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Opção A3.

2: Património Urbano

Transição do Tradicional ao Moderno

Portugal no Final do Séc. XIX e Início do Séc. XX

João Vasco Araújo | José Nuno Cunha


09-11-2023
Contexto Histórico

O final do século XIX em Portugal foi um período de grande instabilidade política, social e
econômica, caracterizado por uma série de eventos marcantes. Portugal era governado por uma
monarquia constitucional, mas essa forma de governo estava fragilizada devido a diversos fatores. Um
desses fatores foi a recente crise do "Mapa Cor de Rosa", que ocorreu em 1886 e envolveu disputas de
fronteira com a Grã-Bretanha no sul de África. A crise resultou no subsequente Ultimato Britânico em
1890, no qual o rei português, Dom Carlos I, cedeu às demandas britânicas, causando um sentimento
de perda de soberania e descontentamento entre a população.
Além disso, Portugal enfrentava
um alto nível de corrupção no seu sistema
político e uma economia em dificuldades.
A economia portuguesa era altamente
dependente de produtos agrícolas, como o
vinho e o azeite. No entanto, esses
produtos agrícolas eram vulneráveis a
flutuações de mercado e incertezas na
produção, o que tornava o país
economicamente vulnerável.
Essa série de eventos e desafios
acabou levando à instauração da Primeira
República em 1910, encerrando o longo
período de monarquia. A Primeira
República Portuguesa representou uma
tentativa de modernização do país e uma
quebra com a tradição monárquica. No Figura 1 - Mapa Cor-de-rosa
entanto, a transição para a república não foi isenta de turbulências.
Durante a Primeira República, que se estendeu até 1926, Portugal enfrentou instabilidade
política com várias mudanças de governo, o que dificultou a implementação de reformas eficazes. Em
1914, com o início da Primeira Guerra Mundial, Portugal encontrou uma oportunidade para exportar
uma quantidade significativa de produtos agrícolas para suprir as necessidades dos países em guerra, o
que trouxe algum alívio para a economia do país.
No entanto, após o fim da Primeira Guerra Mundial, Portugal enfrentou dificuldades
económicas, incluindo inflação e desemprego. Este contexto histórico tumultuado e o desejo de
modernização marcaram a virada do século e lançaram as bases para futuros desenvolvimentos
políticos e económicos em Portugal.
Toda essa instabilidade política e econômica culminou na implantação do Estado Novo em
1933, que marcou uma nova fase na história de Portugal.
Introdução do Betão Armado em Portugal

Foi nesse contexto de instabilidade e progresso que surgiu na arquitetura o betão armado, uma
nova tecnologia que viria a revolucionar a construção no futuro. No entanto, antes de se estabelecer
plenamente, essa tecnologia passou por um período de introdução e adaptação às técnicas de
construção existentes.
O betão armado foi utilizado pela primeira vez no restauro da Fábrica de Moagem do
Caramujo em 1898, que havia sido recentemente atingida por um incêndio. No entanto, o seu primeiro
uso em edifícios residenciais ocorreu poucos anos depois, em 1905, no Palacete Valmor de Ventura
Terra.
Manuel Ventura Terra (1866-1919), arquiteto formado na Academia de Belas Artes de
Lisboa, desempenhou um papel crucial na transição da arquitetura portuguesa tradicional para o
modernismo. Ele facilitou a introdução de várias influências arquitetónicas, popularizou o estilo
parisiense no começo da carreira, e já no início o sec. XX introduziu a arte Nova, e até introduziu do
betão armado como principal elemento estrutural. A sua influência e espírito inovador abriram
caminho para a introdução dos primeiros estilos internacionais, como a Arte Nova e a Art Déco.
Ventura Terra tinha um estilo construtivo eclético, frequentemente entrelaçando elementos
decorativos com influências neoclássicas e modernas. Os seus edifícios foram projetados para
aproveitar as vantagens de cada material, misturando pedra, betão e madeira. Eventualmente, em
projetos mais tardios, o arquiteto introduziu estruturas inteiras de betão armado. Um exemplo notável
da sua arquitetura inovadora é o Palácio Valmor (1906).

Figura 2 – Palacete Valmor (1906)

Este edifício foi revolucionário em vários aspetos. Em termos estruturais, apresentava um sistema
inteiramente em betão armado, sendo o primeiro exemplo deste tipo em Portugal. Isso permitiu uma maior
flexibilidade nos desenhos interiores, que eram mais abertos do que o normal na época. Em termos
decorativos, o Palácio Valmor introduziu a Arte Nova no cenário nacional, com vitrais, elementos de ferro
forjado e motivos decorativos orgânicos e florais.

