOLÊNCIAS, PANORAMA DO SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA


E A AGENDA CONSTRUÍDA NOS ENCONTROS DO CONGEMAS
Tabela 1: Violências registradas no SINAN direitos humanos nas políticas públicas, a
no Brasil modernização de democratização da se-
gurança pública, o que inclui novas práti-
cas de solução de conflito, integração ope-
racional, entre outros avanços necessários
como preconizado no Programa Nacio-
nal dos Direitos Humanos (SILVEIRA, 2019).
A análise parcial do contexto de gra-
ve crise traz evidências e reforça a neces-
sidade de políticas permanentes, inte-
gradas e com recursos suficientes para
atender às demandas. Ao mesmo tempo in-
Fonte: IPEA 2023.
dica caminhos para a reconstrução do SUAS.
Existe um registro elevado de violências físicas
e lesões autoprovocadas. Todas aumentaram
em relação a 2019 (pré-pandemia), em espe-
cial violências sexuais e financeira e econômi-
ca. Sabe-se que todas as violências, expressão
grave de violações de direitos, são fortemente
subnotificadas, o que pode ser percebido nos
casos de trabalho infantil que no SINAN 1.431
casos em 2022, já no RMA ocorreu o registro
de 6.384 de acompanhamento nos CREAS.
As duas bases de dados revelam tendências
de subnotificação, com desafios importantes
na integração operacional do Sistema de Ga-
rantia de Direitos de Crianças e Adolescentes.

Tabela 2 - Violências registradas no


SINAN por Região

Fonte: IPEA 2023.

Algumas regiões do Brasil possuem um re-


gistro maior de casos, com destaque para
as Regiões Sudeste, Nordeste e Sul. Não
existe uma relação direta entre funcio-
namento adequado das redes de prote-
ção, grau de violências e casos registra-
dos, mas é possível identificar tendências.

Constitui um desafio central fortalecer os sis-


temas específicos em direitos humanos, de
modo a garantir a integralidade da proteção
e das atenções, além da melhor definição da
3. Cenário do SUAS:
complementaridade das ações na relação en- financiamento e cobertura
tre as políticas sociais e o sistema de garan-
tia de direitos. Outras pautas são igualmen- de serviços e benefícios
te importantes, como a transversalidade dos

136 | CENÁRIO SOCIOECONÔMICO, VIOLÊNCIAS, PANORAMA DO SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA


E A AGENDA CONSTRUÍDA NOS ENCONTROS DO CONGEMAS
A análise do financiamento do SUAS e da cobertura dos serviços e benefícios
permite identificar:

Gráfico 10: Recursos federais para o SUAS

Fonte: Portal Assistência social no Municípios, 2023.

O gráfico acima totaliza recursos ordinários, extraordinários, regulares e emendas par-


lamentares. Ocorre um leve aumento em 2017, uma queda em 2018 e uma recupe-
ração em 2019. Em 2020 observa-se um aumento de 37,7%, tendo em vista os recur-
sos extraordinários para combate à COVID-19. Já em 2021 ocorre uma queda de 58,1%,
dada a descontinuidade dos recursos extraordinários. Já o aumento em 2022, ocorre
em devido as execuções das emendas parlamentares, cenário que pode ser mais bem
identificado no gráfico a seguir.

Gráfico 11: Recursos federais detalhados

Fonte: Portal Assistência social no Municípios, 2023.

137 | CENÁRIO SOCIOECONÔMICO, VIOLÊNCIAS, PANORAMA DO SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA


E A AGENDA CONSTRUÍDA NOS ENCONTROS DO CONGEMAS
O que se observa é uma redução dos recursos ordinários justamente num contexto de maior
crise. Destaca-se que 40,5% dos recursos totais de 2022 foram emendas parlamentares, recur-
sos não regulares e que não necessariamente se repetem. O gráfico abaixo demostra a tendên-
cia de desfinanciamento do SUAS.

Gráfico 12: Recursos federais detalhados por bloco

Fonte: Portal Assistência Social nos Municípios, 2023.

Observa-se uma tendência preocupante de redução dos recursos, principalmente, para a pro-
teção social básica, o que ensejou diversas ações de mobilização dos atores do SUAS. A insta-
bilidade nas execuções se observa na proteção especial, uma redução expressiva para gestão
e um aumento em programas, principalmente para o Criança Feliz, e emendas parlamentares.
Quanto aos recursos estaduais destaca-se que em 2022, segundo estudos do Fonse-
as, que o país acumulou R$ 3,55 bilhões nos FEAS das unidades federativas. A lideran-
ça, como esperado, é do Sudeste, seguido do Nordeste, Norte, Centro e Sul, com va-
lor reduzido. No gráfico a seguir, é possível identificar a tendência das execuções.

138| CENÁRIO SOCIOECONÔMICO, VIOLÊNCIAS, PANORAMA DO SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA


E A AGENDA CONSTRUÍDA NOS ENCONTROS DO CONGEMAS
Gráfico 13 -Valor por bloco e região - R$ milhões

Fonte: Câmara Técnica do Fonseas.

Percebe-se uma baixa execução no cofinanciamento de serviços, com maior execução da Pro-
teção Social Básica no nordeste e da Proteção Social Especial nas regiões Sul e Sudeste. Ocorre
um baixo cofinanciamento de Benefícios Eventuais e de serviços no Centro Oeste e Norte, e
elevada execução em programas intersetoriais.

A análise comparada entre as pesquisas de 2019 e 2022 apontam algumas tendências que
possuem relação com a pandemia e o desfinanciamento federal: Benefício Eventual em 2019
era de 24 milhões, em 2022 foi para 243,6; Proteção Social Especial passou de 415 milhões em
2019, para 716,6 milhões em 2022 - só o sul registrou 310 mi; a Proteção Social Básica passou de
323 milhões em 2019, para 523,4 - só o nordeste 300 mi; Gestão passou de 174 milhões em 2019,
para 516,4 – Centro Oeste registrou 466 mi; Programas Intersetoriais passou de 51 milhões para
1,2 bilhão – só Nordeste registrou 780 milhões.

Observa-se um aumento significativo de recursos estaduais, mas uma grande heterogeneida-


de, sendo necessário avaliar a cobertura e regularidade dos repasses fundo a fundo, visando o
fortalecimento do pacto federativo e ampliação da proteção social.

O financiamento e o orçamento são obrigatórios e compreendidos como instrumentos para


uma gestão de compromissos e responsabilidades dos entes federativos à garantia dos direitos
socioassistenciais, contemplando as especificidades regionais do país. O Suas foi desfinanciado
e quem mais sofreu as consequências foi a população. É preciso compreender que esta pro-
gramática neoliberal subordinou os direitos e as políticas sociais às medidas de austeridade
agravaram as desigualdades, produziram fome, pobreza e desproteção social.

