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SAYAT-NOVA (1712-1795)

A tradição do gusan-ashugh (bardo-trovador) tem suas raízes na cultura musical


pré-cristã, do início da história do povo armênio, e foi influenciada pelas várias culturas
contíguas. Em outras palavras, a arte do ashugh (trovador) foi baseada em tradições
poéticas e musicais armênias e não-armênias. Por um período de vinte e cinco séculos,
esta tradição contribuiu imensamente para a cultura musical e literária da Armênia e de
seus vizinhos. Muitos trovadores contribuíram com esta forma de arte – cerca de 400
poetas, contando apenas o período de 1560 a 1900.
De todos os praticantes desta arte, nenhum conseguiu a estima, tanto por parte
dos artistas quanto do público, como Sayat-Nova1. Entre todos os trovadores armênios,
ele se destaca não só pelo volume de canções2 e melodias que foram compostas por sua
pena, mas também pelo fato de ele ter levado a poesia trovadoresca a um nível de
excelência de arte poética sem precedentes. Às formas métricas adotadas da arte dos
trovadores, ele adicionou a riqueza oral – linguagem, imagens, metáforas e símiles – da
tradição popular. Sayat-Nova combinou elementos da poesia lírica medieval armênia
com componentes do lirismo trovadoresco oriental, criando um estilo poético novo e
vívido, e assim dando uma nova direção ao lirismo trovadoresco armênio que se
originou no início do século XVI.
Sayat-Nova nasceu em Tiflis (hoje Tbilisi, capital da Geórgia). Seu nome de
nascimento era Arutin Sayatian, e seus pais eram armênios3. Sua vida estava misturada a
de Erakle II e de sua irmã, a Princesa Anna Bagration Batonashvili (1722-72)4. O pai de
Sayat-Nova imigrou para Alepo, na Síria, vindo de Adana, na Cilícia. Em alguma época
de sua vida, ele visitou Jerusalém e ganhou o apelido de mahtesi (peregrino de
Jerusalém). Mais tarde, ele se estabeleceu em Tiflis e se casou com Sarah, que era
nativa de Havlabar. Foi em Tiflis, portanto, que Sayat-Nova nasceu, em 1712: “minha
pátria é Tiflis, na Geórgia, / Minha mãe vem de Havlabar, meu pai de Alepo”.
Num poema autobiográfico, escrito em azerbaijano, Sayat-Nova revela que, com
a idade de 12 anos, ele começou a aprender o oficio de tecelão (“Eles me mandaram ao
meu mestre”), e com a idade de 14 anos, ele se tornou um trançador experiente (“Seu
mestre recebeu um prêmio por causa dele”). Com 19 anos, ele diz, fez “uma viagem
para a Etiópia-Índia”5. Com vinte, tornou-se um trovador (“com vinte anos eu me
apaixonei e vendi safiras para o próspero mercador”)6, e desde o início, provou seu

1
Em persa, saiat quer dizer ‘caçador’, e nova quer dizer ‘melodia’; daí ser Sayat-Nova ‘o caçador de
melodias’.
2
As canções que foram conservadas incluem: 72 compostas em armênio, 32 em georgiano, 117 em
azerbaijano, 7 poemas não terminados, e 5 que misturam línguas.
3
No começo do século XII, muitos armênios, fugindo dos seldjúcidas e mongóis, deixaram a Armênia e
se estabeleceram na Geórgia. Com o tempo, eles se tornaram participantes ativos da vida cultural, política
e econômica deste país. Apesar de o regime político da Geórgia ser feudal, os mercadores e artesãos
armênios gozavam de considerável liberdade.
4
Na história da Geórgia, o período de 1469 a 1801 foi marcado por várias guerras, principalmente contra
os turcos otomanos e os persas safávidas, que estavam ansiosos para dominar o país. A Geórgia foi
dividida em três reinos, e além disso, havia cinco principados feudais semi-independentes. Em 1744,
Teymuraz II (1744-62) se tornou o rei de Kartli, e seu filho Erakle II se tornou o rei de Gakhetia. A
coroação do pai e do filho culminou numa longa aliança política com Nadir Shah da Pérsia (i.e. Nadir
Quli (1688-1747), que se tornou o xá da Pérsia em 1736).
5
Esta passagem não dever ser interpretada de forma literal. Ao invés disto, o poeta quer dizer que viajou
extensivamente.
6
A palavra armênia lal tem o sentido de ‘chorar’ e de ‘rubi’. O poeta se refere aos seus versos tristes, que
são, não obstante, preciosos como rubis.
2

