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Humboldt 104 Mediação artística 7/76

Carmen Mörsch Goethe-Institut 2011

Trabalhar na contradição
A intermediação artística como prática crítica. Uma concepção
autorreflexiva e crítica em contraposição a uma pedagogia museológica
afirmativa e reprodutiva.

Oficina durante simpósio sobre a mediação da arte contemporânea, Hamburgo, maio de 2005.
Concepção e realização: Nanna Lüth / Ulrike Stutz. Foto © Nanna Lüth

Kunstcoop© e seu nascimento a partir do espírito da também museus e instituições promotoras de exposições foram
geração de 68 Em 1999 fundei, em Berlim, junto com seis ou- obrigadas a refletir sobre sua composição hegemônica e permitir
tras artistas, o coletivo Kunstcoop©. O princípio desse grupo era perguntas sobre a quem no fundo pretendiam servir e a quem re-
desenvolver a intermediação artística como prática autorreflexi- presentar com suas atividades de exposição, de coleção e de pes-
va, participativa e crítica das instituições. quisa.
Éramos influenciadas pela ciência das artes e pela museolo- A colaboração das seções de pedagogia destes com essas for-
gia de cunho crítico e feminista, pela crítica artística das institui- ças da sociedade civil e com o setor educacional era, conforme se
ções dos anos de 1990, assim como por projetos artísticos em co- poderia observar com ceticismo, um caminho óbvio e também fa-
laboração com diferentes públicos e em pontos de interseção com vorável em termos de custos para apaziguar as tensões levan-
o ativismo, que na maior parte das vezes são classificados sob tadas com essas perguntas sem precisar mudar os museus em
conceitos como “Collaborative Art” (Grant Kester) ou “New Gen- sua essência. Ao mesmo tempo, no entanto, com isso se abriram
re Public Art” (Suzanne Lacy). Além disso, nos ocupávamos com na intermediação artística institucional espaços para artistas e
conceitos da pedagogia artística que repensavam a matéria es- pedagog@s* que uniam o trabalho por uma sociedade mais jus-
colar levando em consideração as tendências atuais da arte – por ta a uma prática artística e educativa e ao aproveitamento dos re-
exemplo, sob os aspectos de performatividade e desconstrução. cursos dos museus. Surgiu assim o perfil dos “Artists – Educators”,
Também o próprio campo da intermediação artística museológi- cuj@s protagonistas politizad@s conseguiram às vezes expandir a
ca nos ofereceu orientação. Nosso olhar se dirigia, nesse aspec- prática dos museus no decorrer das últimas quatro décadas. Pro-
to, sobretudo à Inglaterra e à América do Norte, onde, sob a pres- jetos atuais como o “Tate Encounters” em Londres, no qual se in-
são dos movimentos de direitos humanos, desde os anos de 1970 vestiga, com modos de abordagem artísticos e sociológicos, se e
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como os displays da Tate Britain produzem “Britishness”, dificil- vo, experiências “sensoriais”, portanto não intelectuais; devemos
mente poderiam ser imaginados sem a tradição da intermediação nos “sentir em casa” no museu e é por isso que todos se esforçam
artística fundamentada na crítica. Exatamente como acontece, ali- em facilitar o acesso físico e mental e a compreensão dos conte-
ás, com o Youth Council da National Gallery of Ontario, em Toron- údos autorizados institucionalmente. E para isso passam a contri-
to, no qual jovens, fazendo sua própria organização do programa, buir inclusive métodos baseados no construtivismo pedagógico,
se confrontam com as exposições desta que é a maior e mais re- como o princípio dialógico ou a autorregulação no aprendizado
presentativa coleção de arte do país. O Youth Council intervém fundamentado objetualmente; mas são usados também meios in-
nas exposições convidando, por exemplo, um grupo performático terativos e, mais recentemente, das mídias sociais. Isso não pode
de Inuítes a construir seu palco em meio a uma exposição etno- iludir ninguém, no entanto, de que um questionamento fundamen-
gráfica de arte inuíte, para envolver @s visitantes em conversas tal e uma mudança e um uso diferente e autorregulado do museu
sobre racismo e exotismo no Canadá e assim interromper espon- por parte dos aprendizes não é pretendido expressamente nessa
taneamente sua contemplação dos artefatos. Ou então ele orga- compreensão de intermediação da arte (o que não significa que
niza eventos de informação na galeria e projetos artísticos sobre isso não acabe acontecendo de quando em vez e em certa medida
a violência policial contra jovens e defende diante do tribunal ati- seja inclusive permitido). A intermediação é compreendida nesse
