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Sempre Teremos o Vale

Série
Horses Valley

Livro 6

Mônica Cristina

~ 2020 ~
Copyright © 2020 - Mônica Cristina
Revisão: Margareth Antequera
Diagramação: Margareth Antequera
Capa: Raphael Viana

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e


acontecimentos descritos são produtos da imaginação do autor.
Qualquer semelhança com nomes, datas e acontecimentos
reais é mera coincidência.
Qualquer outra obra semelhante, após essa, será
considerada plágio; como previsto na lei.
Esta obra segue as regras da Nova Ortografia da Língua
Portuguesa.
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escrito do autor.
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9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal.
Índice
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 1
Guy

Eu tinha cinco anos quando a luz se apagou. Clique. Foi só


isso, a luz apagou. Nada demais, não se vive nas noites escuras?
Não se viveu mesmo antes do advento da lâmpada? Dizem que
meus olhos estão nas pontas dos meus dedos, no mito da minha
superaudição, em um olfato apurado e no paladar impecável. Talvez
em todas ou em nenhuma dessas coisas, meus olhos estão na alma
e no coração.
Eu sou Guy Montpellier, músico, filho, irmão, amigo, eu sou
jovem, sou riso, lágrima, medo. Cego, é só mais uma vírgula, não é
o ponto final, não é minha definição, é característica como todas as
outras, é só mais uma coisa sobre mim.
Se eu sou como todo mundo? Não, felizmente não. Eu sou
Guy Montpellier e eu sou único, como todos são.
Na sala, uma festa de aniversário me espera. Vinte anos,
eu me lembro de quando fiz dez anos e pensei em como estaria em
mais dez anos, aqui estou, e gosto de quem eu sou, como será
daqui mais dez anos?
Uma esposa, dois filhos, um prêmio “Tony” com Peggy Sue
e, talvez um “Grammy”.
Sorrio pensando no quão vaidoso e tolo isso parece, não
preciso de nenhum prêmio para ser feliz fazendo o que amo.
Música.
Escuto as vozes na sala, todos já reunidos à minha espera,
todo ano a festa do meu aniversário é sempre no dia seguinte da
Festa da Cidade, mesmo fazendo aniversário no mesmo dia que
Horses Valley, comemoramos no dia seguinte e agora temos o
casamento de Peggy Sue para comemorar também.
Uma pena ela ter ido para Lua de Mel logo depois do
casamento, seria bom tê-la em meu aniversário, tem oito anos que
ela não participa.
Ando até à beira da cama, onde a caminha de Lumière fica
para que ele esteja sempre por perto. O velho cão que atravessou a
vida ao meu lado, como guia, amigo, irmão.
— Quer descer, amigo? – Afago seus pelos me sentando
no chão ao seu lado, sinto seu focinho se apoiar em minha coxa,
afago os pelos espessos e agora cheio de fios brancos como Coline,
minha irmã caçula, me descreveu tantas vezes. – Está cansado, não
é? – Meu coração dói um pouco quando penso em tudo que
vivemos, na pena que é sua vida estar se acabando, enquanto a
minha começando. Queria meu amigo comigo pela eternidade,
ninguém dividiu mais a vida comigo do que ele, ninguém assistiu
meus medos e aventuras mais de perto do que Lumière.
Escuto o barulho de passos pela escada e depois no
corredor.
— Lá vem ela – digo sorrindo para em um instante a porta
se abrir.
— Chegou todo mundo, Guy! – Coline avisa ansiosa como
se fosse o seu próprio aniversário.
— Estou descendo. – Seus passinhos se aproximam, ela se
senta ao meu lado e sua mão esbarra na minha enquanto afaga
Lumière. Coline não conhece o mundo sem ele, será ainda mais
doloroso para ela.
— Você não vem, Lumière? – Sua voz soa dolorida, tem
sido triste assisti-lo entregue a velhice, desejando a paz e não mais
interessado em correr pelo mundo ao meu lado. – Guy, ele vai ficar
aqui sozinho?
— Quando foi que deixamos, Lumière sozinho? – Aperto
seu nariz, ela empurra minha mão. – Está fazendo careta, mocinha?
— Não estou, não.
— Está sim. – Faço cócegas em minha irmã que se
contorce e se afasta. – Levo Lumière e você me leva. Feito?
— Feito! Seu bobalhão!
— Bobalhona! – retruco porque sei que ela adora isso.
Ergo-me trazendo Lumière nos braços, ele é pesado, grande e
fisicamente está bem na medida do possível, apenas idoso e
cansado.
Eu não preciso que Coline me guie, eu cresci nesta casa,
conheço cada milímetro deste espaço, mas ela gosta de fazer parte
disso. Caminha perto de mim com uma mão em meu braço,
deixamos o quarto e viramos o corredor, as vozes ficam mais claras,
tem riso e sei que é Lolla. A melhor risada do Vale, espalhafatosa e
contagiante.
— Escada – Coline avisa e começo a descer. Tem um
pequeno burburinho no andar de baixo seguido de um leve silêncio.
“Esse menino vai rolar a escada com esse cachorro e a irmã” – é
isso que grita nas mentes de todos que provavelmente estão a me
assistir.
— Aqui, filho, coloca ele no sofá – mamãe diz com
naturalidade.
Minha salvadora, eu não sei que tipo de pessoa eu seria
sem ela, quando Amanda Bryant entrou em nossas vidas, meu pai
era apenas sua dor e culpa e eu era medo, eu não tinha mais a
minha mãe e tinha perdido também o papai, ele nem conseguia ficar
perto de mim tamanha a pena que sentia, nem gosto de pensar em
como ele sofria e em como ele me achava incapaz.
Ela veio sem pena, sem piedade, me encheu de coragem,
me fez forte, Mandy se tornou antes minha luz, depois minha mãe e
ainda hoje me desafia, instiga, empurra.
Sigo sua voz até o sofá, discreta e natural, ela me ajuda e
Lumière está ajeitado no sofá em instantes. Basta que me vire para
cumprimentar as pessoas e ele deixa o sofá esbarrando em minha
perna como de costume, não importa quão cansado esteja, ainda é
o meu guia.
— Feliz aniversário, Guy. – Harper é a primeira a me puxar
para um abraço, depois todos os outros, uma onda de
cumprimentos e felicitações que dura uns quinze minutos. Jay fica
por último, meu carinho por ele é diferente, Jay, assim como minha
mãe, me ajudou a ter asas, ele me guiou para um novo mundo que
se descortinou com o braile e os estudos, mas não posso esquecer
quem realmente me fez seguir o caminho que escolhi, papai, com
suas primeiras lições sobre o piano, quando eu e todos eles
entendemos que era a música que me acompanharia para sempre.
— Tem bolo de chocolate, com morangos e cerejas, muita
calda, as frutas estão espalhadas sobre ele e a calda desce em um
tipo de cascata, coloquei um arranjo com orquídeas lilás sobre a
mesa, temos vinho e suco de uva. – Mamãe descreve ao meu lado.
Sinto a mão do meu pai dar uma leve apertada em meu ombro.
— Velas como aquelas do seu aniversário de quatro anos. –
Eu me lembro da luz das velas que pareciam uma estrela a brilhar,
antes de uma pequena explosão de cores. – Balões coloridos para
as crianças. Não para você. – Meu pai diz e eu sei que está rindo. –
Porque é um adulto fazendo 20 anos agora.
— Está me provocando, papai?
— Talvez um pouquinho.
— Licença, papai, vou ajudar o Guy a apagar a vela. –
Coline se esmaga entre nós e eu a ergo no colo quando ela começa
a bater as mãozinhas na minha barriga em um pedido de atenção.
— Pronto. Coline vai apagar as velas logo depois que
vocês cantarem a música do parabéns assustadoramente
desafinados, menos você, Lolla Queen.
— Que susto! – Lolla diz rindo. – Com sua audição absoluta
já senti medo.
— Nem quando fala sua voz desafina, Lolla. – Ela gargalha.
Os parabéns começam, com Coline no colo, eu espero até
o fim da música, me dobro um pouco para frente e escuto seu
assopro forte e os aplausos diante do seu sucesso.
Minha mãe entrega a faca em minha mão e leva meu pulso
em direção ao bolo. Uma vida toda convivendo com a minha falta de
visão nos deu intimidade e fazemos tudo de modo mecânico.
Depois de cortar o bolo, ela serve a todos, o meu é o
último, primeiro como sempre, Coline, minha pequena mimada,
depois Holly, dessa vez, Shane não veio com seus pestinhas,
embora ele seja muito amigo do meu pai e eu muito próximo de
todos, eles foram buscar Jimmy em Dallas.
Sinto que uma história nova vai ser contada pelas ruas da
pequena Horses Valley, Jimmy de volta e Penny Lane na cidade, na
vida que escolheu de professora do colégio. Quem sabe agora os
dois tenham uma chance? Peggy e eu sempre torcemos para isso.
— Lily, seu bolo está divino! – digo em voz alta.
— Do jeitinho que gosta, Guy! – ela responde e concordo,
minha mãe me entrega um copo de suco de uva, meu preferido,
eles tomam vinho, mas eu detesto não ser responsável por meus
atos, não gosto de perder o controle a ponto de precisar de ajuda e
uma única vez bebi além da conta, foi aos 17 anos em Paris.
Depois de um dia interminável de aulas no conservatório,
decidi sair com um grupo de colegas para um bar, estava uma noite
de brisa fresca, primavera em Paris, a primeira e única namorada
que já tive ao meu lado e eu bobo querendo impressionar.
Meia dúzia de taças de vinho, depois eu estava
completamente desnorteado, é horrível não controlar o corpo, não
reconhecer os sons, a confusão me assustou tanto que liguei para o
meu pai, dez minutos e ele estava lá e foi sorte ter mamãe para dar
leveza a esse momento. Ele ficou furioso, eu apavorado e mamãe
achando tudo engraçado.
Meu pai me deu banho, vomitei toda a noite e nunca mais
bebi, só não foi pior porque mamãe discretamente o lembrou que
ele já tinha tomado um porre uma vez e conseguido a proeza de se
perder em Horses Valley.
— Vai ficar mesmo, Guy? – Maggie me pergunta quando
nos sentamos espalhados pela sala, olho em direção ao som de sua
voz.
— Sim, gosto de viver aqui, Horses Valley me inspira mais
que Paris e agora que a Peggy vai começar a produzir o musical
acho que posso trabalhar melhor aqui, se for o caso, vou até Nova
York encontrá-los.
— Eu fico muito feliz, porque se conheço seus pais, eles
iriam deixar o Vale para perseguir você – Noah brinca e tem razão,
levou tempo até papai parar de me seguir pelas ruas do Vale.
Sinto Lumière esbarrar em mim e depois o peso dele sobre
meus pés, decido não deixar meu lugar para não o incomodar.
A conversa continua, as vezes presto atenção, outras deixo
minha mente vagar por lembranças de outros tantos aniversários, os
dias aqui, a vida em Paris, gosto de morar com meus pais e Coline.
Jovens como eu, costumam desejar independência aos 20 anos, a
maioria deles em universidades, mas eu amo música e passei
quatro anos enfiado em um conservatório com os melhores em
Paris, estive em Viena para um curso de dois meses, participei de
concertos e conheci grandes nomes, me sinto tão preparado quanto
qualquer um que esteja se formando em uma faculdade
convencional, talvez mais.
Não sei se sou o prodígio que alguns colegas e professores
disseram enxergar em mim, mas sei que faço o que amo e que
posso fazer em qualquer lugar e, Horses Valley parece perfeito e
junto da minha família ainda mais.
Boa parte dos convidados vai embora uma hora depois do
bolo, Lolla, Jay, Harper e Noah ficam, Holly está no jardim com
Coline, posso ouvir os gritinhos de felicidade da minha irmã e
imagino Holly cuidando dela e inventando brincadeiras para distraí-
la.
— Quando a nova criança chega, Lolla? – meu pai
pergunta.
— Desta vez não é uma criança, ela já tem 18 anos.
Também não é um lar temporário.
— Como é isso? – Noah continua.
— Um lar violento, a mãe nunca quis denunciar o pai e
acabou prendendo a filha nesse círculo de violência e segregação, a
menina sofreu muito junto com a mãe, o pai era agressivo com as
duas, possessivo, dominador, como todo lar que passa por essa
situação, mas a mãe se recusava a denúnciá-lo, nunca quis nem
mesmo deixar a casa. – Jay conta com a voz consternada. – Há uns
quatro meses, a mãe ficou doente, problemas pulmonares que se
agravaram e por fim, faleceu, a família era assistida por minha mãe
e ela foi ao velório, lá a Emily pediu ajuda a ela, ficou com medo do
pai, de ficar para sempre presa sob o peso da violência dele,
mamãe a levou com ela, o homem esbravejou, lutou, mas mamãe
chamou meu pai e meu irmão e, conseguiram tirá-la de lá.
— Que história triste.
— Muito, Mandy – Lolla responde. – Ela não está se
adaptando na casa dos meus pais, está muito abatida, a mãe levou
poucos meses desde a doença até a morte, foi rápido, em seguida
teve essa pequena guerra com o pai da Emily e agora ela finalmente
está livre dele e achei que era boa ideia ela vir ficar aqui no Vale.
— Ideia perfeita – Harper concorda – Conte conosco.
— Vou precisar, ela não vai morar para sempre comigo, já é
uma moça, só quero ajudá-la a encontrar seu caminho, acho que o
Vale é seguro e tranquilo, ela pode arranjar um trabalho e alugar um
lugar, começar a vida.
— Com o passar dos anos o Vale virou um lugar mais
aberto e acolhedor, não vão faltar pessoas dispostas a ajudar –
Noah comenta, acho que desde o que aconteceu com Harper, pelo
que sei, sua chegada foi triste, mas ensinou muito às pessoas
daqui.
— Graças a Harper – comento me lembrando das histórias
que cresci ouvindo.
— Foi mesmo – minha mãe concorda.
— Vai ajudar a Emily, Guy? – Jay me pede.
— Eu?
— Sim, vocês têm mais ou menos a mesma idade, devem
ter mais em comum e quem sabe pode adaptá-la à cidade.
— É o queridinho do Vale – Lolla me provoca. – Está com o
Guy, está com proteção.
— Na medida do possível, se tiver algo que possa fazer,
não tem problema – digo sem a menor ideia de como ajudar a
moça.
— Bom, pessoal temos que ir, vamos abrir o Drunks. –
Harper começa as despedidas que levam os últimos convidados
para casa, sobramos apenas nós.
Coline triste sem seus amiguinhos, mas é tarde, ela deve
estar é com sono.
— Rapazes, comecem a limpar a bagunça da festa, eu vou
levar essa garotinha para cama – mamãe avisa e lá vamos nós. Fico
com a pia de louça para lavar, enquanto papai recolhe os pratos.
— Quantas pessoas vieram, afinal? Cem!
— Nem me fale, sua mãe logo correu – ele diz dando um
tapinha nas minhas costas. – Vou secar.
— Pai.
— Sim.
— Acha muito estranho eu morar ainda com vocês? – Um
longo silêncio, eu sei o que significa, ele teme que eu peça para ter
meu espaço.
— Guy...
— Não estou querendo me mudar – digo a ele antes que
ele se assuste demais. – É o oposto, tenho independência, sabe e
eu também sei que posso cuidar de mim mesmo e morar sozinho,
mas eu gosto de viver aqui com vocês.
— Filho, eu não vejo nenhuma razão para ir viver em algum
lugar sozinho quando pode ficar e viver conosco, ajudar com sua
irmã, tem seu espaço, construímos seu estúdio, tem seu escritório
no quarto e temos ainda mais espaço.
— Eu sei que não falta espaço, não é essa a questão.
— E qual é a questão? – ele me pergunta, enquanto coloco
mais um prato no escorredor.
— Acho que é sobre... – Penso em como dizer a ele. –
Independência? Acha que aqui não é muito cômodo para mim?
— Filho, isso é sobre como você se sente, ou sobre como
teme que as pessoas te vejam?
— É, eu não sei responder, talvez um pouco dos dois.
— Em algumas culturas os filhos não saem de casa tão
cedo, alguns só saem casados e outras culturas nem mesmo assim,
não é nada demais. Não acho que deva pensar sobre isso, somos
uma família e ter você aqui nos faz bem.
— E quando eu me casar? – Penso no futuro, na família
que quero construir.
— Tem uma garota que eu não sei?
— Não – respondo rindo, ele saberia se tivesse, não
escondo nada dele, resolvemos nossas questões quando eu era só
um menininho, agora somos amigos. – Se tivesse saberia, mas eu
espero que um dia tenha. Quero casar e ter filhos e eu não quero
demorar demais para isso.
— Você é um menino! – ele diz não gostando muito do meu
plano.
— Papai, eu sou adulto e independente.
— Adora me jogar na cara que tem seu próprio dinheiro –
meu pai me provoca.
— Você fez os investimentos a vida toda e eu ganhei um
dinheiro bom com os concertos e com aquela música que vendi para
o cinema. – E que talvez nunca toque porque o filme não aconteceu
ainda e pode ser que nem aconteça.
— Rumo ao “Tony” com Peggy Sue – ele brinca e seu tom
de voz não soa como uma ironia sem fé. Ele acredita em mim.
— Temos chances se ela investir na produção como está
querendo. O François tem muitos bons contatos e eles agora
também tem um nome de peso, pode dar mesmo muito certo.
— Acabaram? – Mamãe entra na cozinha e meu pai coloca
o pano de prato em meu ombro.
— Não vou ficar aqui sozinho limpando. Mãe! Ele está
abandonando o posto.
— Só vou dar um beijo na sua mãe – meu pai se defende.
Escuto o beijo barulhento de pura provocação, então sinto-
o retirar o pano do meu ombro. De volta ao trabalho, encontro o
último copo para meu alívio, deixo no escorredor e seco a pia,
depois meu pai me atira o pano para secar minhas mãos, acerta
meu rosto e com rapidez eu ainda o pego no ar, isso é tão novo para
ele, meu pai é a pessoa com mais dificuldade com a minha
deficiência visual.
— Vou levar o Lumière para sua volta no jardim e dormir,
boa noite casal e obrigado pela festa.
— Boa noite, filho. – Mamãe me puxa para um abraço. – É
como ver o papai, são iguais e cada dia se parecem mais. – Sempre
gosto de ouvir isso, o rosto que não posso ver refletido no espelho é
o rosto do meu pai quando eu era um menino, jamais me esqueci
dos seus traços e saber que me pareço assim com ele me dá uma
real dimensão de como sou.
— Somos muito bonitos, papai.
Fico com seu riso a me acompanhar até chegar à sala. Não
preciso chamar Lumière, basta abrir a porta da sala e escuto suas
patinhas vindo ao meu encontro. Um pouco de ar da noite e o
perfume das flores e posso dormir tranquilamente.
Capítulo 2
Emily

A estrada que me leva para a nova vida é uma monótona


paisagem desértica que parece deixar meu coração tão vazio que
me assusta, a secura das terras em torno, parece competir com
minha alma, apenas o céu diverge da paisagem com um azul
límpido e quase nenhuma nuvem.
Mesmo com o ar-condicionado ligado, quando se olha
através da janela, é possível perceber o calor insuportável a arder
sobre a terra seca e o asfalto infinito.
Uma balada dançante parece nunca terminar, enquanto Jay
dirige e Lolla Queen ao seu lado, balança de modo ritmado, ela não
canta, mas emite sons cheios de melodia com a garganta que me
impressiona.
Toco o jeans surrado alisando minhas pernas, é mais um
pequeno ataque de ansiedade que qualquer outra coisa, quase
posso sentir o ar faltar em meu peito, como se as vias respiratórias
estivessem bloqueadas impedindo o oxigênio de inundar o meu
peito.
Volto meus olhos para a estrada, uma árvore surge em
meio ao deserto, feito sombra enviada por Deus para possíveis
perdidos e solitários viajantes, o carro vai percorrendo a estrada e
dobro meu pescoço até que ela desapareça da minha visão. Queria
ter sua força, sobreviver ao inferno dos dias quentes e a geleira das
noites, enfrentar as tempestades, os ventos bravios, se curvar
diante da fúria da natureza, mas jamais se render e continuar ali,
incólume, frondosa abrigando na sombra de sua copa os perdidos,
os esquecidos, os frágeis.
Eu não sou como ela. É uma certeza dolorida, machuca
admitir meu fracasso, 18 anos, tantos já são donos de seus
destinos, já conheceram o mundo e estão por aí vivendo suas
batalhas, mas eu estou no banco traseiro de um carro, com um
casal de quase desconhecidos, mergulhando em uma jornada que
me assusta, cala, estremece, porque eu não sei para onde ir, eu não
sei onde é meu lugar no mundo.
A paisagem vai mudando de cor, o terreno morto e seco vai
dando lugar a uma paisagem mais verde e bem cuidada, com
grama, árvores, cercas que ladeiam a estrada e seguem em direção
às colinas. Cavalos correm livres pelos pastos e esses também me
emocionam e causam inveja, a liberdade de ser quem são e correr
sem medo, a potência de suas patas, a dignidade que esses
animais transmitem também me causa um sentimento ainda mais
forte de impotência.
— Estamos chegando ao Vale, Emily, sempre que a
paisagem mudar assim e os cavalos surgirem você vai saber que
está chegando em casa.
Lolla é tão gentil e generosa e eu não devolvo como ela
merece, um pouco por pura timidez, outro tanto a falta de força para
reagir ao mundo que me cerca, devia ser grata, eu tento ser, mas
ainda não sei pelo o quê.
— Esse é o rancho Berckman, você vai conhecê-lo melhor.
– Jay avisa para me tranquilizar e tento sorrir. – Vai gostar do Vale,
Emily, não sinta medo.
— Obrigada. – Forço a voz a sair clara para que eles
escutem, aqui no banco de trás o som é bem mais alto. Jay baixa o
volume.
— Estava muito alto, Emily? – Lolla se vira um pouco para
olhar para mim e balanço a cabeça negando. – Espero que goste de
música.
— Lolla não vive sem música, Emily, mas vai se acostumar.
— Vocês não têm que mudar nada por minha causa – aviso
cheia de vergonha de estar incomodando o casal com minha vida.
— Não vamos, mas não quer dizer que tenha que ficar
muda sobre suas necessidades.
Eu me calo, nunca vou reclamar de nada, já me sinto
envergonhada por precisar viver com eles e não ter a menor ideia
de como vai ser e por quanto tempo vou ficar.
Entramos na pequena Horses Valley, o letreiro parece novo
“Bem-vindo a Horses Valley. População 3.007 Habitantes.”
As pessoas aqui devem se conhecer por nomes, eu
imagino que minha chegada vá trazer muito assunto para eles, vou
morrer de vergonha de receber olhares de todos os lados.
As ruas são tranquilas, quase não vejo carros, o comércio
está calmo, isso não é tão bom quanto parece, para alguém como
eu que precisa de trabalho, este lugar não parece ter muitas
oportunidades.
O salão de beleza de Lolla é gracioso, quando o carro para
na porta fico encantada com o lugar, pelo vidro posso ver tudo
organizado, muito brilho, tecidos em estampas vistosas, é meio
exagerado, porém a cara dela.
— Vem, querida. – Ela passa o braço por meu ombro, Jay
carrega minha mala e entramos em sua casa, não é grande, mas é
muito bonita. Como o salão, tem uma decoração chamativa e
colorida, estampa de onça, dourado, prata, cores, vida. A casa de
alguém feliz.
— Não tem muito que conhecer, sala, cozinha – ela vai
apontando os ambientes. – Banheiro social, mas eu fiz umas
reformas, então tem duas suítes, a suíte master. – Ela faz um
trejeito engraçado levando uma mão para baixo do queixo e
erguendo a outra para o alto. Jay balança a cabeça em uma
negação, mas está rindo. – E a outra suíte, mais simples. Tivemos
que fazer essa pequena reforma para receber melhor as crianças
e... você. – Sinto um pouco de constrangimento em sua fala, claro
que é a primeira vez que eles recebem alguém com idade para
cuidar de si mesmo. Meu rosto queima de vergonha. – Vamos
conhecer o seu quarto.
Fica logo depois da sala, já o quarto do casal fica no fim do
corredor. É um lugar simples, cama de solteiro, uma cadeira, uma
cômoda com meia dúzia de gavetas, um guarda-roupa de duas
portas, não tem enfeites, nada além de um abajur ao lado da cama
em uma mesinha, a janela tem vista para a rua. O banheiro é
simples e pequeno, mas me faz pensar que poderia viver bem em
um lugar assim pequeno, quando conseguir um trabalho e me
mudar, quero ver se consigo uma casinha como a de Lolla, nem
imagino quanto se paga em um aluguel por aqui.
— Vou deixar sua mala aqui. – Jay coloca a mala ao lado
da cama. – Tenho que voltar para o colégio. Está em casa, Emily,
não pense que é um problema para nós, é isso que fazemos,
ajudamos quando alguém precisa, aprendemos com você, trocamos
ideias, temos boa companhia e por fim, é sempre uma ótima troca.
— Obrigada, Jay.
Ele me sorri antes de beijar Lolla e nos deixar, ela me olha
buscando entender minhas emoções, desvio meus olhos dos seus.
— Vamos ter muito tempo para conversar. Agora acho que
quer descansar e se acomodar. – Ela toca o trinco para sair e fechar
a porta.
— Lolla! – chamo com um pouco de angústia. – Obrigada,
eu nem sei o que dizer.
— Obrigada é sempre uma boa palavra. – De novo ela
tenta sair e um vazio assustador me invade o coração.
— Lolla! – chamo mais uma vez.
— Sim.
— Eu... você não disse as regras da casa. – Lolla desiste de
sair, vem até mim, puxa minha mão para nos sentarmos na cama.
Sua mão não solta a minha, ela tem a mão quente e parece cobrir
toda minha em um gesto carinhoso.
— As regras aqui são bem simples: respeito, amor,
paciência. – Ela afasta meus cabelos para o lado. – Você é tão
bonita, vai ser minha cobaia em maquiagem e penteados – ela
brinca. – Está segura, Emily. Segura e livre.
Duas palavras que ainda não sei o significado, elas
simplesmente não fazem sentido para mim.
— Obrigada – digo de modo vazio, apenas por educação.
— Vou abrir o salão, se precisar grite, volto para o jantar.
Coma se sentir fome, durma se quiser dormir, vou ver se
providencio uns livros, quem sabe uma televisão para seu quarto,
pode... mudar as coisas de lugar. Esse espaço é seu.
— Não vou me acomodar, ser preguiçosa, eu prometo.
— Querida, este primeiro mês é de adaptação com a casa,
comigo e com o Jay, com a cidade, depois vamos descobrir seus
talentos, pensar em um caminho, está bem? Não se apresse, tem
coisas para acalmar em seu coração, antes do próximo passo.
— Niara disse que você se parecia com ela e que eu
gostaria muito de vocês, pensei que era só um elogio de sogra, mas
é verdade, você é gentil e generosa como ela.
— Minha sogra me ama – ela brinca em uma careta cheia
de movimento.
— Muito.
— Descanse. – Ela me beija a testa e se apressa, não
encontro nada a dizer e acabo sozinha no quarto, com a porta
fechada e o coração apertado.
A solidão me obriga a pensar, me leva ao passado, me
enche de saudade da minha mãe, de medo do meu pai, medo das
lembranças.
Eu cresci sob o peso do medo, ao som dos gritos e na dor
da violência e opressão. Não sofri nem metade do que mamãe
sofreu. Ela sim conheceu a dor e a solidão, gritos de socorro que
nunca foram ouvidos.
Não me lembro quando começou, acho que quando nasci a
vida deles já era violenta. David Lynch achava que a maneira de
cuidar da família era agredindo, oprimindo, exigindo. Até os meus
oito anos, ela sofreu o diabo nas mãos dele.
Ainda posso ouvir a voz dele a gritar com ela, duvidando o
tempo todo de tudo que ela dizia, se ele chegava do trabalho e a
comida não estava pronta é porque ela tinha passado a tarde com
algum amante, não importava nada do que ela dissesse, só existia a
sua versão, criada por uma mente doente.
Quando minha avó morreu e o vovô foi viver conosco tudo
mudou, até os meus 14 anos a paz reinou, ele podia ser muito
bravo, gritar e ser grosseiro, me impedir de ir a qualquer lugar,
receber amigos em casa, mas não batia, não podia nunca mostrar o
seu pior lado na frente do próprio pai.
Acho que foi no terceiro dia depois do enterro do vovô que
ele desferiu o primeiro tapa no rosto da minha mãe e eu acho que
tinha me esquecido de como era, com 14 anos eu já entendia bem o
que estava acontecendo e foi uma tolice tentar defendê-la.
Levo minha mão ao rosto como se ainda pudesse sentir o
ardor da mão pesada a deixar sua marca. Nunca mais parou.
Depois do primeiro tapa, ele nunca mais parou de
machucá-la e também a mim, escola, casa e nada mais, sem
amigos, sem vida, sem sonhos, só o respirar baixinho para não tirá-
lo do sério e esperar até o novo surto e as desculpas e o recomeço
e o ciclo foi ficando cada vez mais rápido até que não tinha mais
pedidos de desculpas e recomeço, ele nos venceu.
Eu balanço a cabeça afastando as memórias, talvez nunca
mais me esqueça, não importa muito, esquecer ou não, ainda sou
um produto desse mundo e por isso estou nesta casa estranha,
sendo socorrida por desconhecidos generosos.
Abro a mala e separo as roupas com cuidado, guardo tudo
nas gavetas e armário, ajeito a cama, confiro as cobertas, lençóis e
travesseiros, os produtos de higiene no banheiro, tudo parece em
ordem e meu estômago reclama.
Na casa dos Turners eu não fiquei muito sozinha, Niara
estava sempre por perto, o senhor Turner também, e tinha sua filha,
o genro, as pessoas que eles estavam sempre a acolher, não dava
tempo de pensar muito em mim, acho que era muito melhor.
Ando pela casa olhando os pequenos bibelôs que enfeitam
os móveis, quando chego à cozinha aproveito para lavar a louça do
café da manhã que eles parecem ter deixado mais cedo, abro a
geladeira, é péssimo me sentir invadindo a privacidade de alguém,
mas a fome fala mais alto e preparo um sanduíche, volto para a
sala, não tem nada além da televisão e ligo em busca de alguma
distração, não sou boa em ficar comigo mesma, eu costumo viajar
para um mundo muito sombrio e apavorante.
A televisão me distrai por um tempo, deixo a casa para ir
até o salão da Lolla perto da hora do jantar, posso preparar algo se
ela quiser, acho que Lolla vai estar cansada de tudo, viajou até
Dallas para me buscar, depois voltou direto para o trabalho.
Seu riso me chega aos ouvidos antes mesmo de abrir a
porta do salão e o sininho avisá-la, ela ergue os olhos sentada em
sua cadeira de manicure, na frente dela, uma mulher ruiva muito
bonita, tem uma garotinha brincando de pintar as próprias unhas na
cadeira ao lado.
— Olá, Emily. – A mulher me cumprimenta sem que eu
saiba quem é.
— Oi.
— Emily, essas são minhas amigas e clientes, Mandy e a
Coline. – A pequena abre um sorriso, tem esmalte rosa até a
metade dos dedinhos delicados.
— Depois eu limpo direito – ela diz como se me devesse
explicações. Sorrio achando a garotinha de cabelos vermelhos tão
bonita quanto a mãe.
— Não quero atrapalhar, Lolla.
— Senta, Emily, não atrapalha em nada! – Mandy responde
por Lolla e me acomodo em uma poltrona próxima a elas.
— Mamãe, acha que está ficando bonito? – a pequena
pergunta e Mandy olha com atenção.
— Um ótimo trabalho, filha, vai roubar o lugar da Lolla, logo,
logo! – O riso de Lolla Queen se espalha pelo pequeno salão,
Mandy troca a mão para Lolla continuar seu trabalho. – Lolla me
disse que tinha uma garota linda em casa, ela não foi exagerada,
você é muito bonita, Emily, seja bem-vinda.
— Obrigada, senhora...
— Montpellier! – Lolla diz em um tipo de provocação que
faz as duas rirem.
— Só Mandy, meu anjo, está ótimo. Vai gostar da cidade e
se acostumar com a nossa simplicidade.
— Eu espero que sim. Lolla, eu vim saber se gostaria que
eu preparasse o jantar.
— Alguém que sabe cozinhar! – Lolla comemora, seus
olhos encontram os meus e ela me sorri. – Não hoje, essa noite
saímos eu, você e o Jay para comer. Assim dá uma volta pela
cidade, amanhã se quiser me ajudar, pode cozinhar, tenho clientes
agendados o dia todo.
— Está bem – digo sem saber se fico ou vou embora,
talvez elas queiram conversar.
— Emily, me ajuda? – Coline me estende um vidro de
acetona. Olho para sua mãe em busca de aprovação.
— Se puder ajudar. – Ela completa o pedido e me ajeito
para tirar o excesso de esmalte dos dedinhos da garotinha. – Está
gostando da casa? Cedo para dizer, não é?
— Gostei muito – digo sem mentir, como não gostar de ser
recebida e apoiada quando não se tem saída ou escolha? – Acho
que a Lolla talvez se arrependa, ela recebe crianças sempre e pela
primeira vez uma moça adulta, mas eu já prometi não me demorar
muito.
— Por que acha que é a primeira vez que recebo uma
moça adulta em casa? – Lolla me questiona e abro e fecho a boca
sem saber do que se trata.
— Achei que tinha um lar temporário para crianças e
adolescentes – conto a ela que ergue os olhos mais uma vez para
me observar, depois volta ao trabalho e eu continuo a tentar limpar
os dedos da garotinha.
— Maggie morou com Lolla um tempão. – Mandy conta. –
Ela perdeu os pais, ficou sozinha e com problemas, Lolla a recebeu
em sua casa.
— Não imaginei.
— Hoje Maggie é minha sócia na floricultura e é casada
com o Elton, um cowboy do rancho Berckman.
— Sorte? – pergunto com medo de me inspirar em Maggie.
— Talento! – Lolla me avisa. – Ela tem muito talento com as
flores, começou com um emprego na floricultura e depois se tornou
sócia e nesse meio tempo se apaixonou e se casou com o Elton.
— Que bom – digo sem saber como conversar mais sobre
isso, ela tem um talento, eu não, então só posso contar mesmo com
algum tipo de sorte.
— Elton salvou Maggie, ela foi atacada lá em casa, naquele
quarto que você... – Lolla se cala quando Mandy parece pisar em
seu pé como um alerta.
— Vai assustar a menina! – Mandy alerta. – Emily, a cidade
é tranquila, acho que foi a única vez que tivemos problemas e ele
veio de fora, atrás da Lolla.
— Está preso agora. – Lolla continua. – Há anos preso e
tudo voltou a paz e tranquilidade e o único trabalho dos policiais da
cidade é separar briga de cowboy bêbado.
— Essas nunca acabam. – Mandy continua.
— Mas suas unhas sim. – Lolla diz quando termina o
trabalho. – Lindas!
— Obrigada, Lolla, estão mesmo lindas.
— Já estou acabando, mamãe. – Coline avisa quando
consigo terminar a primeira mão e pego a segunda. – Você é bem
legal, Emily.
— Obrigada, Coline.
— Festa da cidade, casamento da Peggy Sue e aniversário
do Guy, minhas unhas não resistiriam muito mais que isso. – Mandy
brinca com Lolla.
— Peggy estava tão linda. Os anos passaram, mas aquele
rostinho de anjo continua.
— Lolla e o Kyler? Que par mais fofo, eu sempre soube que
não tinha nenhum rapaz aqui na cidade para nossa Peggy, ela tinha
sonhos demais para o Vale.
— Certeza que não tinha, Mandy.
— Peggy Sue Sanders venceu, como sempre disse que
faria, a pessoa mais determinada da cidade.
— A atriz? Aquela que namora o Kyler Allen? – pergunto e
as duas sorriem balançando a cabeça. – As garotas do colégio eram
loucas por ele.
— Você não? – Mandy me pergunta.
— Eu não podia ir ao cinema, na verdade só ouvia elas
conversando sobre essas coisas.
— Uma hora te conto a vida da Peggy para te inspirar. –
Lolla promete.
— Vou gostar de saber – admito tendo um pouco mais de
trabalho no último dedinho da garotinha inquieta. – Pronto, senhorita
Coline, está linda.
— Merci – a garotinha diz em uma mesura.
— Estivemos alguns anos na França, voltamos há pouco
tempo, ela ainda confunde um pouco. – Mandy me explica.
— Mandy é a milionária da cidade. – Lolla brinca. – Ela e a
Gwen.
— Mas só a Gwen gosta de se gabar disso. – Mandy usa
um tom de brincadeira, não acho que esteja falando realmente mal
da pessoa.
— Ela é nossa amiga, casada com Shane Berckman,
depois que ela chegou ao rancho eles deslancharam, mas ela vai
arranjar um jeito de te contar isso. – Lolla continua.
— Bem, eu tenho que ir. – Mandy fica de pé. – Pronta,
pequena? – Coline balança a cabeça afirmando. – Papai vai ficar
muito feliz em ver suas unhas pintadas. – Agora sim uma ironia
clara. Acho que o pai não acha certo a pequena pintar as unhas,
penso se Mandy passa pelas mesmas coisas que minha mãe
passou, se Coline é ou vai ser como eu.
— Papai sempre acha tudo lindo em mim – ela diz animada
e desfazendo por completo a imagem de violência que fiz em minha
cabeça, eu jamais me referiria ao meu pai com tanto carinho.
— Acha mesmo. – Lolla ri. – Emily, me ajuda a fechar o
salão?
— Claro. O que eu faço?
— Amanhã jantam lá em casa. Vou convidar nossos amigos
e apresentamos a Emily. – Mandy avisa me causando um tipo de
pavor que nem consigo explicar.
— Estou amando essa semana agitada em Horses Valley –
Lolla responde deixando claro que aceitou o convite e, já me
imagino cercada de desconhecidos e morrendo de medo.
Capítulo 3
Emily