talento fora de comum, como poeta e músico. Ele compôs músicas e escreveu poemas
em armênio, azerbaijano, georgiano e persa. As línguas azerbaijana e turca, seus
costumes e canções eram apreciadas não só pela população georgiana, mas também pela
grande comunidade armênia que lá vivia. Esta é a razão pela qual Sayat-Nova escreveu
primeiro em azerbaijano e georgiano, e só muito tempo depois em armênio, quando ele
tinha aproximadamente 30 anos e já tinha estabelecido sua reputação.
Seu poema mais antigo data de 1742 e começa com o verso “Pérola preciosa e
coral do mar”. Uma conversa entre Yohan Khelashvili (um monge georgiano) e
Sayat-Nova, no monastério de Haghbath7, nos informa que por volta de 1746,
Sayat-Nova foi nomeado ashugh da corte pelo rei Erakle II, em apreciação de suas
performances de músicas georgianas, em estilo persa. Ele foi, de fato, o primeiro a
compor e cantar músicas georgianas moldadas a partir de formas e melodias persas. Seu
último trabalho, “O mundo é uma janela”, é datado de 1759.
Sua primeira canção armênia (khagh), “Shat sirum is” (‘Tu és muito querido/a’)
foi composta em 1747. A inscrição nesta canção diz: “Agora eu quero escrever também
em armênio: perante Deus, eu, Arutin, filho de mahtesi Karapet, tenho estudado todo
tipo de khagh por 30 anos, com a ajuda de São João Batista8. Eu aprendi o kamantchá, o
chongur (instrumento de corda) e o (t)ambur”. Uma outra canção armênia antiga é
“Blbuli hit” (Com o rouxinol9).
Assim como a data exata de sua chegada na corte, o seu tempo de permanência
nela é desconhecido. Por outro lado, sabemos que Sayat-Nova foi expulso do palácio
por volta do ano de 1752 e foi readmitido em 1754. Suas canções armênias “Dun em
glkhen imastun is” (‘Tu és o mais sábio’), “His kanchum im lalanin” (‘Estou chamando
meu amor’10), “Dastamazet sim u sharbab” (‘Teu cabelo como cordas sedosas11’),
“Ashkharumes akh chim kashi” (‘Eu nunca preciso suspirar’), e “Indz siretsir” (‘Tu me
amaste’), os quais foram escritos entre estes anos, retratam as emoções deste período de
sua vida. “Dun em glkhen imastun is” e “His kanchum im lalanin”, ambas de 1753, são
súplicas, a primeira dirigida ao rei, e a segunda à irmã do rei, Anna Batonashvili. Neste
último poema, o nome dela é cifrado vinte vezes, o que constitui um testemunho do
amor que Sayat-Nova sentia por ela. Em “Dastamazet sim u sharbab”, datado de março
de 1754, o poeta nos diz que fazia dois anos que ele não via seu amor. “Ashkharumes
akh chim kashi” e “Indz siretsir”12, datados de abril de 1754, são diálogos alegres entre
o poeta e sua bem-amada, onde ela o convida para “visitá-los uma vez por semana”,
talvez para se apresentar nos festivais regulares da corte.
Até recentemente, acreditava-se que Sayat-Nova tinha sido expulso do palácio
pela segunda e última vez, entre os anos de 1759 e 1760. Esta crença era baseada no
fato de seu Davtar (Livro de cópias) ir até o ano de 1759. A motivação das duas
expulsões seriam intrigas políticas, e não conseqüência direta de seu amor pela irmã do
rei. Mas esta atração foi provavelmente utilizada pela nobreza para maldizer o poeta aos
olhos do rei. Enquanto membros da corte conspiravam contra Sayat-Nova, ele apelou a
Erakle e rogou a ele que não acreditasse nas calúnias que circulavam nos corredores do
palácio. Sua canção “Dun em glkhen imastun is” (‘Tu és o mais sábio’) constitui um
destes apelos ao rei.
7
Conversa registrada pelo neto de Erakle II, Yohan Bagration, no seu livro Galmasopa (1813-28).
8
O monastério de São João Batista (Santo Karapet) em Taron (Mush) era um lugar de peregrinação para
os trovadores armênios.
9
Conferir o poema “Inigualável”.
10
Este poema inclui uma mensagem oculta para seu amor.
11
O poeta se refere aí as cordas do instrumento musical.
12
Estes poemas são denominados gazel, isto é, poema lírico composto de 5 a 15 dísticos (ou parelhas, i.e.
grupo de dois versos), no qual a parelha é rimada, e a segunda linha sempre rima com a primeira parelha.
3

