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História Trágico-Marítima

CONTEXTUALIZACAO HISTÓRICO-LITERÁRIA

A História Trágico-Marítima é um conjunto de relatos sobre os naufrágios ocorridos na época dos


Descobrimentos, nos séculos XVI e XVII, que foram, inicialmente, publicados de forma avulsa, mas que foram mais
tarde compilados em dois volumes, em 1735-36, por Bernardo Gomes de Brito.

Trata-se de um conjunto de doze relatos de naufrágios, baseados em episódios verídicos da gesta dos
Descobrimentos. São, de uma maneira geral, relatos apreciados pela qualidade da prosa e pelo seu extremo
realismo. Um dos mais conhecidos fica a dever-se a Jerónimo Corte-Real, que narrou o Naufrágio e Lastimoso
Sucesso da Perdição de Manuel de Sousa Sepúlveda (1594).

AVENTURAS E DESVENTRURAS DOS DESCOBRIMENTOS

A História Trágico-Marítima é, então, um conjunto de breves narrativas de naufrágios da época dos


Descobrimentos. Apesar da aparente proximidade com a obra camoniana – até em termos temáticos ou de
contexto –, a História Trágico-Marítima tem características muito próprias e que a distinguem claramente da
epopeia de Camões.

 Em primeiro lugar, nem todos os relatos têm “autores precisos”.

No que respeita aos relatos que atualmente se conservam, a maioria data do período entre 1550 e 1650.

 As histórias são verdadeiras e diretamente relacionadas com um momento marcante na vida económica
e social da nação: as Descobertas. As personagens centrais são de elevada estirpe social.
 Os relatos são “normalmente precedidos por uma longa didascália”, que elucida sobre as “coordenadas dos
acontecimentos”, pelo que “servem sobretudo de demonstração exemplar da justiça divina”, havendo
uma ligação entre culpa e castigo.

 A sua estrutura narrativa não se afasta muito da “matriz tradicional da narrativa de viagens”,
apresentando os seguintes “núcleos de sentido”:

• Antecedentes – acontecimentos prévios à partida;


• Partida – circunstâncias relativas a esse momento e que dizem respeito, por exemplo, ao estado do
navio, à carga que se transporta;
• Tempestade – descrição da tempestade e dos seus efeitos;
• Naufrágio – evento central e que resulta do momento anterior e dos danos causados;
• Arribada – chegada a terra dos que conseguiram sobreviver;
• Peregrinação – itinerário dos que naufragaram até encontrarem uma possessão portuguesa;
• Retorno – chegada a salvo dos que escaparam e regresso ao local de partida

Atentemos agora no título – História Trágico-Marítima. O primeiro elemento aponta para a dimensão de relato,
de narrativa de um facto verídico, por intermédio de um narrador, participante ou não na ação (um sobrevivente
ou uma testemunha). O segundo elemento aponta para a dimensão trágica destes relatos que se reportam a espaços
marítimos, revelando o espírito de desinquietação e de efemeridade associado à vida humana.

Associação de Estudantes de Benavente – Ano letivo de 2019/2020


Os relatos de naufrágios, também designados por “ relações”, representam, assim, a tragédia dos
Descobrimentos, como “destruição dos navios”; “perda das mercadorias”; “sofrimentos vários dos sobreviventes
que conseguem alcançar a terra”; “perda das vidas”, e essa tragédia decorre de vários fatores, como o “mau estado
das naus”, as “cargas excessivas”, as “partidas em tempo inadequado sujeito aos ritmos de ventos e marés
destruidores”, ou seja, condições pouco favoráveis a que as viagens se realizassem em segurança. Ora, essas
condições, por sua vez, decorriam da “incúria, cupidez, egoísmo” dos homens. O seu desleixo, a sua ambição
desmedida e o facto de cada um pensar nos seus interesses particulares sobrepunham-se a tudo o resto.