Chicken Pie, é o nome que está no letreiro da lanchonete


típica e pequena que entramos para jantar. Tem mais umas quatro
mesas ocupadas e todos nos olham quando entramos.
Lolla e Jay são cumprimentados por todos. Vejo que são
muito queridos. Alguém pergunta se vai ter show na sexta e Lolla
confirma com o seu jeito alegre, a garçonete chega com seu
bloquinho e um avental.
— Ellen, essa é a Emily, ela está conosco e veio para ficar
na cidade. – A garçonete me sorri com gentileza.
— Então acho que posso aproveitar e indicar as fritas e o
hamburguer de frango com queijo branco e tomate seco, invenção
minha. – Ela pisca e balanço a cabeça em um tipo de sim.
— Acho que vamos todos provar a nova especialidade da
casa. – Lolla toma a decisão.
— Se minha diva decidiu está decidido – Jay concorda e eu
acho que eles têm uma vida boa, espero não presenciar nenhuma
grande briga desse casal, eu nem saberia o que fazer se estivesse
presente em um momento como esse.
A comida não demora, enquanto esperamos, o casal fica
conversando sobre o dia, Lolla conta sobre as clientes, ela é sempre
engraçada e, nos faz rir um pouco quando conta sobre o cabelo de
uma tal senhora Ross que chegou com o cabelo pintado de
vermelho pedindo socorro.
— Ela estava com um turbante e quase caí para trás
quando ela tirou, foi engraçado ver o desespero da mulher, tudo
porque tinha planos de encantar o marido e só conseguiu ficar
parecendo um tomate gigante. Depois ficou linda, foi embora toda
feliz.
— Todo dia você encontra uma coisa como essa, eu nem
sei por que elas não vão direto ao salão – Jay brinca. – Lolla joga
praga nas mulheres que tentam incursões solitárias. Nunca dá certo
e elas correm para o salão.
— Tenho sorte, só isso – ela responde rindo. – Mandy nos
convidou para jantar amanhã. – Ela muda de assunto.
— Ah, será ótimo, Emily, vai conhecer umas pessoas da
cidade.
— Eu preciso ir? – pergunto com vergonha antes mesmo
de chegar a hora.
— Querida, vai ser bom, eu sei que é tímida e está
assustada, mas você pode ficar um pouco, a cidade é tranquila,
pode vir embora antes se quiser.
— Obrigada – digo achando que não consigo ficar na casa
deles sozinha durante a noite.
— Como foi o seu dia, Jay? Tudo bem na escola?
— Ótimo. Penny Lane está indo muito bem com sua sala,
ela é realmente boa, traz novidade à escola, alguns professores
mais antigos ficaram meio incomodados como te contei, eles têm
dificuldade com o novo, medo de mudanças, Penny é popular entre
os alunos e isso incomodou bastante.
— Ela tem um jeitinho tão gentil, nem acredito que alguém
possa ter problemas com ela.
— Eles estão mais tranquilos, acho que todo mundo
entendeu que é o lugar dela e não se pode mudar isso, aceitar ou
não, dá no mesmo, Penny Lane vai ficar.
— Amo você, Jay. Amo mais ainda saber que você é esse
cara firme que não se rende.
— Nunca. – Ele beija seus lábios e ela acaricia seu rosto.
São um casal bonito demais, quero perguntar se são felizes, se não
brigam, mas não tenho coragem.
A comida chega e eu acho perfeita, o prato é enorme, daria
para todos só o que ela me entrega, mas os dois parecem não
encontrar problema algum em devorar tudo, enquanto luto para
tentar chegar à metade do prato.
— Essa pequena é muito amadora – Lolla brinca. – Não se
engane com esse musculoso gatinho aqui do nosso lado, Emily, Jay
corre e se exercita horas para poder gastar tudo com comida. Como
pode ver, o marido perfeito. – Ela pisca para ele.
— Como pouco. – É tudo que consigo dizer.
— Exercícios? Gosta de malhar ou qualquer coisa assim,
quem sabe um esporte?
— Eu não sei, Jay, acho que vou ter que descobrir. Nunca
tive chance de praticar nada e muito menos frequentar uma
academia. – Acho que só pronunciar algo assim em casa já valeria
ao menos um bom castigo.
— Um dia desses me acompanha e descobre – ele avisa e
balanço a cabeça concordando.
Não ficamos nada além do jantar, voltamos para casa logo
que acabamos, eles se acomodam na sala com uma taça de vinho e
os CD .
— Amor, escuta essa voz – Lolla o convida. – Jess Glynne.
Eu estou apaixonada. – Ela fecha os olhos sentindo a música. Jay a
tira para dançar, o casal fica abraçado em uma dança suave, ela
sentindo a música e vez por outra cantarolando. Eu não sei bem se
estou atrapalhando, se é certo ficar, se eles esperam que me
recolha, fico meio de canto, apenas ouvindo o CD, uma das músicas
parece agradar mais o casal e escuto pelo menos umas três vezes.
Eles conversam sobre notas musicais, sobre melodia, letra,
velhos artistas, eu só escuto, mas a música parece não sair da
minha cabeça. Take me home.
A letra me faz pensar se algum dia eu encontraria alguém
assim, capaz de me levantar, capaz de acalmar meu coração, me
tirar do escuro.
O casal desliga a música e aproveito para me despedir e é
bem difícil pegar no sono. Fico revirando na cama, hora pensando
em minha mãe e como sinto sua falta, as lágrimas sempre correm
quando penso que ela não teve um dia de paz em longos anos de
casamento. Ora penso em meu futuro, esse que desconheço porque
não sei que caminho seguir, não gosto da solidão, não gosto de me
lembrar e não reconheço esse lugar como meu.
O sono vence a batalha já no meio da madrugada e quando
desperto pela manhã, a primeira coisa que tenho em mente é a
noite em companhia de desconhecidos em uma festa que não tenho
a menor vontade de ir.
A casa está vazia e silenciosa quando deixo o quarto
depois de arrumá-lo com todo esmero, é estranho não me sentir
livre, por um instante de loucura, quando deixei a casa do meu pai,
eu me senti livre, mas a verdade é que não sou, ainda estou presa a
ele, as suas regras e ao medo que tenho de um dia ele bater à porta
de Lolla Queen me pedindo de volta.
A mesa de café da manhã está posta, tem um bilhete ao
lado da xícara escrito com uma letra desenhada em um dourado
leitoso e, sorrio pensando que apenas Lolla Queen teria uma caneta
dourada para deixar recados.
“Tome seu café com tranquilidade e vá passear pelo Vale,
nos vemos no almoço.”
Talvez fosse boa ideia andar pela cidade e conhecer
pessoas, mas eu não sou o tipo que conhece pessoas por aí, eu
nunca fiz isso, nunca faria, então eu apenas tomo o café e depois
aproveito para cuidar um pouco da casa, é o jeito que encontro de
agradecer à hospitalidade, tirar o pó, varrer a casa, abrir janelas e
deixar o ar puro entrar, leva toda manhã, só não me atrevo a entrar
no quarto do casal, seria invasão e, não ajuda.
— Emily! – A voz de Lolla soa na porta da sala e deixo o
quarto para encontrá-la perto da 1h da tarde, ela está de pé na sala
com a mão na cintura e olhos cheios de uma sombra colorida me
olhando de modo engraçado. – O que significa isso? – ela me
pergunta e engulo em seco sem saber o que responder. – Andou
limpando minha casa?
— Desculpe, Lolla, eu... eu não tinha ideia de que não iria
gostar, eu só... eu... eu queria agradecer a gentileza e... e...
— Pare de gaguejar, menina. – Ela ri. – Adorei, quem não
gosta da casa limpa e perfumada. Só não estou mais feliz porque já
te conheço um pouco e aposto que não teve coragem de dar uma
arrumadinha no meu quarto.
— Achei que fosse invasão.
— Que pena! – Ela sorri e vem até mim, prende minha mão
à sua. – Não quero que faça isso. Quer dizer, quero que faça,
porque moramos todos aqui e é natural que todos façam algo pela
casa, quando as crianças chegam eu trato de dar a elas tarefas,
elas sempre vêm cheias de medo, sem muito controle, vindas de
lares onde não existe regras, respeito, tarefas ajudam a colocar
rotina em suas vidas, mas... você não é uma criança.
— Eu sei, eu acho que esse é mais um motivo para fazer o
trabalho.
— Vê? É isso, trabalho, não trabalha aqui, não pode apagar
o meu gesto de carinho e amizade limpando tudo como se eu
tivesse te trazido em busca de alguém que cuide de tudo para mim
e não ganhe nada para isso.
— Acha que é como me sinto?
— É como eu e o Jay vamos nos sentir, Emily. – Ela me
puxa para a cozinha, me faz sentar em uma cadeira enquanto abre
o freezer e retira um congelado que leva ao micro-ondas. – Se visse
quantos casos assim já vimos acontecer. Tem gente que faz isso em
busca de auxílio financeiro, pega o dinheiro que o governo dá para
os pais temporários que precisam de ajuda e não fazem nada pela
criança. Buscam mais de uma criança e adolescente, outros apenas
os colocam para trabalhar de graça, não são todos, não são nem
mesmo a maioria, mas existem e envergonham quem faz isso de
coração.
— Entendo. – Realmente entendo o que ela quer dizer,
Lolla não quer se sentir assim.
— Ótimo. Segunda-feira.
— Como assim?
— Não abro o salão às segundas-feiras, e Jay vai para a
escola apenas no período da tarde, então nas manhãs de segunda-
feira, fazemos uma boa faxina na casa e depois passo a tarde
cozinhando e congelando, recebo minhas amigas no fim da tarde,
tomamos chá e conversamos ou vou às compras, essas coisas.
— Tudo bem, entendi, vamos trabalhar todos juntos neste
dia.
— Isso mesmo. Quer um refrigerante ou prefere suco?
— Posso tomar suco de uva?
— Claro. Lembrei do Guy, o filho mais velho da Mandy, ele
também adora. – Coloco os pratos e talheres, ela pega copos e o
suco. O micro-ondas ainda ligado descongelando o almoço. – O que
será que vamos almoçar? – Lolla brinca. – Nunca sei, congelo
jurando que vou saber o que é, mas depois de uns dias me
confundo e as refeições são sempre uma surpresa. O Jay ama isso.
— O que eu amo além da minha diva, é claro. – Ele surge
quase que se materializando na cozinha. – Tudo bem, Emily?
— Sim, obrigada.
— Você ama não saber o que temos para comer – ela diz
quando ele a envolve e beija seus lábios. – Saudade do marido
lindo. – Lolla corre as mãos pelo peito dele com olhos sensuais,
sorrio desviando meus olhos, é muito engraçado e ao mesmo tempo
constrangedor.
— Emily tem vergonha do nosso amor, querida. – Jay
brinca apenas para me provocar. Lolla solta uma de suas
gargalhadas.
— “Querida” é de arrepiar, nunca teria dado certo se me
chamasse assim.
— Diva, é muito melhor. – Ele beija seus lábios e depois
seu pescoço. – Não posso ficar muito, marquei uma reunião logo
mais com pais de dois alunos.
— E a Holly, como está indo? – Lolla pergunta e Jay
suspira.
— Me diga, por que os filhos dos meus melhores amigos
têm que ser meus piores alunos? Holly é voluntariosa.
— Vê como meu marido nasceu para esse trabalho? Holly
é uma pestinha, mas ele a chama de voluntariosa. Como você
chama o Mike, amor?
— Mike Berckman é hiperativo – ele responde servindo
suco para todos. – Imagine quando os irmãos estiverem todos na
escola?
— Shane e Gwen têm três crianças, Mike está com oito e é
o mais velho, tem o Callan com seis e a Cassady com dois aninhos,
são crianças criadas em um rancho, cercados por cavalos, vida
livre, é difícil para eles se acostumarem com uma sala de aula. Holly
é a filha da Harper e do Noah, ela é cheia de vida e energia, está
com 12 anos, é neta do prefeito.
— Ex-prefeito – Jay corrige Lolla.
— O.k., ela é neta da prefeita – Lolla conta rindo. – A
senhora Anderson é a nova prefeita, a esposa, mãe da Harper, mas
Holly também é neta do velho Butch e parece gostar muito mais
disso. Butch é um cowboy aposentado, muito querido na cidade,
como os Andersons, mas Butch é diferente, ele é... rústico e Holly...
bem, ela é igual.
— E a Coline? – A garotinha que conheci ontem pareceu
um anjinho, doce, simpática e educada.
— Coline é uma francesinha linda – Jay brinca. –
Concentrada e esperta, mas tagarela, todo dia algum professor
reclama que ela não para de falar, mas está começando, ela ainda
não entendeu direito o processo, ficou muito tempo na França.
Temos o Jerry também, filho do Elton e da Maggie, bom menino,
nove anos, é só uns meses mais novo que a Coline e uns meses
mais velho que o Mike, são muito amigos.
— São o futuro do Vale, é lindo vê-los todos juntos, acho
que hoje terá a chance de conhecê-los – Lolla me lembra do
encontro de mais tarde e suspiro.
— Vai ficar tudo bem. – Jay tenta me animar. – Estamos
falando da nossa família, Emily. São pessoas especiais, generosas
e muito íntimas. Vai se sentir em casa se der uma chance a eles.
— Eu sou tímida, parece que sou mal-educada e chata,
mas é que... eu tenho vergonha e o meu pai era... vocês sabem,
bravo, ele não gostava muito que eu conversasse com as pessoas,
nem a minha mãe.
— Ele não é bravo, seu pai é possessivo e doente, ele tinha
medo de vocês se aproximarem muito das pessoas e elas
descobrirem como ele era um canalha. – Lolla despeja a verdade
sem se segurar, é um longo silêncio, ela tem razão, não me
machuca por querer defendê-lo, apenas dói, porque a verdade, às
vezes, é bem dolorida.
— Lolla! – Jay segura sua mão, parece sem direção,
mortificado pelo ataque de honestidade de Lolla Queen, ela me olha
um tanto arrependida e balanço a cabeça em negação.
— Não mentiu, Lolla, eu sei quem ele era e sei o que ele
fazia, eu quis ir embora, não fico... ofendida.
— Desculpe, Emily, eu não devia ter dito, ao menos não
assim. Sinto muito, tenho uma língua grande, Harper diria que é a
maior do Vale, mas então eu rebateria que é a dela, de todo modo...
sinto muito, não tenho que falar nada dele.
— Se fica pedindo desculpas fico mais envergonhada ainda
– aviso com o rosto queimando por ser responsável por essa
pequena cena.
— Vamos esquecer isso e terminar o almoço. – Jay pede e
encaro o prato enquanto Lolla toma um gole do suco.
— Uma boa dose de uísque teria sido melhor – ela diz em
uma careta. – Vou te levar para me ver cantar no Drunks.
— Amor, ela não tem idade.
— Ninguém sabe disso, Jay.
— Amor... eu sei – Jay avisa e Lolla lança uma careta a ele.
– Sou o diretor da escola, preciso dar exemplo.
— Vê o que acontece quando se apaixona pelo cara
certinho? – ela reclama. – É assim que acontece, ele chega gato,
sensual, diz que não vai desistir de você, te convida para ouvir
música, nunca caia nessa, quando o cara quer que escute um disco
qualquer, quando entende tudo de música e está aí todo disposto a
ser gentil e educado, ele só quer roubar seu coração, fuja enquanto
é tempo – Lolla brinca de me alertar.
Não acho que vá encontrar um rapaz especial, que me
aceite assim, sem direção, medrosa, triste e solitária, mas se ele
existisse, eu morreria de medo, medo de pensar que ele é especial
e descobrir que ele vai me machucar a vida toda, como aconteceu
com a mamãe e tantas mulheres que conheci frequentando a casa
dos Turners.
Os pais do Jay são muito envolvidos em todo tipo de causa
e com isso conhecem todo tipo de pessoas e por muitas vezes,
foram eles a acolherem mamãe.
O resto do dia passo olhando Lolla trabalhar, embora ela
insista para um passeio pelo Vale, eu não me sinto bem em sair
sozinha. Coloco o meu melhor vestido para ir ao encontro dos
amigos do casal, não sei bem como será, mas pelo que entendi
Mandy é uma moça rica que mora na melhor casa da cidade, talvez
seja um jantar formal desses de filme e eu não sei se posso me
comportar como se espera.
Lolla está linda, usa um vestido verde de seda, a
maquiagem combina com a roupa e os cabelos tem um longo
aplique em um rabo de cavalo que escorre pelas costas, as unhas
estão pintadas de um prateado perolado que brilha me distraindo o
tempo todo.
Depois de uns minutos de caminhada, eu me dou conta que
está uma noite linda e estrelada, percebo que o Vale é um lugar
incrível para ver as estrelas.
A casa é incrível, mas é o jardim que me rouba o ar, fico
perplexa com a beleza do jardim da mansão. Não apenas pelas
cores e belas plantas e flores, mas a iluminação e a quantidade de
plantas que se espalham por todo terreno como se mergulhássemos
em um tipo de lugar encantado. Podia passar o resto dos meus dias
aqui, presa por esse encantamento e mergulhada na magia deste
lugar. Uma fonte derrama água cristalina em um pequeno lago na
lateral da casa, dá vontade de chorar tamanha a beleza do lugar.
Mandy é uma artista.
— Eu sei, é magnífico – Lolla me diz quando me puxa para
dentro da casa. – Vai ter muito tempo para ele.
Mandy nos recebe com abraços, ela me apresenta ao
marido, ele é um homem lindo, com um leve sotaque francês,
elegante e bem vestido, dá uma sensação de cavalheirismo. Coline
corre para nos receber, me abaixo para beijar seu rostinho e ela me
mostra os dedinhos sem esmalte.
— Já tirei, acho que fica melhor assim.
— Você é muito linda de qualquer jeito – digo piscando para
ela.
— Chegamos! – Um garotinho entra correndo e abraça
Coline, é seguido por outro garotinho menor e um casal com uma
menininha no colo do pai.
— Como vai pessoal. – A moça cumprimenta. – Emily, você
é linda.
— Gwen, essa pequena está linda. – Lolla sorri para a
pequena criança no colo do pai, logo a garotinha se oferece para
ela.
— Cassady te ama – Gwen responde.
— Ela gosta é de amassar meus vestidos – Lolla responde
pegando a pequena sem muito jeito.
— Não seja má com minha filha, Lolla Queen – O homem
responde.
— Você parece Natal, tia Lolla, por isso ela te ama. – O
garotinho maior responde.
— Desculpe, Lolla, o Mike puxou a mãe.
— Pois, eu acho, senhor Shane Berckman, que isso é bem
a sua cara – Jay rebate.
— Não fomos os primeiros. – Outro casal entra. – Emily,
que linda. Lolla ela parece uma boneca! – A mulher me abraça. –
Sou Harper e esse é meu marido Noah, aquela garotinha se
juntando às crianças é a Holly, minha filha.
— Adolescente, mãe, eu vou cuidar deles, não brincar com
eles.
— Adolescente, mãe! – Harper a imita. – Se comporte ou
chamo o diretor Jay. – Harper brinca e Jay faz cara de desespero.
— Jerry! – os garotos gritam quando um menininho chega
com os pais e parece que o grupo de crianças está completo,
porque eles se misturam e começam uma brincadeira pela sala.
O casal cumprimenta as pessoas. Enviam-me sorrisos
gentis, são bonitos juntos, todos os casais e seus filhos são bem
bonitos juntos.
— Maggie, você fez a sobremesa? – Harper questiona.
— Sim, e tive que esconder do Elton e do Jerry, já deixei na
cozinha. Emily, que princesa você é. Bem-vinda ao Vale. – Maggie
também me abraça e sinto que Lolla falou de mim com todos,
porque ela simplesmente não me apresentou a ninguém e todos me
conhecem pelo nome.
Os grupos vão se misturando, conversando, corro meus
olhos pela casa, é linda, aconchegante, florida, colorida.
Eu me acomodo em uma poltrona e fico um tanto confusa
sem saber em que direção seguir, qual conversa prestar atenção, as
crianças a correr, conversar e brincar.
Um rapaz desce as escadas com um cão pastor-alemão no
colo, o focinho branco do animal parece entregar a idade avançada,
não é preciso que ninguém me diga que esse é o filho mais velho de
Mandy, ele é a cópia do pai, não fosse os poucos fios brancos que
parecem começar a aparecer em Mathieu, poderia confundi-los.
Ele coloca o cão no chão assim que chega ao fim da
escada. É tão bonito que não consigo desviar meus olhos. Ele corre
os olhos pela sala, sorri para todos.
— Boa noite, pessoal. – Não me dirige uma única palavra,
parece me ignorar por completo. O cão continua ao seu lado, olhos
e ouvidos atentos, eu sempre quis ter um cachorro, mas meu pai
achava que seria apenas mais uma boca para ele alimentar e nunca
permitiu.
— Guy! – Meia dúzia de crianças o cercam, ele ri, afaga
uns cabelos.
— Oi, crianças. Essa casa está muito perfumada hoje. – Ele
comenta andando pela sala com todas as crianças a cercá-lo. Tem
mel e morangos silvestres na sobremesa?
— Nem de longe, Guy! – Maggie responde, ele olha para
ela e dá de ombros.
— Bem, temos mel e morangos silvestres por aí. – De
novo seus olhos passam por mim e pelo resto da sala e eu sei como
é ser ignorada, não é nada incomum para mim, mas não consigo
evitar sentir uma certa mágoa, todos foram tão gentis comigo e me
receberam com tanto carinho. Talvez ele seja um desses riquinhos
metidos que não me acha à altura de ser sua amiga, quem sabe,
como todo os outros, ele já sabe da minha história e me ignora de
propósito, uma pena, seus pais são gentis e educados e a irmã é
um anjinho encantador.
— Vem, Guy, vamos tocar – Coline pede a ele. – Pessoal,
vou mostrar como já estou aprendendo – ela diz ansiosa.
— Mas já vamos começar a sessão/concerto? – ele
comenta sorridente. É estranho como ele me faz sentir um mundo
de coisas só por estar na sala. Acho que é isso que chamam de
atração. Eu estou atraída por sua beleza e triste por ser ignorada e
com vergonha de estar na mesma sala que ele sem saber como
agir, mas isso é sempre igual, não é culpa dele. Talvez nada seja
culpa dele. Ele só não quer falar comigo e até isso pode ser
simplesmente culpa minha.
— Por favor, Guy, vem. – Coline puxa o irmão até o piano.
— Se prepara, Lolla, parece que a noite começou cedo –
ele diz a Lolla que ri com gosto.
— Essa pequena é afinada, Guy? – Lolla questiona.
— Azáleias coloridas. – É um jeito engraçado de dizer que
sim, ele não pode ser assim sensível e ao mesmo tempo tão
grosseiro. – Pronta, pequena?
A garotinha começa a tocar, ele segura sua mão, ela faz
careta.
— Não faça careta! – ele diz a irmã.
— Não estou fazendo, bobalhão.
— Semitonou logo no primeiro acorde. De novo – ele
insiste. – Percebeu Lolla?
— Guy, meus ouvidos não são tão bons quanto os seus.
— É a sua música, Coline, fiz quando nasceu, são nuvens
de algodão em um céu azul de verão. – Não consigo desgrudar os
olhos dele. Guy Montpellier tem um poder estranho sobre mim, ele
olha para os convidados e parece tão risonho e feliz, mas me ignora
por completo. – Está aí a vantagem de não enxergar, podem ouvir
músicas, enquanto eu posso vê-las.
Ele não enxerga. Abro a boca como em um susto, levo a
mão aos lábios e, meu rosto queima no mesmo instante de
constrangimento pelo que pensei e pior, por não conseguir esconder
a surpresa.
Capítulo 4
Guy

