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Revisitar os medicamentos não sujeitos a receita médica consumidor e de um folêgo para a sustentabilidade das lo‑
(MNSRM) é hoje um interessante desafio intelectual. Passa‑ jas de medicamentos sem receita.
ram sete anos sobre a liberalização do preço e a alteração Torna‑se curioso o facto de alguns dos medicamentos, en‑
da natureza jurídica e técnica dos locais de venda. Jurídica, tretanto transferidos para não sujeitos a receita médica,
porque quem quer que seja, onde quer que esteja, pode, em Portugal, serem objecto de uma actualização, que pre‑
desde então, iniciar a sua actividade empresarial como reta‑ sumo decorrer dos melhores avanços técnico‑científicos, e
lhista deste tipo de medicamentos. Técnica, porque o esta‑ iniciarem um novo ciclo de vida como suplementos alimen‑
belecimento requer um técnico responsável, não necessaria‑ tares. Ao mesmo tempo que, no Reino Unido, a azitromici‑
mente farmacêutico. E técnica por outra razão: um mesmo na e a sinvastatina foram classificados como medicamen‑
técnico pode ser responsável por mais do que um estabele‑ tos não sujeitos a receita, cuja cedência apenas pode ter
cimento num raio de alguns quilómetros. Fica óbvio que o le‑ lugar na farmácia e mediada pelo farmacêutico (Pharmacy
gislador apenas pretendeu retirar estes medicamentos das Medicines).
farmácias. Isto porque o acesso tem de ser sempre mediado Em Portugal, o estatuto legal, quanto à cedência ao público,
pela supervisão de um técnico – real ou virtual, é de some‑ de medicamento não sujeito a receita médica passou a atri‑
nos – e a cedência requer a intermediação humana. Ficou, buto, mais ditado por razões de natureza política e menos
porém, patente a sofreguidão política de que esta medida por razões de natureza técnico‑científica. E, curiosamente,
se revestia. Os potenciais efeitos, tendencialmente contra‑ um instrumento mais destinado a fustigar uma profissão
ditórios, de liberalizar o preço (tendencial efeito de subida) e – a de farmacêutico – e menos a de compaginar necessida‑
os locais de venda (potencial efeito de descida dos preços) des em saúde com eficiência económica e financeira do SNS.
anularam o desiderato do decisor político: demonstrar que Há mais de cinco mil farmacêuticos diariamente disponíveis
a liberalização conduziria à diminuição dos preços. Enfim: para os cidadãos e para o sistema português de saúde. Mas
cumpriu‑se o objectivo que, tal como os actuais dados de quando uma loja de venda de medicamentos não sujeitos a
mercado demonstram, era o de permitir às cadeias de dis‑ receita médica é, num hipermercado, inaugurada com a pre‑
tribuição alimentar vender medicamentos sem receita. Os sença de um primeiro‑ministro e de um ministro da Saúde,
consumidores portugueses estão hoje muito mais tranqui‑ pouco resta para comentar. Vender medicamentos não su‑
los, dados os ganhos de acessibilidade verificados e a Au‑ jeitos a receita médica, numa farmácia, é quase um acto de
toridade da Concorrência conseguiu ver, tal como anunciado agiotagem, ao passo que num hipermercado constitui um
pelo seu responsável à data, uma diminuição do encargo valioso e esforçado contributo para a saúde, para o acesso
do Serviço Nacional de Saúde (SNS) com medicamentos de dos cidadãos ao medicamento e para a sustentabilidade fi‑
cerca de 1,3% do produto interno bruto (note‑se que este nanceira do SNS.