A arquitetura progressista de Ventura Terra foi crucial para esse período. A sua constante
inovação impulsionou o país a desenvolver a sua arquitetura e a progressivamente introduzir os estilos
internacionais. O seu trabalho foi continuado por diversos arquitetos que ele influenciou, levando adiante
esse processo.

Por outro lado, havia uma corrente que mantinha um estilo arquitetónico mais tradicional e
eclético. Embora não rejeitassem a inovação e incorporassem elementos mais modernos, como o ferro
forjado, a linguagem desses edifícios mantinha uma característica tradicionalista, baseada nas culturas
regionais do país. O maior exemplo dessa corrente é Raul Lino, cujos projetos foram posteriormente
considerados a essência da casa tradicional portuguesa pelo Estado Novo.

Primeiros Estilos Internacionais em Portugal

Os estilos internacionais, como a Arte Nova e a Art Déco, embora presentes no país desde o início
do século, levaram tempo para se afirmarem como a principal linguagem construtiva em Portugal. Durante
duas décadas, Portugal testemunhou uma progressão contínua, na qual esses estilos se incorporaram à
arquitetura tradicional, culminando na década de 1920, quando se tornaram dominantes na arquitetura do
país.

A década entre 1920 e 1930 foi marcada pela consolidação dos movimentos artísticos e
arquitetónicos internacionais da Arte Nova (Art Nouveau) e Art Déco, que desafiaram as convenções
estilísticas predominantes e influenciaram profundamente o panorama artístico e arquitetónico nacional. A
Arte Nova, nascida na França e na Bélgica, emergiu como um grito de liberdade contra o historicismo e o
ecletismo que dominaram a arquitetura e as artes decorativas do século XIX, espalhando-se pela Europa
com adaptações em cada país.

Em contraste, o estilo Art Déco surgiu após a Primeira Guerra Mundial e foi popularizado na
Exposição Internacional de Artes Decorativas e Industriais de Paris em 1925, contribuindo para sua
influência na Europa, não apenas em arquitetura, mas também no design de objetos e produtos do
cotidiano.

A Arte Nova é caracterizada por suas formas orgânicas, assimetria e uma ênfase na natureza,
buscando originalidade e afastando-se dos padrões convencionais. Os edifícios apresentam linhas curvas
frequentemente imitando a flora e a fauna, adornados com uma rica ornamentação, incluindo vitrais
coloridos, ferro forjado e padrões sinuosos. As cores desempenham um papel fundamental, com uma
paleta vibrante e alegre. Além disso, a tipografia estilizada era frequentemente usada em elementos
decorativos. Esses elementos foram aplicados em edifícios com diferentes graus de intensidade, desde o
Palacete Valmor de Ventura Terra em 1906.

Por outro lado, o estilo Art Déco era notável pela sua ênfase na geometria, simetria e uso de
materiais luxuosos. As estruturas apresentavam linhas retas e formas geométricas, frequentemente
incorporando mármore, granito e cromados. Os elementos decorativos incluíam esculturas, padrões de
zigurate e elementos industriais. A paleta de cores tendia a ser mais moderada, com tons de preto, branco e
prata, frequentemente contrastando ousadamente.

Enquanto a Arte Nova se integrou na arquitetura nacional e misturou-se com os estilos nacionais,
tornando-se parte indistinguível de sua linguagem, o Art Déco veio para substituir os estilos nacionais,
introduzindo uma nova linguagem que contrastava com o panorama nacional. Arquitetos como Cassiano
Branco, Pardal Monteiro, José Marques da Silva e Porfírio Pardal Monteiro foram pioneiros desse estilo,
introduzindo-o e expandindo-o pelo país. As suas obras demonstram a introdução desse novo estilo por
meio de um grande contraste na linguagem, indo de suas obras mais antigas para as mais recentes.