Coline sempre fica ansiosa para tocar, muito mais pela


paixão por elogios do que pela paixão por música, mas ela aprende
rápido, os dedos ainda são pesados e não posso negar que me irrita
um pouco qualquer nota desafinada, mas também me enche de
amor ser eu a ensiná-la como um dia o papai me ensinou.
Ela volta ao piano, mergulho os dedos nas teclas e me
causa arrepios pelo corpo, leva pouco mais de um minuto toda a
música, foi talvez minha primeira composição, então muito mais
simples.
Uma chuva de aplausos assim que ela toca o último
acorde. Minha pequena me abraça, beijo o topo de sua cabeça, sei
que seus cabelos tem o tom dos cabelos da mamãe e que ela tem
os olhos como os meus e os do papai.
— Peggy Sue vai ficar triste quando souber que não é a
única Estrela do Vale – digo a ela que volta a me apertar.
— Guy, eu esqueci de apresentá-lo a Emily – Lolla avisa e
me lembro de uma conversa sobre a jovem que ficaria um tempo em
sua casa.
— Vá brincar, Coline, depois do jantar tocamos mais – peço
a ela quando deixo o piano e fico de pé.
— Vem aqui, Emily! – Lolla pede com seu jeito pouco
delicado, estendo a mão para não constranger a moça, as pessoas
nunca sabem bem como cumprimentar um deficiente visual. Ora são
mãos estendidas ao vento, ora são mãos a caçarem a minha para
apertos exagerados.
— Oi. – A voz é suave feito o amanhecer. A mão é tão
delicada e macia que a minha parece envolvê-la por completo, eu
sabia que tinha um aroma de mel e morangos silvestres, é ela.
— Como vai, Emily? – pergunto sorrindo e sem forças para
soltar sua mão delicada.
— Bem, você é... um artista. – Parece um bom elogio e eu
sorrio para ela.
— Obrigado. Gosta de música? – Uma voz no meu interior
diz que devo soltar sua mão, mas eu a ignoro.
— Muito, mas eu não tenho talento, eu não toco e nem
canto nada. – Emily se apressa a dizer como se eu fosse atirá-la
sobre o piano exigindo que toque.
— Já tentou aprender algum instrumento?
— Não – ela diz sem soltar sua mão da minha. Eu me
obrigo a me afastar, não quero constranger ninguém e talvez a voz
soe um pouco incerta por conta disso.
— Quando quiser testar se tem algum dom conte comigo.
Sou bom professor.
— Obrigada – ela responde sem prolongar a conversa.
Estou muito curioso sobre ela, quero saber como é, pela voz e o
toque, é uma linda garota, mas é a minha primeira impressão.
Sinto algo bom vindo dela, algo suave, um tanto triste,
talvez, mas isso pode ser só o constrangimento de estar em um
grupo de desconhecidos.
— Eu disse que sentia um perfume de mel e morangos
silvestres. – Sorrio pensando se ela está sorrindo também, se as
bochechas estão coradas, ou ela está me achando um maluco. É
uma curiosidade diferente que me acerta em um lugar diferente,
mexe com minhas emoções, com meu coração, me ativa a vontade
de ficar mais perto dela.
— Acho... acho que é só o meu xampu e o perfume que
uso – ela diz com a voz sumindo.
— Jantar, meninos! – Mamãe convida. As crianças passam
sapateando em uma onda de vento, barulho e esbarrões, sinto a
mão de Emily procurar a minha em proteção, no mesmo instante
que Lumière cola seu corpo ao meu.
— Desculpe – ela diz soltando minha mão
apressadamente, e eu não sei como me sinto. Não é como quando
as pessoas se preocupam comigo a ponto de me fazerem sentir
incapaz, mexe comigo de um modo especial, acho que eu não
posso ser um bom amigo para Emily como Lolla espera, não sei se
seria muito honesto quando tenho esses pensamentos em uns
instantes de uma conversa que mal chegou a acontecer.
— Está tudo bem. Lumière cuida de tudo, conte a ela,
amigo – afago os pelos do cão ao meu lado.
— Ele é tão lindo, posso afagá-lo?
— Sim, ele vai gostar muito, Lumière é um sedutor que é
bem capaz de me deixar em apuros por um carinho.
Sinto quando ela se move, é sensorial, posso notar
movimentos, o vento, a direção do som, muitas coisas me
direcionam. Minha mão esbarra na dela entre os pelos de Lumière.
— Ele é lindo. Seu nome também é lindo. Lumière! –
— Eu mesmo escolhi.
— Jantar, meninos. Guy, traz a Emily! – meu pai insiste e
me afasto do Lumière. Aponto a direção da sala de jantar, dá para
ver de onde ela está, é um espaço aberto e próximo a sala principal,
mas indico o caminho de modo educado.
— Vamos ou o papai não vai desistir. Não começam sem a
mesa completa – aviso enquanto caminho sentindo Emily ao meu
lado. Conto as cadeiras até meu lugar de sempre, me acomodo e
sinto Emily se sentar ao meu lado.
— Temos plumérias brancas enfeitando a mesa. Um arranjo
central e mais um em cada ponta. – Mamãe descreve enquanto
escuto barulho de louça. – Cordeiro assado, batatas rústicas, salada
verde, risoto de espinafre e temos molho de redução de vinho e,
também mostarda e mel.
— Está aí o cheiro de mel que sentiu – Harper comenta e
sorrio sabendo exatamente de onde vem o cheiro de mel que senti.
As bandejas vão passando de mão em mão. Quando uma
chega a minha frente, vem com um aviso discreto, papai está ao
meu lado também e sabe como me ajudar sem parecer tanto que
está fazendo isso.
Não queria me lembrar de como ele não gostava de me ver
lutando para aprender a me virar para comer e, como mamãe lutou
também por isso. Ela me preparou para o mundo sem pena.
— O cordeiro, Guy.
— Obrigado, papai. – Pego a travessa, encontro o pegador
sobre ela do lado direito e me sirvo de um pedaço. – Emily. –
Estendo em sua direção ela aceita e sinto o movimento de tirar a
bandeja da minha mão, depois de me servir, começo a comer
enquanto escuto as conversas em torno da mesa, crianças e suas
pequenas discussões.
Eu não tive tanta sorte, eram poucos os amigos próximos
para brincar comigo quando era pequeno, Peggy Sue era próxima,
mas muito mais velha e acho que eu devia persegui-la e as outras
meninas. Passava horas conversando com elas sobre o casal mais
bonito do Vale, era engraçado e agora acho que eu as incomodava
um pouco.
— Shane, o Jimmy não chegou ontem? – pergunto
pensando onde está meu amigo que não veio se juntar a nós.
— Sim, ele chegou, não te ligou porque veio meio resfriado,
está de cama. Aliás, a Penny não foi convidada, Mandy?
— Foi sim. – Dessa vez eu respondo. – Mas ela estava
cansada e resfriada – respondo rindo. A mesa toda ri comigo e sei
que Emily não está entendendo nada, como sou profundo
conhecedor dessa sensação, decido ajudá-la. – Jimmy e Penny
namoraram alguns anos atrás, logo que o Jimmy chegou à cidade,
mas terminaram para estudar e seguiram caminhos diferentes,
foram fazer cursos diferentes em faculdades diferentes. Penny
estudou pedagogia em Dallas, enquanto Jimmy foi para Wisconsin
cursar veterinária. Ficou todos os anos lá, incluindo a residência, em
seguida seguiu para uma especialização em cavalos fora do país.
Ela se formou e voltou para ser professora na escola local, depois
de um tempinho como assistente em Dallas.
— Agora os dois estão com medo de se encontrarem. –
Shane encurta a história. – Guy é muito detalhista.
— Eles se gostam – digo a ela. – Pareci meio fofoqueiro,
mas é que não é nada agradável ser a única a não entender do
assunto.
— O tio Jimmy não está nada doente, ele só é fujão. – Mike
avisa e têm mais riso à mesa. – Só uma tossinha, papai que falou.
— Eu disse que não devia falar essas coisas na frente das
crianças. – Gwen alerta o marido um tanto tarde demais. Escuto o
riso de Emily ao meu lado e sinto vontade de procurar sua mão, mas
me contento com o seu perfume.
— Uma pena – ela comenta tão baixinho que eu não sei se
quer mesmo que alguém escute sua fala.
— O que é uma pena?
— Ah! O casal separado, uma pena.
— Vão voltar, sei que se gostam, é meio chato quebrar o
gelo, mas depois tudo fica bem. – Dou um gole na taça com água,
ela não prolonga o assunto e não sei se estou sendo enfadonho ou
se ela é tímida e decido deixá-la quietinha.
O jantar é cheio de brincadeira, riso e crianças, Cassady é
a nova estrela, fica passando de colo em colo, acho que desde que
Holly nasceu que não ficamos sem crianças.
Deve ter sido das coisas que mais senti falta nos anos na
França, os pequenos gritando e correndo.
Depois do jantar Emily se afasta de mim, me envolvo em
uma conversa com Jay e Lolla sobre música e conto um pouco do
projeto com Peggy Sue e Kyler.
— Eles vêm passar uns dias aqui depois da Lua de Mel,
vamos ter chance de discutir o processo.
— Vai se mudar para Nova York?
— Não, só... talvez uma visita quando o projeto estiver
andando. Eles vão dar conta de tudo. Já escrevi o roteiro, as
músicas. Está pronto.
— Quero saber quando eu vou ganhar uma música sua. –
Lolla me pede e não tive nenhuma inspiração para ela, mas quando
acontecer vai ser linda, a voz dela é especial e única.
— Quem sabe. Tenho uma proposta de uma turnê e se
aceitar fico uns meses fora.
— Sério? – A voz é de animação, mas ainda não estou
animado para isso.
— Mas não é meu plano, acho que quero ficar um tempo no
Vale, trabalhar em algum projeto independente, um CD ou quem
sabe aceitar uma trilha sonora, eu recebi uns convites, mas acho
que posso não pensar em nada disso por enquanto.
— Pode mesmo. Deve se divertir um pouco, isso sim – Lolla
comenta até que é chamada para outra roda de conversas.
— Eu vou dar uma volta com o Lumière no jardim – aviso
para deixá-los à vontade. Sigo em direção à porta, abro e Lumière
passa por mim cheio de pressa.
Assim que fecho a porta escuto uma melodia horrível, não
tem ritmo, não tem harmonia, mas é encantadora. A música fala
sobre ser levada para casa, sobre ser salva, sobre ser erguida antes
da queda. Alguém que agradece a mão estendida, um tipo de
história de amor, gosto da letra, mas desconheço essa melodia e
isso é algo que normalmente me irrita, mas agora me causa riso.
A voz é bem baixinha, próxima a fonte e sei que é Emily
solitária. Não resisto em me aproximar, por mais que não ache certo
invadir um momento de solidão, eu não resisto a uma aproximação.
— É a pior cantora que conheço – digo rindo e ela cala por
um instante.
— Cuidado com o lago. – Ela é delicada demais, queria
saber como é.
— Não se preocupe, cresci aqui e o Lumière está comigo,
ele nunca me deixaria cair na água.
— Ah! – É tudo que escuto, um tipo de lamento talvez
envergonhado, sinto o rabo de Lumière e depois seu corpo me
parando, acho que cheguei ao limite. Sento-me sentindo o meu
braço esbarrar no dela.
— Tudo bem, não sabia e não era obrigada a saber.
Lumière foi um presente para me fazer companhia e, sozinho
aprendeu a ser um cão guia, desde então nunca nos separamos. –
Afago seus pelos, minha mão toca a dela outra vez. – Acho que ele
gosta de você.
— Sempre quis ter um amigo assim, mas nunca pude. –
Voz triste, finalmente me lembro de ouvir qualquer coisa sobre sua
história e as razões para estar com Lolla, uma onda de carinho
passa por mim, alguém delicada assim não tinha que passar por
esse tipo de coisa. Ninguém deveria.
— Agora é adulta e pode escolher, quem sabe encontra um
bom amigo.
— Quem sabe – ela diz sem muita fé. – Eu canto mal?
— Muito. – Escuto seu riso.
— Que pena.
— Vamos tentar o piano um dia desses, quem sabe tem
mais sorte.
— Duvido – ela responde e ficamos em silêncio.
— Gosta do jardim?
— Eu nunca vi lugar mais lindo.
— Há uma década ele estava completamente morto,
mamãe o salvou, trouxe essas belezas todas. Gosto muito das
roseiras na outra lateral, as vermelhas são as mais bonitas, mas
mamãe prefere as amarelas.
— Entende de flores também?
— Um pouco, ajudava a minha mãe na infância, acho que
aprendi a reconhecer algumas texturas e as fragrâncias.
— Acho que não tenho qualquer talento – ela diz com a voz
levemente abatida e me entristece pensar em alguém assim.
— Aposto que tem sim, apenas não o conhece ainda.
— Acho que a gente aprende essas coisas na infância, eu
não sei, eu não sou muito boa em nada.
— Siga o exemplo de Momofuku Ando – digo rindo.
— Quem é esse? – ela me pergunta com a voz cheia de
curiosidade. Gosto sempre de pensar em como as palavras ditas em
certa entonação dão sinais de emoções tão claras.
— O cara que inventou o macarrão instantâneo. – Seu riso
se espalha em tons de rosa, são como plumas ao vento. – É sério,
ele tinha 48 anos quando inventou.
— Ah, que bobo! – Ela brinca em um leve empurrão em
meu ombro.
— Mas é sério. Van Gogh começou a pintar pouco antes de
morrer.
— É, pode ser – ela concorda e depois ficamos em silêncio,
minha mão toca a dela de novo, enquanto movemos as mãos entre
os pelos de Lumière. – Ele adora carinho.
— Muito, Coline está sempre agarrada nele, quando ela
nasceu eu até pensei que ele me trocaria por ela, mas ele
permaneceu fiel.
— Claro que sim, é bonito ver como ele fica atento a cada
movimento seu, Lumière é um bom amigo, não é lindo? – Ela usa
uma voz especial para ele, como quase todos que conheço, já eu
não, eu costumo falar com ele como um igual, somos duas partes
de uma coisa só.
— Fugiu da bagunça da sala? – pergunto a ela que não
responde a princípio. – Tudo bem, eles são ótimos, mas são
terrivelmente barulhentos e intrometidos, são amigos de longa data.
— Acho que a cidade pequena propicia isso – ela diz com
alguma razão. – Não se vê muito disso em Dallas.
— Nem em Paris. Por isso quis voltar, este é o meu lugar, é
aqui que vou viver para sempre.
— Quando voltar da turnê?
— Estava ouvindo minha conversa com o Jay e a Lolla! –
Acho que ela fica constrangida, é bem instigante ficar tentando
adivinhar suas emoções quando está em silêncio. – Não vou, eu
não quero deixar o Vale agora.
— Ah! Acho que... é bom, quer dizer, pode tomar suas
próprias decisões, quantos anos tem?
— Vinte.
— Tenho 18, ainda não sei muito como cuidar de mim
mesma e eu enxergo... desculpe.
— Vai acontecer outras vezes, Emily, sempre tem uma
frase ou outra que escapa, não tem nada demais, eu sei lidar com
isso melhor do que possa imaginar. Sou bastante independente,
mas isso é graças a minha mãe.
— Mandy parece muito especial.
— Ela é – digo emocionado. – Eu vou te dar uma aula de
piano. O que acha? Podemos eliminar o canto, então já sabemos
que canto não é o seu talento. Vamos tentar o piano.
— É sério? – Acho que ela gostou da ideia.
— Venha amanhã, no fim da tarde, o que acha? Pode ficar
para jantar comigo.
— Sem sua mãe convidar.
— Ei, eu moro aqui também. – Dessa vez, sou eu que dou
um leve empurrão em seu ombro. – Posso ensinar um pouco sobre
flores, o que acha?
— Acho que quero ver esse lindo jardim sob a luz do sol.
— Talvez goste ainda mais, contudo é ao anoitecer que as
flores desprendem esse perfume especial, que quase tem o poder
de encobrir o seu perfume.
— Guy! – ela diz meu nome em um fio de voz perdida na
timidez.
— Vem, vamos buscar a sobremesa. – Puxo sua mão e ela
se ergue comigo, logo Lumière está caminhando de volta para
dentro. Solto sua mão com pouca vontade, mas com o coração
acelerado, eu não acredito que essa garota está fazendo meu
coração disparar dessa maneira só por estar ao meu lado.
Capítulo 5
Emily

Ele se movimenta tão bem dentro da casa, desceu as


escadas com um cão pastor-alemão de uns quarenta quilos no colo,
anda sem nenhuma ajuda, fala olhando para o interlocutor e os
olhos são lindos, não tem qualquer sinal que mostre que Guy
Montpellier é cego, eu nem sei se posso usar este termo.
A mãe orienta sobre a mesa de doces, conta o que está
servido e até a decoração e a disposição das coisas, faz com
naturalidade, fico pensando se ele cria uma imagem de tudo.
— O que você prefere, Emily? – Mandy me pergunta
enquanto estão todos espalhados pela casa conversando e
comendo os doces, alguns com taças de vinho, outros nada além de
um sorriso e a boa conversa.
— É muito difícil escolher um doce – conto a ela mordendo
o lábio. – Acho que quero o Clafoutis, eu não sei se é assim que se
pronuncia – aviso com o rosto corado.
— Basta não pronunciar o “s” do final – Guy me explica e
fico ainda mais corada. – Bela escolha, quero também, mamãe.
— Claro. – Mandy apenas nos entrega os potinhos e uma
colher. – Conhece culinária francesa, Emily?
— Ah! Não, é que minha mãe chegou a trabalhar um tempo
em uma loja de doces e aprendeu muito, ela me ensinou algumas
coisas. – Até o meu pai decidir que ela tinha um amante e proibi-la
de trabalhar, mas essa parte eu não conto.
— Eu aprendi um pouco nesses anos na França, mas não o
bastante. Esses são da Lily.
— Vai provar o bolo de laranja às 5h da tarde – Guy me
conta. – Sinto o aroma daqui de casa – ele me explica, a mãe se
afasta de modo discreto, sobramos apenas os dois. – Quando era
criança o cheiro me fazia abrir meu cofrinho e eu partia todo
animado para comer uma fatia, Lumière ia comigo, meu pai me
seguia, ele jura que eu não sabia que estava sendo seguido por ele.
— Nunca disse nada?
— Não. No fundo eu bem que gostava – ele admite em um
sorriso lindo e me perco no riso bonito. Guy é alto, bonito, tem
braços desenhados por músculos, não do tipo exagerado, apenas a
medida certa de quem se cuida um pouco, mas é o sorriso que mais
me encanta.
Levo mais uma colherada do doce aos lábios, está muito
saboroso, as cerejas estão no ponto. Não muito doces e bem
macias.
— Emily, está pronta para irmos? Amanhã o dia começa
cedo – Lolla convida de longe e balanço a cabeça afirmando
enquanto levo uma última colherada caprichada à boca.
— Tenho que ir, Guy!
— Certo, boa noite – ele diz deixando sua sobremesa sobre
a mesa e eu faço o mesmo, fico diante dele sem saber como me
despedir.
— Tchau – digo acenando feito uma boba, meu rosto cora
mais uma vez. Se ele pudesse me ver agora saberia que sou
patética.
Guy me estende a mão, aperto com gentileza, aperto de
mão firme, mãos grandes de dedos longos, bem cuidada, mão de
pianista.
— Morangos silvestres e mel são uma dupla imbatível – ele
diz em um sorriso tão direto que custo a acreditar que não está me
vendo.
— Eu... eu tenho que ir. – Não sei o que dizer e não me
movo nem mesmo para soltar a mão que está presa à minha,
engulo em seco me sentindo estúpida e feliz, o que é perigoso e
tolo.
— Cinco horas? – ele me pergunta e balanço a cabeça
afirmando, então me lembro que ele não pode me ver. Preciso ter
isso mais claro em minha mente, para não parecer ainda mais
idiota.
— Sim. 5h.
— Te espero no jardim – ele avisa soltando minha mão. O
que eu faço? Afasto-me apenas ou aviso que estou saindo? Não
quero deixá-lo perdido e quem sabe falando com as paredes.
— Estou indo – aviso me apressando antes que cause mais
constrangimento, escuto seu riso, não sei se de mim, mas é bem
possível.
Lolla e Jay estão se despedindo das pessoas e apenas vou
acenando e sorrindo para todos até que chegamos à saída e deixo a
casa com o casal em uma mistura de emoções, feliz e aliviada,
confusa e encantada, é tão diferente e especial, ninguém sabe o
que já passei, ninguém sabe que nunca me senti segura, em paz,
mas ao mesmo tempo, triste, com medo, saudade.
É uma saudade tão estranha, saudade da certeza que tinha
quando mamãe estava viva. Certeza que éramos uma dupla,
certeza de que tinha um jeito certo de agir para não sofrer as
consequências, certeza de que ela estaria comigo, não é saudade
dele. Não sinto falta do meu pai, ele nunca foi bom comigo e levei
tempo para entender que não era amor, levei mais tempo ainda para
mostrar isso à mamãe e quando ela compreendeu, era tarde demais
para ela.
— Viu que não foi nada demais? – Lolla diz me trazendo de
volta à realidade. Balanço a cabeça afirmando.
— Se deu bem com o Guy! – Jay constata e eu não sei se é
real a leve ironia de suas palavras, ou apenas impressão minha.
— Ele é muito gentil. – Assisto a troca de olhares do casal e
fico ainda mais sem saber o que fazer, não é o que estão pensando,
ao menos não foi nada assim para ele, mesmo que meu coração
tenha disparado um pouco e, eu esteja feito boba ansiosa para vê-lo
de novo, não quero nada com ele, não quero nada com ninguém, eu
não tenho nada a oferecer, só tenho medo e vergonha, não sei para
onde ir e como será minha vida, que pessoa iria se meter em uma
história como essa?
O casal se despede assim que entramos, sinto um clima
romântico entre eles e me fecho no quarto com vergonha até de
pensar sobre isso. Quando depois de um banho me deito na cama
só consigo pensar nele.
Vinte anos, talentoso, bonito, rico, acho até que ele é
famoso, fez peça de teatro para a Broadway, é o que entendi, para
um casal superfamoso representar, escreveu música para filme, tem
convites e podia estar viajando o mundo todo para tocar.
Eu sou o oposto em tudo, não tenho nada de muito especial
e não sei fazer nada de diferente, acho que minha história não é
nada atraente para ele.
Mal consegui conversar de algum assunto que ele
gostasse, aposto que amanhã, depois da aula de piano que será um
fracasso, essa possível amizade vai esfriar e no fundo, se for bem
esperta, isso é o melhor.
Amor só traz sofrimento. Se ele por um milagre gostar de
mim e corresponder aos meus sentimentos, que eu nem sei se
existem, pode não dar certo e ele não ser assim gentil e carinhoso,
quantas vezes a mamãe me disse que meu pai era um amor de
pessoa no começo? Não, eu não teria nenhuma garantia de não
acabar como minha mãe.
Também pode acontecer o que é muito mais provável, ele
não me ver como nada além de uma pessoa conhecida e eu acabar
com o meu coração partido. No fim, acho que isso nunca daria certo
e eu devo manter meu coração seguro e protegido.
Eu acabo de chegar a este lugar, não tenho que ficar
encantada por ninguém, eu nunca me envolvi assim, nunca me
apaixonei, nunca nem mesmo beijei alguém e não vou ficar justo
agora feito uma boba apaixonada por um cara que eu nunca vou ter.
Odeio ser assim realista, ao menos uma vez na vida eu
podia me dar ao direito de sonhar um pouco, mas o que faço e
cobrir a cabeça depois de apagar o abajur e me encolher toda na
cama até dormir.
De novo acordo com a casa vazia, segundo dia que durmo
mais do que devia, acho que deve ser o silêncio e a falta de
preocupação. Quis tanto fugir da minha casa, sonhava em dormir
uma noite toda sem me preocupar se teria ou não uma briga. Agora
eu daria minha vida por mais uma noite ruim na velha casa, só para
ter a minha mãe por perto.
Sinto uma melancolia tão grande me atingir que depois de
dar uma volta pela casa e perceber que não tem ninguém eu
simplesmente volto para cama, me cubro e fecho os olhos, se
pudesse dormir, se pudesse dormir por um longo tempo até a dor
passar, até não sentir mais tanta saudade dela.
Só quando escuto a voz de Lolla a me chamar é que
descubro a cabeça e abro os olhos, estou afastando as cobertas
quando ela entra no quarto depois de uma leve batida que não
espera resposta.
— Ah! Não! – Ela se apressa para se juntar a mim, do seu
jeito espalhafatoso e exagerado de andar e agir, Lolla Queen é um
anjo de bondade e doçura.
— Desculpe, Lolla, eu sei...
— Você é linda, saudável, corajosa.
— Acho que não. – Eu não quero magoar Lolla, mas não
posso enganá-la fazendo parecer que sou algo que eu sei que não
sou.
— Niara me contou que você pediu ajuda, é preciso tanta
coragem para pedir ajuda. – Quero tanto ser essa pessoa que Lolla
vê em mim.
— Acho que foi apenas desespero – confesso encarando
minhas mãos.
— Foi coragem, eu sei reconhecer alguém que viveu uma
história parecida com a minha. – Ergo meus olhos surpresa por
ouvir isso.
— Jay não é bom para você? – Que grande decepção
saber que ela sofre e não diz nada. Lolla nega antes de meus
pensamentos terminarem de se formar.
— Jay é a melhor coisa que aconteceu em minha vida nos
últimos mil anos – ela brinca. – Antes dele, bem antes, quando eu
era assim jovem como você, cresci em um bairro perigoso, sem
atenção, numa família destruída, eu sabia cantar e sonhei com
sucesso.
— Você conseguiu. – A vida dela é um sucesso e parece
que para o Vale, ela é uma estrela.
— Não como eu sonhei, conheci um homem, acreditei que
ele me amava e que estava me ajudando, mas ele era um canalha e
me machucou muito e por muito tempo, enquanto eu perseguia uma
carreira artística que hoje sei que nunca me faria feliz.
Fico chocada, não se parece com Lolla, ela é forte,
expansiva, como pode ter vivido uma história assim?
— Ele batia em você?
— Sim, entre outras agressões, me fazia sentir um lixo,
fraca, incapaz.
— Sei como é isso. – Lolla corre os dedos por meus
cabelos, segura uma mexa e sorri de modo carinhoso.
— Um dia eu juntei toda força que tinha e me levantei
contra ele, contra tudo. Agora estou aqui, feliz, eu venci, mudei de
vida totalmente, não é a música que me mantém, meu sucesso,
aquele que eu realmente me orgulho e respeito é esse salão.
Construí esse lugar do nada e com muito esforço.
— Tinha dois talentos – digo pensando em como somos
diferentes, eu não tenho nenhum. – Não sei fazer nada.
— Não descobriu, anjo, mas vai, e eu não sabia que tinha
talento assim, eu apenas cuidava de mim, da minha maquiagem,
cabelos e unhas, então comecei e o tempo me ensinou. Uns cursos
que fiz também.
— Eu estou tentando, é que hoje eu abri os olhos e fiquei
pensando na minha mãe, me deu uma fraqueza.
— Acha que ela gostaria disso? – nego com toda certeza.
Quando pedi ajuda à Niara para não voltar a casa do meu pai, ainda
no enterro, eu pensei que ela estaria muito orgulhosa da minha
força, acho que ela queria que eu vencesse e fosse feliz, não acho
que ela se orgulha quando me entrego à tristeza. – Eu sei que faz
muito pouco tempo, entendo que vão ter dias difíceis, mas tem que
me prometer que nunca vai deixar essa tristeza e paralisia durar
mais que um dia. Promete?
— Prometo me esforçar muito.
— Ótimo. Vai passar a tarde toda sozinha, então faça
pipoca, assista uns filmes tristes de pijama no sofá, mas depois lave
o rosto e volte a sonhar.
— Prometo – digo com vergonha de precisar tanto de
atenção. – Não gosto de ficar sozinha, penso na minha mãe, penso
no meu pai, fico cheia de medo, triste.
— Quando se sentir sozinha vá ficar lá no salão ouvindo as
fofocas de todo mundo do Vale. Distrai bastante, eu adoro, sou uma
profissional na arte de repassar informação alheia. Distribuir notícias
é uma arte. – Lolla me faz rir. – Você é linda, menina. Vou arrumar
esse cabelo e maquiar você qualquer dia desses.
— Deixo, acho que nunca fiz isso, meu pai achava que
maquiagem era... sei lá, era para chamar homens.
— Seu pai é um idiota! – Lolla diz tranquila por Jay não
estar aqui para limitar suas opiniões fortes. – Não quero te jogar
contra ele, nem preciso, você sabe quem ele é, mas eu tenho
dificuldade de manter a minha boca fechada – ela diz ficando de pé.
— Vim comer alguma coisa, o Jay vai comer na escola
hoje. Quer comer comigo?
— Quero! – digo deixando a cama.
— Que tipo de pessoa decide ficar depressiva na cama e
se troca? Por que não está de pijama?
— Eu achei que não era muito educado.
— Não sei, quando tinha uns ataques desses de tristeza
profunda, eu não pensava muito em ser educada. – Ela pega minha
mão. – Vamos comer, comida é sempre boa ideia, para os dias ruins
e os bons.
Rindo eu acompanho Lolla até a cozinha, fico pensando se
ela vai concordar que eu vá até a casa do Guy e como devo pedir,
dá para ver que ela gosta muito dele, não sei se ela vai achar boa
ideia, não sei se vai pensar bobagem, que é um tipo de encontro, eu
nem sei se quero ir.
Quero, não posso mentir sobre isso, eu quero e muito ir,
ainda que vá morrer de vergonha.
Ela coloca um pote no micro-ondas e nos acomodamos
para esperar descongelar.
— Lolla! – Os olhos dela sorriem antes mesmo dos lábios. –
Eu... por que está sorrindo?
— Está com cara de que vai dividir comigo um segredo.
— Eu não, depois você vai distribuir meus segredos no
salão.
— Ah! Então é isso que pensa de mim? – ela brinca
levando as mãos à cintura. – Eu não divido com todo mundo, tenho
um grupo específico com quem divido os segredos mais
importantes. Só as amigas mais próximas.
— Mandy, Gwen, Maggie e a Harper?
— Mais ou menos por aí – ela diz depois de uma
gargalhada. – Gente demais para os seus segredos?
— Eu nem tenho segredos – digo por fim. – Eu queria
apenas perguntar se acha que tem algum problema eu ir até a casa
do Guy às 5h, ele convidou, disse que vai me dar uma aula de
piano.
O riso dela me deixa completamente constrangida, meu
rosto queima enquanto ela luta para se controlar.
— Quando foi que aquele safado espertinho virou professor
de piano?
— Ah! Eu... não é nada disso, é que ele acha que canto
muito mal, pensou que talvez eu tivesse mais sorte com o piano.
— Eu achando que tinha sido uma noite como outra
qualquer e você até cantou para o Guy?
— Não cantei não, estava só cantarolando uma música que
ouvi aqui e ficou na minha cabeça, ele ouviu e disse que eu não era
boa. – Cubro o rosto com vergonha.
— Pouca gente é boa para aquele ouvido absoluto dele. –
Lolla continua a rir. – Mas ele não precisava dizer.
— Não foi grosseiro, foi... meio engraçado.
— Uhmm. Entendi, e agora quer ir ter... aulas de piano?
— Não gostou da ideia? – pergunto quase arrependida de
ter aceitado, fica bem constrangedor simplesmente não ir.
— Acho ótimo! – ela responde para meu alívio. – Mas
temos que esclarecer umas coisas, Emily.
— Eu sei, hora de voltar e...
— Errou – ela diz se levantando para pegar a comida no
micro-ondas. Ajudo a cortar e nos servimos, enquanto meu coração
não para de bater descompassado à espera do que ela tem a dizer.
– Prova, adoro essas panquecas à italiana cheias de muito molho.
— Quente – digo assoprando antes de levar um pedaço à
boca e balançar a cabeça concordando. – Maravilhoso.
— Eu sei, para meu azar, cozinho bem. Melhorei muito, o
Jay também é bom. Sabe cozinhar?
— Um pouco – respondo preocupada com o desvio da
conversa.
— Quando quiser cozinhar fique à vontade, vou ficar feliz
em provar – ela diz levando mais uma garfada à boca.
— Lolla, o que queria esclarecer?
— Ah! Verdade. – Ela engole e toma um gole de água. –
Você já tem 18 anos, Emily, é livre, quero ser uma boa amiga e
conselheira, mas não quero ser a pessoa que te impõe novas
regras, eu sei que não é fácil ganhar a liberdade assim de uma vez,
que talvez se sinta perdida.
— Muito perdida – admito sem qualquer vergonha. Não
tenho a menor ideia do que fazer com minha vida.
— Entendo, mas estou aqui se quiser apoio, conselhos,
opinião, mas não precisa de autorização para ir a casa de um
amigo, sair por aí, ou seja, lá o que passa por sua cabeça.
— Certo, vou me lembrar disso.
— O que não quer dizer que pode simplesmente
desaparecer por aí sem um aviso, gostaria de saber onde está e se
vai demorar, mas por pura preocupação, como em toda família, um
cuida do outro.
— Obrigada, Lolla, não sei bem onde vou e o que vai ser da
minha vida, mas sei que nunca vou me esquecer do que você e o
Jay estão fazendo por mim.
— Já disse, é uma troca. – Ela dá uma piscadela e volta a
se concentrar na comida.
Lolla me deixa sozinha e o tempo demora a correr, quando
finalmente é hora de ir à casa de Guy Montpellier eu nem sei mais
se devo ir, é isso que significa liberdade? Acho que não sou boa
nisso também.
Ajeito meus cabelos na frente do espelho, aliso a roupa,
respiro fundo e tento acreditar que isso é só um encontro entre
possíveis amigos e que nada vai realmente acontecer.
Deixo a casa, passo pela porta do salão, Lolla está lavando
um cabelo, ela me acena e aceno de volta, é o meu jeito de avisar
que estou indo, então sigo para casa dele.
O jardim desprende seu perfume antes mesmo de chegar, é
um delicioso perfume de flores que não saberia descrever com
perfeição, mas aquece meu coração e me faz pensar em como deve
ser bom sentir que esse é o cheiro da sua casa, sempre que está
chegando.
Eu o vejo de pé no jardim, tem um meio-sorriso no rosto, o
cachorro está deitado ao seu lado, tem o sol quentinho de fim de
tarde, uma leve brisa para refrescar. Guy parece estar olhando para
o jardim, é estranho pensar que ele não está enxergando a beleza
desse lugar, ao menos não com os olhos.
Fico parada olhando para ele, perdida em um tipo de
encantamento que me tira as forças.
— Mel e morangos silvestres, não tem como se esconder –
ele diz para minha surpresa quando estou parada a uns três metros
dele. – Bem-vinda.
Capítulo 6
Guy