vistas que entraram em conflito com a lei, trazendo a prova peri- módulo de jogo dominante como estando a serviço da instituição
cial autorizada pelo museu de que no caso da atividade desenvol- e do público, sendo que o que se pretende é legitimar a primeira
vida pel@s ativistas se trata de arte. e aumentar o segundo.
Na Alemanha houve apenas alguns poucos precursores seme- O interesse de, pelo contrário, esboçar a intermediação como
lhantes. Mas nossa iniciativa também não seria concebível sem a uma prática que questiona o museu e em última instância tam-
história do movimento de 1968 na Alemanha. Ouso afirmar que bém o transforma, tem motivações sérias. Existem estudos so-
mesmo vinte anos mais tarde não existia no âmbito dos países de bre como a história das instituições que promovem exposições
língua alemã em nenhum outro lugar o espaço institucional para está intimamente vinculada ao colonialismo e à constituição e ma-
reunir deliberadamente em uma aula expositiva jovens artistas nutenção das sociedades de cunho norte-ocidental estabelecidas
com gosto pela desconstrução artística, referências contextuais e conforme os fundamentos da identidade nacional. Não se trata,
um interesse vital pelo trabalho educativo. O seminário no Institut portanto, de lugares genuinamente bons e inocentes de uma for-
für Kunst im Kontext (Instituto de Arte em Contexto) da Univer- mação melhor e de uma verdade mais elevada, como os museus
sität der Künste Berlin (Universidade das Artes de Berlim), onde se apresentam ao grande público. Mas são também lugares cujas
o Kunstcoop© foi fundado, era o único lugar no qual uma postu- fundações e coleções surgiram em relações de violência (sejam
ra como essa era encorajada e apoiada, porque por lá o aspecto elas histórias coloniais ou a violência de um sistema de arte or-
pedagógico raramente experimentou alguma desvalorização dian- ganizado capitalisticamente, ou ainda a ação conjunta de ambos)
te do artístico e nós, na condição de artistas, éramos instad@s a e seus displays e práticas institucionais, por outro lado, produ-
refletir acerca de nossa posição de um modo que privilegiava a zem e ajudaram e continuam ajudando a manter relações de vio-
crítica ao poder. Além disso, a única instituição artística em Ber- lência. Uma intermediação autorreflexiva reconhece sua cumplici-
lim que na época reagiu positivamente a nossa oferta de desen- dade nesses processos e se questiona acerca de possibilidades de
volver um programa de intermediação foi a Neue Gesellschaft für ação. Pois fechar os museus devido a sua dimensão vinculada ao
Bildende Kunst (NGBK, Nova Sociedade das Artes Plásticas), uma domínio e à violência poderia significar perder uma chance: jus-
associação de arte com organização democrática de base (ver o tamente devido à sua posição de poder, eles poderiam também
texto de M. Jas e W. Behrens na presente edição). A herança de ser protagonistas da mudança. E justamente devido a seu envol-
1968 nos possibilitou, em 1999, em um campo artístico de resto vimento e sua contradição, eles representam recursos importan-
posicionado de modo adverso e depreciativo ante o pedagógico, tes para um trabalho de intermediação fundamentado na crítica.
principiar nos países de língua alemã uma intermediação artística Por fim, eu diria, só um trabalho assim é que possibilita realizar
verdadeiramente informada em termos artísticos e que se com­ a visão, ora invocada por tantas vozes, do museu como “zona de
preendia criticamente. contato” (James Clifford) em uma perspectiva pós-colonial ou até
mesmo descolonizadora. Isso embora e justamente porque tam-
Sobre a pedagogia museológica afirmativa, reprodu- bém a ela são inerentes numerosas contradições, das quais men-
tiva e crítica Nós compreendíamos nosso trabalho como obje- cionarei apenas duas evidentes na parte que segue.
ção a uma imagem de artista que vive do mito do gênio masculino.
Por outro lado, nos contrapúnhamos a uma tradição afirmativa e Contradições do trabalho de intermediação funda-
reprodutiva da pedagogia museológica alemã. Para esta, trata-se mentado na crítica Por um lado há um paternalismo inesca-
sobretudo de formar o “público de amanhã” (reprodução), sedu- pável na cooperação do trabalho de intermediação museológica
zi-lo e entusiasmá-lo. O objetivo primordial é introduzir o públi- com, por exemplo, organizações do ativismo social ou grupos so-
co nos valores burgueses: o amor ao museu (afirmação) deve ser ciais desfavorecidos, uma vez que as alianças são formadas a par-
despertado. Isso, e antes de tudo o pensamento em “grupos-al- tir de uma posição que detém o poder. Por isso é necessário mui-
vo”, não por acaso foi tomado à pesquisa de mercado. Quando são to tempo e exatidão na formação de relações de cooperação e
