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o Jan 17
o
o 11 min para ler
No caso específico da arte, não é tão difícil medir seus efeitos. Há cada vez menos
apoio estatal e financiamento público para a produção artística e cada vez mais
mercado. Há mais precarização e menos garantias. Mais discurso bem intencionado e
menos compromisso social. Mais concorrência e menos articulação coletiva. Mais
espetáculo e menos democracia.
A parceria entre arte contemporânea e lógica neoliberal vai desde a pequena escala –
como a promessa de liberdade individual, por exemplo, que se aproxima da imagem
clichê do artista – até as escalas maiores, com a presença da arte em projetos de
“revitalização” de cidades, bem como seu papel de camuflagem refletido em
operações que envolvem poluição, gentrificação, lavagem de dinheiro, etc. e tal. Para
além da discussão econômica, podemos interpretar as novas formas de fazer política
segundo algumas metodologias artísticas, vide o modo como líderes populistas
autoritários têm explorado certa performatividade elástica e espetacular, que sabe
disputar (e ganhar) a atenção dos grandes públicos. De modo geral, é possível
reconhecer o selo da “arte contemporânea” diretamente implicado na transformação
dos padrões globais de poder, sobretudo no que hoje convencionamos chamar de pós-
democracia, algo que demanda mais atenção, e um outro texto.
Mas talvez esteja fresco na cabeça do leitor o recente episódio em torno do estádio
Pacaembu, em São Paulo. A gestão de Bruno Covas e o consórcio Allegra Pacaembu
fecharam um contrato de concessão do estádio por 35 anos. Antes das reformas
começarem, em dezembro passado, o “Paca” realizou uma grande exposição chamada
“Arte em campo”, com a participação de 25 galerias e 54 artistas.[1]
Quando li um pouco mais sobre essa parceria público-privada, me perguntei qual era o
papel da exposição coletiva ali, além de maquiar, sofisticar e proporcionar uma
fachada cool que justifique interesses que estão longe de favorecer a cidade. Mas
apesar do caso Pacaembu nos fornecer material de discussão suficiente, gostaria de
concentrar este texto em torno de outro projeto recente, ainda em construção: a
Cidade Matarazzo – o primeiro hotel seis estrelas do Brasil, orçado em 1,6 bilhão de
dólares.
Certamente não me cabe aqui duvidar da sua comovente sensibilidade, mas há algo
mais em sua fala. Creio que para Allard, o processo criativo não salvará o mundo,
salvará o capitalismo. Justamente porque não há nada mais neoliberal do que a
premissa da “criatividade”. No caso da Cidade Matarazzo, um dos papéis da arte é
produzir um senso de inclusão e representatividade que está longe de refletir a lógica
estrutural do empreendimento. Mais uma vez, a equação é simples: a presença da
prática artística é recurso publicitário para valorizar e justificar o negócio, “imunizá-lo”,
quiçá.
Eu costumava achar que havia um abismo entre acreditar que a arte pode
complexificar nossos modos de estar no mundo e simplesmente reduzi-la a um
problema de gosto, mas esses discursos se encontram mais do que se imagina. Foi
Bourdieu quem identificou que, segundo a perspectiva das classes dominantes, a
maneira “legítima” de compreender uma obra é entendê-la como fim em si mesma.
Ela não deve servir a fins políticos e econômicos, mas apenas ao próprio problema da
linguagem. Porém, tal maneira “legítima”, como esmiuçou o sociólogo, tem como
pressupostos (de classe) a formação de repertório, herança familiar e posição
socioeconômica, embora os iniciados se esforcem para que soe como dom natural e
sensibilidade nata. Por isso Allard “ama” o processo criativo, porque parece acessar
algo mágico e divino quando vê alguém trabalhando em “como agregar as notas”. E
por isso seus empreendimentos também estão permeados de arte – é a aura que os
torna legítimos e admiráveis. Acontece que, aqui, a arte está sim a serviço de fins
políticos e econômicos, mas soa como se não estivesse. “O espetacular é um substituto
suficientemente bom para o democrático”, diria Hal Foster no seu “Complexo Arte-
Arquitetura” (2013).
O início desse casamento é longínquo, mas gostaria de chamar atenção para o fato de
que a tal “autonomia” da arte, que nos fez crer que a prática artística está desatrelada
de funções morais, científicas e funcionais, hoje é acionada com outras
intencionalidades. Afinal, o trabalho “tem autonomia” em relação ao projeto, ao
artista cabe fazer a sua arte, ao curador cabe fazer a sua exposição, e nada mais. Tal
perspectiva autônoma pôs o trabalho cultural na chave da transcendência, cuja
premissa é a de que a criação se dá para além das condições sociais e políticas, então
só resta aos agentes envolvidos lavarem muito bem as mãos e seguirem para a
próxima aventura. A responsabilidade é uma batata quente.