Pensei nela antes de dormir, pensei nela ao acordar,


ouvindo sua doce voz e imaginando o rosto corar. Emily é alguém
que me intriga, encanta, uma combinação que rouba meus
pensamentos como há muito não acontecia.
Deixo a casa para esperá-la no jardim, meu pai está
fechado em seu escritório trabalhando, Coline com mamãe na
floricultura ajudando a Maggie a preparar uma grande encomenda,
não foi proposital, não tinha planos de recebé-la em algum momento
que não tivesse ninguém em casa, até porque, logo vão estar todos
nos bisbilhotando, mas fico pensando se ela vai achar que foi de
caso pensado.
Emily parece tímida e sempre penso no que Lolla contou,
queria ter prestado mais atenção naquela conversa, um lar ruim e
eu nem sei direito o que significa e o quão ruim foi, talvez algum dia
ela se sinta bem para me contar, talvez não, o que não quero é ser
alguém que vá forçá-la a falar.
Felizmente o dia foi tão corrido e cheio de afazeres para
todos os Montpellier, não tive nenhum problema em ficar no meu
canto sem precisar responder mil vezes porque convidei Emily.
Sinto o perfume de mel chegar primeiro que o leve perfume
de frutas doces, que me lembra morangos silvestres como os que
mamãe planta nos fundos do quintal na horta.
Ela fica de longe sem se anunciar, talvez com vergonha,
talvez encantada com o jardim, o fato é que tenho certeza que não
desconfia que posso sentir sua presença, primeiro pelo perfume,
depois pela leve reação de Lumière, ele não precisa mudar muito,
tem qualquer coisa no modo como ele respira e às vezes se move
em torno de mim que avisa sobre eu não estar sozinho. Agora por
exemplo sua respiração mudou, ele está ansioso.
— Mel e morangos silvestres. Não tem como se esconder –
digo sabendo que a deixei um tanto surpresa. – Bem-vinda.
— Guy... eu...
— O perfume chegou antes. – Sorrio estendendo a mão
para um cumprimento formal, qualquer outro amigo ou membro da
família me abraçaria como cumprimento, talvez um beijo no rosto ou
até mesmo um cumprimento a distância, mas somos novos nisso de
nos relacionar, acho melhor não a deixar constrangida por enquanto.
Sua mão delicada aperta a minha, o perfume fica mais
acentuado, queria tocar seus cabelos, descobrir a cor dos seus
olhos, o desenho dos lábios. Levo algum tempo pensando em como
seria Emily sem soltar sua mão.
Quando solto, me sinto sozinho, é bem diferente esse tipo
de sensação, os longos silêncios constrangedores que me deixam
ansioso. Essa vontade de viver que ela me provoca parece muito
com o que sinto quando surge uma melodia nova em minha cabeça,
quando começo a compor me sinto assim, zonzo, envolvido,
entregue.
— Vamos entrar? – ela não responde, às vezes acho que
Emily costuma me responder com movimentos, é bem divertido
pensar sobre sua pequena confusão a cada vez que se lembra que
não enxergo. – Acho que o piano da sala é perfeito para a primeira
aula.
— Tem mais de um piano? – Sua voz soa curiosa, mas
também impressionada, enquanto caminhamos para dentro, seu
ombro esbarra no meu e penso em segurar sua mão. Que
bobagem, eu realmente não sei o que está acontecendo comigo.
Achei que não sentiria nada parecido agora, talvez muito mais
velho, o plano era me dedicar por inteiro ao trabalho, me apaixonar
apenas pela música e mais nada.
— Piano? – pergunto meio tonto, me dando conta que ela
acaba de me fazer uma pergunta. – Sim, é que eu... desculpe,
estava pensando... na nossa aula. Eu tenho um estúdio ao lado do
meu quarto.
— Ah! – ela diz deixando a voz se perder. Toco o piano
assim que chegamos até ele. – Ele é tão lindo. Vai mesmo me
deixar tocar nele?
— Com toda certeza. Quer beber alguma coisa antes?
— Não, obrigada. Tomei água antes de sair da casa da
Lolla. – Ela é linda, eu tenho certeza, sua ingenuidade é
encantadora.
— Vamos nos acomodar aqui neste banco – indico o lugar
diante do piano e me acomodo a seu lado, meu braço esbarra outra
vez no dela, é uma boa sensação de descoberta.
— Lumière se deitou na caminha dele ao lado do piano
antes mesmo de você se sentar.
— São anos vivendo juntos. Ele sabe por instinto o que
tenho em mente, conexão.
— É tão bonito. – Sua voz soa suave e ainda não me
conformo que essa doce voz não tem qualquer afinação na hora de
cantar. – Acha que eu consigo?
— Tocar? Claro que sim. Está vendo as teclas?
— Sim.
— Então já está melhor do que eu – brinco e leva um
segundo, acho que posso até imaginá-la boquiaberta em um
pequeno choque. – Está tudo bem, Emily, é uma brincadeira.
— Fiquei surpresa – ela admite.
— Rir de si mesmo é o melhor jeito que conheço de
enfrentar a vida – conto a ela enquanto uma parte do meu cérebro
se prepara para a primeira aula.
— Queria ser assim – Emily me conta e algum dia ela será.
Quando não tiver tanto medo de viver como parece ter agora.
— Treino – brinco com ela. – Pronta?
— Sim.
— Bem, vamos lá. – Passo a mão pelo piano indo para o
agudo. – Crescendo para a direita, vai do mais agudo ao mais
grave. – Volto com a mão do agudo ao grave. – Descendo.
— Está certo – ela responde sem compreender nada.
— Agora vamos conhecer as teclas. Que tal as pretas
primeiro?
— Pode ser.
— Nota que têm grupos? Com duas notas e depois com
três? – Toco as teclas – Bem, o meu pai dizia que eram as famílias,
pai e mãe, as duas teclas e do lado, os três filhos.
— Muito bom. Entendi. – A nota de ânimo em sua voz me
faz sorrir.
— A nota Dó, é sempre a branca antes do pai. Vê? Não vou
repetir a piada, prometo.
— Guy! – Ela toca seu ombro no meu.
— Se essa é o Dó, as próximas são. Ré, Mi, Fá, Sol, Lá, Si.
— Se as brancas são as notas musicais, o que são as
pretas?
— Boa pergunta. Tem um mundo de sons entre uma nota e
outra, um caminho a seguir, a tecla preta marca o meio do caminho,
entendeu?
Uso a voz para ir do Dó ao Ré tentando fazer com que ela
entenda um pouco.
— Tem a voz bonita.
— Já ouviu a Lolla? Ela sim tem uma voz incrível.
— Dá até vontade de chorar quando ela começa a cantar
em casa, ela faz tudo cantando.
— Pronta para tocar uma melodia da Nona Sinfonia de
Beethoven?
— Está doido? Nunca que eu vou conseguir uma coisa
dessas! – A ansiedade em sua voz é tão encantadora, eu odeio dar
aulas de piano, papai é bom nisso, eu não, mas para ela é ótima
ideia, Emily me toca o coração.
— Adoro seu otimismo – brinco escutando seu riso. –
Posso pegar nas suas mãos? – Um leve silencio, até que suas
mãos envolvem as minhas e que droga de coração bobo é esse
batendo feito louco?
Ela tem mãos pequenas, delicadas, dá uma dimensão de
todo o resto, pele suave, nenhum anel para enfeitá-la.
— Eu... – Ela deixa o que quer que tivesse em mente
morrer e a frase que ameaçou dizer se perde no ar, luto para me
concentrar embora meu desejo seja conhecer toda ela, os cabelos,
olhos, o desenho da boca e o nariz. Descobrir Emily em seus
detalhes, dar forma a voz de anjo e mãos de fada.
— Os dedos têm números, começamos com os polegares,
de dentro para fora. Um, dois... até o mindinho que é o cinco.
— Está certo.
— Mas vamos começar com as notas, sabe que são sete
notas musicais?
— Sei. Dó, Ré, Mi, Fá, Sol, Lá, Si.
— Parabéns! – digo sem soltar suas mãos. – Suas mãos
ficam como conchas sobre o piano. Solto uma das mãos e me
concentro em mover a mão direita dela para ficar como uma concha.
– Sentiu?
— Sim.
— Vai tocar com as pontas dos dedos, porém firme, nada
de dobrar a falange assim. – Dobro a ponta do seu dedo.
— Entendi. Mão firme.
— Muito bom. Pronta?
— Vou desafinar seu piano! – ela diz em um riso que vai do
nervoso ao ansioso.
— Se Coline não fez isso, ninguém mais faz. Não tenha
medo. – Viro-me para o piano indo mais para ponta do banco. – Fica
aqui no centro. – Sinto ela se aproximar de mim. – Lembra das
famílias de teclas pretas?
— Lembro.
— Quero que encontre a que fica bem no centro do piano.
— Pronto.
— Um Dó, para eu ter certeza.
— Do lado do pai. – Escuto a nota e sorrio. – Acertei?
— Isso, posicione a mão. Dedo um no Dó. Depois os outros
nas notas seguintes. – Toco sua mão sobre o piano para ter certeza.
– Muito bom. Eu digo a nota e você toca. O que acha?
— Vamos tentar.
— Mi, Mi, Fá, Sol, Sol, Fá, Mi, Ré, Dó, Dó, Ré, Mi, Mi, Ré,
Ré.
— Ouviu isso? Eu toquei, pareceu uma música, não
pareceu? – Para os meus ouvidos passou longe, para os dela com
certeza foi uma música.
— Muito bom. Quase perfeito. – Estou mentindo, eu que
nunca minto sobre estar bom ou não, que torturo até mesmo minha
pequena irmãzinha exigindo perfeição, estou aqui mentindo que
ficou bom quando foi pior que Coline em sua primeira aula aos cinco
anos.
— Podemos ir de novo?
— Esse é o lance com o piano, praticar e praticar. Vamos
de novo. – Repito as notas e ela toca, na quarta vez está melhor.
— Pode tocar uma vez? – ela me pede, e toco para ela o
mesmo trecho da melodia.
— Mas você usou as duas mãos, por isso ficou mais
bonito, por que usei uma mão só?
— Calma, vou ensinar a usar as duas mãos – conto a ela. –
Acaba de começar, está só exercitando os dedos.
— Vou continuar, eu gostei do piano, não sei se ele gostou
de mim, mas...
— Gostou! – Minto outra vez, o velho piano está assustado,
mas ele aguenta, foi nele que comecei e, também Coline. – Ele está
contente, vamos mais algumas vezes e depois vai tentar sozinha. O
que acha? Sem ditar as notas.
— Vou decorar, é assim que você faz? Decora as notas?
Desculpe perguntar.
— Emily, pode me perguntar, você não tem que saber como
é não enxergar, não tem que saber como agir, pode me perguntar,
está tudo bem.
— Entendo, é que pensei que seria... falta de educação, eu
fico com medo de magoar você se disser alguma coisa errada.
— Se disser algo errado te corrijo, o que acha?
— Muito bom, posso tocar agora? – Uma aluna empenhada.
— Claro. – Volto a repetir as notas, enquanto ela vai
maltratando meus ouvidos, vou aspirando o seu perfume, sentindo
seu ombro ao encontro do meu, de vez em quando arrumando sua
mão sobre as teclas e sentindo a maciez da pele, com vontade que
essa aula dure duas décadas só para tê-la aqui mais um tempo.
— Coline, o papai precisa entrar em uma reunião pode... –
Meu pai se cala vindo de seu escritório. – Desculpe filho, pensei que
era sua irmã treinando. Como vai, Emily?
— Bem, senhor Montpellier. Estou atrapalhando o seu
trabalho?
— Não! – Meu pai se apressa. – Pode... eu achei que era
minha filha ensaiando, mas vocês podem... eu fecho a porta.
— Tudo bem, pai, nós vamos para o estúdio. Se importa,
Emily? – pergunto gostando da ideia.
— Lolla disse que eu não tenho hora de voltar para casa,
então eu posso ficar mais até...até você dizer que a aula acabou.
O riso do meu pai não ajuda em nada a parecer
desinteressado.
— Eu vou trabalhar, vai ter dor nos dedos essa noite, Emily,
Guy é um virtuoso, mas para isso ele precisou ser incansável e eu
tenho que resgatar Coline quase toda vez que ele decide ensiná-la.
— Por isso você costuma ensiná-la, e não eu – digo a meu
pai. – Vamos subir e... e... treinar piano.
— Claro, treinar piano – meu pai diz pouco antes de ouvir
sua porta se fechar.
— Ele já foi – Emily me avisa.
— Eu sei, saída triunfal depois de uma frase de efeito,
típico! – indico o caminho, seguimos os dois para as escadas, apoio
minha mão no corrimão e ela segue ao meu lado. Um pouco é
instinto, um pouco é contar degraus, passos, seguir sons e
correntes de ar, mas esse lugar é meu porto seguro.
Lembro-me do medo que senti da primeira vez que mamãe
me mandou subir sozinho e, depois como me senti forte e como
ficava sempre arriscando em uma nova aventura, banho, preparar
algo para comer, me vestir, mexer no jardim, sair lá fora e percorrer
as ruas do Vale, pequenas aventuras para um garotinho cheio de
medo e muita coragem.
— Aqui – digo abrindo a porta do estúdio. É impecável,
capaz de atender a qualquer grande artista, meu pai gastou uma
pequena fortuna produzindo este espaço e foi uma surpresa
especial, tem a acústica perfeita, instrumentos, espaço e
aparelhagem para gravação.
— Você toca todos esses instrumentos? – Emily me
pergunta quando fecho a porta assim que a sinto passar por mim.
— Não – conto rindo. – Adoraria, mas para me dedicar ao
piano e as composições nunca pude aprender todos, muito mais do
que o superficial, claro que poderia tirar uma nota ou outra, entendo
como funciona, basicamente eu preciso entender deles para
escrever uma composição.
— Entendi, na vida tudo é uma questão de escolhas,
sempre temos que abrir mão de algo. – Sento-me ao piano e sinto
quando ela faz o mesmo ao meu lado, Lumière funga deitando
próximo, talvez em sua caminha, ou espalhado pelo chão. Ele adora
se espalhar pelo chão, mas basta que eu fique de pé e lá está ele,
atento e pronto para me seguir.
— O tempo todo.
— Esse piano é lindo. – Ela parece finalmente notá-lo.
— O melhor presente que já ganhei na vida – conto a ela
me lembrando de como fiquei feliz com o presente. Ideia do meu
pai, mas colocada em prática pela mamãe que preparou toda a
logística para a surpresa na volta de Paris. – Consegue tocar
sozinha agora?
— Eu não sei, vai ficar ofendido se eu errar tudo?
—Não. Prometo achar normal se errar.
— No mesmo lugar?
— Sim. Pronta?
— Pronta. – Levo de novo minha mão sobre a sua para ver
se está no lugar certo e lá vai ela com seus dedinhos lindos e
pesados, massacrar o pobre piano. – Mais leve, Emily, vigor, não
força.
— Vou quebrar o seu piano? Eu nem poderia pagar o
conserto, quanto custa?
— Não vai quebrar, só... demorar mais para aprender. Mais
uma?
Duas notas erradas, mas agora com mais leveza. Ajudo
mais uma vez ditando as notas e chega perto de uma execução
razoável, não posso dizer que ela não tenha talento ou que tem, são
anos de esforço, de qualquer um que deseja ser um pianista, não
existe mágica nem mesmo para os maiores, mas ela pode ao
menos encontrar alguma paz, ritmo, pode ser algo agradável para a
vida dela.
— Acho que por hoje chega – digo mesmo sabendo que
agora ela provavelmente vai embora e eu poderia passar mais horas
em sua companhia.
— Foi incrível, eu toquei – ela diz com a voz emocionada. –
Obrigada, Guy, me fez muito feliz, não vou nunca mais me esquecer
disso.
— Acho bom, amanhã tem que chegar à aula se lembrando
de tudo.
— Amanhã? Você vai me ensinar mais? Guy, eu não tenho
condições de pagar um curso de piano, eu nunca nem teria
condições de ter um piano.
— Ótimo, porque eu não sou professor, dou umas aulas
para minha irmã e só, mesmo assim o meu pai também ajuda, ele
pratica com ela como fez comigo.
— Ah! – É tudo que ela diz.
— Gosto de ter você aqui e é bom poder tocar com você.
Ensiná-la vai ser bom para me distrair do trabalho e me inspirar. –
Acho que fui bem na desculpa.
— Eu não sei como alguém tocando tão mal pode te
inspirar – ela brinca rindo e me fazendo sorrir.
— Me faz lembrar que já fui assim, traz o frescor das
primeiras aulas.
— Entendo. Guy, está bem escuro aqui, a noite caiu e eu...
eu não estou enxergando muito bem – posso sentir o
constrangimento em sua fala.
— Claro, que idiota, desculpe, quando estivermos juntos
você fica responsável por acender as luzes, está bem?
— Está ótimo. – Deixo meu lugar e vou até a porta, passo a
mão até achar o interruptor e acendo a luz, volto para me sentar
com ela.
— Melhor?
— Sim. Agora posso ver você e os móveis, não queria
tropeçar em um desses instrumentos caros.
— Vai decorar a disposição dos móveis aqui de casa e
dessa sala, tudo é minunciosamente mantido no mesmo exato lugar
desde que moro aqui, assim decoro e não tropeço.
— É assim que faz – ela diz como se tivesse se dado conta
de algo importante. – Quando cheguei e você nem me olhou e nem
falou comigo eu fiquei achando você muito antipático. – Meu riso é
largo.
— Muito mal-educado!
— Não dava para perceber – ela explica. – Como... como
você conhece as pessoas, pela voz?
— Também. Mel e morangos silvestres, é uma combinação
inesquecível, então pelo cheiro também. Minha mãe é quase como
magia, eu simplesmente sinto que é ela.
— Que bonito! – Emily diz me fazendo mais uma vez
desejar saber como ela é.
— Posso te ver?
— Me ver, mas como?
— Também enxergo pelas pontas dos dedos, Emily. Posso?
— Pode. Eu não sou... – Ela se cala quando meus dedos
tocam primeiro sua testa. Os polegares fazem o caminho das
sobrancelhas desenhadas, pele macia, olhos redondos, profundos,
o nariz é delicado, bem desenhado.
— Nariz bonito! – brinco para desanuviar um pouco o que
sua aparência parece fazer comigo. O rosto é bem desenhado,
ovalado, queixo suave, com cuidado eu desenho os lábios, lindos
lábios desenhados à perfeição, acho que jamais estive diante de um
rosto tão angelical.
Emily é de uma delicadeza que me provoca um aperto no
coração, reajo ao que toco com um acelerar inexplicável no coração,
me perco em sua beleza, não consigo expressar em palavras o que
a tocar provoca em mim.
Meus dedos deixam seu rosto para tocar os cabelos longos
e macios que descem para além dos ombros.
— Que cor? – pergunto a ela estranhando a fraqueza em
minha voz.
— Castanhos como os olhos. – Sorrio ao notar que a voz
dela soa também frágil.
— Você é linda, Emily, realmente linda.
— Não sou, Guy – ela insiste.
— A beleza é tão subjetiva, vocês esquecem de ir além da
estética, entregam tudo que têm e sabem aos olhos e somos tão
mais do que isso. Você é linda, Emily, não pense nada diferente
disso.
— Acho melhor eu ir – é o que ela responde
provavelmente constrangida ou assustada, talvez os dois, eu estou
assustado com o que sinto, assustado e confuso.
Capítulo 7
Guy

Meu coração ainda está sobressaltado quando ela avisa


que quer ir embora e eu não consigo pensar em me despedir, é a
emoção mais diferente que senti nos últimos anos, nem quando
namorei Marion eu me sentia assim, ansioso, tenso, meio idiota e
muito feliz.
— Boa noite, senhora Montpellier.
— Boa noite. Emily, como foi a aula? – Mamãe puxa
assunto quando chegamos à sala.
— O momento mais especial da minha vida. Consegui tocar
uma sinfonia.
— Um trecho, mamãe – eu explico.
— Já está melhor do que eu, jamais toquei uma nota
sequer.
— Ela nunca quis aprender. – Meu pai entra na conversa.
— Eu posso te ensinar também, Emily. Sou uma grande
pianista, mas só que não muito alta. – O riso de todos se mistura ao
riso de Emily e essa é uma sinfonia cheia de harmonia, o riso dela é
perfeito misturado ao riso dos Montpellier.
— Obrigada, Coline. Obrigada a todos, eu tenho que ir.
— Por que não fica para o jantar? – Meu pai convida e leva
um segundo para ela responder e fico ansioso.
— Lolla cozinhou e eu não avisei nada, acho melhor eu ir
embora. – É mais educado recusar, agora deveria ser a hora em
que mamãe se intromete dizendo que vai ligar para Lolla e avisar,
mas parece que ninguém vai me ajudar. – Bem, boa noite. – Sem
chance, ela está mesmo partindo.
— Levo você até o portão – aviso deixando a sala ao seu
lado. O ar da noite ainda começando, me preenche os pulmões,
mas não diminui a ansiedade por sua companhia e nem apaga o
perfume que vem dela.
— Foi uma ótima tarde, Guy. Obrigada.
— Também gostei. Mesmo horário amanhã?
— Ah, isso é você que decide, quando for melhor para
você.
— Então eu passo na sua casa amanhã lá pelas 4h30,
vamos dar uma volta pelo Vale antes da aula, o que acha?
— Claro, você... vai sozinho?
— Não. Lumière nunca me deixa. Vamos os dois, aquele
velhote está precisando andar um pouco, tenho saído pouco para
não o cansar, ele não gosta de me deixar e eu não quero deixá-lo
triste. Parece bobo?
— De jeito nenhum. Ele é seu amigo. – Ela fica em silêncio
e eu também, um silêncio que não é ruim, apenas calmo. – Até
amanhã, Guy.
— Até.
— Estou indo – ela me avisa e sempre acho bonitinho que
ela se preocupa em não me deixar falando sozinho, não é todo
mundo que têm esse cuidado.
Ainda me demoro um pouco no portão, até não sentir mais
nenhum resquício do seu perfume no ar.
— É Lumière, ela se foi, vamos entrar, você precisa
descansar bastante meu velho, amanhã vai dar um passeio. O que
acha?
Seu rabo esbarra em minha perna me fazendo sorrir, acho
que ele gosta da ideia e, também dela. Não sei se alguém poderia
desgostar de Emily.
O silêncio que se faz na sala quando entro é esclarecedor e
constrangedor.
— Para que visão se o silêncio desenha as expressões de
todos?
— Eu não estava falando nada de você namorar a Emily
não, era o papai e a mamãe que estavam. – Coline e sua língua
solta.
— Uma pequena especulação de pais – meu pai admite. –
Quer falar sobre isso?
— Não. A Coline tem a boca muito grande – aviso ao casal.
— Coline, você não tem nada para fazer no quarto? –
minha mãe brinca.
— Não, eu vou cozinhar com você.
— Outra hora então. – Meu pai decide.
— Melhor. – Eu nem tenho nada a dizer, apenas que a
garota é interessante e só isso, ao menos por enquanto é só isso,
temos uma relação direta e clara, talvez pelos meus inconvenientes
eu sempre tive que ser aberto com eles, sem espaço para segredos
ou mentiras, vivemos com tudo às claras e, é com os meus pais que
me aconselho, são eles a me darem uma direção sempre que sinto
medo ou enfrento dúvidas e problemas, e o meu coração não ficaria
fora dessa honestidade, se sinto, divido com eles.
— Vamos cozinhar, Coline?
— Eu ajudo. – Meu pai oferece apoio à mamãe.
— Vou fazer umas pesquisas enquanto isso – aviso a eles
me acomodando na sala íntima com meu celular na mão, antes que
abra as pesquisas, ele toca. – Alô!
— Ei, cara! Quanto tempo! – Jimmy me cumprimenta e
sorrio achando ótima ideia a sua ligação.
— Parece que está fugindo – digo a ele. – Desde sua
chegada ainda não apareceu e nem telefonou.
— Eu sei, cheguei meio resfriado, não queria sair, também
tinha que me inteirar das coisas por aqui. Gwen está domando um
cavalo novo e eu... eu precisava acompanhar.
— Entendo – digo sabendo que são apenas desculpas para
não encontrar com Penny.
— Como foi o casamento da Peggy? Eu não consegui
chegar a tempo.
— Lindo, íntimo perto do tanto de fãs que eles têm, mas
glamouroso no estilo Peggy Sue, Estrela do Vale. – Jimmy ri do
outro lado da linha.
— Vi que vazaram fotos dela na internet, o vestido era
mesmo lindo, bem no estilo Estrela do Vale, falei com eles ontem,
me esqueci que estavam em Lua de Mel e liguei para dar os
parabéns.
— Sempre desligado – brinco sabendo que ele está é atrás
de notícias da Penny.
— Verdade, eles estão bem, disseram que vão voltar ao
Vale antes de tomarem o rumo de Nova York, parece que têm um
projeto com você.
— Sim, estamos trabalhando em uma peça juntos, escrevi
o roteiro, é um musical, eles têm que ler e então vamos discutir.
— Dessa vez prometo que vou assistir.
— Não vai ter como escapar, me conta, como está sendo
voltar para casa?
— Bom, não tem lugar como o rancho, sentia falta da Gwen
e do Shane, dos meninos também. Cassady mal me conhece,
estamos nos aproximando. Mike é um cowboy completo, monta
bem, gosta da terra...
— Com dificuldades de falar sobre você?
— Eu não sei por que ainda me impressiono com você,
Guy? Tem 20 anos, porque não pode só me perguntar se peguei
muitas mulheres, se quero tomar um porre e fazer alguma idiotice,
não sei, falar de algum esporte. Coisas idiotas de garotos de 20
anos.
— Eu sou meio cego para essas coisas de adolescentes. –
Jimmy tem um pequeno ataque de riso, ele é o único capaz de rir
das minhas piadas ruins sobre a minha visão, ou falta dela. Talvez
seja por isso que gosto tanto dele, na cabeça do Jimmy está tudo
bem comigo, ele não sente pena, não sente medo de falar sobre
isso, me perguntar, ele é direto e honesto.
— Aposto que são essas músicas chatas que escuta e
toca, te deixaram inteligente demais, eu disse que devia se
concentrar no Country.
— É você disse – respondo achando sempre engraçado. –
Quando vai aparecer por aqui?
— Sei lá, qualquer dia desses, Misty está esperando por
você. Por que não vem ao rancho?
— Eu vou. Prometo, vou levar alguém.
— Alguém? Isso tem cara de uma garota no pedaço. Me
conta.
— Tem uma garota nova na cidade, está morando com a
Lolla, bem, ela é... interessante, precisa de amigos e eu...
— Você está apaixonado, seu pequeno espertinho! – Jimmy
me provoca com ironia.
— Não! Eu a conheço há dois dias, só... curioso, eu acho
que combina mais: meio encantado.
— Parece ótimo, traz ela, monta a Misty, faz um ar de
cowboy, vai conquistar a gatinha. Te empresto um chapéu.
— Vou convidar um dia desses, estou dando aula de piano
a ela.
— Eu querendo ensinar o professor, isso foi muito esperto.
– Ele está se divertindo à minha custa, bem a cara dele. É bem
simples acabar com essa alegria toda.
— Já procurou a Penny Lane?
O riso se vai, um silêncio toma o lugar da conversa que
fluía, ele deve estar pensando sobre o que vai me responder.
— Guy... acho que não quero conversar sobre isso.
— Não entendo.
— O que não entende, Guy?
— Eu era só um adolescente, ou nem isso quando
terminaram e seguiram rumos diferentes, mas se me lembro,
acabou tudo bem, não teve briga, não teve ciúme, foi só porque
estavam caminhando para mundos diferentes.
— Eu sei, mas deixamos o tempo correr, não nos falamos
desde aquele dia, no começo eu achei que era o único jeito de
seguir em frente, ficando bem distante dela, depois... o tempo foi
criando um abismo.
— Ainda gosta dela? Por isso está fugindo?
— Eu não sei, não sei o que sinto, não sei se sinto só
saudade do tempo em que nossa vida era mais simples ou se
realmente sinto falta dela, não sei como ela se sente.
— Você tem medo de não sentir mais nada ou de sentir?
— Acho que os dois, tenho mais medo ainda de descobrir
que ela me superou, eu sei que é bem egoísta, mas acho que vou
me machucar muito.
— Algum dia vai ter que enfrentar isso, é Horses Valley,
não pode fugir da Penny para sempre.
— Parece a Gwen falando. Ela está me atormentando, pior
é que o Shane vive para concordar com a Gwen, sinto falta de
quando eles eram como cão e gato brigando por tudo.
— Então não vai procurá-la?
— Não! – Parece bem definitivo.
— Se ela te procurar?
— Aí é diferente, caso a gente se encontre ou ela me
procure pode ser que... Guy, liguei para convidá-lo a vir aqui e não
ficar abrindo meu coração.
— Eu vou, levo a Emily comigo para cavalgar um pouco.
— Te vejo em breve, vou desligar, os meninos querem que
eu os leve a uma caçada ao Estrela da Noite.
— Uma ótima aventura, mas sabemos que não vai dar em
nada, ele não aparece apenas porque o procuram.
— Eu sei, eu mesmo nunca o vi, não fosse Shane e Gwen
jurarem já terem o visto..., mas ainda acho que ele é um espírito do
Vale.
— Não tenho opinião sobre isso. Vá caçar nossa lenda.
Divirta-se.
— Obrigado, você também. Divirta-se com a namorada.
— Ela não... – Ele desliga na minha cara ainda rindo. É o
jeito infantil do Jimmy de ganhar uma discussão.
Começo minhas pesquisas sobre música enquanto as
vozes na cozinha atrapalham um pouco, aumento o som do
telefone, me acostumei a colocar tudo bem baixo já que uso o
recurso de voz para tudo que preciso fazer no celular. Será que
Emily tem um telefone? Podia conversar com ela, mandar
mensagens, amanhã pergunto.
— Guy, mamãe está chamando para jantar, ela quer que
alimente o Lumière também, ele não quer mais comer se você não
der a comida.
— Vamos lá, pequena, eu cuido do Lumi.
Ninguém volta ao assunto de Emily e depois do jantar e
alimentar Lumière, eu o levo para uma volta no jardim, me sento
perto da fonte ouvindo o som da água que sempre me inspira e traz
paz, depois de um longo momento com a mente viajando entre
melodias e Emily, volto para dentro, me despeço de todos e me
recolho antes mesmo de Coline ou, sei que vou ter que dar
explicações.
Pela manhã, depois de um banho e uma hora no piano, eu
desço para o café da manhã. Meu pai já está trabalhando no
escritório, Coline na escola e mamãe no seu jardim, são horas ali,
plantando, colhendo, limpando, depois a estufa e por fim ela volta
para dentro.
Brenda está na cozinha, ela trabalha conosco a vida toda,
ajuda mamãe com as coisas da casa e sempre foi ótima comigo, às
vezes ficava cuidando de mim para mamãe e papai saírem, mas eu
gostava mesmo era de ficar com Butch ouvindo suas histórias de
cowboy.
— Bom dia, garoto! – Ela me cumprimenta. – Desceu tarde,
mas deixei seu café sobre a mesa da sala de jantar.
— Bom dia, Brenda, estou meio sem fome, mas vou comer
qualquer coisa.
— Ótimo.
Depois do café passo o resto do dia no piano e trabalhando
em minhas composições, o despertador avisa da hora de buscar
Emily e me surpreendo com o que seu toque faz com meu coração,
isso não pode ser verdade, essa animação toda só por saber que
vou encontrá-la.
Desço pensando se devo mesmo levar Lumière, posso ir de
bengala, não tenho problemas com isso, mas odeio deixá-lo, não
gosto que ele se sinta abandonado.
— Passear, Lumière?
Ele se apressa em minha direção, para ao meu lado
encostando seu corpo em minha perna, afago seus pelos.
— Bom menino! Amo você. Vamos pegar a coleira e sair.
Mamãe! – grito sem saber direito onde ela está enquanto caminho
para a porta. A coleira de Lumière fica pendurada ao lado da porta,
enquanto eu coloco a guia nele escuto os passos vindos da cozinha.
— Vai sair? – minha mãe me pergunta.
— Vou encontrar a Emily, dar uma volta, pensei em levá-la
para comer o bolo de laranja da Lily, depois eu volto para dar uma
aula de piano a ela. Pare de sorrir.
— Não estou sorrindo... muito! – Ela completa. – Se
precisar de alguma coisa ligue.
— Pode deixar, eu grito! É o Vale.
Sinto seus passos em minha direção, a mão macia a tocar
meu rosto, alisar meus cabelos e depois a camiseta.
— Meu bebê mais lindo do mundo! – Um ataque de beijos
do tipo que ela costuma usar quando está saudosa, com medo ou
se dando conta que cresci.
— Mãe! Prometa nunca fazer isso na frente da Emily.
— Claro que não vou prometer um absurdo desses, nunca
se sabe quando meu amor supremo vai surgir e não vou sufocá-lo
só porque tem vergonha de sua linda mãe.
— Não custa tentar – digo tocando Lumière. – Tchau.
Ele caminha ao meu lado, não tem uma pessoa que cruze
nosso caminho que não pare um instante para falar comigo ou ao
menos me gritar um “boa tarde”, como posso viver em outro lugar
deste mundo? Cada comércio deste lugar têm uma tabela de preços
em braile e sinalizações que eu possa precisar. Em que outro lugar
eu seria tão respeitado?
Posso correr o mundo de vez em quando em busca de me
alimentar de música e arte, mas sempre voltar, sempre terei o Vale
como minha casa, foi aqui que minha vida se encheu de luz, ainda
que qualquer um desavisado pense que vivo na escuridão, eu sei
que vivo na luz do amor das pessoas que me cercam.
Não é um caminho longo entre minha casa, o salão e a
casa de Lolla Queen e em menos de dez minutos estou
atravessando a rua na frente do salão.
— Oi! – Emily me cumprimenta assim que toco os pés na
calçada. – Eu achei que podia esperá-lo aqui fora.
— Oi. – Estico meu braço até sentir a vidraça do salão de
Lolla. – Lolla está aqui?
— Sim – ela me responde e bato no vidro. – Ela está te
olhando. – Aceno sorrindo. – Acenou de volta.
— Vamos? – Convido começando a caminhar em direção a
Lily. – Você é uma boa narradora.
— Fiz errado? É que a Lolla estava pintando a unha de
uma cliente e...
— Fez certo, é de grande ajuda.
— Ah, que bom. Onde vamos?
— Pensei em ir até a praça da igreja, depois dar um pulo na
Lily para comermos o bolo da laranja, o que acha?
— Perfeito, Lolla também falou do bolo.
— É famoso, tem até fila às vezes, mas não para mim, sou
o queridinho da Lily.
Ela não diz nada, aspiro profundamente para me inebriar
com seu perfume, acho que nunca mais vou me esquecer do cheiro
de Emily ou do desenho dos seus lábios, ela é linda.
— Guy, Lolla disse que o Vale ama você.
— Lolla é uma faladeira – brinco sentindo o cheiro das
árvores da praça e o ar mudar com a chegada na praça. – Vamos
nos sentar em um banco, assim o Lumière descansa.
— Aqui tem um – ela diz sem saber bem o que fazer e toco
seu ombro para ajudar. Poderia ficar caçando o banco, tem uma boa
memória de onde eles ficam, mas é mais prático me deixar guiar por
ela.
Nós nos acomodamos, Lumière não se deita, fica pedindo
carinho sentado entre nós, meus dedos a esbarrar nos dela
enquanto afagamos os pelos.
— Ele é tão lindo, acho que é o cachorro mais bonito que já
vi. Queria muito ter um animalzinho, mas nunca pude.
— Fala com a Lolla.
— Não! – ela diz apressada. – Lolla é só uma passagem,
todo mundo deixou bem claro, ela não me adotou ou coisa assim,
sou adulta, é só um apoio, vou ter que arrumar um trabalho e morar
sozinha.
— Entendo. – Queria ajudar, não consigo pensar em nada
para ela nesse Vale, mas é bom começar a pensar em alguma coisa
ou ela acaba tendo que deixar a cidade.
— Foi aqui nessa igreja que a Peggy Sue se casou?
— Sim. Teve uma festa aqui mesmo, na praça e nas ruas,
uma grande festa para o Vale todo participar. Deve ter algum
cowboy bêbado perdido por aí até hoje.
— Deve ter sido lindo.
— Muito. Um dia te conto a história dela, vai te inspirar.
— Como a do inventor do macarrão instantâneo? – ela
brinca me fazendo sorrir.
— Por aí. – Lumière funga se deitando e sinto uma
pequena angústia por ele, evito pensar, mas eu sei que está mais
perto do que posso aguentar. A ideia de que Emily está ao meu lado
por alguma razão que ainda não consigo explicar, me conforta um
pouco.
Capítulo 8
Emily