valor correspondia, à altura, ao encargo total do SNS com São conhecidas as determinantes regulamentares da União
medicamentos comparticipados no ambulatório). Europeia (EU) para a atribuição do estatuto de MNSRM. Da
Cedo se verificou que não havia estabelecimentos rentabi‑ parte dos agentes mais directamente envolvidos – parti‑
lizáveis à custa dos medicamentos não sujeitos a receita cularmente reguladores, terceiras entidades pagadoras de
médica. Daí a aumentar a lista foi um passo. Mais uma vez, encargos financeiros directos com medicamentos, médicos,
Portugal não transfere o estatuto legal, quanto à cedên‑ farmacêuticos, associações industriais farmacêuticas e as‑
cia ao público, de medicamento sujeito para medicamento sociações de consumidores – é, por norma, passível a ob‑
não sujeito a receita médica, de substâncias activas, doses tenção de plataformas de entendimento que, não deixando
e posologias em indicações terapêuticas específicas, face de se centrar nas necessidades do cidadão, privilegiam a
a uma dada relação benefício/risco para uma necessidade cadeia de valor e o papel que, nessa cadeia, as responsabili‑
identificada em saúde. Os nossos decisores descomparti‑ dades que todos e cada um têm a desempenhar.
ciparam um conjunto de medicamentos e classificaram‑nos Acontece que, quando no acesso ao medicamento é tida por
como não sujeitos a receita médica. O que, na prática, não desnecessária a intermediação de um profissional, também
passou de uma transferência de encargos do SNS para o não é tido por necessário que ela ocorra em qualquer espa‑
ço tecnicamente diferenciado. O que encerra um princípio gatória do farmacêutico, à sinvastatina, na dose de 10mg,
básico que, sob o ponto de vista da saúde pública, faz todo com restrição das vendas a doentes com risco de 10% a
o sentido: a existência de dois subgrupos de medicamentos 15% de doença cardíaca coronária a 10 anos. Porém, esta
não sujeitos a receita médica: apenas na farmácia (acesso situação tem sido objecto de debate e de desacordo mé‑
condicionado) e também fora das farmácias (acesso livre). dico.1, 2
Em Portugal, como o poder político não foi sensível aos ar‑ Outro exemplo é o dos fármacos anti‑infecciosos para uso
gumentos técnicos, dado o carácter predefinido da decisão, sistémico. Um primeiro caso, também no Reino Unido, foi
– aliás expresso em acto de tomada de posse de governo o da atribuição do estatuto de medicamento não sujeito a
– foi criado um modelo único e ímpar em todo o mundo: receita médica à azitromicina, na dose de 500 mg, para o
a abertura de estabelecimentos destinados à venda de tratamento da infecção por Chlamydia trachomatis, sob su‑
MNSRM. Uma enormidade cuja dimensão apenas é com‑ pervisão do farmacêutico, em doentes com idade igual ou
parável à da abertura de farmácias privadas de venda ao superior a 16 anos e com teste urinário positivo (técnica de
público nos hospitais. amplificação de ácido nucleico) para Chlamydia.3
É fácil constatar a eficácia das medidas de política do me‑
dicamento tomadas desde 2005 e que desembocaram no Estes dois exemplos constituem novas e emergentes reali‑
plano de ajuda à recuperação da economia portuguesa em dades da automedicação e da atribuição do estatuto legal
2011. E da limpidez das suas intenções, de cujo exemplo foi de medicamento não sujeito a receita médica, cujos contor‑
a gratuitidade de medicamentos em 2009. Se por um lado nos futuros convinha começarem a ser debatidos e defini‑
se descomparticipa e passa a não sujeito a receita médica, dos no presente.
também em nome da sustentabilidade financeira do SNS, por Contudo, os erros cometidos ao longo de anos trarão, na
outro institui‑se a gratuitidade, provavelmente em nome da ausência de correcções regulares e estruturantes, conse‑
sustentabilidade eleitoral. quências multiplicativas.
Seria a altura de rever a desconexa situação criada à volta dos Desde 1983 (data em que organizámos a primeira reunião
MNSRM e, na oportunidade que um ambiente de constrangi‑ nacional sobre medicamentos de venda livre) até à liberali‑
mento económico propicia, introduzir critérios de racionalida‑ zação da sua venda em 2005, e de então para cá, muitos
de no modelo que os enforma. Para isso existem condições erros acumulados por todos os principais agentes envolvi‑
a verificar: dos conduziram‑nos à lamentável situação actual.