O desfinanciamento federal do SUAS, ocorrido a partir de 2016, com a Emenda Constitucional


nº 95/19, e a destinação de recursos para programas paralelos, a partir de 2018, representou
uma absoluta ruptura do pacto federativo e uma violação dos direitos.

139 | CENÁRIO SOCIOECONÔMICO, VIOLÊNCIAS, PANORAMA DO SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA


E A AGENDA CONSTRUÍDA NOS ENCONTROS DO CONGEMAS
O orçamento da Seguridade Social, conforme o artigo 165, §5º, inciso III, deveria ser elaborado
“de forma integrada pelos órgãos responsáveis pela saúde, previdência social e assistência so-
cial, tendo em vista as metas e prioridades estabelecidas na Lei de Diretrizes Orçamentárias e
assegurada a cada área e gestão de seus recursos” (art. 195, § 2º). Previsão constitucional que
vinha sendo letra morta.

Importante lembrar que as principais premissas do financiamento do SUAS são:

A alocação de recursos próprios pelas esferas de governo (União, Estados, Distrito Federal e
Municípios) destinados à assistência social;
A garantia das transferências fundo-a-fundo entre as esferas de governo para a efetivação do
cofinanciamento de forma regular e automática;
A gestão orçamentária e financeira coerente com as demandas da sociedade, com comando
único e controle social.

O SUAS adota mecanismos que garantem a continuidade dos serviços, expansões progressivas
e sustentabilidade orçamentária e financeira, tendo como regras elementares:

Repasse regular e automático fundo a fundo;


Financiamento baseado nas corresponsabilidades dos entes federados;
Financiamento organizado em pisos e blocos, permitindo maior flexibilidade na execução e
coerência com planejamento local;
Pactuação Intergestores para definição de critérios e corresponsabilidades;
Propostas orçamentárias inscritas no ciclo orçamentário (PPA, LDO e LO) e no planejamento
em cada esfera de governo;

Por isso existem emergências orçamentárias e regulatórias no SUAS que precisam ser solu-
cionadas. É preciso alcançar o patamar de aproximadamente 8 bilhões para manter as pac-
tuações e expandir. É necessário garantir revisão de custos, revitalizar as unidades públicas,
absolutamente sucateadas nos últimos anos. É necessário regularizar o cofinanciamento
pactado em 2015 e iniciar um novo pacto de aprimoramento; ampliar, garantir regularidade
nos repasses e aprimorar critérios dos incentivos de Gestão do SUAS e do Programa Bolsa
Família. Nesse sentido, é imprescindível regulamentar a vinculação de recursos nas três esfe-
ras de governo, seja pela aprovação da PEC 383/17, ou na imediata construção de uma inicia-
tiva do governo federal que viabilize a vinculação de recursos e a sustentabilidade do SUAS.
Ao mesmo tempo, é fundamental a adoção de medidas que avancem na regulamentação da
necessária desvinculação dos recursos orçamentários relativos à assistência social das restrições
de gastos, conforme definição no arcabouço fiscal, e sobre a necessária alteração legislativa do
percentual de gastos com pessoal previsto na Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complemen-
tar nº 101/2000), na qual a assistência social é reconhecida como serviço essencial. Outras pautas
urgentes, estão relacionadas à revogação da Emenda Constitucional nº 95/16 e a interdição de
todos os projetos que buscam reduzir o papel do Estado e subordinar os direitos ao ajuste fiscal.

É preciso reconhecer que desde a transição de governos e das primeiras e urgentes respostas,
ocorreram esforços do Ministério de Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Comba-
te à Fome, em promover condições políticas e institucionais, para a reconstrução coletiva do
SUAS, do desenho do Bolsa Família, com garantia de uma renda família permanente, da rápi-
da reorganização do Cadastro Único, do diálogo interfederativo. No campo do financiamento
a imediata recuperação de mais de 2 bilhões sem dúvidas se coloca como grande avanço e
concretização de um compromisso do governo federal com a Assistência Social. Mas é preciso
avançar mais e rapidamente, diante da realidade social, das demandas por proteção social, por
direitos. Por isso a importância de uma análise panorâmica da cobertura de serviços e benefí-
cios no Brasil. Com relação à cobertura de famílias e grupos específicos cadastrados e bene-
fícios é possível constatar:

140 | CENÁRIO SOCIOECONÔMICO, VIOLÊNCIAS, PANORAMA DO SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA


E A AGENDA CONSTRUÍDA NOS ENCONTROS DO CONGEMAS
Gráfico 14: % dos cadastrados em situação de pobreza

Fonte: MDS 2023.

Tabela 3: Grupos familiares tradicionais no Cadastro Único

Fonte: MDS 2023.


Tabela 4: Povos indígenas

Fonte: MDS 2023.

Os dados do Censo de 2022 permitem identificar um número significativo de povos ori-


ginários, o que desafia o SUAS a pensar novas soluções diante, também, das caracte-
rísticas territoriais e culturais. Destaca-se as regiões norte e nordeste com evidente de-
manda reprimida, mas a presença de indígenas, presentes em terras indígenas ou não,
é um desafio se dá em todas as regiões, com desafios comuns no que se refere à ade-
quação dos serviços de modo a promover a interculturalidade e o acesso aos direitos.
O mesmo ocorre em relação às comunidades quilombolas, com desta-
que para as regiões norte e sudeste, como pode ser identificado na tabela 3.

141 | CENÁRIO SOCIOECONÔMICO, VIOLÊNCIAS, PANORAMA DO SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA


E A AGENDA CONSTRUÍDA NOS ENCONTROS DO CONGEMAS
Tabela 5: Comunidades quilombolas

Fontes: Censo 2022, MDS, 2023.