Ele é tão forte e seguro, é impressionante como ele


simplesmente se sente confortável ainda que não possa enxergar,
eu que feito boba tenho medo de luz apagada, não me imagino
suportando o que ele vive, teria enlouquecido, teria morrido só pela
angústia, mas ele está bem com isso, está forte.
— Como foi? – No instante em que pergunto me arrependo,
não é da minha conta e eu não devia chateá-lo com essas
lembranças. – Não precisa contar.
— Meu pai estava dirigindo, ele e minha mãe estavam
sempre brigando, me lembro que meu pai era sempre o mais calmo,
eu era muito ligado a ele, acho que minha mãe não era muito
maternal, não tenho muita certeza sobre isso, mas eu estava no
banco de trás do carro, meu pai dirigia e minha mãe simplesmente o
atacou, ele perdeu a direção e acabou, eu me lembro bem de tudo,
demorei para entender o que estava acontecendo, demorei para ver
o papai porque ele ficou em coma um tempinho.
— Sinto muito.
— Minha mãe morreu no local, acho que eu sabia disso,
meu pai se sentiu muito culpado por alguns anos. Não foi culpa
dele, mas ele não se lembrava do acidente e achava que tinha
causado tudo.
— Que dor – sinto meu coração tão apertado, é tão
diferente de como meu pai agiria, ele nunca pôde amar ninguém,
nunca sentiu culpa por nenhum mal, ele nem consegue enxergar
seus erros.
— Sim, ele se afastou de mim, mas ele era meu porto
seguro, ouvir sua voz, mesmo que tensa e cheia de angústia me
acalmava, viemos morar aqui no Vale, escondidos, era o plano dele,
mas então mamãe surgiu em nossas vidas e consertou tudo. – Guy
dá um largo sorriso e me emociona a ponto de encher meus olhos
de lágrimas. – Tenho uma memória perfeita sobre tudo que vivi
antes, o rosto do meu pai, cores, lugares, está tudo registrado
dentro de mim, com perfeição de detalhes, minha mãe sempre me
estimulou e me ensinou a ser forte, ser livre e ser corajoso, o papai
não teve escolha se não aceitar isso.
— Mandy é especial, isso é bem corajoso, acho que faria
como o seu pai, iria querer proteger meu filho de tudo.
— Tenho certeza de que nunca vai precisar descobrir isso –
ele diz procurando minha mão e quando prende a sua meu corpo se
arrepia inteiro, nem dormi tamanha as sensações que aquele toque
dele em meu rosto e cabelos me causou, sua mão sobre a minha,
seus dedos me descobrindo, foi intenso, precisei controlar a vontade
de chorar para não deixar que ele sentisse as lágrimas a rolar por
meu rosto.
Não sei até agora o que senti, mas foi bom, foi forte e
apavorante. Eu não posso viver o que a minha mãe viveu e não
acredito no amor, não no amor que salva e muda as pessoas, não
acredito que algum dia alguém possa me amar e me fazer feliz,
ainda que veja Lolla e Jay, eu não sei se amor é como eles ou como
meus pais, mas sendo filha deles, aposto que comigo vai acontecer
o mesmo.
— Boa tarde, Guy. Mande lembranças aos seus pais. –
Uma senhora diz saindo da igreja, quase grita sem se aproximar.
— Boa tarde! – ele responde acenando na direção da voz.
– Não faço ideia de quem seja, mas como eu conheço boa parte das
pessoas pela voz, todo mundo quer o mesmo tratamento.
Rio baixinho, ele também ri, deve haver momentos de
angústia em sua vida, mas também bons momentos de riso e talvez,
de vez em quando, ele ria desses constrangimentos.
Seu celular dispara o alarme, eu fico intrigada em como ele
usa o celular, mas não tenho coragem de perguntar. Ele pego a
aparelho no bolso, passa o dedo e o alarme para de tocar.
— Bolo da Lily. Vamos?
— Agora mesmo, estou bem ansiosa. – O cachorro se
levanta com ele e seguimos lado a lado para a loja de doces de Lily,
passei em frente duas vezes, o cheiro é sempre bom, mas quando
começamos a nos aproximar o perfume se espalha. – Esse é o
cheiro do bolo de laranja?
— Perfeito, não é mesmo?
— Totalmente. – Vejo pessoas se aproximando da loja,
gente saindo com pacotinhos, ele tinha razão, todo mundo em
busca do bolo de laranja, espero que sobre uma fatia para nós. – E
o Lumière?
— Entra conosco, Lily não se importa, aliás, ele tem passe
livre por toda cidade. – Guy me conta e fico encantada com Horses
Valley e sua hospitalidade.
Nós nos acomodamos em uma mesinha do lado de dentro,
têm mais algumas mesas e uma fila em direção ao caixa.
— Não tenha pressa, Lily! – Guy diz a ela quando nos
sentamos e Lumière se acomoda aos seus pés. – Tem um no forno
– Guy me avisa baixinho.
— Como sabe?
— Ela sempre deixa um no forno, mantém quentinho, para
os VIP , eu, alguns amigos mais íntimos e a família dela – ele conta
rindo.
— Então você tem regalias no Vale?
— Muitas. – Guy pega o cardápio, passa os dedos e pego o
outro disponível, têm aquelas letrinhas em relevo do braile e fico
encantada com o cuidado da cidade com ele. – Vou querer chá de
laranja, mas tem um milk shake ótimo e o chocolate quente é muito
bom.
— Acho que fico com uma xícara de chá como você.
— No inverno, lá em Paris, eu sempre pensava em Lily, a
loja dela seria sucesso por lá, aqui por conta do calor, as pessoas
não apreciam como deveriam.
Guy parece mais velho do que realmente é, fala como
pessoas mais velhas, mais sábias, ele é gentil como alguém com
mais idade, não parece ter pressa de nada, é tão educado, não tem
pessoa no mundo que eu goste mais de estar do que ele.
— O que o bonito casal vai querer? – Lily se aproxima
quando a fila termina.
— Bolo e chá de laranja, para os dois.
— Ótima pedida – ela avisa piscando para mim e me
deixando constrangida. – Vai levar para casa, Guy?
— Sim, uma fatia para cada. Sobremesa depois do jantar,
cinco, Emily vai jantar lá em casa.
— Namoro sério! – ela diz rindo enquanto se afasta.
— Lily é a casamenteira da cidade, ela vive disso, somos a
série de tevê preferida dela, forma casais na cabeça e depois não
tem quem mude sua ideia.
— Está tudo bem – digo a ele tentando tranquilizá-lo. Acho
que ele teme que eu pense ter alguma chance.
— Quer ir comigo até o rancho Berckman um dia desses?
— O dos cavalos? – pergunto já ansiosa com a ideia. –
Seria perfeito. Tenho muita vontade de conhecer o lugar, nasci e
cresci em Dallas e nunca estive nem perto de um cavalo.
— Vamos corrigir isso, é vergonhoso alguém do Texas não
ser um expert em cavalos.
Ele não conhece meu pai, não sabe como ele me criou
presa em casa saindo só para a escola e ainda ouvindo todo tipo de
absurdos, acho até que sou muito mais esperta do que deveria, já
que ele não me mostrou nada do mundo.
A fatia de bolo chega perfumada e com uma calda
maravilhosa, eu provo sem acreditar no sabor do bolo, acho que eu
poderia fazer um bolo assim, mamãe fazia um igual, gosto da
cozinha.
— E então?
— Está maravilhoso – admito sem medo de exagerar.
— Ouviu Lily? – Guy pergunta para a senhora atrás do
balcão.
— Claro, ouço tudo querido, tudo, como acha que junto
fofocas para Lolla distribuir no salão? – Quase engasgo com a
verdade sendo admitida sem medo, Guy ri balançando a cabeça em
negação.
— Você está morando no covil dos lobos – ele brinca e
suspiro pensando que Lolla gosta de brincar, mas nunca colocaria
ninguém em confusão.
— Lolla é tão generosa que nem a imagino metida em uma
fofoca constrangedora.
— E nem a Lily, elas gostam de brincar com a fama, mas
não fazem realmente isso.
Ele me conta um pouco sobre suas aventuras na infância,
vir sozinho a Lily, se lembra de andar sempre atrás de Peggy Sue e
ficar ouvindo as conversas de meninas e as histórias de amor delas.
É bonito perceber que ele foi um menino muito feliz.
Quando chegamos à sua casa, os pais estão reunidos na
sala e Coline está à mesa de jantar fazendo o dever de casa. Jay
me contou ontem, depois do jantar, que veio para a cidade para
educar Guy, imagino o garotinho sentado nessa mesma mesa, com
Jay ao seu lado.
— Boa tarde – eu digo com esforço, seus pais são um casal
gentil e sempre atenciosos comigo, mas eu me sinto constrangida
do mesmo modo.
— Trouxe bolo para sobremesa.
— Convenceu a Emily a ficar para o jantar? – Mandy
pergunta e nós dois dizemos sim ao mesmo tempo. – Ótimo, vou
preparar algo bem gostoso para combinar com o bolo da Lily.
— Mamãe, posso comer o meu agora? – Coline grita sem
tirar os olhos dos livros.
— Não! – Mathieu responde rindo e a garotinha não insiste.
Guy tira a coleira de Lumière, anda até a porta e a pendura, eu
sempre me impressiono com seus movimentos dentro de casa,
mesmo na rua ele parecia quase enxergar o caminho, não titubeou
uma só vez, talvez na praça, quando se apoiou em meu ombro até o
banco e senti tanta ternura por sua humildade de admitir que
precisava de ajuda e não se machucar com isso.
— Tio! – O garotinho filho de Maggie entra correndo na
casa, não me lembro do nome dele, mas ele vai direto para Mathieu.
– Me ajuda aqui a fazer essa lição?
— Boa tarde, Jerry! – Guy o cumprimenta e ele parece ficar
com vergonha.
— Boa tarde, todo mundo, mamãe falou para dizer boa
tarde, eu esqueci.
— O que não está sabendo fazer, Jerry? – Mathieu
pergunta pegando o caderno de sua mão.
— Essas continhas, mamãe queria ajudar, mas você sabe
explicar direito, meu pai também – ele diz apontando o caderno.
— Certo, vamos lá para mesa com a Coline.
— Ainda está fazendo dever também? – ele pergunta
puxando uma cadeira para se acomodar.
— A professora passa muito dever! – Coline reclama. –
Queria que a Penny Lane fosse minha professora.
— Eu também – Jerry comenta.
— Vamos para o estúdio, Emily, esses quatro vão ficar aí
fazendo barulho.
— Vamos.
— Lumière, fica aqui com a vovó, vou te dar água fresca e
um petisco – Mandy chama o cachorro que simplesmente a
acompanha em direção à cozinha.
— Competir com os petiscos é pedir demais, fui
abandonado, não é? – Guy me pergunta.
— Foi e ele nem pareceu ficar em dúvida.
Deixamos a sala, ele sobe as escadas com tanta certeza,
anda pelo corredor direto para a sua sala, entramos e está do jeito
que deixamos na noite passada.
Eu sinto medo de onde estou indo, devia não querer vê-lo o
tempo todo, mas estar perto dele me enche de esperança e paz,
como nada mais consegue fazer por mim.
Voltamos para o ponto em que paramos na aula anterior,
ele repassa as coisas que me ensinou e pede que eu toque, claro
que erro tudo, mas lá pela quarta ou quinta vez já consigo tocar um
pouco melhor.
— Piano é treino, Emily, até ficar com dor, são muitos
exercícios, mas também é importante ter contato com a música,
treinar seus ouvidos para reconhecer as melodias, as notas, os
arranjos, gosta de música clássica?
— Guy... acho que preciso ser honesta – digo sem medo de
magoá-lo. – Não conheço, não posso dizer que gosto ou desgosto,
eu nunca ouvi muito essas músicas para saber se gosto.
— Podemos corrigir isso – ele responde sem qualquer
problema ou mágoa. – Meu pai tocava piano e gostava de música
clássica, eu sempre tive contato e aprendi minhas primeiras notas
antes de perder a visão, tocava com ele, me lembro de ficar no colo
dele tocando quando eu era bem pequeno, dois, três anos, então eu
acho que isso me fez ter consciência musical, é o mesmo com a
minha irmã, na barriga da mamãe ela já ouvia música o tempo todo.
— Em casa era mais country e músicas mais conhecidas,
pop.
— Que acha de ouvirmos um pouco de música clássica?
Você tem um celular?
— Não. Nunca tive um celular – sinto tanta vergonha, não
era uma questão financeira e por isso me envergonho, era
simplesmente meu pai sendo um homem intolerante e
completamente dominador. – Como você usa seu celular? – Solto a
pergunta em um impulso quase que como uma fuga do assunto, me
arrependo, mas seu rosto está tranquilo, ele tira o aparelho do bolso
do jeans e me mostra.
— É um aparelho comum, têm pessoas que pensam que
tenho um aparelho especial, mas todos têm esse recurso de voz,
conforme vou tocando ele vai me dando informações, telefone,
aplicativos, é bem simples, normalmente uso fone de ouvido quando
estou fora de casa, para não incomodar outras pessoas com a voz
falando.
— Ah! Entendi.
— Pensei em indicar umas coisas boas para você ouvir,
mas mora com a Lolla, não falta boa música por lá.
— Vou procurar – eu prometo a ele.
Guy liga a música em um aparelho que nem sei o nome,
ela se espalha pela sala, ele se senta no chão encostado na parede.
— Vem! – Ele me convida quando a música domina meus
sentidos e meu coração parece se preencher de uma emoção tão
nova e poderosa que me encanta.
Sigo até ele, sento ao seu lado, meu joelho encostado no
dele, seu braço colado ao meu, não penso se estou perto demais,
gosto de estar assim, junto dele, me faz feliz como nunca fui. Sinto
saudade de um mundo que não conheço, saudade de uma vida que
jamais vivi.
Ele diz que tenho cheiro de mel e morangos silvestres, mas
ele tem um perfume suave e masculino, que eu poderia reconhecer
de olhos fechados em qualquer lugar, bastaria sentir esse cheiro e
saberia que é o Guy.
Um nó de emoção se forma em minha garganta tamanha
beleza da melodia, nem consigo falar por conta da emoção.
— Prelúdio número 15 – ele diz parecendo se transportar
para outro universo, um em que ninguém além dele pode entrar.
Fico muda porque se falar ele vai perceber a minha emoção e temo
parecer uma boba que chora ouvindo uma melodia. – Gota de
chuva. – Guy sorri. – Vê essa parte monótona de repetição?
— Uhm! – Emito um som evitando a fala.
— O som da chuva na vidraça da casa em que ele vivia no
chuvoso inverno da ilha de Maiorca.
Voltamos ao silêncio apreciativo e quando a música parece
crescer meu coração parece se alimentar de mais emoção, como se
coisas boas estivessem sendo colocadas dentro dele e me
emociono ainda mais.
Sinto a mão de Guy se prender a minha, aceito fechando os
olhos para sentir por um instante que seja, como a música é para
ele. Os outros sentidos parecem se aguçar e mergulho na beleza do
piano solitário que toca inundando a sala de paz e beleza.
— Chopin tinha medo de ser enterrado vivo, quando morreu
quis que seu coração fosse retirado antes do sepultamento. Sua
irmã colocou seu coração em uma urna de cristal e enviou a
Varsóvia, está até hoje na igreja da Santa Cruz, debaixo de uma
inscrição que diz. “Onde seu tesouro está, estará também seu
coração.”
Não consigo conter as lágrimas, elas rolam por meu rosto
tamanha a emoção que me toma, é isso se significa amar a música,
é assim que ela toma nossos corações?
Onde está meu tesouro? Sei que o dele está aqui, na bela
casa com lindo jardim, preso ao amor dos pais e da irmã, junto a
seu cachorro e o piano, mas o meu tesouro não tem morada,
perdido feito eu, solitário, desejando o impossível.
Guy leva minha mão presa a dele até os lábios, beija com
cuidado e carinho, mais lágrimas correm por meu rosto, encantada
com a beleza do momento mais doce da minha vida.
— Pode chorar, Emily, eu choro às vezes de tanta beleza.
Queria perguntar como ele sabe, mas não importa, Guy tem
olhos na alma, enxerga o coração, ao menos o meu e por isso sabe
que ele transborda emoções e me leva às lágrimas.
Capítulo 9
Guy