Capítulo V. “As terríveis aventuras de Jorge de Albuquerque Coelho (1565)”

INÍCIO DA VIAGEM

TÓPICOS DE ANÁLISE

 Os primeiros parágrafos deste capítulo V (1-4) fornecem ao leitor dados importantes sobre o contexto
político, social e religioso em que decorrerão os “casos que nesta narrativa se contêm ”.
 Para além disso, no primeiro parágrafo, são-nos apresentados os antecedentes familiares daquele que virá
a ser o protagonista desta narrativa – Jorge de Albuquerque Coelho: o pai, um “fidalgo de reto espírito,
nobre, perseverante, trabalhador”, a quem D. João III tinha dado a capitania de Pernambuco; os nomes do
irmão e da mãe.
 Os parágrafos dois a quatro apresentam, de forma bastante sintética, outros factos relevantes: a viagem do
pai e dos filhos para a metrópole; o falecimento do pai na metrópole; a notícia de um levantamento dos
indígenas na colónia, acontecimento que desencadeia a viagem de regresso dos dois irmãos para
Pernambuco e a consequente eleição de Jorge de Albuquerque Coelho como chefe militar da capitania.
 Segue-se um breve relato das suas ações, com vista a destacar as suas qualidades de guerreiro, bem como as
suas qualidades morais (cf. 5.º parágrafo), como preparação para a narração da viagem que Jorge de
Albuquerque Coelho decide empreender da vila de Olinda até Lisboa, uma vez que a capitania estava
pacificada.
 A segunda parte do excerto é dedicada ao início da viagem na nau “Santo António”, sobre a qual nos é dito
que ia “Carregada […] de muita fazenda” e que saiu do “belo porto da vila de Olinda”, no dia “16 de maio de
65”. Note-se, aliás, que não faltam referências temporais concretas ao longo do texto, que marcam a
sucessão dos acontecimentos.
 Logo no início da viagem começam os contratempos. Com efeito, ainda não tinham saído da barra, o vento
conduziu a nau para um baixo. Foram socorridos por batéis, mas a nau só desencalhou quando cortaram os
mastros, o que a obrigou a regressar ao porto, onde foi examinada e novamente preparada e carregada.
 Perante este incidente, é curioso observar duas reações distintas: os amigos de Jorge de Albuquerque
Coelho aconselham-no a não embarcar; ele, pelo contrário, não deu ouvidos “a tais prognósticos” e
embarcou com os outros passageiros.
 No entanto, a viagem recomeçou com novos obstáculos: a mudança de vento obrigou a atirar carga ao mar,
o casco acabou por abrir, um furacão partiu um mastro; ocorreram trovoadas.
 Assim, a deterioração da nau (mastros cortados, logo na primeira viagem), o atraso na partida (a primeira
viagem foi malsucedida) e o excesso de carga (poucos dias depois da segunda partida, tiveram de deitar
mercadoria ao mar, pois “a nau lhes mareava mal”) são as causas que fazem prever a tragédia que se
avizinha.

Associação de Estudantes de Benavente – Ano letivo de 2019/2020


O ATAQUE DOS CORSÁRIOS

TÓPICOS DE ANÁLISE

Este excerto tem como evento central o ataque de corsários franceses à nau dos portugueses. O relato deste evento
mostra-nos:

 a bravura, a determinação, o patriotismo de Jorge de Albuquerque Coelho, que, apenas com duas armas e
com sete homens, luta contra os corsários; a inclusão quer do discurso indireto livre (ll. 6-9), quer do
discurso direto (ll. 36-41) confere realismo e força à caracterização desta personagem;
 a traição, a fraqueza dos restantes tripulantes (exceto “sete homens”) que, mal veem os corsários, decidem
render-se; só não o fazem imediatamente porque Jorge de Albuquerque consegue dissuadi-los, numa
primeira fase;
 o contraste entre a nau dos franceses – “bem artilhada e consertada”, “maravilhosamente bem ordenada,
cerrada e empavesada da popa à proa”, “tão limpa de costado que parecia caiada” – e a nau portuguesa,
sobre a qual se diz que “mais artilharia não havia a bordo que um falcão e um só berço” e que era “tão
despreparada para a guerra”;
 o contraste entre o número de combatentes portugueses – “sete homens” e Jorge de Albuquerque – e o
número de combatentes franceses – “seis dezenas de arcabuzeiros”;
 o respeito e a admiração que o capitão francês revela pelo capitão português, concedendo-lhe, por
exemplo, depois da rendição dos portugueses, o privilégio de jantar à sua mesa.