Importante observar que o percentual de gru- terior do que em capitais – 66,58% dos novos
pos sociais específicos no cadastro único e no habitantes se concentraram em regiões fora
programa bolsa família justificam a adoção desses grandes centros urbanos;
de dispositivos que qualifiquem e induzam 5% das cidades brasileiras concentram 56%
busca ativa e políticas específicas, a exemplo população do país. Ao todo, 115,6 milhões de
da pactuação na região Nordeste no âmbito pessoas, ou 56,95% da população, vivem em
da Câmara Temática da Assistência Social no apenas 319 cidades;
Consórcio Nordeste, visando esforços conjun- a média de moradores por domicílio caiu de
tos para identificação e inclusão de povos indí- 3,31 para 2,79.
genas e comunidades tradicionais.
Os dados preliminares do Censo 202228, quan- O processo de transição demográfica do Brasil
do as mudanças demográficas, possibilitam a acompanha a influência das sociedades urba-
identificação de novos desafios, como a cons- no industriais, justamente pela passagem de
trução de novos critérios para a territorializa- um comportamento de altas taxas de mor-
ção de serviços. Alguns dados são sinais de talidade e fecundidade/natalidade para um
alerta para a construção de novos pactos: cenário em que ambas as taxas se situam em
a população brasileira registrou um aumen- níveis relativamente mais baixos. Além de al-
to de 6,45% em relação à edição anterior da terar as taxas de crescimento da população
pesquisa, em 2010, que havia contabilizado a transição demográfica acarreta uma alte-
190.755.799 de pessoas; ração da estrutura etária, quando diminui a
em números absolutos, houve um cresci- proporção de crianças ao tempo em que há
mento de 12.262.757 habitantes; uma elevação no percentual de idosos da po-
a taxa de crescimento nesses 12 anos foi de pulação. Embora o fenômeno das mudanças
0,52% ao ano, o menor nível da série histórica; populacionais seja generalizado no país, ele
as regiões Sul e Sudeste registraram puxa- não acontece ao mesmo tempo em todas as
ram o crescimento da população brasileira. O regiões do país, sendo necessário considerar
Sudeste ganhou 4.482.777 pessoas, e o Sul, as diversidades e particularidades regionais e
2.546.424; locais, especialmente para a definição de po-
líticas que reduzam desigualdade socioespa-
dos 5.570 municípios do Brasil, 3.168 ganha-
ciais.
ram habitantes entre 2010 e 2012 – isso repre-
senta 56,9% do total;
dos 5.570 municípios do Brasil, 2.399 perde-
ram habitantes entre 2010 e 2022 – isso repre-
senta 43% do total;
a cidade mais populosa do país, São Paulo
tem 11.451.245 habitantes, seguida de Rio de
Janeiro e Brasília;
o Brasil tem três cidades com menos de mil
habitantes – Serra da Saudade (MG), com 833
habitantes; Borá (SP), com 907; e Anhanguera
(GO), com 924;
o crescimento populacional foi maior no in-
28 https://censo2022.ibge.gov.br/

142 | CENÁRIO SOCIOECONÔMICO, VIOLÊNCIAS, PANORAMA DO SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA


E A AGENDA CONSTRUÍDA NOS ENCONTROS DO CONGEMAS
Importante observar, que a população brasileira de 30 a 59 anos apresenta crescimento, o que
implica avaliar a capacidade de o Estado gerar oportunidade de trabalho e emprego, visando
o crescimento econômico.

Outro aspecto a ser destacado, é o aumento da população idosa, demandando a revisão do


sistema de proteção social e as condições de qualidade de vida diante do aumento da longe-
vidade. Inevitavelmente será necessário o desenvolvimento de políticas de cuidado e proteção
social.

Tais tendências demandam o fortalecimento e a ampliação das políticas de assistência so-


cial, saúde e previdência social, trabalho, habitação e demais políticas sociais. É preciso, ainda,
implementar políticas econômicas associadas às políticas sociais, com geração de trabalho
decente, integração com a política de educação, adaptada às atuais exigências culturais, tec-
nológicas e do mundo do trabalho; garantir uma reforma tributária que promova justiça social
e reduza as graves desigualdades sociais, raciais e de gênero no país; construção de caminhos
para uma repactuação de corresponsabilidades dos entes federados na provisão de políticas
sociais, com redefinição de recursos financeiros para o fortalecimento das municipalidades; a
universalização da cobertura de serviços sociais básicos para atender às demandas ampliadas,
considerando as necessidades dos diferentes grupos sociais; a adoção de políticas específicas
que considerem a densidade populacional, as tendências de crescimento interno e migração;
a implantação de políticas regionais que considerem as particularidades e promovam o desen-
volvimento sustentável; a garantia de fundo público para assegurar o planejamento de políti-
cas amplas e permanentes, que acompanhem o perfil e as demandas da população.

Os dados sociais territoriais devem orientar pactuações como expansão de Centros e Serviços
de Convivência e Fortalecimento de Vínculos, considerando a tendência de aumento da popu-
lação idosa; fomento de trabalho decente para jovens de famílias prioritárias; unidades públicas
e serviços mais integrados em município de menor porte; serviços híbridos (assistência social
e saúde) e mais abrangentes; desenhos de redes intersetoriais; novos critérios de expansão de
serviços que acompanhem a dinâmica da cidade e do campo, entre outros fatores.

Com relação ao Benefício de Prestação Continuada e ao Programa Bolsa Família algumas ten-
dências podem ser destacadas:

Gráfico 15 – Evolução regional do BPC Gráfico 16 – Evolução regional do BPC


(Pessoas com Deficiência) (Pessoas Idosas)

Fonte: Portal Assistência Social nos Municípios. Fonte: Portal Assistência Social nos Municípios.

143 | CENÁRIO SOCIOECONÔMICO, VIOLÊNCIAS, PANORAMA DO SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA


E A AGENDA CONSTRUÍDA NOS ENCONTROS DO CONGEMAS
Gráfico 17 – Evolução regional do PBF.
Em relação ao BPC, é possível destacar:
O BPC para pessoas com deficiência cresce
em ritmo moderado desde 2004, mas o nú-
mero de beneficiários dobrou entre 2004 e
2022, com crescimento em todas as regiões,
mas com destaque par ao Sudeste e Nordes-
te, tendo em vista o número de habitantes; as
regiões Sul, Centro-Oeste e Norte apresentam
um número similar de beneficiários

Quanto ao BPC para pessoas idosas identifi-


ca-se um crescimento a ritmo moderado en-
tre 2004 e 2019, se reduzindo levemente em
2020 e 2021, aumentando levemente em 2022, Fonte: Portal Assistência Social nos Municípios.
sendo que o número de beneficiários quase
que dobrou entre 2004 e 2022; Tabela 6 – Número absolu-
to de benefícios socioassistenciais
Ocorre uma evolução a ritmo moderado e si-
milar entre as regiões, sendo maior na região
Nordeste, mesmo sendo a segunda mais po-
pulosa, o que pode indicar desproteção previ-
denciária de pessoas idosas na região;

A região Sudeste apresenta um número ele-


vado de beneficiários, como esperado da re-
gião mais povoada;
O número de beneficiários e a tendência de
crescimento é similar nas demais regiões do
país.

A análise sobre o BPC deve considerar aspec-


tos como acesso iniciado no cadastramento;
barreiras na viabilização da concessão, já que
muitas pessoas aguardam avaliação do INSS,
o que indica uma demanda por qualificação
das condições operacionais; desenvolvimen-
to da capacidade de acompanhamento social
via Unidades de Assistência Social; e aprimo-
ramento do BPC diante da Política Nacional
de Cuidados e das necessidades de beneficiá-
rios, famílias e cuidadoras/es. Fonte: Portal Assistência Social nos Municípios
Com relação à evolução do PBF destaca-se
Outros aspectos podem ser destaca-
uma tendência de crescimento a ritmo ele-
dos na análise do gráfico 12 e da tabela 4:
vado entre 2004 e 2007, moderado de 2008
a 2013, estagnação entre 2013 e 2021 e impor- O PBF possui um número de beneficiários
tante crescimento em 2023. O PBF mais do mais elev ado na região Nordeste, mesmo não
que quadruplicou o número de benefícios en- sendo a mais povoada, reflexo das maiores ta-
tre 2004 e 2023. xas de pobreza em relação aos demais estados;
As regiões Sudeste e Norte possuem um
número de beneficiários, com menor volume
de benefícios nas regiões Sul e Centro-Oeste;
Mesmo com diferenças, todas as regiões
apresentam um forte aumento em 2023.

