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Tenho tanto sentimento

O poema que se inicia com "Tenho tanto sentimento", é um poema ortónimo tardio de
Fernando Pessoa, escrito em 19/9/1933.

Fernando Pessoa ficou conhecido, mesmo já entre os seus contemporâneos, como um poeta
iminentemente racional, frio, regido pela inteligência. E é na sua poesia ortónima (escrita em
seu próprio nome) que mais transparece esta mesma lógica. Os poemas ortónimos são, em
regra, os poemas mais rígidos de Pessoa, e nos quais a emoção entra menos, sendo dada uma
grande prevalência à economia de palavras e ao uso regrado das figuras de estilo.

Mas isto não quer dizer que Pessoa seja sempre racional - e que esteja certo aquele racíocinio
anterior. Há que recordar o que o próprio Pessoa disse sobre a sua escrita ortónima (da
famosa carta a Casais Monteiro onde ele fala sobre os heterónimos):

"(...) pus no Caeiro todo o meu poder de despersonalização dramática, pus em Ricardo Reis
toda a minha disciplina mental, vestida da música que lhe é própria, pus em Álvaro de Campos
toda a emoção que não dou nem a mim nem à vida. Pensar, meu querido Casais Monteiro, que
todos estes têm que ser, na prática da publicação, preteridos pelo Fernando Pessoa., impuro e
simples!"

Ou seja, Pessoa ortónimo era o "resto", o que sobrava dos outros, sendo que a
despersonalização era exercida ao máximo em Caeiro, a disciplina tinha ido toda para Reis e a
emoção toda para Campos. Pessoa-ele-próprio ficava, "impuro e simples". E é assim que
devem ser lidos os seus poemas ortónimos, que estão constrangidos pela necessidade de não
ultrapassarem esses limites da simplicidade imanente. É pois diferente para o Pessoa ortónimo
analisar o que é o sentimento, ou para Álvaro de Campos fazer o mesmo. É mais fácil o
ortónimo negar que é dominado pelo sentimento, pela emoção, do que o heterónimo
engenheiro. Veremos aliás que Campos muito mais facilmente explica tudo pela emoção - é o
extremo oposto do ortónimo no que à emoção diz respeito.

Mas passemos à análise estrofe a estrofe do poema propriamente dito.

Tenho tanto sentimento


Que é frequente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço, ao medir-me,
Que tudo isso é pensamento,
Que não senti afinal.

Nesta primeira estrofe vemos uma confirmação do que dizíamos anteriormente. A primeira
sensação de Pessoa é que ele é essencialmente um emocional. Álvaro de Campos ficar-se-ia
por essa primeira sensação, sendo essencialmente um intuitivo. Mas Pessoa ortónimo é,
essencialmente, um contra-intuitivo, é um racional. Portanto a sua escrita tende a recusar a
primeira sensação e a ter de analisar ao pormenor tudo o que sente. E, geralmente, tudo o que
é sobre-analisado tende a ser destruído. É isso mesmo que ele faz, ao justificar o "tanto
sentimento" apenas enquanto "pensamento, / Que não senti afinal". Esta é realmente uma
racionalização ao melhor estilo Pessoano.
Mas há que reconhecer que esta racionalização não é, ela mesma, puramente intelectual. Se,
por um lado, a escrita ortónima é a mais "seca", a mais "despida", também se torna por vezes
a mais sincera. Podemos ver nesta estrofe que Pessoa provavelmente racionaliza a sua
emoção para se proteger dos efeitos dela. A racionalização será, ao longo da sua vida, uma das
armas que ele utiliza para lidar com a sua solidão e com os momentos mais negativos.

Temos, todos que vivemos,


Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.

Embora seja, em certa medida, uma verdade evidente - essa verdade da nossa vida se dividir
entre a realidade concreta e o que nós pensamos sobre essa realidade; podemos ver que a
racionalização continua, na segunda metade do poema. É o mesmo que ele escrevesse que é
impossível considerar que toda a vida é feita de sofrimento, e que a vida real tem menos
sofrimento do que nós pensamos, pois o sofrimento extra é imposto por nós próprios. E a vida
"errada" é a que pensa a realidade e a que transforma a realidade em mais sofrimento. Trata-
se quase de uma visão natural da vida, à maneira de Caeiro, pretendendo expulsar da mente
humana a reflexão sobre a realidade, aceitando apenas a "vida vivida" e não a "vida pensada".
Mas é claramente uma ilusão racional, pois Pessoa continua a pensar, mesmo recusando o
pensamento.