discutidas mudanças institucionais, estas dizem respeito, nessa representação à mesma altura. A disposição para esquecer pri-
perspectiva, a possibilitar, com direcionamento otimizado e efeti- vilégios (Gayatri Chakravorty Spivak) muitas vezes bate de fren-
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te bem rápido com seus limites também no caso dos museus que prática crítica, a fim de identificar e revisar questões comuns – e
se compreendem como autorreflexivos e críticos. A legitimação a fim de começar uma iniciativa lobística a favor do trabalho na
da intermediação artística, por outro lado, hoje em dia é marcada contradição. <
quase no mundo inteiro por promessas neoliberais como a criação
Baseando-me na Teoria Queer, utilizo o sinal @ para dar a entender que não se
de forças de trabalho criativas e flexíveis, e protagonistas respon- *trata aqui de “homens” e “mulheres”, e sim de construções de gênero que extra-
sáveis por si mesmos, que não se tornarão um peso para a comu- polam a heteronormatividade. O sinal @ cria espaço para esboços que vão além
da mera divisão em dois gêneros.
nidade por causa de seu espírito inventivo formado artisticamen-
te. Entre outras, a iniciativa lobística global em prol da educação
cultural iniciada pela Unesco em 2005 levou a uma rápida expan-
são e aceitação dessas justificativas, que dificilmente podem ser
conciliadas com uma abordagem crítica da intermediação artísti- Copyright:
ca – e ao mesmo tempo também esta é dependente dos financia- Goethe-Institut e. V., Humboldt Redaktion
mentos e outros recursos adquiridos a partir desses argumentos. Dezembro 2011
A atualidade e a relevância social da intermediação artística fun-
damentada na crítica está, assim eu afirmaria, entre outras coisas Autora:
justamente no fato de não nivelar nem esconder tais contradições Carmen Mörsch (1968), artista e mediadora de arte, dirige
indissolúveis, mas sim em transformar as mesmas em objeto de ­desde 2008 o Institute for Art Education da Escola Superior de
revisão e de debate. Artes de Zurique. No âmbito da mediação de arte e da educa-
Entrementes alguns museus reconhecem o potencial de uma ção cultural, vem realizando projetos, pesquisando e publican-
intermediação assim construída para a própria sobrevivência. Em do desde 1995. Atualmente é responsável pelo projeto de me-
vez de se sentir ameaçados por ela, eles passam a lhe creditar diação cultural da Pro Helvetia Fundação Suíça para a Cultura.
proeminência na condição de componente da prática institucional.
Mas o reconhecimento institucional, fundamentalmente digno Tradução do alemão:
de ser saudado, não leva em todos os casos a um fortalecimen- Marcelo Backes
to da posição da intermediação. Assim se pode observar interna-
cionalmente, desde 2007, sob o mote “Educational Turn in Cura-
ting”, um interesse mais uma vez desperto do campo da arte pela
pedagogia que incorpora o saber desenvolvido já há várias déca-
das na intermediação artística fundamentada na crítica, sem ver
@s intermediári@s como protagonistas relevantes. Um exemplo
atual para o Educational Turn in Curating parece ser o Encuentro
Internacional de Medellin (www.mde11.org), que ocorrerá em se-
tembro de 2011, concebido sob o título geral de “Enseñar y apren-
der. Lugares del conocimiento en el arte”. Estou curiosa para ver
de que modo o encontro incluirá a expertise do setor de interme-
diação do Museo de Antioquia, que é o anfitrião e cujo trabalho
é um exemplo claro e interessante para algumas das abordagens
aqui expostas. [O artigo foi escrito alguns meses antes do even-
to, N. d. T.]

Perspectivas: desejos e ­esperanças Há algum tempo é


possível constatar o surgimento de um número crescente de cole-
tivos que se dedicam ao desenvolvimento e à pesquisa de uma in-
termediação artística desconstrutivo-artística e crítica (por exem-
plo, trafo.K em Viena, eck_ik Büro für Arbeit mit Kunst em Berlim,
microsillions em Genebra ou Transductores na Espanha, para ci-
tar apenas alguns poucos em minha vizinhança mais próxima). A
Initiative for Art Education da Unesco, assim como a International
Society for Education ­through Art (INSEA, Sociedade Internacional
para a Educação através da Arte) contribuíram, a despeito da crí-
tica insinuada acima, para que o campo profissional daquel@s que
praticam a intermediação artística se compreenda como profes-
sional community global e comece a se unir em rede.
Eu desejaria que nos próximos anos fosse possível, sob es-
ses pressupostos, principiar alianças internacionais com agentes
de intermediação artística que compreendem seu trabalho como

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