144 | CENÁRIO SOCIOECONÔMICO, VIOLÊNCIAS, PANORAMA DO SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA


E A AGENDA CONSTRUÍDA NOS ENCONTROS DO CONGEMAS
Com relação ao PBF, especialmente diante da retomada do pacto federativo e de seu novo
desenho, é fundamental avançar no desenvolvimento de capacidades de gestão para a via-
bilização do acompanhamento social de situações prioritárias, como o não acesso ao con-
junto de serviços na educação e na saúde, assim como adoção de dispositivos que viabi-
lizem acesso aos direitos de políticas de cuidado, especialmente diante de da realidade de
trabalhadoras/es domésticos, demandas por cuidados para crianças, adolescentes, pesso-
as idosas e com deficiência, e jovens que encontram barreiras no acesso ao mundo do tra-
balho. É preciso considerar, ainda, as desigualdades e potencialidades regionais e locais.

Com relação à cobertura de CRAS e CREAS é importante destacar:

Tabela 7: Cobertura de CRAS, CREAS e Centro Pop

Fonte: Senso Suas.

As pactuações, os reordenamentos, especialmente a educação infantil na Assistência Social


subsidiada com recursos da Rede SAC, as novas pactuações e expansões produzidas até 2015,
permitiram uma importante capilaridade de CRAS no Brasil. Entretanto, é necessário identifi-
car os vazios territoriais, em termos de proteção social básica, assim como novos critérios como
embarcações e equipes volantes, considerando as realidades de todas as regiões brasileiras.

Destaca-se o número de unidades de CRAS e CREAS nas regiões Nordeste e Sudeste. Mas
certamente, as demandas por proteção agravadas pela pandemia e a ausência de ex-
pansões exigem um diagnóstico atualizado das desproteções sociais no SUAS e o pla-
nejamento da retomada da ampliação de serviços/unidades. Os dados da saúde, segu-
rança pública e direitos humanos indicam tendências de aumento das violências nas
últimas décadas. No entanto, a cobertura de CREAS é baixa observando-se os dados. Com
relação ao Centro Pop esta realidade também se repete, considerando a baixa cobertura.

145 | CENÁRIO SOCIOECONÔMICO, VIOLÊNCIAS, PANORAMA DO SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA


E A AGENDA CONSTRUÍDA NOS ENCONTROS DO CONGEMAS
Tabela 8 – Quantidade de Centro Dia e Centros de Convivência.

Fonte: Senso Suas

Ainda sobre a cobertura da rede socioassistencial destaca-se que a distribuição de Centros


Dias e Centros de Convivência deveriam considerar outros indicadores de vulnerabilidade so-
cial produzidos pela vigilância socioassistencial, tendo em vista o caráter preventivo de isola-
mento social e violações, além de critérios mais associados aos dados demográficos, aos ciclos
de vida. Ao mesmo tempo, se coloca como desafio a implantação de políticas de cuidado e
uma maior integração entre unidades públicas visando a proteção social territorial.
Tabela 9 – Quantidade de acolhimentos institucionais.

Fonte: Senso Suas

A quantidade de acolhimentos totaliza 7.360, com maior concentração na Região Sudeste, se-
guida das Regiões Sul e Nordeste. São mais de 150 mil pessoas acolhidas no momento do le-
vantamento pelo Censo Suas, como pode ser contatado na tabela a seguir:
São várias as questões a serem pautadas com relação à proteção social de alta complexidade,
especialmente diante da necessidade de implementação de novas modalidades, como família
acolhedora, guarda subsidiada e hotel social. Em 2015 foram realizadas pactuações que per-
mitiram importantes reordenamentos e a regionalização que segue incompleta. Daí a impor-
tância da retomada desta agenda, tanto de revisão de valores de referência, tendo em vista os
custos, como regionalização, o que implica os estados, e implantação de novas modalidades
de proteção social de alta complexidade. A indicação da necessidade de implantação de novas
unidades/modalidades fica mais evidente quando da apuração da atual cobertura:
Tabela 10 – Tipos de Acolhimento Institucional.

Fonte: Senso Suas


146 | CENÁRIO SOCIOECONÔMICO, VIOLÊNCIAS, PANORAMA DO SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA
E A AGENDA CONSTRUÍDA NOS ENCONTROS DO CONGEMAS
Os dados permitem alguns destaques: número instituições de longa permanência para idosos,
o que precisa ser mais bem avaliado no contexto de implantação da política de cuidados, no-
vas modalidades, como família guardiã, e serviços híbridos; Número reduzido de abrigos para
famílias vítimas de desastres e de casas de passagem.
Diante das recorrentes crises e emergências diante das mudanças climáticas, é necessário pen-
sar novas soluções, como aluguel social, e regulamentar a atuação do SUAS em emergências e
catástrofes; A região Sudeste possui um volume maior de unidades, o que é esperado por ser
a região mais populosa; Baixa cobertura de República, aumento de Casa-lar, o que é positivo,
considerando as orientações técnicas na área.
Tabela 11 – Atendimentos - CRAS.

Fonte: Relatório Mensal de Atendimento, 2023.

Observa-se um número significativo de atendimentos particularizados nos CRAS, totalizando


mais de aproximadamente 40 milhões, e de benefícios eventuais, que totalizaram aproxima-
damente 6 milhões. Realidade que indica os efeitos da pandemia, ampliando demandas por
atendimentos mais urgentes. Observa-se um número baixo de casos de trabalho infantil, con-
siderando o desenho do AEPETI, assim de casos para CREAS, tendo em vista a baixa desta uni-
dade cobertura nas regiões, sejam unidades locais ou regionais.
Outro indicador que chama atenção é a quantidade de novos casos de famílias do bolsa família
totalizar 422.094 diante de 21 milhões de beneficiários. A relação integrada entre serviços e be-
nefícios, impõe o desafio de ampliar as condições de acesso de beneficiários aos serviços socio-
assistenciais, especialmente ao PAIF. É preciso aprimorar, ainda, as formas de registro dos aten-
dimentos/acompanhamento e os critérios de priorização dada a capacidade de atendimento.