Sentir sua emoção diante de algo que me toca tanto,


provoca sentimentos novos dentro de mim.
Sua mão permanece presa a minha por quase uma hora,
enquanto ficamos silenciosos aproveitando a boa música, não sei se
o piano vai encantá-la a ponto de ser algum dia uma pianista, mas
sei que a música cravou em seu peito. Isso para mim já nos une
mais do que qualquer coisa.
Quando sinto que ela está feliz, relaxada e não chora mais,
solto sua mão presa a minha, deixo meu lugar a seu lado e desligo a
música, tudo isso preso no silêncio, gosto de deixá-la tranquila, me
sento ao piano e sinto seus passos até mim, ela se acomoda ao
meu lado, começo a tocar uma peça minha, meus dedos correm as
teclas, mas é na alma que a mágica acontece. É onde está minha
musicalidade, onde componho, me alimento, completo.
— Gosta? – pergunto sem contar que é minha, para
esperar sua reação.
— É lindo. – A voz soa cheia de verdade e emoção. Acho
que Emily acaba de descobrir uma nova paixão, a música.
— Compus aos 17 anos, apresentei em um concerto no
conservatório, meu professor gostou muito. Me chamou de virtuoso.
— Seus dedos... eu nem sei explicar, parece que é parte do
piano – ela diz me fazendo sorrir.
— Vamos tocar juntos? – Convido. – Você toca as notas
que aprendeu, vou floreando em arranjos em volta.
— Quero. Fico nervosa – ela diz, mas não precisava,
conheço sua voz e as entonações, ainda falta descobrir como ela
fica quando exultante de alegria, talvez aconteça algum dia.
Uma batida na porta nos interrompe. Não preciso
perguntar quem é ou permitir a entrada, Coline nunca espera, entra
correndo pela sala.
— Jantar! – ela diz subindo em meu colo e tocando as
teclas desfazendo a melodia. – Ele manda você repetir toda hora e
diz que está tudo errado? – ela questiona Emily.
— Não, ele é generoso comigo.
— Generoso é bonzinho?
— Isso – Emily responde e sinto as mãos de Coline
segurarem meu rosto.
— Você não é generoso comigo, irmãozinho bobalhão.
— Pergunta para Emily se ela me chama de bobalhão? –
provoco Coline, essa pequena é quase como oxigênio para mim,
sua chegada trouxe um novo mundo.
— Não chamo, não – Emily responde a ela.
— Viu sua bobalhona. – Ela ri, abraço Coline e beijo o topo
de sua cabeça. – Vamos jantar, não podemos deixar a mamãe
esperando.
— Posso ir ao banheiro lavar o rosto antes? – Emily pede.
— Brigou com ela? Emily estava chorando? Está com
carinha de choro, você é um professor muito exigente, o papai é
melhor, Emily, estuda com o meu pai – Coline avisa com a
honestidade constrangedora de uma criança.
— Ela se emocionou com a música – Eu me sinto na
obrigação de esclarecer. – Aquela porta ao lado dos instrumentos de
corda. – Sei que eles estão todos dispostos no chão, a espera de
uma orquestra que talvez nunca venha a essa sala, mas papai quis
montar um espaço com tudo que posso algum dia precisar.
Sinto quando ela se afasta para ir ao banheiro, depois
escuto a porta e sobramos eu e Coline.
— Vocês estão se beijando aqui? – Coline sussurra
sabendo bem que não é certo falar dos outros por trás.
— Coline, isso não é da sua conta e, é feio perguntar essas
coisas.
— Ela está no banheiro, Guy – ela volta a sussurrar com a
mão na minha orelha.
— Muito engraçado, não importa, não quero que pergunte
essas coisas, Emily é minha amiga.
— Tá bom! – ela diz em um tom de voz enfadonho.
— Não faz careta. – Silêncio que significa careta. – Já
avisei.
— Você sabe de tudo – minha pequena princesa reclama
deixando meu colo. – Vai logo, mamãe fez a mesa bem bonita para
a Emily. Têm flores, têm pratos e copos e têm talheres.
— Colocou até talheres? – brinco para provocar Coline.
— Sim – ela responde antes de deixar a sala batendo a
porta no instante em que Emily retorna do banheiro.
— Coline não tem freios, mas não precisa dar ouvidos a
ela.
— Tudo bem – ela responde sem se sentar de novo ao meu
lado. – Ela é tão linda e divertida, expansiva, gosto muito dela.
— Melhor irmos. O que acha de conhecer o rancho
amanhã? Quero rever meu amigo Jimmy.
— Eu não sei, fico com medo de estar invadindo demais
sua vida. Não precisa me levar se não quiser.
— Tá bom, não te levo quando não quiser. – Ela fica muda
e sorrio. – Ainda quero que vá amanhã, aceita?
— Aceito. – Penso nos lábios se curvando em um sorriso.
Ela deve ser ainda mais bonita sorrindo.
— Ótimo, vou pedir que o meu pai nos leve de carro, depois
alguém do rancho nos traz de volta. Se saio a pé e não levo o
Lumière eu me sinto culpado, mas de carro não sinto o mesmo. Eu
sei que é loucura.
— Não é não, você se preocupa com ele.
— Muito – conto quando estamos no corredor. – Ele não
aguenta um passeio como esse pelo rancho, antigamente, enquanto
eu cavalgava a Misty, ele me seguia, corria todo o rancho, brincava
com os outros cães, mas agora, sinto que será pedir demais a ele,
acho que ele fica melhor aqui com a mamãe, descansando ao pé do
piano.
— Lumière me emociona – ela admite só para mais uma
vez, tocar meu coração. – Que cheiro bom.
— Mamãe cozinhou. Ela não liga o exaustor, só para pegar
o papai pelo estômago espalhando o cheiro da comida pela casa
toda.
— Muito bom descobrir o que pensa de mim – mamãe diz
quando chegamos ao fim da escada.
— Pior é ela pensar que preciso de algo assim para amar
você – meu pai responde e posso imaginá-los a trocar um beijo, eu
nem sei se eles se beijam tanto quanto eu os imagino, mas o amor
que eles demonstram sentir um pelo outro me criam imagens.
— Fofos – brinco sentindo Lumière se aproximar de mim e
me curvo para afagá-lo. – Estava com a mamãe? Ganhou muitos
petiscos?
— Todos que ele quis, esse menino é muito esperto,
quando vejo já estou fazendo todas as suas vontades.
— Vamos jantar crianças, Emily deve estar com fome –
meu pai insiste.
— Aquele bolo da Lily só serve para abrir o apetite –
mamãe reclama, enquanto seguimos todos para sala de jantar, me
acomodo no meu lugar de sempre e Emily se senta ao meu lado.
— Temos purê de batatas, bolo de carne e salada de
alface com tomates, suco de laranja, leite ou água. Coloquei uma
orquídea lilás para enfeitar, ela está florida, um caule longo repleto
de flores, sente o perfume? – minha mãe me questiona, mas no
momento, só sinto o cheiro da boa comida.
— Não, mãe, seu bolo de carne está roubando a cena.
— Agora deixou sua mãe com um largo sorriso no rosto –
meu pai anuncia e sorrio de volta.
— Eu quero carne e purê, não quero salada – Coline
anuncia como se alguém fosse levar em consideração, eu jamais
tive direito de recusar a salada.
— Ela tenta – digo baixinho a Emily. – Mas agora mamãe
vai colocar a salada no prato dela, como se minha irmã não tivesse
dito nada.
— Acertou – Emily responde. – Acho que é melhor eu nem
tentar recusar a salada.
— Não se arrisque assim por nada – respondo recebendo a
bandeja do meu pai. Me sirvo de purê.
— Guy pegou só um pouquinho de salada, papai, olha o
prato dele, só tem uma alface e um pedacinho de tomate.
— Só isso? – digo fingindo surpresa. – É que eu não
enxergo.
— Mas eu enxergo, põe mais no prato dele, papai – minha
pequena tirana insiste.
— Bem, já que o piadista está muito animadinho hoje, acho
que vou concordar com a Coline – papai avisa.
— Ele está colocando mais alface no meu prato, não está?
– sussurro para Emily e escuto seu riso.
— Bem mais salada.
— Foi o que pensei – brinco mais uma vez e gosto tanto do
seu riso, da onda de energia positiva e vibrante que vem dela
quando parece feliz.
— Vamos comer – papai avisa quando os talheres
começam a se mover e vem aquele barulhinho típico das refeições,
garfos a tocar a louça.
— Maggie fechou um negócio maravilhoso hoje. Vamos
vender mudas de orquídeas para um colecionador e cultivar
algumas raridades que ele vai nos oferecer em troca – mamãe conta
animada.
— Quando me lembro da Maggie perdida e assustada de
alguns anos atrás, nem dá para acreditar no quanto ela cresceu. –
Meu pai continua.
— Maggie era filha de um cowboy aqui da cidade, a mãe
morreu e uns anos depois o pai, ele era o tipo antiquado, ela foi
criada para ser uma filha exemplar e uma boa esposa – mamãe
explica a Emily e sinto que só está entrando em detalhes para
incentivá-la.
— Quando o pai dela morreu, o proprietário da casa que ela
vivia a despejou, eles eram péssimas pessoas que fizeram mal a
muita gente nesta cidade. – Meu pai continua.
— Maggie ficou perdida e sozinha, mas Lolla Queen
mostrou mais uma vez porque é a Diva de Horses Valley, deu abrigo
a ela e começou a incentivá-la. Eu descobri que ela entendia de
plantas e amava flores.
— Mamãe também é uma diva – conto a Emily.
— Que nada, eu queria passar mais tempo com a família,
cuidar do meu bebê.
— Eu? – Coline pergunta.
— Não, bobalhona, eu que sou o bebê da mamãe –
provoco Coline. – Não faz careta. – As pessoas riem.
— Mamãe, como que ele sabe? – Ela geme aumentando a
risada.
— Ele é esperto – meu pai explica. – Maggie veio trabalhar
com a Mandy, conheceu o Elton, se casou e tiveram o Jerry.
— O nome é em homenagem ao pai dela. Jerry era um
bom homem, muito amigo da minha família – mamãe explica.
— Hoje ela tem uma família linda, se tornou uma mulher
forte e decidida, enfrentou muitas coisas, por um tempo achamos
que ela é que acabaria como prefeita de Horses Valley.
— Mas a senhora Anderson passou a perna na Maggie –
eu brinco sabendo que Maggie nunca quis realmente nada disso.
— Ela tinha um grupo de amigos para ajudá-la – Emily diz
meio que tentando achar uma razão.
— Outras pessoas tiveram oportunidades e não fizeram
nada com elas, também têm aqueles que mesmo sem
oportunidades conseguem, muito da vitória dela está na força dela,
uma força que sempre existiu dentro dela e que ela não conhecia –
meu pai diz para deixar claro que acreditamos nas chances de Emily
mudar sua vida.
Ela ainda não disse nada sobre sua vida, seu passado e eu
não sei se não perguntar parece falta de interesse, ou respeitar seu
espaço, eu quero parecer alguém que sabe o que faz, que
compreende o que sente, mas a verdade é que sei tanto quanto
qualquer garoto de 20 anos.
Terminamos o jantar falando sobre a floricultura e como
minha mãe ama o seu trabalho. Eu acompanho Emily até o portão
mesmo depois de ela insistir em ajudar com a louça e mamãe
garantir que esse é o meu trabalho.
— Tem certeza de que não quer que te ajude a lavar a
louça? – ela me pergunta no portão.
— Não. Se a mamãe acha que as minhas pobres mãos de
pianista podem enfrentar uma louça, não vamos discordar dela.
— O jantar estava ótimo. Obrigada – ela agradece.
— A sobremesa melhor ainda, uma vez pedi a receita para
Lily, fiz eu mesmo o bolo respeitando cada pequena regra, segui à
risca a receita e não deu em nada, ainda acho que ela me passou
uma falsa receita só para não dar certo. Lily é perversa.
— Eu consigo fazer aquele bolo – ela diz com
determinação. – Vou pedir a Lolla para preparar um lá na casa dela
e se ela não se importar, eu te convido.
— Ela não se importa, Lolla é parte da minha família e
tenho passe livre em sua casa.
— Bem, então... eu faço um dia desses. – Ficamos em
silêncio, ela não quer ir e eu não quero que vá, mas o mundo diz
que temos que nos despedir, as convenções sociais, a vida, tudo
unido em harmoniosa certeza, só para nos separar.
— Passamos amanhã lá pelas duas da tarde para pegar
você.
— Eu venho até aqui, assim o seu pai não precisa me
buscar.
— São só uns metros, Emily, tudo bem – insisto e seu
silêncio parece ser uma aceitação. Tanto que quero saber dela,
tanto que quero falar, mas eu não sei se devo, não sei se ela se
sente como eu, ou apenas vê em mim um amigo para aplacar sua
solidão, se é carência ou se ela realmente gosta de estar em minha
companhia.
— Boa noite, Guy. Estou indo.
— Tchau. Boa noite. – Fico imóvel sentindo seu
afastamento, seu perfume de novo se perdendo na noite e quando
não resta mais nada, caminho de volta, entrando direto pela
cozinha, escuto o barulho da louça sendo recolhida sobre a mesa de
jantar, arregaço as mangas e pego a esponja e o detergente.
Meu pai ficou angustiado a primeira vez que me viu
ajudando a mamãe a lavar a louça, tinha medo que eu quebrasse
algo e me cortasse, tinha medo que eu me magoasse por ser
obrigado a fazer serviços domésticos, mas mamãe não lhe deu
ouvidos, insistiu e eu continuei, depois ela resolveu que eu devia ser
capaz de cozinhar.
Nesse tempo já estávamos em Paris, os dias dela eram
longos, sem seu jardim, ela não tinha muito o que fazer, cuidava de
Coline, fazia um curso com alguns jardineiros e paisagistas, mas
seu tempo livre era sempre maior e então começamos o curso de
culinária de mamãe Mandy.
Eu não fui bem, é preciso admitir, mas descobri que não
morro de fome se ficar sozinho. Foi nessa época que pude entender
o valor da pipoca de micro-ondas e o macarrão instantâneo.
Abro a torneira e começo a lavar o que já estão na pia.
— Achei que ainda estava no portão – meu pai diz trazendo
mais louça.
— Ela já foi.
— O que é? Namoro, amizade, algo novo e moderno?
— Muito engraçado – digo colocando o copo sobre o
escorredor. – Eu não sei. Ela é bem especial, acho Emily linda.
— Linda... como se já tivesse descoberto... você sabe...
— Sim, pai, eu pedi que me deixasse ver como ela era e,
ela é muito bonita.
— Muito, realmente é linda, parece uma boneca tamanha
perfeição dos traços.
— Achou? – questiono meu pai.
— Achei. Sua mãe não cansa de elogiar a beleza dela. Fui
obrigado a investigar melhor e ela é mesmo bonita.
— Como assim, pai? Investigar melhor?
— Prestar atenção, eu não fico prestando atenção nas
mulheres, mas a mamãe ficava falando e prestei atenção.
Tolice ter o sentido da visão e não o usar com o máximo de
seu potencial, mas as pessoas são exatamente assim, não dão
valor ao mais sagrado.
— Eu não sei o que ela pensa sobre isso, papai, então
eu... estou deixando acontecer de modo natural. Pode nos levar ao
rancho amanhã? Depois voltamos com o Jimmy, ou sei lá, com
alguém que esteja voltando. Levo minha bengala e caminhamos.
— E isso é deixar acontecer de modo natural? – Meu pai ri.
— Está secando a louça enquanto ri de mim? – pergunto
meio ofendido.
— Não! – ele me avisa sem qualquer piedade.
— Me leva amanhã?
— Levo.
— Acha que ela gosta de mim? – pergunto na tentativa de
inserir o assunto como algo corriqueiro.
— Acho. – Silêncio, meu pai podia não me obrigar a
continuar perguntando e discorrer sobre o tema.
— Acha?
— Sim.
— Pai! – reclamo, seu riso se espalha enquanto ele aperta
meu ombro em um tipo de pedido de desculpas.
— Ela está interessada, é uma moça meio sozinha e um
tanto perdida, eu não sei se vale a pena se envolver com ela para
além de uma amizade se você não estiver muito certo do que sente.
Só porque acha Emily bonita.
— Já sei, é aquela coisa de responsabilidade emocional –
aviso sabendo como a mamãe está sempre me falando sobre isso.
— Sim. Ela não é como Marion. Independente, com sonhos
definidos, objetivos e apoio emocional.
— No fim, foi tudo isso que me separou dela, queríamos
coisas diferentes – conto ao papai.
— Não, não foi isso. O que os separou foi falta de amor, se
amasse Marion, e ela o amasse, estariam juntos. Você querer estar
aqui no Vale e ela preferir correr o mundo em uma filarmônica não
os teria separado se fosse amor e fico feliz que não era, era jovem
demais para o amor naquele tempo. Ainda é.
— Não se escolhe essas coisas, papai. Acontece e pronto.
— Já a louça não, se não lavar ela continuará suja – ele diz
ao me ver parado enquanto conversamos.
— Cara chato! – reclamo voltando ao trabalho, mas os
pensamentos nela, na garota que chorou ouvindo Chopin.
Capítulo 10
Jimmy

— Tio, eu quero ir também – Callan me pede quando fecho


a mochila. Olho para Shane, é ele que decide.
— Por mim tudo bem, se dá conta dos meninos, pode levar
– ele diz tirando as luvas de trabalho e enfiando no bolso de trás do
jeans. – Mike é um pequeno monstrinho.
— Puxou o tio Jimmy. – Gwen entra em casa também
tirando as luvas de trabalho.
— Eu? – reclamo da comparação.
— Estou pronto. Vamos jantar antes de ir? – Mike surge na
sala com uma mochila nas costas e o chapéu na cabeça.
— Pelo que eu entendi, era uma noite selvagem. – Minha
irmã nos lembra colocando as mãos na cintura. – Três caras,
fogueira, sacos de dormir e o céu estrelado, caçando a própria
comida, bebendo água do rio, agora já querem jantar antes?
Mike me olha já arrependido da aventura, eu sorrio
sabendo que Gwen não vai deixar os garotos saírem sem o jantar.
— Larvas. – Shane continua a provocação. – Podem comer
larvas, ou também formigas e minhocas. – Os garotos fazem careta.
Cassady está totalmente envolvida com seu brinquedinho de montar
sentada no chão, não liga para nenhum de nós.
— Mike, leva um saquinho com sal, depois de fritar as
minhocas coloca sal e fica tudo perfeito. – Gwen continua.
— Amor, eles não vão querer levar sal, não é selvagem
comer minhoca com sal.
— Tio, você sabe pescar? – Callan pergunta prestes a
desistir.
— Se não encontrarem o rio, lembre-se dos cactos, ainda
sabe tirar água de cacto, senhor veterinário?
— Sei – digo a eles achando graça do desespero.
— Acho que eu não quero ir mais. – Callan choramingo,
Mike ri tirando a mochila das costas e colocando no piso.
— Eu tô levando comida, Callan – ele avisa abrindo a
mochila, dentro, uma infinidade de latas e saquinhos.
— É uma noite ou o Apocalipse? – Shane questiona o filho.
– Mike, não pode levar tudo isso, lembrou do abridor? – O garoto
perde a felicidade em uma mudança radical de expressão, do triunfo
a derrota em três segundos.
— Tio, você sabe abrir essas latas?
— Eu fiz uns sanduíches meninos. – Gwen acaba com a
tortura. – Vão só ficar umas horas fora, praticamente no jardim.
Cassady desiste dos brinquedos, com todo esforço e
concentração, fica de pé e abre os braços, com passadas incertas e
tentando se equilibrar, ela chega até a mãe, Gwen ergue a pequena
nos braços e beija seu rostinho meia dúzia de vezes.
— Se comportou pequena? – ela pergunta a garotinha que
esfrega os olhos já sonolenta. Como todos nessa casa, minha
sobrinha dorme cedo e acorda com as galinhas, a vida no rancho é
vivida de acordo com a natureza, aproveitamos a luz do dia, o
despertar dos animais é o nosso despertar.
Cassady fica com uma babá, Gwen não é mulher de ficar
dentro de casa, temos uma ajudante que cuida dos meninos e da
comida, enquanto Gwen e Shane cuidam do rancho, ela fica o dia
todo em torno das crianças, eles correm o rancho com os pais,
brincam por todo canto, mas tem alguém que se ocupa em cuidar
deles. Jenna é esposa do Bill, ele trabalha aqui e mora na Vila, vem
pela manhã com ela e no fim da tarde, voltam juntos.
Gwen mudou muita coisa no rancho, para melhor, como o
Shane diz. Agora eles negociam cavalos de alto padrão. Com tudo
que aprendi, cuidar deles será muito mais fácil, minha irmã é a
encantadora de cavalos de sempre. Shane está mais feliz e agora
lida com os cowboys de outro modo, a relação é tão melhor que
estamos todos muito mais felizes.
Senti saudade de casa, de conviver com eles,
principalmente com meus sobrinhos, agora é o momento de estreitar
os laços com minha família, pensei em ter um lugar só meu e talvez
eu faça isso, compre uma casa no Vale e venha todas as manhãs,
mas antes quero conquistar o amor das crianças.
Vê-los uns dias uma vez ao ano nunca foi o bastante, são
meus sobrinhos, minha família e quero criar laços fortes com eles.
Gwen ajeita sanduíches em um recipiente, levo garrafas de
água e quando o sol finalmente vai embora, depois que todos estão
prontos, é hora de partir.
— Bem, divirtam-se meninos, caso a noite fique fria demais,
as camas de vocês estão prontas. – Shane avisa com dificuldade de
se despedir das crianças.
— Boa noite, papai. – Mike beija o rosto do pai ansioso
para partir. Callan parece inseguro, aos seis anos, é sua primeira
noite fora de casa e acho que está muito dividido, mas não vamos
deixar as cercas do rancho, ele pode voltar quando quiser.
— Boa noite, filho, obedece ao seu tio – Shane diz me
lembrando do parentesco que sempre parece me deixar surpreso,
agora eu sou tio de três crianças lindas e um pouco de sua
felicidade é minha responsabilidade.
— Tá bom, pai, mas se eu encontrar o Estrela da Noite, vou
montar nele e cavalgar pelo mundo. – Mike é um sonhador. –
Diabos, papai, ele deve ser muito rápido, vou ser mais rápido que
um foguete.
— Se não parar de praguejar, a mão da sua mãe vai te
mostrar a rapidez de um foguete – Shane diz ao garoto.
— Maldição, Shane, você fica falando essas coisas, ele
escuta e repete. Diabo de homem teimoso! – Gwen deixa claro de
quem vêm as doces palavras que os pequenos repetem, eu e
Shane trocamos um sorriso.
— “temo” – Cassady repete a mãe apenas para provar
nossa tese silenciosa. Gwen ignora nossos olhares, coloco a
mochila nas costas.
— Vamos meninos? Está ficando tarde, temos que fazer
uma fogueira, assar umas batatas e dormir sob as estrelas.
— Qualquer coisa liga que o papai vai te buscar – Gwen diz
beijando os meninos e entregando o celular que tira do bolso do
jeans para Mike. – Amo vocês.
Saímos caminhando pela noite que vai ficando mais escura
a cada metro longe da luz da casa, Callan olha para trás duas vezes
entre saudade e arrependimento, mas Mike não cabe em si de
alegria.
— Acho que podemos montar nosso acampamento perto
do riacho. O que acham?
— Tio Jimmy, o riacho fica bem longe de casa.
— Não longe demais para seu pai correr e buscar você se
for preciso. – Tento acalmar o garotinho que aperta minha mão
mergulhado em indecisão. Ele quer estar conosco em uma
aventura, mas também quer os pais e a segurança da casa.
— Vai ser legal, Callan, vamos esperar pelo Estrela da
Noite, eu sei que ele vem.
— Vamos torcer, mas o Estrela da Noite tem seus preferidos
– digo com medo dos meninos amanhecerem, decepcionados.
— Eu! – Mike conta animado enquanto saltita na frente,
enfrentando a noite e terreno incerto com coragem e alegria. –
Sabia que ele avisou a mamãe que eu estava vindo? Beijou a
barriga dela, ou qualquer coisa assim, papai contou, mamãe
também. Só eu que ele fez isso, não avisou do Callan e nem da
Cassady, ninguém nunca mais o viu.
— Talvez ele tenha ido para longe.
— Mais fé, tio! – Mike me faz rir repetindo as falas dos pais.
– Vou contar na escola. Holly vai ficar feliz, ela já avisou que um dia
vai fugir à noite em busca do Estrela da Noite. – Ele tampa a boca
apressado, se arrepende de ter entregado Holly e sua aventura
premeditada. Sinto-me na obrigação de informar seus pais dos
planos da garotinha, é um lugar pouco seguro para uma
adolescente aventureira e solitária. – Não conta, tio Jimmy.
— Está uma noite linda. – Mudo de assunto porque não
posso fazer uma promessa que não vou cumprir. – Alguém com
fome?
— Eu! – Callan levanta a mãozinha e me olha esperançoso.
– A gente vai jantar lá com o papai e a mamãe?
— Não, Callan, para de ser bebezinho, vamos caçar e
cantar em volta da fogueira, como a mamãe fazia com os cowboys.
Eu me lembro de Gwen em seus tempos de solteira,
quando não pensávamos em uma vida melhor do que aquela que
tínhamos, ela entre os cowboys, domando cavalos, enfrentando o
calor escaldante, correndo por todo rancho e depois perdendo tudo:
a mamãe, a segurança, as certezas.
Lembro-me de chegar aqui cheio de raiva no coração, de
odiar meu irmão, odiar a vida e morrer de vergonha de não ter nada,
nem mesmo um teto que não fosse um favor dos Berckmans.
Agora esta terra é meu chão, meu coração, minha vitória e
meu maior tesouro, não sou mais nem de perto do que fui, não tem
mais mágoas e rancores em meu coração, só paz, amor e saudade,
mas essa não tem cura, não nesse chão, não sob esse céu
estrelado, a saudade que tenho está agora em uma casa pequena e
aconchegante no Vale, talvez debruçada sobre provas, ou quem
sabe nos braços de alguém que não sou eu.
O som das águas tranquilas do riacho chega até nossos
ouvidos, os meninos se animam, Callan se junta ao irmão mais
animado com a brincadeira.
Procuro uma boa localização para os sacos de dormir, uma
parte do terreno não tão próxima a margem do riacho, terreno
menos acidentado, abro os sacos de dormir, começo a montar a
fogueira e acendo o lampião.
Os meninos ajudam a pegar galhos secos e pequenos
pedaços de madeira, quando o fogo finalmente cresce, eles
aplaudem animados. Mike corre em torno do fogo, fingindo ser um
índio em algum ritual, é um pequeno pedaço dessa terra, criado
como todos nós para amar o chão, o céu e os animais.
Assamos marshmallows presos a gravetos, sentados no
chão, aproveitando o calor do fogo que diminui o frio das noites
texanas.
— Acha que o Estrela da Noite vai aparecer? – Mike
pergunta olhando em torno. Jamais vi o tal cavalo e não sei bem o
que pensar sobre ele. Meus irmãos juram que ele é real, meu lado
veterinário e especializado em cavalos acha bem difícil acreditar
nessa teoria, mas aceito seja lá o que for, espírito, realidade, ele
encanta o Vale, traz esperança, sonhos, seja como for, Estrela da
Noite é bem-vindo.
— Nunca se sabe – digo a ele de modo tranquilo.
— Pode ser que sim. – Callan dá de ombros. – Quero fazer
xixi, tio Jimmy.
— É só escolher uma moita. – Mike rola de rir da cara de
desespero do irmão. – Vem, eu te ajudo. Mike, não se mova do
lugar ou fica sem as orelhas.
— Cuido de tudo – ele diz pouco preocupado com a
ameaça.
Callan leva tempo até se sentir pronto, depois voltamos os
dois para junto de Mike, o fogo nos aquece e a noite nos protege,
tem o leve barulho das águas do rio e a saudade que me domina o
coração mais do que todos os outros dias.
Quero uma família, quero filhos como meus sobrinhos,
trazê-los para as noites estreladas e contar histórias em torno de
uma fogueira. Acho que foi para isso que deixei esse lugar que tanto
amo, para me preparar para o retorno.
O Vale é minha casa, não importa por onde estive, eu
sempre quis estar aqui e quis tudo isso para dar a essa família que
sempre carreguei em minha cabeça o melhor de mim.
— Tio! – Mike me chacoalha e volto à realidade meio
atrapalhado. – Eu tô querendo saber uma história de terror.
— Terror? – pergunto a ele em uma careta de desgosto. –
Não sou bom em histórias de terror.
— Eu conto, mamãe conta muitas – Ah, ela conta. Gwen
adorava me assustar com péssimas histórias de terror que eu
jamais achei que contaria aos garotos.
— Não conta, não, Mike, se contar eu vou querer que o
papai vem me buscar! – Callan pede já prestes a chorar.
— O.k., meninos, vou contar histórias muito melhores.
Querem saber como era minha vida lá nas arábias?
— Sim! – Eles se animam.
— Bem, eu trabalhava para um sultão, ele era muito rico e
amava cavalos, contei a ele sobre o Estrela da Noite e ele até quis
mandar uma equipe caçar o cavalo imaginário.
— Que perigo.
— Também acho, Mike, mas eu o desiludi e ele esqueceu.
Conto a eles meu trabalho, falo sobre os cavalos que
conheci, as aventuras que vivi, enrolo os meninos até Callan
encostar em meu ombro e adormecer enquanto Mike parece
mergulhar em algum mundo de aventuras olhando para o fogo.
— Tio, você namorava a professora Penny?
— Que pergunta. De onde veio isso?
— O papai falou que você está com medo dela. A
professora Penny Lane é tão legal, não fica com medo dela. Sabia
que ela dá aula para a Holly? Conhece a Holly? Filha do tio Noah.
— Conheço sim a Holly.
— Por que você não casa com a professora Penny? Ela é a
professora mais bonita do mundo.
Parece que eu não sou o único que ela encantou, os
olhinhos do garoto brilham.
— Ela é mesmo. – Lembro-me dos cabelos longos ao vento
quando montávamos juntos, de como eu adorava quando podia
pegar o carro e dirigir até Dallas com ela, logo depois de Shane me
ensinar a dirigir.
— Vai namorar com ela de novo?
— Mike, isso é conversa de adulto. Nem sei se ela tem
namorado.
— O professor James quer namorar com ela, ele é o
professor de educação física e fica de olho nela. – Mike não tem
ideia do que sua frase despreocupada me provoca.
— Pensei que fosse a escola para aprender, mas pelo visto
fica cuidando da vida das pessoas. Muito feio isso.
— Feio é o professor ficar olhando a Penny Lane. Se você
namorar ela eu vou poder falar que sou amigo dela?
— Olha, Mike, uma estrela cadente, faz um pedido! – É
uma grande mentira, mas o garoto esquece tudo encarando o céu
enquanto aproveito para ajeitar Callan no saco de dormir e avivo o
fogo para nos aquecer por mais tempo. – Vamos deitar e contar
estrelas?
— Tá bom – ele diz achando ruim ter que desistir de
encontrar Estrela da Noite.
Uns minutos e o garoto está dormindo, eu fico a olhar para
o céu e pensar nela, será que o tal professor conquistou seu
coração? Será que ela quer me ver? Tantas perguntas. Gwen acha
que basta nos encontrarmos de novo para essa sensação de
distância acabar, talvez sim, mas não sei se me sinto pronto.
No primeiro ano de faculdade eu tinha certeza de que
bastaria pisar no Vale e tudo voltaria a ser como antes, achava que
sairia da faculdade correndo para casa dela, mas não foi nada disso
que aconteceu, um abismo se abriu e não sei como transpor.
Amanhece sem que eu pregue os olhos, levo os meninos
para casa animados e orgulhosos de suas aventuras. Callan que
partiu inseguro, volta animado e corajoso, de peito estufado se
sentindo um herói.
Os dois correm para os braços dos pais assim que
apontamos no terreno próximo a casa, Shane e Gwen estão na
varanda a nossa espera e recebem os meninos com abraços e por
meia hora, enquanto devoramos o café da manhã, a noite sob as
estrelas se torna uma louca aventura contada por dois garotinhos
felizes.
Seguimos para o trabalho, as crianças para a brincadeira
em um sábado tranquilo. No meio da tarde, o carro dos Montpellier
se aproxima e fico feliz por receber Guy.
Ele deixa o carro ao lado de uma linda garota que deve ter
a mesma idade que ele ou um pouco menos, ela está encantada e
tímida, Mathieu acena sem deixar o carro, diz qualquer coisa ao filho
e depois vai embora, Guy usa a bengala e penso que será bem
triste perder Lumière, mas ele já está bem cansado.
Talvez eu vá consultá-lo qualquer dia desses, ver se posso
prolongar um pouco mais seus esforços em estar com Guy.
— Ei, Guy!
Ando até eles, a garota está ao lado dele, acho que se
pudesse se esconder é o que faria, mas os dois combinam, sorrio
pensando em como esse garoto é esperto. Não perdeu tempo em
conquistar a nova moradora do Vale.
— Eu vim. Quero mostrar os cavalos para ela e rever um
amigo – ele diz abrindo os braços para um abraço quando me
aproximo. Depois do longo abraço de saudação, eu aperto a mão de
Emily e sinto os dedos gelados.
— Está assustada? – pergunto a ela. – Tem medo dos
cavalos?
— Não, eu os acho lindos.
— Vai gostar de conhecê-los de perto. Vão montar?
— Com certeza. Está ocupado?
— Não para rever um amigo. Vamos beber alguma coisa e
conversar, Emily, temos porquinhos e os cães, além dos cavalos,
acho que vai se divertir. Mostro tudo depois.
Gwen e Shane se juntam a nós para um café e uma fatia de
bolo, em seguida eu mostro as terras e os animais para o
casalzinho, ela toda preocupada em cuidar dele, mas Guy sabe se
virar, com a bengala ou com Lumière, ele nunca encontra grandes
problemas, chegamos às baias e dá para ver o amor dela pelos
animais, Emily fica totalmente encantada e o mais bonito é notar o
quanto Misty sente falta de Guy e o reconhece.
Posso notar seu entusiasmo assim que ela o percebe, ele
afaga seus pelos, a acariciando como quando era pequeno e muito
antes de eu estar aqui.
Amigos de longa data, Guy só precisa que sele o cavalo e
ele está pronto para sair com ela.
— Vem comigo, Emily? – Ele convida assim que monta
dobrando a bengala e guardando na cintura.
— Nós dois no mesmo cavalo?
— Pode montar, Emily, ela vai adorar esse momento com
vocês. Misty está acostumada com o Guy e vão poder percorrer o
rancho. Ela sabe onde ir.
Ajudo Emily a montar, ela envolve o corpo de Guy e o
safado está com um sorriso de orelha a orelha.
— Divirtam-se – digo abrindo a portinhola para Misty
ganhar o rancho em companhia de Guy.
Gwen implantou um trabalho bonito com alguns cavalos,
duas vezes por mês recebemos crianças especiais para um tempo
com os cavalos, eles são sempre incríveis com elas, autistas e
outros tipos de disfunções, não importa o quanto arredia seja a
criança, ela sempre sai de um dia com os cavalos muito melhor.
Fico olhando o casal sobre o cavalo se distanciarem, me
lembro de Penny Lane e de todos os momentos em que nos
perdemos pelo rancho as vezes dividindo o mesmo cavalo, outras
apostando corrida e como eu me sentia vivo e completo.
— Você é um grande covarde, Jimmy Berckman. – Eu me
acuso sem piedade, dou as costas ao casal e caminho para a
varanda, sei que estou sendo um idiota, mas se ela quisesse
mesmo me ver não teria vindo me encontrar?
Capítulo 11
Emily