Depois de deixar a corte, na década de 1750’, Sayat-Nova se tornou um padre, e


adotou o nome de Ter Stepanos. Entre 1759 e 1760, ele se casou com Marmar, uma
mulher armênia do distrito de Lori. Eles tiveram quatro filhos: dois homens, Melkon
(Melikset) e Hovhannes, e duas mulheres, Sarah e Mariam. Após a morte de sua esposa,
em 1768, ele se tornou um monge; e dez anos depois, ele e sua ordem se mudaram para
o monastério de Haghbat – que tinha sido reconstruído por Erakle – deixando suas
crianças em Tiflis. Sayat-Nova se tornou sacristão do monastério de Santo Nshan,
permanecendo neste posto até sua morte, em 1795. Há grande controvérsia sobre a data
e as circunstâncias de sua morte. A versão tradicional, iniciada pelo seu primeiro
biógrafo, Gevork Akhverdian, conta que Sayat-Nova ficou sabendo da invasão da
Transcaucásia por Agha-Mahmed Ghajari Khan e dos massacres que ocorreram. Ele
então teria se dirigido para Tiflis, para ver se seus filhos estavam a salvo, mas teria sido
morto pelos soldados deste soberano persa.
Com exceção de seu aprendizado como tecelão, nada sabemos sobre a educação
que Sayat-Nova recebeu. Ainda assim, sua poesia sugere que ele era versado em
armênio, azerbaijano, georgiano, persa e turco. Seu vocabulário, em todas essas
linguagens, é rico e variado, e ele emprega este vocabulário não só individualmente,
mas muitas vezes usando todos em um só poema, com grande espontaneidade.
Elementos das antigas tradições dos bardos (orais e escritas), contos folclóricos e poesia
épica são muitas vezes incorporados em suas canções. Os ditados populares, referências
a personagens e histórias da Bíblia, e a vários países e povos, e alusões mitológicas que
embelezam suas canções, isto tudo sugere uma pessoa altamente educada, talvez
autodidata.
Não há dúvida de que a vida de Sayat-Nova, com todos os seus ânimos e
desapontamentos, aguçou sua percepção e sensibilidade e o ajudou a desenvolver o
universo emocional único que sua poesia reflete. A maior destas emoções é o amor, o
qual ele abraçou como um paliativo para a angústia e as tribulações do mundo material:
“Eu não suspirarei contanto que tu sejas a alma de minha vida”13. Sob este aspecto, ele
não estava sozinho: o amor é o tema predominante e o mais difundido entre os
trovadores. Contudo, seria um erro pensar em sua poesia exclusivamente em termos das
normas da poesia trovadoresca armênia comumente aceitas. Sua disposição de espírito
filosófica o dotou de uma humanidade e compreensão excepcionais, colocando-o à
frente de seus contemporâneos. Por trás de seus versos exuberantes, descritivos e
emocionais, produzidos com a habilidade de um mestre trovador, não é difícil discernir
e apreciar a sagacidade de seu intelecto. Tal sagacidade é mais aparente em seus poemas
de amor, que são preciosidades que ressaltam todas as qualidades importantes deste
poeta, cantor, compositor e músico14.
Sayat-Nova não aceita fronteiras para seu amor: “Eu viajei por todo o mundo,
até para Abissínia (Etiópia), meu amor; / Nunca eu vislumbrei algo como tu; tu eclipsas
tudo, meu amor”15. Suas palavras de elogio extravasam; ele não reconhece nenhum
limite para: a expressão de seus sentimentos, sua veneração pela mulher que ele ama,
sua humilhação para tornar-se digno de seu amor (um tema comum na poesia oriental),
seu retrato dela em uma linguagem rica em cor e esplendor, e a revelação de seu
tormento, que só ela pode aliviar.
O mundo de Sayat-Nova é turbulento, e seu coração está preocupado com um
assunto – o amor – que não lhe proporciona nem conforto, nem o contentamento