José Marques da Silva, um


importante arquiteto português da época, foi
influenciado tanto pela Arte Nova como pelo
Art Déco em sua arquitetura. Ele foi
conhecido por ser um dos primeiros
arquitetos em Portugal a abraçar o
modernismo. Marques da Silva projetou
vários edifícios notáveis, incluindo o
Pavilhão de Portugal para a Exposição
Internacional de 1937 em Paris, que
incorporou elementos modernistas e
influências internacionais, incluindo a Arte
Nova. Sua arquitetura inovadora e eclética
contribuiu para a riqueza da paisagem
arquitetónica em Portugal durante esse Figura 3 - Pavilhão de Portugal (1937)
período de transição e influência internacional. Sua obra é uma analogia para este período de transição,
existindo edifícios seus com três estilos
completamente diferentes, do classicismo tradicional à
arte déco, à arquitetura moderna.

Um exemplo dessa constante mudança de


estilos é o Edifício de Rendimento da Rua Alexandre
Braga, no Porto, concluído em 1916, que
originalmente seguia uma estética tradicional, mas
acabou por obter uma transformação significativa após
a visita do arquiteto a uma exposição internacional em
1925. Inspirado pelas tendências arquitetónicas
emergentes que ele presenciou nessa exposição,
Marques da Silva redesenhou o edifício, incorporando
elementos da Arte Nova e do Art Déco em sua fachada
e estrutura. Esse redesenho trouxe uma nova vida ao
edifício, tornando-o um exemplo impressionante do
ecletismo da década. A fachada tem elementos
decorativos que incluem motivos florais e orgânicos,
janelas desenhadas com sinuosas linhas e curvas, além
de assimetria, características típicas da Arte Nova.
Também são incluídos uma série de elementos
geométricos, como padrões de azulejos e mosaicos,
que incorporam várias formas geométricas, como Figura 4 - Edifício de Rendimento, Rua Alexandre Braga
círculos, triângulos e losangos, de maneira
ornamental.

O Santuário da Penha é também uma notável obra de Marques da Silva no contexto da Arte Déco,
apresentando não apenas uma estética ornamental cativante, mas também características construtivas
distintivas. A estrutura exibe linhas arquitetónicas curvas e orgânicas que se harmonizam com o ambiente
natural circundante. O uso criativo do ferro e da pedra na construção permite uma sensação de leveza e
elegância, típica do estilo. As abóbadas e cúpulas ornamentadas demonstram maestria na engenharia e no
design, enquanto os vitrais cuidadosamente elaborados inundam o interior com uma luz suave e colorida,
reforçando a conexão com a espiritualidade.
Isso contrasta com o edifício da Sociedade Martins Sarmento, que, sendo construído no início da
carreira de Marques da Silva, apresenta um estilo muito tradicional, com grandes influências da obra de
Ventura Terra em sua linguagem classicista eclética.

Figura 5 - Santuário da Penha (1930)

Este período da história é caracterizado pela instabilidade, inovação e contraste entre o antigo e o
novo. Nesse período, Portugal era maioritariamente agrícola, mas estava se abrindo para o mundo e
abraçando as vanguardas estéticas da época. É uma época de transição em todos os níveis da sociedade,
com o abandono da monarquia e a instauração da república, e a substituição de sistemas construtivos
tradicionais por novas tecnologias, como o betão armado. Foi uma breve época em que esses dois mundos
coexistiram, com a construção simultânea de edifícios como o Santuário de S. Luzia, um dos primeiros
edifícios a introduzir o betão armado em sua estrutura, e o Santuário da Penha, um edifício claramente
vanguardista que se enquadrou na Arte Déco. É nesses períodos de incerteza que surgem grandes figuras,
como Ventura Terra, Pardal Monteiro, Marques da Silva, entre muitos outros, que abraçam o futuro e o
tornam presente.

Referências Bibliográficas
Castilho, M., & Lameira, F. (2017). A identidade da arquitetura em betão armado: Ensaios no início do século XX.
José Augusto França, "A Arte em Portugal no Século XX,"
Matos, A. F. (2011). Arte Nova e Arte Deco: As Primeiras Obras em Betão Armado em Portugal.
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Cardoso, J., & Ferreira, A. (2018). Ventura Terra: arquitectura e modernidade (1866-1919). Atas do Simpósio Cidades
Visualidades Patrimónios: Formas e processos
Figueiredo, F., & Portela, M. T. (2019). O projecto como acto poético: A obra de José Marques da Silva.
https://restosdecoleccao.blogspot.com/2016/07/arquitecto-miguel-ventura-terra.html
http://www.monumentos.gov.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=3041
http://www.monumentos.gov.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=9019
https://fims.up.pt

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