147 CENÁRIO SOCIOECONÔMICO, VIOLÊNCIAS, PANORAMA DO SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA


E A AGENDA CONSTRUÍDA NOS ENCONTROS DO CONGEMAS
Tabela 12 – Pandemia e Atendimentos - CRAS

Fonte: Relatório mensal de atendimento, 2023

Observa-se uma queda de novas famílias e públicos prioritários para acompanhamento no PAIF.
O número de atendimentos particularizados e de benefícios eventuais se mantiveram altos, dada
a situação de choque e emergência. Já em 2022 observa-se uma tendência de normalização de
acompanhamento do PAIF e de encaminhamentos, mas, ainda assim, ocorre percebe-se uma
baixa capacidade para atendimento planejados e sistemáticos.
Tabela 13 – Relação entre Pobreza, PBF e CRAS

Fonte: RMA e Assistência Social nos Municípios.

A análise da relação entre pobreza, volume de bolsa família e volume de CRAS, permite consta-
tar que em geral, estados com maiores taxas de pobreza tiveram maior taxa de PBF, a exemplo
do Maranhão, já estados com menores taxas de pobreza extrema tiveram menor taxa de PBF,
como Santa Catarina. Em todos os estados a taxa de CRAS é baixa considerando a demanda
potencial para Cadastramento, acompanhamento e acesso a serviços.
148 | CENÁRIO SOCIOECONÔMICO, VIOLÊNCIAS, PANORAMA DO SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA
E A AGENDA CONSTRUÍDA NOS ENCONTROS DO CONGEMAS
Tabela 14 – Atendimentos - CREAS

Fontes: Relatório Mensal de Atendimento, 2023.

A totalização dos atendimentos realizados nos CREAS permite identificar um número significa-
tivo de atendimentos psicossociais particulares realizados, novos casos de situação de violên-
cia no PAEFI e de abordagens, mas existe uma tendência de baixa capacidade de atendimento
de novas demandas e de acesso da população aos serviços do CREAS, especialmente em situ-
ações de trabalho infantil.

Tabela 15 – Pandemia e Atendimentos - CREAS

Fonte: Relatório Mensal de Atendimento, 2023.

Wesley Morau
Observa-se uma tendência de queda nos
atendimentos e acompanhamentos nos
CREAS, o que se mantém em 2022, com
exceção de novos atendimentos de pesso-
as vítimas de violência e atendimentos psi-
cossociais realizados, que totalizou 3.571.671
milhões.
Uma análise comparativa entre os atendi-
mentos no CREAS e casos de violência per-
mite identificar os seguintes resultados:

149| CENÁRIO SOCIOECONÔMICO, VIOLÊNCIAS, PANORAMA DO SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA


E A AGENDA CONSTRUÍDA NOS ENCONTROS DO CONGEMAS
Tabela 16 – Violências e cobertura de CREAS

Fonte: RMA e SINAN.

A análise comparativa entre os registros de casos de violência registrados no Sistema de Infor-


mação de Agravos de Notificação – SINAN, e os casos registrados no Relatório Mensal de Aten-
dimento possibilitam identificar que em algumas regiões os números se aproximam. No en-
tanto, são muitos os desafios com relação às redes de proteção, responsabilidades dos atores
de sistemas em direitos humanos, notificação obrigatória, formas de registro, categorização
das violências, subnotificação e fluxos operacionais específicos. Evidentemente que nem todos
os casos de violência são encaminhados aos CREAS. Ainda assim, a quantidade de CREAS é
insuficiente para atender às demandas locais e regionais.
A análise comparada entre quantidade de CREAS e violências registradas no SINAN permite con-
cluir que os estados com maior taxa de violências intrafamiliares registradas no RMA tenderam a
ter uma maior taxa de CREAS por 100 mil habitantes. É preciso aprimorar as formas de registro e
identificação das violações locais/regionais para adoção de critérios de expansão de CREAS.
Tabela 17 – Relação entre Violências, RMA e CREAS

Fontes: RMA e SINAN


150 | CENÁRIO SOCIOECONÔMICO, VIOLÊNCIAS, PANORAMA DO SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA
E A AGENDA CONSTRUÍDA NOS ENCONTROS DO CONGEMAS
Contata-se que existem diferenças significativas entre as taxas de violência registradas no SI-
NAN e no RMA, especialmente nos estados do Rio de Janeiro, Distrito Federal e Tocantins; taxa
maior de CREAS nos estados de Alagoas, Mato Grosso do Sul e Sergipe; não necessariamente
os estados com maiores taxas de violência são os com maior número de CREAS; a comparação
entre os indicadores permite aferir que é baixa a quantidade de CREAS em todo o Brasil, espe-
cialmente considerando as demandas provenientes da proteção social básica, e do sistema de
justiça e demais atores das redes de proteção.
Tabela 18 – Atendimentos nos Centros Pop

Fonte: RMA e CadÚnico.

Tabela 19 – Acolhimento para pessoas em situação de rua

Fonte: Censo SUAS

As regiões mais populosas tenderam a ter mais pessoas em situação de rua, com um número relati-
vamente elevado na região Sul dada sua população e baixo na região Norte. Destaca-se, ainda, o bai-
xo número de atendimentos no Centro POP para cada pessoa em situação de rua na região Norte.
Com relação aos acolhimentos são mais de 30 mil pessoas com trajetória de rua acolhidas no
Brasil, sendo mais da metade na região Sudeste. Entretanto, as demandas indicadas no Cadas-
tro Único revelam uma disparidade grande entre capacidade de atendimento e pessoas em
situação de rua com Cadastro Único, como analisado a seguir.
Tabela 20 - Pandemia e atendimento nos Centros Pop