Meu coração bate tão rápido enquanto envolvo Guy e, ele


parece deixar Misty nos guiar pelas belezas do rancho. É tudo tão
bem cuidado, a grama tão verde, as cercas bem pintadas, cavalos
passeiam livres, alguns trabalhadores parecem se ocupar de seus
afazeres sem nos notar, um vento suave sopra enquanto a égua
parece ciente de seu trabalho e mais ainda, parece compreender
porque ela nos guia, seu trote é lento e ela aproveita o passeio nos
levando para longe e sem qualquer preocupação, Guy parece
aproveitar o momento em silêncio, eu gosto de olhar em torno, sentir
a brisa, o balançar suave e principalmente, meu corpo contra o dele,
seu cheiro e quando seus braços envolvem os meus sobre seu
peito, me sinto segura e especial.
Eu nem sei se algum dia senti isso, mas sinto com ele.
Proteção, segurança, uma pequena esperança feito uma luzinha
mínima parece tomar meu peito e me encantar a cada instante que
passamos juntos.
Por um momento pensei em recusar o convite. Eu não sei
se ele está apenas sendo generoso, se sente algo por mim. Talvez
seja apenas seu jeito de me ajudar a me sentir mais conectada com
o Vale, ou quem sabe ele goste de mim e nesse caso, o que posso
oferecer a ele? Nada. Eu não tenho nenhuma direção e nem sei se
o Vale é meu lugar, parece que vim para ficar, mas não é verdade,
tudo pode mudar a qualquer instante, eu vivo de favores e desse
modo, sou tão dona do meu destino quanto era na casa do meu pai.
Quero ser forte e procurar um lugar, uma vida, achar
trabalho, casa, futuro, não posso me entregar a esse sentimento,
não posso passar meus dias a seguir Guy, minha vida não pode
girar em torno da espera de sua companhia.
Lolla não me trouxe para isso e cedo ou tarde, vai se
chatear com isso. Esse passeio vai marcar essa história, não vou
mais passar todos os dias com ele, não é certo, não é justo com
quem me deu a mão e ele mesmo pode estar preso a essa ajuda
que está me dando.
— Estamos perto do riacho, acho que podemos deixar a
Misty beber um pouco de água e descansar.
— Quer saltar? Não tem medo dela fugir?
— Não. Estamos bem. Misty é uma boa amiga. – Ele
segura as rédeas da égua que para de trotar e fica imóvel
atendendo a seu pedido. – Consegue saltar, Emily?
— Sim – aviso com um pouco de medo de soltá-lo, mas
sem escolha, eu deixo o cavalo e ele faz o mesmo com muito mais
classe, provando que está acostumado.
Sem soltar as rédeas de Misty, ele se aproxima do riacho,
talvez usando apenas a audição, quem sabe como eu, ele está
sentindo o cheiro de terra úmida.
Ficamos lado a lado enquanto Misty bebe água e mordisca
a grama em torno. Estou feliz e triste, emocionada e muito grata por
viver esse momento.
— Gostou de montar?
— Muito, é emocionante e divertido – digo a ele olhando
para o horizonte. – Me senti tão livre.
— Misty foi o primeiro cavalo que montei aqui no Vale,
somos amigos de longa data – ele conta passando a mão no dorso
do cavalo que não parece muito interessado em nada além de
comer grama.
— Sempre foi corajoso, Guy?
— Sempre. De um jeito estranho – ele conta sorrindo. Me
pergunto como é dentro de sua cabeça, sem o sentido da visão, se
ele imagina cenas, se está vendo tudo preto, mas não quero tocar
nesse assunto.
— Como assim de um jeito estranho?
— Era o medo que me movia, mas eu não sabia, eu tinha
tanto medo de ficar sozinho, sem meu pai, sem alguém para me
guiar que eu acabei aprendendo tudo que podia – ele conta de
modo simples. – Quando minha mãe decidiu me ensinar eu
aproveitei cada momento.
— Jay me contou que você era genial, aprendia tudo
rápido, ele disse que vai me ensinar Braile se eu quiser aprender –
conto a ele.
— E você quer?
— Sim – admito mesmo com medo dele pensar que é por
ele, embora não seria errado pensar assim, porque é sim por conta
dele que quero aprender.
— Não sei nada sobre você – ele me diz procurando minha
mão para prender a sua.
— Não tem nada demais, nada bonito como as suas
histórias.
— Acha minhas histórias bonitas? – Guy sorri de modo
generoso. – Me deixa descobrir a beleza das suas?
— Eu não gosto muito de falar de mim.
— Como era a vida quando você era pequena?
— Nada demais, eu ia a escola e depois ficava em casa
com a minha mãe, podia ver um pouco de desenho, dormia cedo e
acordava no outro dia para o colégio. Ah! Mas teve um tempo que
meu avô morou com a gente e ele contava tantas histórias e me
levava sempre no parque para brincar e correr, eu era bem feliz
naquele tempo.
— Depois não foi mais feliz? – Fico muda, eu não consigo
contar minhas histórias sem chorar.
— Não – digo sem me prolongar.
— Você não confia em mim para contar? – pergunta difícil.
É mais vergonha do que qualquer outra coisa, não tenho ilusões que
meu passado seja um completo segredo, claro que Lolla deve ter
dito algo, só a minha estadia em sua casa já cria uma certa certeza
sobre tudo.
— Confio, é que eu choro e é triste. – Guy solta minha mão,
passa seu braço por meu ombro e gosto tanto desse abraço, de
ficar com a cabeça em seu ombro, olhando o lento correr das águas
do riacho ao sabor do vento.
— O que está vendo?
— Aqui?
— É, me conta como é a paisagem. Sei que estamos diante
do riacho, sinto o cheiro da água meio barrenta, o som que produz
de encontro às margens e as pedras, sinto meus pés afundando um
pouco no barro da beira do riacho. Além do riacho, muito distante,
têm as montanhas, elas bloqueiam o som e o vento, por isso sei que
estão aqui.
— Tem grama por entre a terra fofa e úmida, Misty está se
divertindo mordiscando-as. O riacho tem um tom escuro por conta
da terra ao fundo e as pedras são lodosas e arredondadas, talvez
seja o trabalho da água sobre elas, ano após ano, mudando suas
formas, moldando de acordo com seu correr. As montanhas ao
fundo são de um tom de terra avermelhada, têm poucas árvores
insistentes a pintar de verde as grandes formações, o resto é um
campo verde, tem um belíssimo cavalo a pastar próximo a nós, ele é
alto e negro, com pelos brilhantes e uma crina longa. Não sei de
onde vem a fonte do riacho, as águas se perdem entre as rochas e
montanhas. A nascente deve ser dentro de alguma dessas
montanhas.
— Obrigado por essa descrição – ele diz parecendo
emocionado. – é um bom recurso contar com as descrições, mamãe
faz isso, mas ela é técnica – ele brinca.
— Meu pai era ciumento e possessivo, minha mãe vivia
quase como sua prisioneira, eu acabava presa a eles também. –
Deixo a verdade sair no meio de um assunto totalmente novo,
parece bom contar.
— Sinto muito.
— Ele dizia nos amar, eu ainda não sei dizer se amava ou
não, ele dizia que era para nos proteger, que não podia viver sem a
mamãe e que eu era sua filha e ele queria o melhor para mim. – Um
nó se forma na minha garganta, eu sinto culpa, não admito, mas
sinto, ele sempre disse que me amava e queria cuidar de mim, por
isso ficava bravo, por isso não me deixava sair com as outras
meninas, namorar, viajar. Por isso ninguém podia ir à nossa casa.
Mesmo assim, eu preferi fugir dele.
— Ele precisava de tratamento.
— Ele batia na mamãe.
— Nesse caso, ele precisava de prisão – Guy diz com uma
nota de amargura na voz, é isso que minha história provoca. Não
sorrisos e inspirações, só revolta. – Batia em você?
— No começo não, mas depois... eu não conseguia fingir
que não estava acontecendo e tentava defender a mamãe, mas aí...
– Minhas lágrimas rolam. – Eu disse que não era uma boa história.
— É a sua história, não precisa se envergonhar dela.
— Me envergonho mesmo assim – explico a ele que
acaricia meu braço me fazendo ficar ainda mais perto de seu corpo.
— Não está mais lá.
— Eu sei – respondo sem muita convicção, a culpa ainda
me acompanha porque fugi dele, do meu próprio pai, não sei se ele
sabe disso. – Acho que o dia está tão lindo. Eu não quero estragá-lo
com meu passado.
— Não estragaria nada, mas entendo você não querer falar
sobre isso. – Ele é generoso em não insistir, talvez se magoe por
achar que não exista confiança entre nós, mas acho que pode
entender até mesmo isso.
— Obrigada – digo sem saber como continuar a conversa.
— Gostou do rancho?
— Muito. Tanta paz e silêncio. Um lugar especial, seu
amigo Jimmy também pareceu ser ótima pessoa.
— Ele é. Gosta da Penny Lane, desde que chegou ao Vale
inclusive.
— Não é correspondido?
— Honestamente acho que sim, mas não posso ter certeza.
Sou amigo dela, mas o tempo me aproximou mais dele do que dela.
Penny era melhor amiga da Peggy Sue e eu era como o irmão
caçula da Peggy, perseguia as garotas pela cidade, ficava sabendo
de tudo, ouvindo as meninas falarem sobre garotos e casais.
— Acho que isso fez bem a você. – Vejo quando ele junta
as sobrancelhas como se pensasse a respeito.
— Por que acha isso?
— É um homem sensível, gentil, deve ser por ter convivido
com muitas garotas. – O riso dele se espalha e se perde em meio
ao campo aberto.
— Talvez esteja certa, mas acho que isso é sobre como
meu pai é e, como minha mãe me criou. Ela sempre foi muito dura
sobre isso. Sobre como tratar garotas, ela, minha irmã, suas
amigas, Holly e Peggy Sue com quem eu estava sempre grudado.
— Você era apaixonado pela Peggy Sue? – Uma ponta de
ciúme nasce em meu peito me assustando e confundindo, junto com
a pergunta vem uma onda infinita de vergonha e o constrangimento
tinge meu rosto, mas ele não pode ver.
— Eu disse, era como o irmão mais novo dela. Amo Peggy
Sue, levei um tempo para ter amigos, meu pai não me deixava
frequentar a escola por puro medo de algo me acontecer longe de
sua proteção, Peggy me apoiou e fez companhia e quando fui para
a escola, eu era o garoto cego que ninguém sabia bem como lidar,
então a Peggy me ajudou a me encaixar.
— Não é da minha conta, eu nem devia ter perguntado –
digo com ainda mais vergonha.
— Tudo bem, não é a primeira pessoa a achar isso. Sou
muito apaixonado pela Peggy, admiro sua coragem. Ela venceu.
Fico com ainda mais ciúme dela, uma bobagem, um
sentimento ao qual eu não tenho o menor direito, uma tolice que só
me deixa parecida com meu pai e eu não quero ser como ele, não
quero nem de longe me parecer com a pessoa que fez minha vida e
a da minha mãe um inferno incessante.
— Entendi – digo empurrando a palavra, ele volta seu rosto
em minha direção, fecho meus olhos e desvio os olhos como se ele
pudesse me ver.
— Kyler, o marido dela, é um cara especial, é como eu
disse, irmãos. Eu e Peggy somos irmãos.
— Não precisa se explicar. Isso não é problema meu. –
Tento não parecer grosseira, mas o constrangimento fica expresso
em meu tom de voz.
— Isso tem um nome, Emily – ele brinca tornando tudo
ainda mais constrangedor. Evito responder, prefiro fingir que não
ouvi. – Acho que podemos voltar. Quero que conheça o trabalho da
Gwen – ele diz me soltando. – Quando ela doma cavalos parece
uma encantadora. É o que dizem. É algo bem visual. Por isso... –
Ele deixa a frase morrer.
Com segurança, Guy segue até Misty se guiando pelas
rédeas, que estão em sua mão, corre a mão pelo dorso do animal
até encontrar o lugar exato para montar, então em um movimento
firme, está sobre o cavalo estendendo a mão para me ajudar.
Meu coração descompassa quando prendo minha mão a
dele e sinto sua força a me puxar para sua garupa. Eu me acomodo
em suas costas, passo meus braços por seu peito e embora fique
um pouco tímida, sinto meu corpo todo reagir a esse toque.
— Você é forte e seguro. Não tem medo de nada – digo
enquanto ele coloca Misty em movimento. – Tudo parece tão fácil
para você.
— Finjo bem – ele diz quando o cavalo trota tão lentamente
que mais parece estar parado. – Estamos voltando?
— Sim – respondo assistindo o cavalo seguir de volta ao
rancho.
— Vê? Nem tudo é assim simples para mim. Eu não
enxergo, Emily, isso é um fato, não é o principal, mas é algo que me
limita. Como a timidez limita algumas pessoas, ou a surdez, ou a
falta de movimentos, ou qualquer outra coisa. É sim um
impedimento.
— Não consigo imaginar nada que precise fazer e não
consiga.
— Me esforço para vencer isso, mas meu pai e eu nos
exercitamos juntos todas as manhãs, é uma dificuldade sem ele,
tem os pesos que são perigosos e ele me ajuda com eles, é ele que
coloca a esteira na velocidade certa.
— Você encontraria uma maneira – digo distraída me
encostando em suas costas.
— Sim. Eu encontraria – Guy admite sem muito problema.
— Tem algum medo? – Ele sorri erguendo a cabeça para o
céu e sentindo o sol agora mais baixo tocar seu rosto e ele
consegue ficar ainda mais bonito, ainda que só consiga vê-lo de
perfil.
— Isso não é justo. – Escuto seu riso junto com um
balançar de cabeça em negação. – Falo demais de mim enquanto
se protege de qualquer conversa.
— Desculpe, acho que estou sendo muito curiosa – ele
nega mais uma vez.
— Tenho medo de perder meus pais, tenho medo de ficar
sozinho, tenho medo de acontecer alguma coisa com as minhas
mãos, eu tenho muitos medos, como todos.
— Sim, como todos. – Ficamos em silêncio, me dou conta
que estou com a cabeça em suas costas, mas não me movo, sua
mão direita descansa sobre as minhas que o envolvem.
A casa fica cada instante mais perto, um pedaço de mim se
entristece, eu queria ficar mais tempo assim, grudada a ele. Já está
decidido que não vou mais visitá-lo todos os dias, ao menos dentro
de mim, esse é o ponto certo, eu não quero sofrer e nem quero
magoar Guy ou Lolla.
Jimmy vem nos receber, salto de Misty e Guy logo depois de
mim. Junto com Jimmy, o amigo de Lolla e Jay, Elton vem pegar a
égua.
— Boa tarde, meninos. Bom passeio? – ele pergunta.
— Elton. – Guy sorri estendendo a mão que ele aperta. –
Ótimo passeio, Misty é sempre uma lady comigo.
— Vou escová-la e alimentá-la – ele avisa tocando o
chapéu em despedida e me lançando um sorriso educado.
— Obrigado, Elton. Que horas vai para casa? Preciso de
carona.
— Levo vocês – Jimmy avisa. – Tenho que comprar uns
materiais. Aliás, sábado vou até Dallas, querem ir? Preciso fazer
umas compras, organizar umas coisas e podem aproveitar o dia por
lá.
— O que acha, Emily? – Guy me pergunta, mas eu não
quero ir a Dallas, eu morro de medo de encontrar meu pai.
— Agradeço, mas não posso ir. – Sou mais definitiva do
que tinha planos, nenhum dos dois insiste.
— Gwen vai fazer a doma que horas?
— Ela está indo para o redondel. Querem ver? – Jimmy
convida.
— Querer eu quero, mas estou meio cego. – Jimmy ri da
piada. Eu fico levemente constrangida, sem saber se é ou não
engraçado.
— Então vem ouvir a doma – Jimmy diz tocando o ombro
do amigo.
Eu nunca tinha visto Guy usar a bengala, mas ele a retira
da cintura, ela se desdobra quase que automaticamente e ele vai
sendo guiado por ela enquanto caminhamos os três, lado a lado até
a cerca.
Gwen surge vinda dos estábulos com um cavalo marrom
que ela traz pelas rédeas até uma área em forma de círculo fechada
pelas cercas que estamos encostados. Jimmy se senta nela, como
se estivesse montado em um cavalo.
Guy tira os óculos de sol do bolso da camisa e os coloca,
me distraio dele para olhar Gwen e admirar a força feminina que
guia o cavalo arredio. Sua coragem em estar solitária dentro da
redoma junto a um furioso inimigo, a intensa batalha entre olhares
dos dois, a empatia que sinto desenvolver entre eles, tanta beleza e
força em uma cena, que mulher incrível é ela, admirável força que
não teme o animal, que paciência sem limite de apenas estar, sem
reagir, assistindo enquanto ele reluta e reluta, até que se rende, em
um pacífico curvar de dorso para receber um afago e talvez, mais
liberdade.
Eu tentei esse método, fui boa filha, me curvei feito mamãe
para ganhar a confiança do meu pai, a liberdade e só consegui mais
prisão.
Tive que me rebelar, diferente do animal que cria laços com
Gwen, eu tive que fugir.
— Prontos para ir? – Jimmy nos convida e balanço a
cabeça confirmando sem desviar meus olhos da dupla dentro do
redondel como eles chamam.
— Acho que sim – Guy responde por mim.
Deixamos o rancho em uma caminhonete alta e suja de
terra, Jimmy e Guy vão conversando enquanto fico olhando a
paisagem ainda pensando sobre a minha vida.
A partir de amanhã, começo a procurar meu caminho. Deve
haver algo para se fazer nessa cidade que me renda algum dinheiro.
Embora Guy insista para Jimmy deixá-lo na minha porta,
ele não abre mão de levar Guy em casa. Me despeço dos dois e
assisto o carro partir.
Quando entro em casa, Harper está com Lolla, com elas,
uma jovem bonita de longos cabelos e um sorriso tímido no rosto.
— Emily, quero que conheça a Penny Lane.
— Oi, eu estava com o Jimmy até agora – digo sem pensar
muito e enquanto Harper e Lolla sorriem, ela fica corada e eu me
sinto ridícula.
Capítulo 12
Penny Lane

Vir até a casa de Lolla falar com ela e Harper sobre meus
sentimentos já não é nada fácil, basta cinco minutos de visita e uma
garota que nunca vi na vida chega anunciando que estava com
Jimmy como se minha vida estivesse sendo discutida a cada canto
do Vale, é constrangedor e um tanto irritante.
No mesmo instante ela se arrepende, eu sei que ela é nova
na cidade, próxima a Lolla, que veio por conta de seus problemas
pessoais, um passado complicado, é quase uma adolescente,
mesmo assim, não é a melhor maneira de começar uma possível
amizade.
— Com o Guy! – Ela completa tentando consertar. – O Guy
me levou para conhecer o rancho e o Jimmy... ele... – ela aponta a
porta. – Ele acabou de me deixar e foi levar o Guy, não falamos de
você, é que eu... – ela se cala e o que foi um leve mal-estar ganha
ares de comédia, Emily está tão nervosa que acaba ficando
engraçado. – Desculpe a indiscrição – ela diz por fim.
— Tudo bem – digo estendendo a mão que ela aperta
aliviada.
— Ótimo! – Lolla brinca. – Emily essa é a Penny e Penny,
essa é a Emily. Sejam amigas, por favor.
— Seremos – digo para apaziguar a angústia da jovem.
— Vamos nos sentar, meninas. – Lolla convida.
— Eu vou deixar vocês conversarem, volto mais tarde. –
Emily anuncia e acho bastante educado de sua parte. Ninguém
insiste para que fique, o que é ótimo, nos acomodamos eu, Lolla e
Harper.
— Conta Penny, o que está acontecendo?
— Jimmy! – digo sem rodeios. – Jimmy de volta é o que
está acontecendo – suspiro enquanto mordo o lábio inferior olhando
de uma para outra. – Vocês são mais velhas, tem mais experiência,
o que eu faço? Minhas amigas já são todas jovens e felizes recém-
casadas, mães, algumas estão fora do país, viajando e se
descobrindo, não tenho nenhuma opinião madura para ouvir.
— Ela deve estar falando de você, Lolla – Harper brinca.
— Certeza que está, Harper tem a idade emocional da
Holly.
— Ei, Lolla Queen, pega leve. – Harper ri, mas as duas
estão brincando. Harper é forte e muito madura.
— Harper, você passou por algo parecido, ficou um tempo
fora, voltou para um velho amor, como foi?
— Não tem nem como comparar. Penny! – Ela é honesta e
está certa, não existe a menor comparação entre as histórias. –
Terminamos muito mal, quando voltei e cruzei com ele foi ainda pior.
— Sabe que não entendo o que está havendo entre você e
o Jimmy? – Lolla pondera. – Não brigaram, se afastaram de maneira
amigável, agora toda essa confusão.
— Vivemos muitas coisas desde então – admito. –
Conhecemos outras pessoas, tivemos nossas histórias, agora... eu
morro de medo do dia em que finalmente vamos nos encontrar.
— Por quê?
— Se não for como pensei? Se eu não sentir mais nada por
ele, pior, se eu sentir e ele não?
— Qualquer coisa é melhor do que essa confusão de
sentimentos. – Harper me alerta. – E o James?
— O que tem ele? – pergunto surpresa.
— É Horses Valley, não está mais em Dallas, Penny Lane!
– Harper sorri. – Eu sou a garota do Drunks, é naquele balcão que
os homens da cidade desabafam.
— Ah! Ele... falou alguma coisa?
— Ele sempre fala que está interessado em você, mas que
você não reage muito.
— Somos colegas de trabalho, não acho boa ideia misturar
as coisas, além disso, ele é um bom homem, magoá-lo com uma
história que eu sei que não vai seguir em frente é horrível.
— Acho que todas as dúvidas foram respondidas – Lolla diz
trocando olhares com Harper.
— Como assim? – pergunto querendo alcançar os
pensamentos delas.
— Penny, você tem muita certeza de que sua vida não vai
dar certo com o James – Lolla explica.
— Por outro lado, está cheia de dúvidas sobre o Jimmy. –
Harper continua. – Você ainda o ama e está com medo dele não
sentir o mesmo, é só isso, pior, eu aposto que é o mesmo com ele.
— Não acho. Ele voltou para casa, eu sempre estive aqui.
Ele devia ter me procurado. Era nosso acordo – conto a elas. –
Quando ele voltasse, quando nós dois tivéssemos feito o que
queríamos fazer fora do Vale e retornássemos, então nos
encontraríamos e decidiríamos juntos se ainda era amor.
— Acho tão lindo os planos dos adolescentes – Harper diz
saudosa. – Eu e Noah fazíamos os nossos, então a vida veio e nos
engoliu, foi doloroso descobrir que toda aquela ideia inocente e
perfeita de como seria nossa vida era só fantasia.
— Não pode dizer que era fantasia, Harper, estão juntos.
— Foi um terreno bem acidentado o que percorremos, não
somos nada parecidos com o casal que imaginávamos.
— Vocês são lindos juntos – opino quase em choque com
seus comentários que vão muito além de como pensei sobre eles. –
Eu sempre os achei o casal mais bonito do Vale. A Peggy é que
preferia o Mathieu e a Mandy.
— Penny! – Ela sorri, se acomoda segurando a xícara de
chá e depois de um suspiro e um gole no chá, finalmente parece
pronta para continuar. – Somos melhores do que os sonhos de
meninos. Seríamos famosos, viveríamos pelo mundo, não era nada
parecido com a vida pacata que temos.
— Entendo – digo um tanto confusa. – Mas acho que eu
consegui o que perseguia e o Jimmy também. Profissionalmente
vencemos. Ele é o veterinário preparado que sempre quis ser e, eu
sou a professora do Vale que sempre quis ser.
— E a preferida da Holly. – Harper comenta e penso em
como aquela garotinha é cheia de ideias na cabeça e aventuras
malucas para viver.
— Amo sua garotinha – admito. – Não sei o que sinto pelo
Jimmy.
— Acho que sabe e, acho que precisa enfrentar esse
sentimento – Lolla me aconselha.
— Esse é o problema, eu não sei se quero fazer isso,
porque me magoa que ele não tenha vindo atrás de mim, queria que
ele tivesse me procurado, no fundo acho que eu devia era dar uma
chance ao James – conto a elas sem medo de me abrir.
— Faça isso. – Harper dá de ombros. – Que outra maneira
melhor para descobrir que vocês não têm nada a ver um com o
outro, seria bom até para ele buscar outro rumo.
— Ou para o Jimmy se tocar que não pode ficar parado,
mas eu acho que faria diferente – Lolla me conta. – Eu iria direto
bater na porta do Jimmy. É isso que uma mulher decidida faz.
— Não sou decidida – digo a elas sem qualquer vergonha.
— Pois eu digo que é sim – Harper comenta e Lolla
concorda.
— Vocês sabem que estão falando como os meus pais? –
conto a elas. – Procurei vocês porque sabia que na opinião dos
meus pais, eu devia implorar para o Jimmy ficar comigo, eles amam
o Jimmy, talvez mais do que amam a mim e isso só me deixar mais
brava ainda com eles.
— Por quê?
— Que pergunta. Eles mereciam ao menos uma visita do
ídolo deles. Não acham? – Lolla cruza os braços no peito, sua
expressão se transforma e Harper abre e fecha a boca também
surpresa.
— Quer dizer que ele não foi nem dar um “olá” aos seus
pais?
— Nada.
— Liga para o James e pede ele em namoro! – Harper
brinca.
— Senão por amor, por vingança. – Lolla completa e só
consigo rir dessas duas, definitivamente eu devia ter ficado com as
minhas próprias opiniões.
— Peggy Sue quer marcar uma festinha quando chegar da
Lua de Mel em sua casa nova. Acho que não vou ter como fugir de
encontrá-lo nesse dia.
— Vai com o James! – Lolla provoca sabendo que não fazia
algo assim, mas é engraçado pensar no constrangimento que seria.
Emily surge de volta à sala, uma mocinha tão bonita,
parece tão delicada e tão tímida, fico pensando nas razões para
estar na casa de Lolla, todas as crianças que por aqui passaram
estiveram em situação de violência e abuso de todo tipo.
Por sorte, eu sempre pude ajudá-la com a educação
dessas crianças, toda cidade faz um pouco, eu vinha dar aulas de
reforço, Guy e Mathieu davam aulas de piano, Gwen estava sempre
os levando para tardes no rancho, Lily enviava bolos e quitutes,
sempre fomos unidos pela causa de Lolla e Jay, mas Emily não é
uma criança e não está de passagem até as coisas em sua vida se
ajeitarem, parece que veio para ficar no Vale.
— Conta tudo, Emily! – Harper pede a ela.
— Contar o quê? – ela pergunta um tanto preocupada.
— Esteve com o Jimmy.
— Ah! – Ela fica corada. – Não teve nada demais, o Guy
me disse que vocês namoraram, mas que estão separados faz um
tempo, o Jimmy... ele não disse nada, não falou de você – ela conta
olhando para as mãos que descansam em seu colo, talvez esteja
protegendo Jimmy a pedido do Guy, talvez meu nome não tenha
mesmo surgido em alguma conversa, não importa, eu não quero
mais ficar pensando sobre isso. É Horses Valley, não demora e
esbarramos na rua, aí é com o destino.
— Emily, não se preocupe com isso, me conte, o que está
achando da cidade? – Viro o jogo, não quero mais falar de Jimmy.
Harper e Lolla compreendem e não insistem.
— Parece um filme desses de férias, aqueles em que a
história é leve e com certeza de final feliz, um pedacinho de paraíso,
eu nunca imaginei que um lugar assim existisse.
— A Prefeita Anderson é boa em deixar a cidade impecável
e o povo mudou muito – Harper brinca. – Não foi sempre assim. Já
caminhei por essas ruas sendo ignorada e criticada.
— Você? – Emily fica surpresa. – Mas você não é a filha da
prefeita?
— Naquele tempo eu era a filha do prefeito, era muito pior.
Vou te contar.
Harper conta sua história, ela é boa ouvinte, presta atenção
e abre e fecha a boca nos momentos de maior tensão, Harper passa
rápido pela perda do bebê, a voz treme um pouco, ela nunca vai
esquecer essa dor, eles superaram, mas a dor ainda está lá e eu
entendo como deve ser duro.
— Todas vocês têm histórias de superação, parece que
todo mundo nesta cidade venceu algo grande – ela declara com
admiração. – Só escuto histórias assim, a Lolla, Mandy, o Guy, a
Maggie e o Elton. – Ela fica pensativa. – Gwen e Shane também, o
próprio Jimmy. – Ela me encara. – Pelo que sei ele... teve problemas
com o pai e com o irmão.
— Sim, são muitas histórias – concordo com saudade dele,
sempre foi tão bom assistir seu olhar de admiração para o Shane,
como ele o tinha como herói e como ele desejava honrar o irmão e
ser admirado por ele.
— E você? – Emily me pergunta.
— Sem graça – digo rindo. – Bons pais, sonhos simples,
todos realizados, nada demais, nasci aqui, fiz amigos para toda a
vida, conheci o Jimmy, foi meu primeiro e... único amor. Nos
separamos para estudar, me formei, voltei, consegui o emprego que
queria, moro com meus pais ainda hoje, mas por escolha, gosto de
tê-los por perto, vivemos em harmonia, é uma vida sem grandes
feitos, mas com muita felicidade.
— Acho que gosto de histórias sem graça – ela comenta e
acho Emily uma mocinha bem especial, desejo secretamente que
seja o que for que estiver a abalar seu coração, passe como um
soprar de vento.
— E a sua, como é a sua história?
— Nada para contar, minha história não inspira ninguém,
não é bonita, eu nem gosto de contar.
— Tolice, a história dela é de alguém que sempre tentou
defender a mãe e protegê-la, colocou a própria vida em risco, é a
história de alguém que teve coragem de pedir ajuda – Lolla defende
a garota que olha para ela cheia de emoção, mas sinto a tristeza
percorrer seus olhos e se instalar em seu coração.
— Emily, vamos tomar um milk shake? – Convido pensando
que talvez ela sinta falta de uma amizade com alguém mais da sua
idade, que não seja Guy Montpellier, porque ele eu sinto que não é
seu amigo e acho mesmo que está rolando um clima só pelo modo
que seus olhos brilham. – Por minha conta, é claro. Quem convida
paga.
— Então saiba que nunca vou te convidar para nada – ela
tenta brincar ficando de pé.
— Vamos pensar em um trabalho para você – digo ficando
também de pé.
— Já disse a ela que é cedo, gosto muito dela aqui
conosco, não tem que ter pressa e aceitar qualquer coisa.
Deixamos a casa juntas, claro que sou um pouco mais
velha que ela, uns dez anos, mas ainda tenho meu lado jovem e sei
que falar sobre rapazes, moda e essa coisa toda vai fazer bem para
ela.
— Precisamos combinar de você ir lá para casa um dia
desses e fazemos uma noite de meninas, umas taças de vinho e
filmes com caras bonitos – brinco enquanto caminhamos, ela ri
balançando a cabeça animada.
— Acredita que nunca fiz isso?
— Ótimo, faremos isso então – aponto a direção. – Tem
umas amigas minhas que ainda moram aqui no Vale, mas já se
casaram, duas vão ter bebês ao mesmo tempo, outra está pelo
mundo em uma viagem de descoberta, Peggy Sue em Lua de Mel,
me sinto tão sozinha quanto você.
— Acho que é bom não se sentir sozinha. – Ela me sorri. –
Mas sinto que não vai durar muito, acho que quando se encontrar
com o Jimmy vão se acertar.
— Eu não sei, tenho pensado seriamente em sair com o
James, ele é uma ótima pessoa.
— Não parece que vá gostar disso – ela diz o que o
universo todo sabe, menos o James. Faço uma careta e suspiro.
— É eu sei disso. – Nos acomodamos em uma mesa na
lanchonete, depois de pedirmos dois milk shakes e batatas sinto que
é hora de falar sobre rapazes. – E o Guy?
— Ele é tão lindo! – ela diz em um gemido de desespero. –
Especial, corajoso, inteligente, quando toca piano meu coração só
falta parar de bater.
— Alguém está completamente apaixonada.
— Não! – ela diz de modo firme, não é verdade, mas que
bom que ela acredita. – Nos conhecemos há uma semana apenas,
é certo que eu o vi todos os dias, mas... não, não vai acontecer.
— Não entendo, por que não?
— Rico, bonito, com uma profissão e um destino de glória e
eu, sem casa, emprego, futuro. Sei lá, eu nem sei como será minha
vida nos próximos meses, vou só atrasar a dele.
— Não concordo com nada disso – digo firme. – Logo vai
ter emprego e futuro. Tenho certeza. Ele é ótimo e se vocês se
apaixonarem, não tem nenhuma razão para não deixar acontecer.
— Eu vivi sob as rédeas curtas do meu pai – ela me
explica. – Preciso cuidar de mim sozinha. Eu não quero pertencer a
outra pessoa antes de me encontrar.
— Muito bom! – digo aplaudindo. Ela fica vermelha, olha
em torno, mas está tudo vazio.
— O que acha do Jimmy? Ele ainda está lindo?
— Não sei como era antes, mas agora está bem bonito,
alto, musculoso – ela conta e rimos juntas.
A conversa passa por vários assuntos, nada muito pessoal,
ela não gosta de falar de si, não insisto, ao menos não agora, quem
sabe algum dia sejamos realmente amigas para uma boa conversa.
Eu a deixo em casa já ao anoitecer e combinamos de fazer
algo juntas no fim de semana, ela se despede e sigo para casa com
Jimmy roubando todos os meus pensamentos.
Meus pais assistem ao jornal na sala, tenho uma pilha de
trabalhos para corrigir e mesmo assim, me sento com eles um
momento para contar do meu dia e saber como eles estão. Meu
irmão está na faculdade e seu quarto virou meu escritório, não acho
que algum dia ele volte a viver no Vale, nem meus pais querem isso,
sabem que o mundo é grande e ele precisa de espaço para crescer.
— Conheci a Emily, a mocinha que está com Lolla, um doce
de pessoa, qualquer dia desses vou convidá-la para ficar aqui uns
dias. Tudo bem?
— Tudo – papai diz sorrindo. – Admiro você por ser assim,
generosa.
— Ela é legal, papai.
— Encontrou o Jimmy? – Mamãe solta de modo natural.
— Não! – aviso aos dois. – Ainda não. Eu vou corrigir meus
trabalhos, vejo vocês no jantar.
Jimmy é ainda o dono dos corações de todos nesta casa,
queria fazer o que Lolla disse, ir bater em sua porta e jogar na cara
dele umas boas verdades, talvez eu faça, mas não agora, agora vou
corrigir minha pilha de trabalhos.
Capítulo 13
Guy