13
“Ashkharumes akh chim kashi” (‘Eu nunca preciso suspirar’).
14
Para uma análise recente da arte e biografia de Sayat-Nova, consultar Charles Dowsett, Sayat-Nova, An
Eighteen-Century Troubadour: A Biographical and Literary Study (Louvain, 1977).
15
“Taman askhar ptut eka” (‘Eu viajei pelo mundo todo’).
4

necessário para o desfrute da natureza. Ainda assim, alguns elementos, como o


rouxinol, a rosa, e o jacinto16, se infiltram na existência turbulenta do poeta. Como
outros poetas orientais, ele é extremamente sensível à beleza material que cerca seu
amor, e ele é hábil em fazer analogias entre esta beleza e o objeto de sua afeição: “Teu
peito é como rosas, violetas, jacintos, e lírios: / Jardins para que? Teu cheiro é como
manjericão. / O mundo é um mar, e tu passeias de bote sobre ele, balançando conforme
vais”17. Um outro exemplo é a canção “Kani vur jan im” (‘Contanto que eu esteja
vivo’)18, na qual o poeta, embriagado de prazer, convida sua bem amada para o
parreiral, onde ele canta elogios para ela no saz: “Tu estás coberta, delgado ramo de
cipreste, com muitas sedas e cetins”. Como em todas as canções de amor medievais, a
natureza está impregnada de emoções e sentimentos do poeta: seu pomar está “cheio de
jacintos e lírios brancos” e é visitado pelo “rouxinol errante”. Esta imagética projeta o
mundo interior do poeta, e parece proceder diretamente de suas emoções: um
sentimento particular é incorporado em uma analogia particular ou em uma metáfora;
tudo se torna um meio de expressar seus sentimentos.
Como todos os trovadores orientais ou ashikhs (‘amantes’), Sayat-Nova canta a
beleza de sua bem-amada, mas ela própria permanece em silêncio e inacessível. Ele
frequentemente compara seu amor a um oceano impenetrável: turbulento, vazante,
bravo, arremessando sua alma de praia em praia. Apesar de o tema dominante em sua
poesia ser o amor, e apesar de seu elogio freqüente à beleza física de sua bem-amada,
não há uma imagética erótica, carnal ou mesmo sensual em seus poemas, como havia
nos hayrens populares e nas canções de Naghash Hovnatan; o amor de Sayat-Nova é
abstrato e platônico.
Também como seus ministreis contemporâneos, Sayat-Nova assumiu o papel do
amante obediente, pronto a sacrificar-se por seu amor puro, pronto a passar por todos os
tipos de privação, até mesmo pela aflição, e vagar pelo mundo por dez anos – ou mesmo
trinta, se necessário for – contanto que no final ele se una para sempre ao seu amor. Esta
atitude cavalheiresca lembra os romances medievais19. De acordo com as descrições de
Sayat-Nova, o trovador está perpetuamente apaixonado; ele é o escravo de sua
bem-amada. Para ele, o ato de apaixonar-se é trágico, uma vez que mesmo a alma mais
sincera não tem forças contra o grande incêndio abrasador do amor.
O sofrimento do poeta, contudo, não é o resultado deste amor inalcançável; se o
nome de Sayat-Nova, assim como suas canções, se tornaram sinônimos de amor, este
amor se estende também aos seus semelhantes e a sua terra natal. Injustiça, os fracassos
e as deficiências da era inteira, e a luta interminável contra conceitos e costumes mal
orientados também são causadores da agonia do poeta. Em suas palavras: “O mundo é
uma janela – estou cansado de tantas janelas/ Aquele que olha através delas é magoado
– estou cansado de tantas janelas / Ontem era melhor que hoje – estou cansado de
amanhãs”20.
Que solução então o poeta propõe? Ele aconselha o leitor a aprender a partir da
vida dos ancestrais, a estudar a Bíblia, e condenar a maldade incansavelmente. Uma vez
que a vida não pode oferecer outra coisa que não o desapontamento, só um caminho
permanece aberto, o da redenção espiritual: “Seja humilde e obediente, um servo do
16
Jacinto: erva da família das liliáceas, universamente afamada pela beleza das flores, dispostas em
inflorescências maciças, com corola azul, branca ou rósea, muito perfumada, e cujas folhas são lineares,
compridas, sendo o fruto uma cápsula globosa. Muito cultivada nas cidades serranas do Brasil.
17
Canção armênia 2 (Hasratian, 1963; in: Hacikyan, 2002).
18
Canção armênia 29 (Hasratian, 1963; in: Hacikyan, 2002).
19
Também tem semelhanças com a tradição do amor nobre da Europa Ocidental, que exerceu uma
influência enorme nas literaturas européias, a partir do século XII.
20
“Askhars mé panchara é” (‘O mundo é uma janela’).
5