Fonte: RMA
Observa-se que 2020, contexto de pandemia, ocorreu uma moderada redução nos atendimentos nas
regiões Sul e Sudeste, nas demais regiões do país houve um aumento. Importante observar que a
quantidade de Centros Especializados de Atendimento à População em Situação de Rua não acom-
panha a tendência de aumento de pessoas em situação de rua, especialmente durante a pandemia.
Com relação à população em situação de rua outros dados merecem destaque. Em 2022, havia
236.400 pessoas em situação de rua inscritas no Cadastro Único para Programas Sociais (Cadas-
tro Único), ou seja, 1 em cada 1.000 pessoas no Brasil estava vivendo em situação de rua. Quanto
à distribuição no território, 3.354 dos municípios brasileiros tinham pelo menos uma pessoa em
situação de rua cadastrada em dezembro 2022, o que corresponde a 64% do total de municípios
151 | CENÁRIO SOCIOECONÔMICO, VIOLÊNCIAS, PANORAMA DO SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA
E A AGENDA CONSTRUÍDA NOS ENCONTROS DO CONGEMAS
do país. Os 10 municípios com maior número de Humanos e Cidadania, Saúde e Ministério das
PSR concentram juntos 48% da população em Cidades, sejam acionados para no tempo deter-
situação de rua do país. São eles: São Paulo, Rio minado apresentarem planos emergenciais para
de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília, Salvador, For- as respostas relativas a cada política pública. Ou-
taleza, Curitiba, Porto Alegre, Campinas e Floria- tro ponto essencial, é que todas as intervenções
nópolis (BRASIL, 2023). e serviços a serem implantados sejam seguidos
de cofinanciamento federal e estadual, observan-
A cobertura de serviços para população em situ-
do-se, inclusive, o modelo federativo das políticas
ação de rua é absolutamente insuficiente. Rea-
sociais pós Constituição Federal de 1988.
lidade que gerou a determinação do Supremo
Tribunal Federal, por meio do Ministro Alexandre A situação de rua é uma violação e direitos que
de Moraes, em 25 de julho, que o governo federal releva uma grave crise nos laços de convivência
elabore, em até 120 dias, um plano de ação e de familiar e comunitária, sendo determinada por
monitoramento para que seja implementado no múltiplos fatores. Trata-se de uma expressão da
país a Política Nacional para a População em Si- questão social, o que demanda atuação de mais
tuação de Rua29. de uma política setorial, notadamente a assistên-
cia social, a saúde, a saúde mental, a habitação,
O plano deverá contemplar a elaboração de um
o trabalho e emprego. É indispensável que todas
diagnóstico atual da população em situação de
as etapas do processo, desde o diagnóstico, até
rua, com identificação do perfil, procedência e
a implementação das ações, haja envolvimento
de suas principais necessidades. Deverá conter,
e corresponsabilidade do conjunto das políticas
ainda, mecanismos para mapear a população
públicas, nas três esferas de governo, podendo,
em situação de rua no Censo do IBGE, meios de
deste modo, ser criado uma comissão interseto-
fiscalização de processos de despejo e de reinte-
rial com a responsabilidade de formular propos-
gração de posse no país e a elaboração de medi-
tas a serem submetidas às respectivas instâncias.
das para garantir “padrões mínimos de qualida-
No caso da Assistência Social recursos precisam
de nos centros de acolhimento”.
ser ampliados, modalidades e expansões devida-
Os municípios defendem, por meio do Conge- mente pactuadas para a ampliação e qualifica-
mas, os respectivos Ministérios, notadamente de ção dos serviços.
Desenvolvimento e Assistência Social, Direitos

4. Agenda do SUAS
reafirmada nos Encontros
Regionais do Congemas

Os painéis temáticos, os debates e as cartas produzidas nos Encontros Regionais do Conge-


mas permitiram identificar desafios comuns e específico, quanto às particularidades regionais.
No encontro do Congemas da Região Sul, que
reuniu 453 pessoas, houve destaque para o
necessário aprimoramento dos mecanismos
de execução dos recursos, garantia de susten-
tabilidade orçamentária e financeira, assim
como o efetivo cumprimento das correspon-
sabilidades dos entes federados, a exemplo
da regionalização e cofinanciamento estadu-
al. Ressaltou-se a necessidade de pagamento
dos recursos federais ordinários devidos aos
municípios, tendo em vista a aplicação da
Portaria nº 2362/19. Além
da demarcação da necessária expansão de
serviços considerando o porte dos municí-
pios, um tema específico que se destaca na
agenda apontada no Sul é a relação com o
sistema de justiça, quando a composição das
equipes específicas, a atuação interinstitu-
cional e intersetorial.

152 | CENÁRIO SOCIOECONÔMICO, VIOLÊNCIAS, PANORAMA DO SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA


E A AGENDA CONSTRUÍDA NOS ENCONTROS DO CONGEMAS
Compareceu, ainda, a necessidade de um olhar A Região Centro-Oeste é marcada por uma di-
especial para os municípios de pequeno porte, versidade cultural significativa, especialmente
especialmente em função da concentração da pela presença significativa de povos indíge-
pobreza no campo, além de temas emergen- nas e quilombolas, o que demanda a criação
tes, como as estratégias e serviços para aten- de orientações e protocolos específicos. Tra-
dimento a migrantes, refugiados e apátridas. ta-se de uma região com economia mais im-
A região sul possui indicadores socioeconô- pulsionada pelo agronegócio, com desafios
micos mais favoráveis, mas enfrenta desafios ambientais e sociais. As características territo-
intraurbanos que revelam os efeitos das desi- riais ganharam centralidade no debate sobre
gualdades e precisam, assim como nas demais novos critérios para expansão de serviços e re-
regiões, de estratégias específicas. Por último, gionalização.
ressalta-se a urgência da regulamentação e
orientação técnica do papel do SUAS nas emer-
gências e catástrofes, diante das recorrentes
enchentes decorrentes das crises climáticas.

No Encontro Regional da Região Centro Oes-


te, que reuniu mais de 435 participantes, fo-
ram debatidas prioridades na defesa do SUAS,
com destaque para necessidade de ampliação
de recursos, com adoção de novos critérios de
cofinanciamento, considerando a realidade
das regiões, como as múltiplas dimensões da
pobreza. Apontou-se a importância da reto-
mada da educação permanente, com foco na
execução de recursos, assim como a definição
de regulações que melhor orientem a relação
do SUAS com o sistema de justiça. Houve um
importante debate sobre justiça tributária, a
necessária vinculação de recursos mediante a
aprovação da PEC 383/17, proposta comum em
todas as regiões, com destaque, ainda, para a
defesa da desvinculação dos gastos com pes-
soal para que não sejam computados no limite
prudencial da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Dentre as propostas aprovadas, destaca-se,
como aspecto específico, a defesa do aprimo-
ramento do Relatório Mensal de Atendimento.

153 | CENÁRIO SOCIOECONÔMICO, VIOLÊNCIAS, PANORAMA DO SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA


E A AGENDA CONSTRUÍDA NOS ENCONTROS DO CONGEMAS
A Região Centro-Oeste é marcada por uma diversidade cultural significativa, especialmente
pela presença significativa de povos indígenas e quilombolas, o que demanda a criação de
orientações e protocolos específicos. Trata-se de uma região com economia mais impulsiona-
da pelo agronegócio, com desafios ambientais e sociais. As características territoriais ganha-
ram centralidade no debate sobre novos critérios para expansão de serviços e regionalização.
No Encontro do Congemas da Região Norte, que reuniu 766 participantes, compareceu,
centralmente, a defesa do pleno cofinanciamento de todas as unidades de assistência so-
cial, com garantia de sustentabilidade e ampliação. Outras pautas específicas podem ser
destacadas, como a definição de recursos específicos para o atendimento a migrantes,
de acordo com as demandas existentes, o aprimoramento das regulações do SUAS quan-
to à gestão do trabalho, composição de equipes de referência e critérios para instalação de
unidades públicas e serviços, além do aperfeiçoamento dos sistemas de gestão do MDS.