Será, dado o contexto e a natureza da ideologia económica
1. Objectivos e objectos da automedicação actualmente predominante, muito difícil inverter, nos próxi‑
2. Existência de medicamentos não sujeitos a receita médica mos tempos, a situação actual. Com uma ressalva: a exis‑
de acesso livre e medicamentos não sujeitos a receita mé‑ tência de dois subgrupos de medicamentos não sujeitos a
dica de acesso condicionado receita médica (os de acesso livre e os de acesso condicio‑
3. Razões de saúde pública e critérios técnico‑científicos para nado) passa pela capacidade de afirmação profissional dos
a diferenciação do acesso farmacêuticos, o que não pode ser feito sem o prévio reco‑
4. �ases racionais e critérios de transparência da decisão polí‑ nhecimento do valor social dessa afirmação. Sem esquecer,
tica. também, que a partir de Julho os doentes e os cidadãos
em geral poderão passar a notificar suspeitas de reacções
O conceito de acesso condicionado não decorre de qual‑ adversas a medicamentos.
quer preconceito de natureza corporativa, mas sim da ne‑
cessidade de avaliar, doente a doente, as condições que Francisco Batel Marques
não contrariem a verificação da relação benefício/risco es‑ Farmacêutico. Doutor em Farmácia Clínica
Professor Associado da Faculdade de Farmácia da Universidade de Coimbra
tabelecida para um dado medicamento, numa dada indica‑ Director do Centro de Farmacologia e Avaliação Económica em Saúde, AI�ILI
ção terapêutica, mas a ser utilizado numa realidade clínica Coordenador da Unidade Regional de Farmacovigilância do Centro
específica. Presidente da Sociedade Portuguesa de Farmácia Clínica e Farmacoterapia
Existem actualmente MNSRM cujo acesso livre é muito
questionável (contracepção de emergência, por exemplo) e
cujo acesso condicionado não será, desejavelmente, mediá‑
vel pela jovem caixa de supermercado. Existem produtos
classificados como MNSRM que não possuem base cientí‑
fica para existirem como medicamentos (multivitamínicos,
por exemplo).
Existem medicamentos que, pelo facto de terem sido des‑
comparticipados, deverão ser melhor estudados para terem
o estatuto de não sujeitos a receita médica (alguns veno‑
trópicos, por exemplo), se essa for a intenção dos respecti‑
vos titulares de autorização de introdução no mercado.
Paralelamente existem áreas, como a dos suplementos ali‑
mentares, cuja revisão de estatuto legal, na perspectiva da
defesa da saúde pública, é imperiosa e urgente (produtos
que se reclamam de antiobesidade, por exemplo).
Importante será a conceptualização da automedicação para
além das situações autolimitadas com intervenções tera‑
pêuticas de suporte e de curta duração, colocando‑a tam‑ Referências bibliográficas
bém em linha com a modificação de factores de risco modi‑ 1.Strom, �L. Statins and over‑the‑counter availability. N Engl J Med. 2005; 352:
1403‑1405.
ficáveis de patologias de grande impacto socioeconómico. 2.Stewart ID. et al. General practitioners’ views and experiences of over‑the‑counter
sinvastatin in Scotland. �r J Clin Pharmacol. 2010; 70: 356‑359.
Um primeiro exemplo deste novo paradigma foi a atribuição 3.Legal classification status of selected ingredients in Europe – List. [acedido a
do estatuto legal de medicamento não sujeito a receita mé‑ 22.03.2012]. Disponível em: http://www.aesgp.be/Ingredients/Europe1‑Table.doc.
(Consultado em 22 de Março de 2012)
dica, no Reino Unido, com cedência sob a supervisão obri‑
RoF 102 Mar/abr 2012
Boletim do CIM
BolETIM Do CIM ‑ publicação bimestral de distribuição gratuita da Ordem dos Farmacêuticos Director: Carlos Maurício �arbosa Conselho Editorial: Aurora
Simón (editora); Clementina Varelas; Francisco �atel Marques; J. A. Aranda da Silva; Lígia Póvoa; M.ª Eugénia Araújo Pereira; Paula Iglésias; Rogério Gaspar;
Rui Pinto; Sérgio Simões; Teresa Soares. Os artigos assinados são da responsabilidade dos respectivos autores.