povo, Sayat-Nova; / Se alguém te oferecer bílis, oferece-lhe doces em troca,


Sayat-Nova”21.
Em suas canções georgianas e azerbajanas, Sayat-Nova é um trovador amoroso,
emocional, nobre e direto, sagaz e ético, um poeta talentoso e amado, que não será
esquecido. Nas suas canções armênias, por outro lado, ele é incomparável em sua
proximidade e simplicidade, excepcional em sua harmonia entre alma, corpo e fala: um
mágico fascinante, aparentemente ingênuo, um coração afetuoso que bate eternamente,
um gênio genuíno popular22.
Apesar de os trovadores em geral contribuírem com canções de alegria e
celebração para as ocasiões festivas, Sayat-Nova raramente produziu estes tipos de
canções de divertimento para os banquetes reais. Ao invés disto, suas canções tendem a
descrever os pesados fardos da vida e as lutas eternas por justiça e para alcançar uma
índole magnânima e virtuosa entre os homens. Mesmo nas ocasiões de celebração, ele
expressou seus sentimentos, tristes ou alegres, em um estilo simples, mas sincero e
exaltado. De fato, a atitude de Sayat-Nova, em relação à humanidade, é semelhante à
atitude humanística da Renascença. O homem é importante: ele o ama e canta elogios
ao que é bom nele. Ainda que Sayat-Nova frequentemente cante sobre a dor e o
sofrimento, seu kamantchá e suas canções alegram corações tristes, porque seu
kamantchá é “mais do que cordas”: ele mantém “multidões acordadas, enquanto ele
embala outros para dormir”. Seu instrumento favorito é “uma taça de ouro com vinho
dourado”, e o músico que o toca é “multiplicado em dois”, suas canções são capazes de
aliviar a angústia da humanidade.
A arte poética de Sayat-Nova abrange uma variedade de técnicas. Sua linguagem
é clara, mas elástica, e as palavras são carregadas de sentidos múltiplos. É impregnada
de uma imaginação poética rara: as imagens que a enriquecem revelam uma
sensibilidade tremenda. Emoções abstratas são expressas em imagens que revelam seu
humor e até sua lógica: olhos são “taças cravejadas”, o kamantchá é uma taça dourada,
e assim por diante. Ele sabe como improvisar, usando analogias, hipérbole, paralelos,
personificação, alegoria e outras figuras de linguagem. A variedade de línguas em que
ele escreveu, as canções persas nas quais ele se modelou, e os heróis literários, figuras
históricas e poetas azerbaijanos aos quais ele alude – estes e muitos outros fatores
emprestam uma coloração oriental ao espírito artístico de Sayat-Nova.
Entre as formas poéticas favoritas de Sayat-Nova, a preferida era a ghaphia
rítmica. Esta era uma forma desafiadora, e Sayat-Nova conseguiu dominá-la já a partir
de 1742. Ele também escreveu usando muitas outras formas poéticas e técnicas
orientais: tejnis (jogo de palavras/trocadilho) com métrica simples e complexa,
uchlamas (repetições triplas), bayatis (quartetos), mukhammazes23 (poemas de cinco
linhas), musadases (poemas de seis linhas), aliflamas (alfabéticos), zinjirlamas (linhas
em séries contínuas), yaranas (canções de amor), gharahejas (acrósticos), e muitas
outras. Ele também usou anagramas como o yana-yana (uma expressão turca que
significa “golpeado pelo amor”), que esconde o nome de seu amor. Esta variedade de
versificação é uma indicação clara da virtuosidade de Sayat-Nova.
A habilidade criativa de Sayat-Nova como músico tem tradicionalmente
recebido menos ênfase do que sua habilidade como poeta. Ele era, não obstante, tão