DESVENTURAS ANTES DA CHEGADA

TÓPICOS DE ANÁLISE

 Este é um excerto carregado de dramatismo, atendendo às várias peripécias relatadas com extrema
vivacidade e impacto e que denunciam mais desventuras da tripulação.
 Primeiro, têm de deitar mercadoria – caixas e armas – borda fora. Depois, assola-os uma tempestade que
atira muitos homens ao mar (portugueses e franceses), provoca ferimentos noutros e, sobretudo, desperta
o medo e o terror. A juntar a estas desventuras, verificamos o abandono dos corsários (“o navio dos
corsários se não avistava”) e a fome.
 A tempestade é descrita com muita vivacidade, o que se deve à conjugação de vários recursos:
• uso recorrente de adjetivos (“Um mar mais violento”; “O negro mar”; “vaga altíssima, toda negra por
baixo”);
• uso de vocabulário sugestivo, que revela sensações auditivas (“turbilhonando nuvens, rendilhando
espumas, açoitando no escuro”) e visuais (“Um relâmpago risca, ilumina a treva”);
• uso de alguns recursos expressivos (metáfora – “vaga altíssima […] coroada de espumas”;
personificação e hipérbole – “Fuzilavam relâmpagos”).
 A dada altura, fala-se nos “companheiros que morreram de fome” e que, por isso, têm de ser lançados ao
mar. Perante a violência deste ato e o desespero em que todos se encontravam, só Jorge de Albuquerque
parece manter a razão e a humanidade, destacando-se mais uma vez.
 Finalmente, avistam a serra de Sintra. No entanto, o navio não tinha condições para se aproximar da costa.
Algumas embarcações passam pela “Santo António”, mas só uma “barca pequenina” acode os portugueses.
 Já em terra, Jorge de Albuquerque recompensa o chefe dessa barca. E, mostrando a sua religiosidade, vai
“em romaria a Nossa Senhora da Luz”. A sua caracterização fica, assim, completa: é um homem de palavra
e de fé.
 A cena final – o diálogo travado entre Jorge de Albuquerque e o seu primo – serve para mostrar o impacto
que aquela viagem e as suas desventuras tiveram no capitão. Com efeito, Jorge de Albuquerque estava tão
desfigurado que o primo não o reconheceu.

Associação de Estudantes de Benavente – Ano letivo de 2019/2020


SÍNTESE DE CONTEÚDOS

HISTÓRIA TRÁGICO-MARÍTIMA

Temática Viagem

Género Narrativas de naufrágios da época das conquistas

Histórias verídicas relacionadas com as Descobertas

Lado trágico dos Descobrimentos – destruição das embarcações; perda de mercadoria;


perda de vidas humanas; sofrimento dos sobreviventes

Características Personagens de alta condição

Função sociológica – saber notícias de parentes ou amigos que tinham partido em viagem

Função didática – transmitir ensinamentos para futuras viagens

Função de exemplaridade – “demonstração exemplar da justiça divina”

Antecedentes › Partida › Tempestade › Naufrágio › Arribada › Peregrinação › Retorno


Estrutura narrativa
(Nota: Esta estrutura admite variações)

Materiais – mau estado das embarcações; excesso de carga; partida com tempo
Causas para os
desfavorável (ventos, estado do mar)
naufrágios
Humanas – egoísmo, ambição, desleixo

Nem sempre constam autores precisos, mas a maior parte das narrativas apresenta autoria
Autores (alguns autores eram sobreviventes de naufrágios; outros foram testemunhas dos factos
que narram)

Tempo Período entre 1550 e 1650

Período entre 1550 e 1650, na sequência dos naufrágios – em folhetos avulsos


Divulgação/ Publicação
Entre 1735 e 1736 – relatos compilados em dois volumes por Bernardo Gomes de Brito

Público Aceitação fora do comum, para a época

Capítulo V – “As terríveis aventuras de Jorge de Albuquerque Coelho (1565)”


Estrutura narrativa
Antecedentes › Partida › Tempestade › Ataque corsário › Captura › Impiedade dos inimigos
Alternativa (nos excertos analisados este “núcleo de sentido” não é muito expressivo) › Retorno

Associação de Estudantes de Benavente – Ano letivo de 2019/2020

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