Importante destacar que na Região Norte compareceu a defesa do Ministério de Desenvol-


vimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, sem separação entre serviços e be-
nefícios, tendo em vistas às ameaças que naquele momento circulam na imprensa. Por últi-
mo, ressalta-se a defesa da incorporação dos pactos dos Líderes dos Estados no Tratado de
Cooperação Amazônica – TCA, reunidos na cidade de Belém do Pará, no dia 9 de agosto de
2023, especialmente quanto ao desenvolvimento de “formatos de serviço de atendimento
que identifiquem e tratem fenômenos de vulnerabilidade em comunidades específicas, re-
conhecendo a necessidade da participação plena e efetiva dessas populações nos proces-
sos decisórios, buscando o reconhecimento das suas particularidades e evitando impactos
negativos em seus modos de vida; e a promoção de “ações para proteger e garantir os di-
reitos humanos dos povos indígenas e seus direitos coletivos sobre seus territórios e terras
localizados na Região Amazônica, especialmente os povos indígenas isolados e em contato
inicial, fortalecendo os recursos disponíveis e as políticas públicas adaptadas a essa região”.

A Região Norte é a maior entre as cinco regiões do país, ela abriga a maior parte da Flores-
ta Amazônica, sendo cortada por uma complexa rede fluvial, que desempenham um papel
fundamental na vida das comunidades locais, no transporte e na economia regional. No en-
tanto, enfrenta desafios ambientais e territoriais significativos. As particularidades territoriais
precisam ser consideradas para a viabilização das provisões, o que inclui a revisão de crité-
rios de cofinanciamento e territorialização de serviços. Ainda, a Região Norte abriga nume-
rosas comunidades indígenas, com importante diversidade e potencialidades socioeco-
nômicas. A diversidade humana exige um SUAS igualmente diverso e com capacidade de
adaptar serviços e benefícios considerando as diversidades e expressões da desigualdade.

154 | CENÁRIO SOCIOECONÔMICO, VIOLÊNCIAS, PANORAMA DO SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA


E A AGENDA CONSTRUÍDA NOS ENCONTROS DO CONGEMAS
No Encontro do Congemas na Região Nordes- No Encontro da Região Sudeste, que reuniu
te, que contou com 1.239.300 participantes, 56700 participantes, alguns pontos da agen-
compareceu com ênfase a necessidade do da do SUAS podem ser destacados por sua
enfrentamento das desigualdades sociais e especificidade em relação aos demais encon-
regionais, e a promoção da diversidade e das tros, como a retomada imediata do Pacto de
potencialidades locais/regionais. O que se co- Aprimoramento do SUAS, ancorado no II Pla-
loca como desafio central, é a plena universa- no Decenal de Assistência Social (2016/2026);
lização do SUAS considerando aspectos como a construção de normas e diretrizes que
o Semi Árido, e agenda urgente de superação apoiem os municípios na criação da mesa de
da fome e da pobreza, tendo em vista a reali- diálogo permanente entre o SUAS e o Siste-
dade agravada nos últimos anos, o que requer ma de Justiça; a retomada da expansão de
uma atuação mais integrada entre benefícios serviços, da regionalização; a retomada do
e serviços e com as demais políticas socais. IGDSUAS, do AEPETI e do ACESSUAS; revisão
Na região Nordeste ganha centralidade a de- da NOB SUAS RH / 2006, de forma a atender
fesa da efetivação do Sistema de Segurança a atual conjuntura sem que haja prejuízo nas
Alimentar e Nutricional, viabilizando acesso ofertas socioassistenciais; e a indução aos
ao alimento saudável de baixo custo e aces- Entes Federados (União, Estados e Municí-
so a água potável, o que se coloca como cen- pios) quanto ao piso salarial dos trabalhado-
tral no contexto de implantação do Brasil Sem res do SUAS, realização de concurso público.
Fome. Entretanto, afirma-se a defesa intran- Neste Encontro houve a defesa intransigen-
sigente da consolidação Sistema Único de te da permanência institucional do Ministé-
Assistência Social - SUAS, como modelo de rio do Desenvolvimento e Assistência Social,
atendimento de Assistência Social Pública na Família e Combate à Fome, sem que haja
efetivação da proteção social não contributiva separação entre o programa bolsa família e
em todo o país. Para tanto, é preciso conside- o SUAS, áreas estratégicas e fundamentais
rara, ainda, o fato de a região Nordeste con- para consolidar a Proteção Social no Esta-
centrar um contingente significativo da popu- do Brasileiro, por meio dos Serviços, progra-
lação, ter uma realidade de pobreza, fome e mas, projetos e benefícios socioassistenciais,
concentração de renda, demandando políti- na direção de um Brasil justo e igualitário.
cas nacionais e regionais com o propósito de A região Sudeste é a região mais populosa do
redução das desigualdades e fomento das po- Brasil, com indicadores econômicos mais fa-
tencialidades sociais, econômicas e culturais. voráveis, entretanto, persistem desafios rela-
cionados à desigualdade social e demandas
por proteção social que considerem as mu-
danças demográficas em curso, fluxos migra-
tórios, além da grande diversidade existente
na região.

155 | CENÁRIO SOCIOECONÔMICO, VIOLÊNCIAS, PANORAMA DO SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA


E A AGENDA CONSTRUÍDA NOS ENCONTROS DO CONGEMAS
5. Considerações finais:
prioridades na
reconstrução do SUAS

A reconstrução do SUAS no Brasil requer a retomada da capacidade de o Estado proteger


a população, integrar entes federados no propósito, típico do pacto federativo cooperativo,
de garantir as provisões previstas legalmente e em construção no âmbito da proteção social
distributiva. Por isso a urgência da qualificação dos meios necessários para a plena universa-
lização da cobertura do SUAS, considerando as diversidades e atuando com novas estraté-
gias, no enfrentamento das desigualdades e opressões geradoras das violações de direitos.
O parâmetro para avaliação do SUAS é a agenda ampla em direitos humanos, por ser o parâ-
metro da luta social pela dignidade humana, por expressar as lutas concretas que fortalecem a
compreensão dos direitos como conquistas sociais cotidianas contra as opressões e desigual-
dades, na perspectiva emancipatória, a partir de projetos ético-políticos que integram projetos
societários.

É indispensável a retomada da capacidade de o Estado prover serviços e benefícios, proteção e


cuidado, o que implica a construção de um amplo, integralizado e universal sistema de prote-
ção social, visando a prevenção e a interrupção de violações, de ciclos de pobreza, a superação
da fome, com efetiva redução das desigualdades; a identificação e o fomento de potencialida-
des territoriais, da diversidade humana; a implementação de reformas e políticas que combi-
nem eliminação das desigualdade, governança democrática e participação deliberativa, o que
implica financiamento público adequado às coberturas planejadas; ações transformadoras de
vidas, com impactos positivos nos territórios, no campo e na cidade, na direção da emancipa-
ção humana.