21
“Ari hamov ghulurg ara” (‘Venha, seja um bom servo’); canção armênia 37 (Hasratian, 1963; in:
Hacikyan, 2002). .
22
Hasratian (1963), in: Hacikyan (2002).
23
Uma forma poética oriental em que todas as linhas da primeira estrofe rimam entre si e as últimas
linhas das estrofes subseqüentes rimam com a primeira estrofe. Geralmente, cada estrofe de um
mukhammaz tem cinco linhas.
6

charmoso e talentoso como cantor e compositor, quanto era como poeta. O renovado
interesse por suas melodias, as quais foram transmitidas oralmente, foi motivado por
uma competição singular de gusan-ashugh, organizada pela comunidade armênia de
Tiflis em 1912. Nesta ocasião, os ashughs armênios de Tiflis, liderados por Ashugh
Hazir, executaram as antigas canções dos ministreis, todas transmitidas oralmente para a
geração deles. Nos anos seguintes, várias melodias de Sayat-Nova foram recuperadas e
foram apresentadas em concerto público. Estes eventos excitaram as memórias de
muitos residentes antigos de Tiflis, que apresentaram as suas próprias versões das
canções de Sayat-Nova24. Na década de 1920’, dois músicos da comunidade armênia de
Tiflis, Mushegh Aghayan e Shara Talian, que estavam envolvidos nesse reapresentação
de 1912, juntaram esforços para editar uma coleção das melodias de Sayat-Nova.
Depois de muitos anos de pesquisa e performance, eles finalmente publicaram vinte e
duas melodias, em 1946. Esta foi seguida por uma outra publicação, em 1963,
totalizando vinte e sete. Enquanto isto, Talian, que provinha de uma família de
ministreis, tornou-se o intérprete mais importante das canções de Sayat-Nova.
O fato de estas melodias não terem sido submetidas à notação musical, até pelo
menos 150 anos depois de sua composição, levantou dúvidas sobre sua autenticidade. A
opinião predominante entre os primeiros estudiosos era a de que as melodias tinham
sido emprestadas da tradição do trovador persa. A autenticidade das melodias coletadas
foi defendida somente em três artigos publicados, entre os quais, o de Nikoghos
Tahmizian foi o estudo mais completo e extensivo. Através da análise de certos
contornos melódicos, fórmulas de cadência e padrões rítmicos, Tahmizian estabeleceu
que as canções são intrinsecamente armênias em estilo e caráter, comparando-as com as
melodias sagradas e seculares recolhidas por Komitas (1869-1935), no final do século
XIX e no começo do XX. Ele concluiu que as canções – mesmo que enriquecidas com
elementos das músicas georgiana, persa e turca – foram provavelmente todas compostas
pela mesma pessoa, uma vez que compartilham algumas características estilísticas; de
fato, ele afirma, a fonte básica de melodias é a música tradicional monódica armênia25.
Sem nenhuma dúvida, e apesar de algumas irregularidades de codificação, todas as
melodias atribuídas a Sayat-Nova têm semelhanças de padrões melódicos e rítmicos tão
fundamentais, que garantem a conclusão de que foram criação de um só compositor.
Mesmo após dois séculos da morte de Sayat-Nova, melodias atribuídas a ele
continuam a surgir, de tempos em tempos. Nove melodias foram, por exemplo, gravadas
pelo departamento de música popular do Conservatório de Komitas em Yerevan,
cantadas por Durgarian, proveniente de Giumri, Armênia. Durgarian aprendeu estas
melodias de um prisioneiro persa na Sibéria. Uma outra melodia não-publicada de
Sayat-Nova foi gravada por Hasmik Injejikian de Montreal. Em contraste com isto,
nenhuma das canções azerbaijanas ou georgianas de Sayat-Nova foi recuperada26.
Até o século XX, as melodias de Sayat-Nova eram executadas exatamente como
estavam transcritas. Desvios das partituras eram tão raros, que a improvisação, tão
essencial na tradição do menestrel, estava completamente ausente. Uma mudança de
atitude, em direção à improvisação, pode ser observada nas gravações recentes e
performances ao vivo. É de se esperar que, sem distorcer a essência e as convenções
24
A. Khachatrian (1963), “Inchpes veratznvetsin Sayat-Novayi yergere” (Como as canções de
Sayat-Nova foram recuperadas), Sovietakan Hayastan (Armênia Soviética), in: Hacikyan, 2002. Depois
da Primeira Guerra Mundial, cessaram estas performances públicas.
25
Tahmizian (1963), in: Hacikyan (2002).
26
Grishashvili (1918, in Hacikyan, 2002) diz que, ainda que as canções de Sayat-Nova tenham sido
oralmente preservadas pelos georgianos até o final do século XIX, nem as canções nem as melodias
foram documentadas (algumas canções foram, não obstante, coletadas e publicadas por Ashugh Skandar
Nova, em 1870).
7

tradicionais das canções, conjuntos instrumentais e de vocal vão continuar a explorar as


possibilidades da performance improvisada.
Hovhannes Turmanian resume a virtuosidade da arte poética e musical de
Sayat-Nova do seguinte modo:

Ele não é uma figura nova, uma moda que com o tempo vai tornar-se
desinteressante e mudar. Aqueles que o ouviram uma vez vão gostar dele ainda mais na
segunda vez, e uma vez que ele tenha sido compreendido e apreciado, ele nunca será
esquecido: ele é uma alma ardente, abrasadora, que assume belas formas, um bom e
grande coração, um espírito poderoso e reverenciado, que como o espírito precioso de
nossa terra, sempre cantará entre os povos do Cáucaso – armênios, georgianos,
azerbaijanos – já que ele cantava, com igual poder, em armênio, georgiano, e
azerbaijano27.

Sayat-Nova ocupa um papel importante na literatura georgiana, assim como na


armênia. Ele foi um dos poetas mais importantes e genuínos da Geórgia, e ele deixou
sua marca em muitos poetas georgianos da segunda metade do século XVIII.
Há um grande número de pesquisas sobre Sayat-Nova, que surgem não só das
intrigantes descrições lendárias de sua vida – que tornaram muito difícil separar o fato
da ficção –, mas também de inúmeros outros fatores. A ilegibilidade e as condições do
Davtar criaram muitos problemas, assim como as transliterações de Sayat-Nova: ele
escreveu a maioria das suas canções armênias com caracteres georgianos; e as canções
azerbaijanas com os caracteres armênios; ao passo que seu filho Hovhannes usou os
caracteres georgianos para as três línguas. As versões de Hovhannes às vezes ajudam a
esclarecer passagens indecifráveis, outras vezes elas criam problemas por causa das
extensivas mudanças, adições e erros, que podem ser atribuídos tanto à cópia incorreta,
quanto ao fato de que ele estava transcrevendo de memória as canções de seu pai. Além
disso, há as dificuldades que surgem da linguagem de Sayat-Nova: apesar de suas
canções armênias serem escritas principalmente no dialeto armênio de Tiflis,
enriquecido com palavras populares, ditados e expressões idiomáticas, o fato de estas
canções também conterem vocabulário georgiano, azerbaijano e persa, requer que o
estudioso seja competente nessas três línguas. Para complicar ainda mais, o armênio de
Sayat-Nova não está confinado ao dialeto da sua cidade natal Tiflis: ele também faz uso
de dialetos armênios de Lori, Ararat, Armênia Ocidental, e até mesmo da Cilícia, assim
como do armênio clássico.
A fonte principal para as pesquisas sobre as canções de Sayat-Nova é o seu
Davtar, que foi completado e autenticado pelo poeta em 1759. O Davtar permaneceu
entre a família, até que o poeta Hovhannes Tumanian (1869-1923) o comprou, para a
União de escritores armênios do Cáucaso, em 1913. O Davtar, com cinco páginas
faltando, encontra-se agora no Museu de Tcharents em Yerevan.
Da metade do século XIX em diante, um número de canções foi atribuído a
Sayat-Nova, o que resultou em debates sobre sua autenticidade e em um número
considerável de pesquisas. Uma edição completa das canções armênias de Sayat-Nova,
junto com traduções armênias das canções azerbaijanas e georgianas, foi publicada por
Morus Hasratian em 1959, e revisada em 1963.
Muitos assuntos acerca de Sayat-Nova aguardam esclarecimentos, e pesquisas
sobre sua vida e seu trabalho vão continuar a atrair pesquisadores de literatura e
músicos.

27
Hovhannes Tumanian (1945, in: Hacikyan, 2002).
8

(Sayat-Nova, In: HACIKYAN, A.J. (coord. 2002). The Heritage of Armenian Literature. Volume II: From
the Sixth to the Eighteen Century. Detroit, Wayne State University Press, p.869-880. Tradução livre de
Deize C. Pereira.)

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