Qual porém é verdadeira


E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar.

A confirmação disso mesmo - de que não é Caeiro que escreve, é bem visível na última estrofe.
Pessoa confessa que é impossível saber qual é a vida real, se a "vivida" se a "pensada". Caeiro
não teria dúvidas, pois para ele todo o pensamento deveria ser evitado. Mas Fernando Pessoa
não é só "feito" de Alberto Caeiro. E neste caso, vemos que "vence" o Pessoa racional, o
Pessoa ortónimo, que dá prevalência ao pensamento face à percepção pura dos sentidos. No
final do poema Pessoa aceita que, na impossibilidade de sabermos qual é a vida verdadeira,
teremos de aceitar pensar a vida. É a aceitação de que a racionalização da vida é a nossa
melhor opção, sobretudo para não nos deixarmos dominar pelo sentimento. E esta é, afinal e

verdadeiramente, uma opção que só o Pessoa ortónimo tomaria de tão bom grado .
Tenho tanto sentimento
Que é freqüente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço, ao medir-me,
Que tudo isso é pensamento,
Que não senti afinal.

Temos, todos que vivemos,


Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.

Qual porém é a verdadeira


E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar.

O poema "Tenho tanto sentimento" é um poema ortónimo tardio de Fernando Pessoa, datado de 18 de
Setembro de 1933.

O ano de 1933 é o ano de uma grande crise psíquica de Fernando Pessoa, que se sente numa
encruzilhada na sua vida. É o ano posterior ao falhanço da sua candidatura a bibliotecário do museu
Castro Guimarães em Cascais - que ele via como possível solução económica para estabilizar a sua vida -
e faz com que ele entre num período de grande criatividade, mas de igual desespero.

Sabemos já que a poesia ortónima é essencialmente racional, directa, sem artifícios. É por isso
curiosíssimo este poema, porque trata aparentemente desse problema, do sentimento em Pessoa e da
forma como ele lida com esse sentimento.

Análise

Tenho tanto sentimento


Que é frequente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço, ao medir-me,
Que tudo isso é pensamento,
Que não senti afinal.
Pessoa reconhece para si mesmo que é um "sentimental". Sentimental, ou seja, emocional, regido pela
emoções. É muito curiosa esta confissão, porque Pessoa será sempre reconhecido como sendo um
poeta eminentemente racional, mesmo pelos seus contemporâneos (que contrapunham a sua poesia
pensada e racional à poesia emocional e impulsiva de Mário de Sá-Carneiro). Mas quem conhece a obra
de Pessoa sabe bem que ele é mais do que apenas um poeta racional.

O ortónimo provavelmente não será capaz dessa análise - porque afinal é apenas uma parte de Pessoa -
mas quem ler Álvaro de Campos, Bernardo Soares e muitos outros, verá que verdadeiramente a
personalidade de Pessoa está espalhada por todos eles, como partes de um espelho partido, que apenas
reflecte a imagem original e completa quando juntamos todos os pedaços. O facto do ortónimo
racionalizar este "sentir do sentimento", não torna Pessoa um poeta racional por essência.

Temos, todos que vivemos,


Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.

A poesia ortónima é também marcada por oposições. Sobretudo pela oposição


"imaginado"/"conseguido" ou "passado"/"presente". Vemos como nesta estrofe Pessoa opera essa
mesma oposição, entre vida pensada e vida vivida - ou seja, entre o que ele desejaria que fosse a sua
vida e o que a sua vida é realmente. Ele chega à conclusão que a "vida que temos" está dividida entre
esses dois pólos, sem nunca ser perfeita como desejamos que seja.

Qual porém é verdadeira


E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar.

Na estrofe anterior Pessoa parece considerar que a vida vivida é a verdadeira e a pensada é a errada.
Mas nada é assim tão certo. Na realidade Pessoa põe isso mesmo em causa dizendo: "Qual porém é
verdadeira / E qual errada, ninguém / Nos saberá explicar". Ou seja, não há maneira de sabermos se na
verdade atingimos o nosso destino ou não.

Temos apenas a inevitabilidade de aceitar a vida que "temos" e que é a vida que podemos analisar
(pensar).

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