Os Encontros regionais permitiram identificar desafios e gargalos históricos no SUAS, mas,


também, oportunidades de inovações institucionais, como a regulação de novos serviços, ser-
viços híbridos e novas modalidades de proteção, assim como novos desenhos de proteção e
serviços aderentes às territorialidades, como CRAS Indígena, CRAS Quilombola, novas organi-
zações de defesa de direitos vinculadas ao SUAS, fomento de novas economias, a exemplo da
economia do cuidado, com uso de dispositivos que permitam o acesso ao fundo público, agen-
tes comunitários do SUAS integrantes de fórum de usuárias/os, educação popular, entre outras
inovações que permitam que o SUAS seja descolonizado, diverso, inclusivo e transformador de
vidas e territórios.

A maioria das provisões no âmbito do SUAS são garantidas pelos municípios. São os municípios que
mantém os serviços sem necessariamente contar com recursos e recursos suficientes para cobrir
os custos do que está instalado. Daí a importância de avanços em estudo de custos, na realização
de um diagnóstico da atual cobertura e das desproteções, visando estabelecer novos patamares
e critérios de pactuação e expansão, que, inclusive considere as particularidades regionais/locais,
as diversidades, como a realidade de municípios do Semi Árido, da Amazônia Legal, de fronteiras.
É fundamental rever algumas corresponsabilidades e fortalecer o papel dos estados na re-
lação interfederativa. É uma prioridade para os municípios que o ente estado assuma for-
temente seu papel no SUAS, sem programas paralelos e pontuais. A regularidade no finan-
ciamento e princípio das corresponsabilidades, também é uma exigência para os estados.

156| CENÁRIO SOCIOECONÔMICO, VIOLÊNCIAS, PANORAMA DO SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA


E A AGENDA CONSTRUÍDA NOS ENCONTROS DO CONGEMAS
Pensar o futuro das cidades requer o debate sobre a estruturação de um amplo e permanen-
te sistema de proteção social, soluções inovadoras e potentes para acabar com a fome e a
pobreza, reduzir desproteções e desigualdades. As cidades do futuro dependem de ações no
presente, do bom aproveitamento dos avanços tecnológicos para o conjunto da sociedade; de
serviços públicos fortalecidos e parcerias multisetoriais ampliadas; de pacto federativo eficaz.
O SUAS voltou, com toda a vitalidade que vem da força da resistên-
cia de toda sua rede de atores, mas num novo contexto que inevitavelmen-
te requer políticas sociais mais potentes e acompanhadas de dispositivos reduto-
res de desigualdades, considerando as particularidades e diversidades regionais/locais.

A pandemia confirmou a convicção da falência do receituário neoliberal e da inevitabilida-


de de sistemas públicos estatais, de recursos sustentáveis e permanentes, de serviços e be-
nefícios suficientes para o atendimento das demandas da população, especialmente a que
vive em contextos mais desiguais que engendram vulnerabilidades e violações de direitos.
A agenda do SUAS requer um conjunto de decisões que resultem na mo-
dernização do SUAS, visando impactos sociais; desprecarização das condi-
ções de trabalho e das unidades de assistência social, com retomada da implan-
tação da educação permanente, da gestão do trabalho e de concursos públicos.

No âmbito do financiamento é preciso intensificar as lutas e coalizões em torno da agen-


da pela revogação da EC 95/16 (teto dos gastos), da necessidade de vinculação orçamen-
tária em cada esfera de governo, com aprovação da PEC 383/17, de reforma tributária e ou-
tros mecanismos que garantam a sustentabilidade do SUAS, e efetiva indissociabilidade
entre benefícios e serviços territorializados. É preciso, ainda, avançar na proposição da des-
vinculação dos recursos orçamentários relativos à assistência social das restrições em gas-
tos, conforme definição no arcabouço fiscal, e sobre a necessária alteração legislativa do
percentual de gastos com pessoal previsto na Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Com-
plementar nº 101/2000), na qual a assistência social é reconhecida como serviço essencial.

157 | CENÁRIO SOCIOECONÔMICO, VIOLÊNCIAS, PANORAMA DO SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA


E A AGENDA CONSTRUÍDA NOS ENCONTROS DO CONGEMAS
O governo federal, por meio do MDS, recupe-
rou nos 100 primeiros dias a quase totalidade
do orçamento aprovado pelo Conselho Na-
cional de Assistência Social. A aprovação da
PEC da Transição, reforçou o orçamento das
políticas sociais e abriu uma janela de opor-
tunidade para o fim do Teto de Gastos. Já
são sete anos de Teto de Gastos efeitos des-
trutivos do orçamento público. Além de alte-
rar os mínimos alocados para saúde e edu-
cação, que levaram a uma queda expressiva
de recursos para estas áreas, o Teto afetou
principalmente as despesas discricionárias
relacionadas à garantia dos demais direitos,
destruindo o orçamento de áreas essenciais
como assistência social, combate ao trabalho
infantil e políticas de fiscalização ambiental.
Diante das destruições recentes, é mais do
que urgente fortalecer a democracia para que
modelos conservadores, eugenistas, merito-
cráticos, de políticas socais, não sejam mais
reproduzidos. Democracia compreendida
com uma conquista inegociável e caminho in-
dispensável para a garantia de condições polí-
ticas e institucionais para a materialização dos
direitos na vida da população, o que implica a
defesa intransigente do Estado Democrático
de Direito, contra toda forma de autoritarismo,
racismo, xenofobia, misoginia e machismo,
capacitismo, aporofobia, políticas de morte,
entre tantas outras expressões dos precon-
ceitos, opressões, desigualdades e violências.
Tais processos são mais amplos que o SUAS,
mas uma nova ética se coloca como o gran-
de desafio e os atores do SUAS podem cola-
borar neste processo de afirmação da defesa
dos direitos humanos, da vida, da dignidade,
do bem viver! Por isso a agenda do SUAS voca-
liza a necessidade de reformas estruturantes
e a universalização dos direitos, para a efeti-
va redução das desigualdades, especialmen-
te sociais, raciais e de gênero. Coloca-se como
desafio coletivo, a partir do protagonismo da
sociedade civil, de novos sujeitos coletivos
atuantes no SUAS e em sociedade, a constru-
ção de uma nova cultura, políticas econômi-
cas integradas com as sociais, na direção de
uma sociedade ambientalmente sustentável,
humanamente diversa e socialmente justa!

158 | CENÁRIO SOCIOECONÔMICO, VIOLÊNCIAS, PANORAMA DO SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA


E A AGENDA CONSTRUÍDA NOS ENCONTROS DO CONGEMAS
Referências Sistema Único de Assistência Social: significado
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