Tudo isso, é claro, nos coloca numa posição difícil. A não ser que você seja herdeiro ou
tenha sido agraciado com um sobrenome importante, pagar as contas faz com que
você tenha que jogar com esses esquemas. Daí que muitas vezes utilizamos o
argumento de que vamos “ruir o sistema por dentro” para aceitar convites de
iniciativas com que não concordamos no todo. Às vezes porque precisamos do
dinheiro, às vezes porque desejamos algum prestígio e visibilidade, ou simplesmente
porque é através delas que vai ser possível realizar qualquer coisa que seja. Na prática,
o “ruir por dentro” tem tornado essas estruturas ainda mais fortalecidas e sofisticadas
com os nossos selos politicamente engajados. E não é raro nos sentirmos ridículos.
Isabell Lorey (2015) tem definido a precariedade como forma de regulação do nosso
tempo histórico. Mais do que isso: a produção de um regime de precariedade é a
forma de governar pessoas no século XXI. A instabilidade produzida pela precarização
nos impede inclusive de protestar e exigir direitos. Tememos perder laços de trabalho
ao endereçar críticas, tememos fazer reclamações porque elas podem nos fechar
portas no futuro. A expressão “rabo preso” vem muito bem a calhar. Ademais, o
trabalho precarizado isola e individualiza o trabalhador, além de dificultar os recursos
de organização coletiva. Não apenas porque acentua a concorrência, mas também
porque fragmenta radicalmente as etapas de trabalho, suprime convivências e reduz
encontros. Por tudo isso, a precariedade é uma governabilidade, e isso também é lição
da arte.
Nós, trabalhadores do meio cultural, somos todos cúmplices dessa equação, em maior
ou menor grau, e não estou isenta disso. Me pergunto, porém, se estamos realmente
cientes de como isso integra o nosso trabalho diário. Não haverá vida imune ao
mercado e nem redenção, mas ainda vale investir em alguma sobrevida que não se
reduza a isso.
Antes de tudo, podemos desconfiar cada vez mais de discursos e propósitos pautados
na transcendência da arte, da experiência e do valor. Junto a isso, podemos
compreender que assumir uma postura política é agir diante de uma situação
concreta, que vai além de rótulos discursivos, e isso significa analisar deliberadamente
com quem nos associamos e sob que condições. E se não nos resta alternativas de
trabalho mais saudáveis, talvez possamos negociar melhor os nossos aceites, de forma
mais ativa e propositiva. Em todo caso, celebrar a “diversidade brasileira” não basta,
cumprir as normas da representatividade tampouco. Precisaremos de articulação e
imaginação coletiva e, não custa lembrar, já percebemos que isso não se resolverá nos
feeds do instagram.
Notas
[1] “Estádio do Pacaembu é invadido por obras de arte às vésperas de reforma”, Folha
de S.Paulo, 09 de dezembro de 2020,
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/12/estadio-do-pacaembu-e-invadido-
por-obras-de-arte-as-vesperas-de-reforma.shtml
[4] “Cidade Matarazzo, complexo com hotel e shipping terá centro cultural”, Veja São
Paulo, 13 de fevereiro de 2020, https://vejasp.abril.com.br/cidades/anish-kapoor-casa-
bradesco-da-criatividade-cidade-matarazzo/
[6] “Não estamos falando de pequenas samambaias num jardim vertical, mas sim de
árvores enormes, de 15 a 18 metros, que dialogam com a altura da torre. É a ascensão
por meio da natureza.” – Essas são as aspas de Jean Nouvel no site do
empreendimento.
[8] No site do projeto, o designer Philippe Starck explica suas escolhas: “Utilizamos
pedras brasileiras extraordinárias assim como madeiras brasileiras lindíssimas. Todos
os quartos do hotel serão equipados com um kit-mural que permite ao hóspede expor
ou não obras de arte brasileiras através de um jogo de painéis em lambril de madeira.
Há algumas vitrines com estatuetas e outras com arte plumária. É a realização do que
associo à imagem e ao objeto.”
[9] “Hito Steyerl na tradução de Julia de Souza: ‘Políticas da arte: a arte
contemporânea e a transição para a Pós-Democracia’”, A palavra solta, 06 de outubro
de 2020, https://www.revistaapalavrasolta.com/post/hito-steyerl-na-tradu
%C3%A7%C3%A3o-de-julia-de-souza?
fbclid=IwAR3sgQmM0cvXwdrXCdNMss5ssOlXY915egj6NAxsCxgd95CIACq3UPQHYG4