Deixo as mãos escorregarem para meu colo, semitonar


depois de tantos anos não se parece comigo. Respiro fundo para
buscar concentração, estou nesta melodia toda a manhã, buscando
a afinação certa e tentando encontrar o arranjo ideal.
Volto ao teclado, engulo em seco e recomeço, não demora
para tudo se perder em minha mente e de novo eu deixo as mãos
caírem para meu colo.
— Filho! – Mamãe entra no estúdio, vem até mim e se
acomoda ao meu lado no banco, sinto seu perfume me preencher o
coração de amor e uma onda de tranquilidade me invade, seus
dedos correm por meus cabelos e sinto as pontas das unhas, ela
beija meu rosto e descansa a mão em meu joelho. – Tudo bem?
— Uhm – resmungo em resposta.
— Devia parar um pouco.
— Está ruim assim? – tento brincar.
— Sabe que não aprendi quase nada esses anos todos,
mas seu pai me disse que você estava há algum tempo na mesma
parte, meio empacado.
— Papai tem bons ouvidos – digo levemente chateado. Não
é verdade, eu estou bem chateado e não consigo passar por cima
disso para me concentrar no trabalho.
— Ele queria vir conversar.
— Aquelas conversas de homem para homens? – pergunto
tentando impor um tom de brincadeira em minha voz.
— Talvez – ela responde e prendo sua mão a minha. –
Achei que iria preferir um afago de mãe.
— Isso é sempre bem-vindo – conto a ela sem qualquer
constrangimento.
— Estive pensando sobre você. – Ela começa. – Isso é
sobre a turnê que preferiu não fazer? Está arrependido?
— Não. Sabe que minha paixão é compor, não se compõe
muito em turnês.
— Você é tão talentoso que talvez consiga – mamãe fala
com o coração cheio de seu orgulho, se usasse a razão saberia que
nem mesmo o melhor de todos comporia muito, tocando todas as
noites e viajando de lugar em lugar. É exaustivo demais para
compor.
— Acho que não – digo sorrindo. – Acho que ficaria
cansado e você me conhece, só fico satisfeito com a perfeição.
— Acha que é isso? – ela insiste, escuto uma nota, um Ré
apertado sem muita classe que me faz sorrir. – Eu não resisti. – Sua
voz soa risonha. – Sou péssima, não é mesmo?
— Só um pouco – aviso a ela que deixa minha mão, para
de novo alisar meus cabelos.
— Você tem medo de não ser perfeito na turnê? Por que
tenho certeza de que será? Se prefere não ir a essa turnê para
evitar os riscos eu diria que não deve ser assim. Sabe que confio no
seu talento e gosto quando se arrisca, foi assim, arriscando que
ultrapassou todos os limites.
— Mamãe, você está querendo se livrar de mim? –
provoco.
— Que coisa bonita a se dizer a mamãe.
— Eu sei. – Encosto-me em seu ombro.
— Seu pai pode ir com você, fico com a Coline por conta
da escola se isso o deixa mais tranquilo, vou encontrá-los de vez em
quando, são dois meses, não seria a morte.
— E me torno o responsável por separar o casal mais
bonito do Vale, escolhido em uma votação muito série entre todas
as garotas do colégio Thomas Jefferson?
— Saudades de quando éramos os jovens casais da
cidade, parece que se tiver uma nova eleição, perdemos feio –
mamãe brinca. – Eu mesma votaria em outro casal, um casalzinho
bem jovenzinho.
— Tolice, isso não existe – digo sem esconder a mágoa. –
Vote em Jimmy e Pennny Lane, eles têm muito mais chances.
— Então não é sobre não ir a turnê?
— Foi uma boa jogada, mas nós dois sabemos que nunca
enganei você, veio sabendo onde a conversa terminaria.
— Achei que eu estava indo tão bem. – Ela soa
decepcionada. – Quer falar sobre isso? Talvez uma opinião feminina
ajude.
— Acho que não – digo dedilhando uma melodia triste no
piano, agora é ela a encostar a cabeça em meu ombro, é bom ter
minha mãe comigo, mas sinto falta de dar aulas a Emily, sua voz
sempre suave e curiosa, a alegria a cada vez que acertava as notas,
o jeitinho meigo, uma fada saltitando em nuvens de algodão em um
céu azul de primavera. Tenho até uma linda melodia para ela
dançando em meu coração, talvez seja essa melodia que fica a
tomar minha alma e que precisa nascer, que está me impedindo de
acertar o tom.
Quem sabe largo tudo e escrevo a música que quer nascer,
a música sobre a garota mais linda do mundo.
— Por que acha que não?
— Não aconteceu nada entre a gente, mamãe. Foi só...
uma amizade nascendo, mas acho que ela não está interessada em
nada disso.
— Foi o que ela disse? – minha mãe me questiona e
percebo que não consigo sair dessa sem me abrir, não é realmente
um problema me abrir com ela, mas a verdade é que nem eu
entendo bem o que está acontecendo.
— Depois que fomos juntos ao rancho nunca mais nos
encontramos e isso tem quase duas semanas.
— Eu notei. Algo deu errado naquele dia?
— Não. – Ao menos não que eu tenha percebido, talvez ela
tenha apenas me visto de verdade, com todas as minhas limitações,
só isso pode ser o motivo. Emily entendeu tudo e se afastou.
— Não quero ficar arrancando as palavras de você, filho, se
estou sendo intrometida demais é bom me dizer – mamãe pede
percebendo a minha dificuldade em falar.
— Você não está, apenas não sei o que dizer, liguei para
ela duas vezes depois disso convidando Emily para vir aqui,
primeiro usei o piano, depois só convidei mesmo, para passar um
tempo aqui, dar uma volta.
— E ela disse que não queria?
— Disse que estava fazendo um curso online e que
também estava tentando ajudar mais a Lolla, que não podia vir, eu
não insisti mais do que isso. Não gosto de ser o chato pegajoso.
— Entendo. – Mamãe cala, não é difícil entender, eu sei
que ela deve estar pensando o mesmo. Odeio me abrir nesse
sentido, porque sei que fragiliza meus pais, sei que doeria neles
pensar que estou sendo recusado por conta da minha deficiência,
mas o que mais pode ser?
— Aquele dia no rancho... estava longe do meu mundo,
estava sem o Lumière também, acho que ela... se deu conta. – O
silêncio agora soa pesado e dolorido, mesmo sem uma única
palavra da minha mãe eu sei, posso senti-la dominando suas
emoções.
— Eu o criei de modo realista, mas não para se acomodar
sobre as suas limitações, criei assim para que você enfrentasse
cada uma delas.
— Acha que é isso que estou fazendo só porque reconheço
que Emily não está interessada em se envolver com um cego? –
Meu tom soa mais duro do que desejei, não é com minha mãe, nem
mesmo com Emily, é apenas um desabafo.
— Não sabe as razões dela, está supondo e foi logo para o
lado do preconceito, isso está dentro de você mais do que nela ou
qualquer outra pessoa, você não é diferente de ninguém, sabe
disso, prova isso todos os dias com sua independência. – Ela usa
um tom duro comigo, se fosse o papai estaria talvez chorando,
arrumando nossas malas para uma temporada em Paris, tentando
me consolar e sofrendo como louco, mas não a minha mãe, ela se
revolta, se levanta, é um gigante a me arrastar para as alturas e
enfrentar tudo que me paralisa.
— Então me diga por que ela está fugindo de mim. Se não é
isso, qual a razão?
— Primeiro que eu não disse que era isso, disse que você
foi logo apontando o dedo, pode ser, mas pode não ser e precisa
decidir se ela vale a pena, aí você vai lá descobrir a razão e se for
isso, mostra que ela é uma tola.
— Mãe, não fala assim dela. Emily é... um anjo.
— Eu também acho, filho – ela diz beijando minha mão
depois de prender de novo a sua, imito seu gesto e beijo seus
dedos. – Emily é tão novinha e inexperiente. Viveu muito presa pelo
pai, passou por situações difíceis também.
— Ela não contou nada – aviso a minha mãe. – Parece que
não gosta de falar, ou talvez não confie em mim.
— Um pouco dos dois, em uma semana não dá mesmo
para confiar.
— Acho que não, eu mesmo estou aqui cheio de...
pensamentos tolos sobre ela.
— Que acha de deixar o piano um pouco e podemos
assistir a um filme. Têm alguns bons filmes que estou deixando para
assistir com você.
— Só nós dois? – brinco. – O papai...
— Vai ficar com ciúme, eu sei, vamos convidá-lo, Coline
está na casa da Harper, foi brincar com a Holly.
— Pobre Harper – digo rindo de como essas duas
aprontam juntas.
— Vem, vamos aproveitar uma tarde juntos – ela diz me
puxando do piano e eu a sigo, quem sabe me distraio um pouco e
paro de pensar em Emily e na melodia que não sai da minha mente.
Uma hora na frente da televisão e nada mudou, ainda tem
uma parte de mim pensando em Emily. Mamãe vai narrando com o
seu jeitinho especial, meu pai sempre fica tímido se têm cenas
românticas, mas mamãe adora narrar beijos.
Alguns filmes são bons de assistir com eles, embora eu não
veja realmente, não conheço outra palavra para descrever esse
momento, escuto os diálogos, sozinho muito se perde, com um
narrador é diferente, posso entender melhor o que se passa e
consigo apreciar muito da história.
Já existem narradores em um aplicativo, mas gosto quando
é a minha mãe. Ela dá um tom especial a cada momento.
Lumière está deitado ao meu lado, ressona preguiçoso
enquanto afago seus pelos, há dois dias que ele parece mais
cansado que o normal e acho que uso meus pensamentos em Emily
para não admitir que ele está indo embora todo dia um pouquinho.
Um nó se forma em minha garganta só de pensar e me
curvo para beijar seu focinho, ele não sai do lugar, mantém a
cabeça sobre meu colo e continua a dormir.
No fim do filme, mamãe está empolgada, meu pai achou
meio cansativo, eu ainda não tenho uma opinião, mas é questão de
gosto, papai adora os filmes de ação e mamãe prefere os filmes
mais existenciais.
— Vou buscar a Coline e passo na Lily para comprar um
bolo de laranja – meu pai avisa.
— Eu vou adiantar o jantar. – Mamãe completa. – Brenda
saiu cedo para ir a Dallas, ela tem coisas para resolver por lá e dei o
dia de folga.
Bem que notei mamãe atarefada pela manhã. Eu não
tenho nada a fazer, posso voltar ao piano, ou apenas me deixar ficar
aqui, quem sabe colocar os fones e ouvir um pouco de música.
— Acho que vou ficar um pouco no jardim ouvindo música,
para o Lumière aproveitar o sol do fim da tarde. Vamos Lumi! – Ele
não se move. – Lumière, passear. – Nada, ele prefere ficar deitado
com a cabeça em meu colo.
— Ele está... dormindo tranquilo, Guy, deixa ele aí mesmo
no sofá. – O tom de voz do meu pai é um alerta dos mais doloridos,
sua condescendência é um recado que me machuca.
— Pai... – Minha voz se perde.
— Não tem nada errado, Guy, ele só está preferindo dormir
– ele insiste tentando me acalmar.
— Sabemos que não é isso, acho que vou ligar para o
Jimmy, ele deve saber o que fazer.
Eu sei que cedo ou tarde a verdade virá, mas quero dar a
ele o máximo de conforto e prolongar o máximo que puder nossos
dias juntos.
— Guy, vamos levá-lo até o Jimmy, eu sei que lá ele tem
ultrassom e tudo que o Lumière possa precisar, pegamos a Holly e
vamos os três – meu pai diz percebendo que eu não fico nada
tranquilo com Lumière tão abatido.
— Nesse caso eu vou também – minha mãe comunica e
então sinto papai erguer Lumière nos braços e me levanto em
seguida, uso a bengala para ir com eles até o carro e me acomodo
no banco de trás com Lumière deitado. Ele até se anima um pouco
quando percebe que vamos passear.
— Está nos enganando, Lumière? – meu pai diz muito
mais para me consolar do que qualquer outra coisa. – Ele já está
todo ansioso achando que vai correr por aí.
— Oi filha, é a mamãe, estamos passando aí na tia Harper
para apanhar você, vamos dar um pulinho no rancho, então se
despede de todos e nos espere no portão está bem? – Minha mãe
só pode estar ao telefone – diz a sua tia que depois ligo, é que
estamos com um pouquinho de pressa. Ótimo. Não demore.
— Melhor não dizer que é o Lumière, ela vai pensar que ele
está muito doente e não é o caso – meu pai diz enquanto afago os
pelos do meu velho amigo.
— Vou ligar para o Jimmy – aviso pegando o meu telefone
no bolso do jeans.
— Faça isso – mamãe concorda enquanto sinto o carro em
movimento.
— Oi Jimmy, sou eu.
— E aí cara, novidades?
— Na verdade, estou ligando para avisar que estou indo até
aí, pode dar uma olhada no Lumière?
— Claro, ele não está bem?
— Hoje em especial ele está mais cansado que os outros
dias.
— Bem, estou à espera de vocês.
— Obrigado, chegamos em cinco minutos.
Recebo uma leve lambida no rosto, Lumi está sentado, e eu
o envolvo, é quase como se ele pudesse entender que estamos
todos preocupados com ele, prontos para protegê-lo e enquanto
afago seus pelos, luto contra lágrimas, penso em Coline que não
conhece o mundo sem Lumière, penso em tudo que vivemos juntos
e não estou pronto para dizer adeus.
— Fica forte, amigo, ainda não estou pronto.
— Não fala assim, Guy. – A voz da minha mãe soa
embargada. O carro para e escuto a porta ao meu lado abrir. O
cheirinho de Coline toma o carro. Minha pequena é a coisa mais
preciosa da minha vida.
— O que está acontecendo? – ela pergunta um tanto
preocupada.
— Nada! – dizemos todos ao mesmo tempo o que torna
claro que tem algo acontecendo.
— Lumière está cheio de preguiça hoje, seu irmão achou
melhor levá-lo até o Jimmy!
— Lumi, você está com saudade de mim? – Sinto suas
mãos esbarrarem na minha quando ela puxa Lumière para si. – É
isso, papai, ele quer ficar comigo.
— Tenho certeza de que sim – minha mãe concorda com
ela. – Mas o Guy é muito preocupado.
Meu pai segue viagem calado, mamãe tentando distrair
Coline e ela conversando com Lumière em francês porque acha que
ele adora sua voz quando ela fala francês e isso vai deixá-lo feliz.
Talvez deixe mesmo, Lumière gostava da França, foi
quando mais precisei dele e sinto que foi quando ele se sentiu mais
feliz, porque de algum modo, ele sabia que me protegia de um
mundo novo e diferente da tranquila Horses Valley.
Só quem tem um amigo como esse pode entender o que
Lumière significa para mim, de novo sinto o nó na garganta e acho
que gostaria de ter Emily por perto, ela tem uma doçura que me
apazigua a alma.
O carro estaciona e descemos todos, Lumière não precisa
ser carregado, está cansado, mas é meu guia no instante em que
me ponho em movimento. Tem uma magia que acontece conosco
quando deixamos os muros de casa, qualquer coisa na nossa
relação muda, uma cumplicidade e foco nos toma, ficamos ligados
de um modo que é orgânico e mesmo agora, cansado e talvez
doente, ele se põe em modo trabalho.
— Uma comitiva, Lumière! Parece que você é o rei da
casa. – Jimmy brinca.
— Oi pessoal! – Gwen diz se aproximando.
— Fiquem conversando enquanto eu e o Guy vamos fazer
uns exames no Lumi. – Jimmy convida.
— Vou com vocês. – Papai decide.
— Cadê as crianças, tia?
— Por aí, Coline. Vá caçá-los – Gwen avisa minha irmã.
— Não some, filha, nós não vamos demorar – mamãe pede
a ela enquanto me afasto com Jimmy.
— E como você está? – ele me pergunta.
— Bem. Preocupado com o Lumi, de resto... tudo indo.
— Cadê a Emily?
— Não a vejo desde que estivemos aqui.
— Quer falar disso?
— Não, ela está vivendo a vida dela e eu... sei lá, não tô
muito animado para conversar.
— A garota partiu seu coração. – Ele constata sem
preâmbulos bem no estilo Jimmy de ser. – Vou colocá-lo aqui na
mesa de exames e vamos dar uma olhada nesse garotão.
Fico acariciando os pelos dele enquanto escuto os barulhos
metálicos de instrumentos e materiais de consulta.
— Muito bom, garoto, você é muito gentil – digo para
acalmar Lumière.
— Bom menino! – Jimmy o afaga fazendo Lumière sacudir.
Talvez seja o costume com animais de grande porte e sorrio.
— O que acha?
— Vamos fazer um ultrassom e um exame de sangue.
— Conseguiu uma clínica completa – comento animado.
— Shane e Gwen começaram a montar esse espaço no
meu primeiro dia de aula na faculdade, foram comprando tudo,
preparando o prédio, são cavalos caríssimos é muito difícil e
custoso levá-los para Dallas em busca de um exame e um
tratamento, temos tudo aqui e já comecei atender animais da região,
cachorros e gatos também – ele me conta. – Não são meu foco,
mas quem ama animais como eu não faz diferença, inclusive nem
cobro dos animais de pequeno porte que vem em busca de socorro.
— Que bom, para o povo do Vale é bem complicado, o
veterinário tinha que vir de longe ou tínhamos que fazer uma viagem
cansativa para um animal doente até Dallas.
Ele concorda, falamos sobre seu trabalho enquanto vou
acalmando Lumière e ele vai examinando, tira sangue e depois do
ultrassom, nos sentamos para conversar. Papai só está de ouvinte,
ele é bom nisso, quando quer ser minha sombra até me faz
esquecer sua presença.
— Bem, Lumière é um cão idoso, você dá a alimentação de
idoso, faz exames periódicos e o que pude ver na ultrassom é algum
problema natural da idade nos rins, o coração está bom, fígado um
pouco debilitado, vou receitar umas vitaminas, exercício na medida
da vontade dele, muito carinho e só. Eu sinto muito Guy, ele é um
cão bem idoso, para seu porte é até um tipo de milagre... vocês
cuidam muito bem dele, talvez por isso ele ainda esteja tão bem.
— O que isso significa realmente? – pergunto apertando a
coleira dele com força para ouvir o prognóstico.
— Que devem cercá-lo de amor, deixá-lo livre para fazer o
que sentir vontade e esperar, ele tem resistido muito, não tem dor
aparentemente, nada além do que sentiria qualquer idoso,
— Quanto tempo? – Tomo coragem de perguntar.
— Umas semanas, talvez alguns meses, vamos deixá-lo
bem confortável, me chame a qualquer hora do dia ou da noite se
sentir que ele não está bem, ou corra para cá. Guy, Lumière perdeu
quase toda visão, talvez isso também seja a razão de ele estar mais
quieto. – Que grande ironia, meus dedos correm por seus pelos.
Então agora sou eu a nos guiar pelo caminho, está tudo bem, posso
fazer isso por quem foi sempre a minha luz. Quero me debulhar em
lágrimas, mas eu sei que não posso, que não sou mais um
garotinho.
— Está bem. Eu vou... ser forte – digo sem qualquer
certeza.
— Todos nós seremos – meu pai diz descansando a mão
em meu ombro. – Lumière merece que sejamos fortes nesse
momento.
— Ligo para passar o resultado do exame de sangue, leva
um tempo, mas pelo ultrassom e o exame do coração já deu para
ter um bom diagnóstico.
O retorno para casa é marcado por um silêncio brutal, como
poderia ser diferente? Mesmo Coline que não sabe exatamente o
que está acontecendo sente o clima.
Fico pelo jardim com Lumière, aproveitando o perfume das
flores, o barulho pacificador da fonte, Lumière bebe uns goles de
água na fonte, ele sempre gostou, escuto sua deglutição barulhenta
de sempre, depois seu suspiro ao se ajeitar aos meus pés.
— Parece bobo querer estar com Emily? – pergunto ao
meu velho amigo. Talvez seja, não nos conhecemos tão
profundamente a ponto de poder sentir o que sinto, mas não
controle essa emoção, é como se ela tivesse marcado as pontas
dos meus dedos com sua pele e seus traços, sua voz não deixa
meus ouvidos e seu perfume impregnou meu olfato, tem Emily por
toda parte de mim.
Capítulo 14
Emily

É um curso de administração on-line, não uma faculdade,


curso técnico, leva seis meses se fizer uma aula por dia, mas tenho
feito três ou quatro, quero acabar logo.
Lolla acha que é um bom começo, ter noções de trabalho
em escritório amplia minhas chances de um emprego, claro que o
tempo me ajudaria a escolher que caminho seguir, talvez eu odeie o
trabalho tanto quanto odeio as aulas, mesmo assim, vai me abrir as
portas para o futuro.
As horas de solidão diante do computador, fazendo
exercícios e escutando os professores repetirem seus textos e
explicações de modo cansativo me deixam entediada e sonolenta,
mas eu preciso de algo para me dar esperança.
Só queria estar ao lado do Guy, na frente do piano, errando
mil vezes as mesmas notas e sentindo seu cuidado comigo,
paciência sem fim e aquele sorriso que me deixa atordoada, mas
não posso me dar ao luxo de viver isso agora, mesmo se achasse
que ele tem interesse em mim.
Não estou pronta para ser como minha mãe ou não ser, se
até chegar ao vale eu só conheci uma história de amor que deu
errado, aqui só vejo finais felizes, amor e parceria, claro que meus
pais também pareciam felizes diante de estranhos, mas aqui é
diferente, eu sinto que esses casais são felizes mesmo, não é
fingimento para esconder a cruel verdade, é amor, cumplicidade e
companheirismo e eu queria uma história dessas, mesmo aos 18
anos, acho que uma história assim me faria feliz.
Meninas da minha idade sonham com independência,
viagens, festas, eu sonho com um trabalho e... Guy. Não posso me
enganar sobre isso, eu sei que gosto dele de verdade, mesmo
sendo tão cedo e tão rápido, gosto dele e duvido que um dia ele se
tornaria alguém como meu pai, mas ainda preciso ser alguém inteira
e que valha a pena e não me sinto assim.
A última aula do dia chega ao fim, desligo o computador de
Lolla e junto meus cadernos e canetas, respiro fundo perdida em
pensamentos e saudade.
Aproveito a solidão para cozinhar, a melhor parte de
cozinhar é receber os elogios de Jay e Lolla, eles amam comer, é
tão bom ver como apreciam a comida, dão notas, tecem
comentários, me faz feliz, é talvez o único momento do dia em que
me sinto bem e fico tranquila, quando cozinho me esqueço de todo
resto.
Claro que ainda fico pensando em Guy, eu tinha prometido
a ele fazer o bolo de laranja como o da Lily, não cumpri a promessa,
queria ter cumprido, mas eu sabia que não podia ficar no seu
caminho.
Acho que dizer não a ele foi das coisas mais difíceis que fiz
e todos os dias eu me arrependo, ele não insistiu muito, duas
tentativas e desistiu de mim.
Talvez eu não fosse assim tão importante, tolice, claro que
não era, nos conhecíamos há uma semana. Só mesmo uma tola
carente como eu para se apaixonar em seis dias.
As coxas suculentas do frango estão ao forno com batatas
e suco de laranja, ficam uma delícia, minha mãe adorava preparar e
meu pai ficava sempre de bom humor depois desse prato. Cozinho
no vapor algumas cenouras e vagens, acho que Jay e Lolla vão
amar esse prato.
Não cozinho todos os dias porque Lolla não permite, ela diz
que não é certo e talvez não seja mesmo, preciso tentar um
emprego.
Jay me ajudou a preparar um currículo, deve ter sido o
currículo mais triste que alguém já fez, não tem nada, nem
experiência, nem cursos, outras línguas, formação universitária,
nada.
— Olá! – Penny surge na cozinha me causando um
pequeno susto. – Mas que perfume bom esse.
— Oi! – Sorrio para recebê-la. – Me assustou. – Ela ri, puxa
uma cadeira e se acomoda. – Estou fazendo o jantar.
— Vim com o Jay, ele está no salão, parece que Lolla não
vai terminar muito cedo hoje, como todo salão, às sextas lota.
— Até mesmo em Horses Valley. Fiz mais cedo o jantar
porque sei que ela vai cantar no Drunks.
— E você não pode ir. – Penny faz uma careta. – Uma
pena.
— Eu adoraria ver a Lolla cantar.
— É um show e tanto, eu sempre digo ao Noah para fazer
uma tarde de domingo sem bebidas, para as famílias irem com as
crianças e adolescentes, no colégio todo mundo sonha com a
maioridade só para ir ao Drunks.
— Acho que faria sucesso – concordo com ela.
— Noah e Harper ficaram de pensar em uma tarde por
mês, acho que Lolla toparia cantar.
— Sim, eu imagino que ela amaria. Sua voz é como um
acalento.
— Um bom jeito de descrever, estou aqui pensando que
devia dar essa ideia a Holly – Penny brinca. – Ela amaria e tenho
certeza de que moveria as coisas para acontecer, o sonho daquela
pequena é crescer para por ordem naqueles cowboys. Ela é terrível.
— Eu a vejo por aí de vez em quando – comento me
sentando à mesa com Penny.
— Sim, o bom dessa cidade é a liberdade das crianças, ir e
vir sozinhos, protegidos pelos moradores.
— Muito bom, aqui tem muita paz.
— Vá ao drunks às 2h da manhã e vai ver a guerra de
bebezões na saída do bar – ela brinca. – Eu aceitei encontrar o
James no Drunks essa noite. – Penny solta com um gemido de
desespero.
— Não quer ir – comento percebendo sua péssima ideia.
— Acho que não. Ao mesmo tempo, é um lugar público,
não vamos juntos e sinto que posso colocar um fim a isso.
— Pode fazer sem ter que encontrá-lo – digo achando
graça nos problemas simples de Penny.
— É que ele não é honesto entende? Como se dá um fora
em alguém que não diz claramente que quer ficar com você?
— Não faço ideia.
— Nem eu, então quando ele me convidou para ir ao
Drunks pela milésima vez, eu disse que poderíamos nos encontrar
por lá, que eu iria com amigos, é um sim sem ser um sim e acho
que lá posso deixar mais claro se ele... tentar algo.
— Com certeza, mas e se o Jimmy estiver lá?
— Bem pensado – ela diz abrindo e fechando a boca. –
Simples! Se o Jimmy estiver lá só tem um jeito. Suicídio! É isso, eu
me mato, ou corro, acha humilhante se eu sair correndo até Dallas?
— Acho! – aviso em uma pequena crise de riso, foi bom
poder fazer amizade com a Penny, gosto de ouvir sobre suas
indecisões amorosas.
— Acho que o jeito é dizer que minha amiga ficou doente e
que não posso ir porque vou cuidar dela, se puder dar uns espirros
enquanto falo com ele ao telefone – ela pede me fazendo rir ainda
mais enquanto pega o telefone dentro da bolsinha que carrega.
— Quem vamos enganar? – Jay entra na cozinha. – Antes
de tudo, o cheiro está maravilhoso! – Ele me sorri. – Já sei quem
estamos enganando o professor James.
— Por que está se incluindo, Jay? – Penny brinca em uma
careta.
— Porque estou vendo que não tem ninguém doente, então
só pode ser mentira e vou ter que fingir que não sei ou confirmar, o
que me coloca dentro desse enrosco com um professor e isso é
constrangedor.
— Tá! – ela diz devolvendo o celular à bolsa. – Não me
deixe mais ser impulsiva, Emily!
— E como vou impedir isso? – pergunto surpresa, ela dá de
ombros.
— Bem, garotas, vou tomar banho, minha Diva me quer um
gato para assisti-la brilhar.
— Isso o diretor não acha constrangedor. – Penny suspira.
– Anunciar diante de uma das funcionárias que vai tomar banho
para estar gato para a esposa é constrangedor.
— Nesse caso não somos diretor e professora, você é a
Penny, aquela mocinha que estudou na escola onde trabalho e
conheço há anos.
Jay nos deixa e me levanto para desligar o forno e voltar
para meu lugar, Penny fica me olhando um longo tempo e começo a
ficar constrangida.
— O quê? – pergunto sem entender seu olhar.
— Estou esperando você me contar, ainda pensando nele?
– Balanço a cabeça afirmando. – Você subestima os sentimentos do
Guy, devia ter dado a ele a chance de mostrar como se sente.
— Eu nem sei direito o que estou fazendo, é que no fundo,
acho que o Guy é só um tipo de sonho impossível – digo meio sem
conseguir esconder a tristeza. Ela segura minha mão um instante,
um leve aperto desses que passa força.
— Ele não é um sonho impossível, acho que não subestima
os sentimentos dele apenas, subestima suas capacidades também.
Por que acha que ele não poderia amar você?
— Toda a vida dele está traçada e a minha perdida e sem
qualquer direção. Eu seria um peso.
— Vocês são jovens demais, não devia pensar assim, mas
eu não sou boa conselheira, visto que a minha vida amorosa é uma
bagunça de desencontros e falta de diálogo.
— Ao menos sabe disso – brinco e Lolla surge linda como
estava pela manhã quando saiu para o trabalho.
— Atrasada! – ela diz passando por nós em direção ao seu
quarto. Queria muito poder ir ao show, mas não tenho idade para
entrar no Drunks.
— Bom, amiga, passei porque é caminho, só queria te dar
um oi e contar que estou indo me enfiar em uma enrascada, precisa
de um celular, acho que tenho um antigo, vou tentar encontrar na
bagunça do meu quarto. Nunca conte aos meus alunos que vivo em
um emaranhado de coisas que finjo que guardei, mas na verdade eu
perdi.
Levo Penny até a porta, ela parte e quando volto, Jay está
pronto na sala, ele me sorri dando uma volta em si mesmo.
— Bonito o bastante para ser o acompanhante da Diva da
cidade?
— Sim – admito feliz por eles e mais ainda por receber
tanto carinho dos dois.
— Vai ficar bem sozinha? – Balanço a cabeça afirmando.
— Sabe onde nos encontrar, qualquer coisa corra até lá e
voltamos.
— Obrigada, Jay. Dá tempo de jantar?
— Sempre dá tempo de comer.
— Me esperem! – Lolla grita do chuveiro.
— E você achando que era só a voz que era potente? Os
ouvidos são ainda melhores. Estamos à sua espera, Boqorad – ele
brinca seguindo comigo para cozinha. O casal janta tranquilamente,
depois Lolla completa a maquiagem e os dois se despedem felizes
por terem uma noite feliz e de festa.
Assim que fico sozinha meu coração se aperta um pouco,
eu odeio a solidão, ela me enche de culpa e medo, me deixa
confusa, traz lembranças e agora têm mais um fantasma a me
atormentar, Guy Montpellier. Até o nome dele é elegante e
pomposo, eu não caberia em sua vida.
São quase 9h da noite quando o telefone fixo toca e meu
coração descompassa em um tipo de susto. Só ouvi esse telefone
tocar duas vezes desde que estou aqui e nas duas vezes era o Guy.
Ele simplesmente parou de tentar e quando escuto o som do
telefone meu corpo todo reage, de todos os dias e noites em que
passei nesta casa, jamais me senti tão sozinha e angustiada como
agora e só queria que fosse mesmo ele, acho que correria para sua
casa, para aquele abraço que protege e acalma.
Lá pelo quarto toque me dou conta que ele vai desistir e
corro para atender. Meu coração está saindo pela boca quando ergo
o aparelho e levo ao ouvido.
— Alô.
— Achei que tinha conseguido o número errado.
— Pai! – Minha voz falha, meu coração se aperta, sinto
medo, vergonha, um misto de sentimentos confusos que me leva às
lágrimas, jamais achei que falaria com ele de novo.
— Até que não foi tão difícil achar o telefone de onde você
está. – Ele continua e não respondo. – Como você está?
— Estou... bem – respondo empurrando as palavras e me
perdendo em agonia. Aperto o aparelho com força, quero largá-lo e
correr para trancar a porta ao mesmo tempo quero saber como ele
está.
— Saindo com muitos rapazes? O que mais? Era o que
queria não é mesmo, se ver livre de mim para se perder no mundo?
— Não, pai, eu nunca quis isso. – Sinto as lágrimas
rolarem.
— Aposto que fez eu me parecer com um monstro não é
mesmo? Diga, contou que eu só me preocupava com você, que fui
rigoroso para não te ver nas mãos de algum safado?
— Pai, eu estou bem, não saio com ninguém.
— Está trabalhando? Arrumou emprego e está achando
que vai se dar bem sozinha, Emily você nunca foi boa em nada, nós
dois sabemos que sem mim, você e sua mãe teriam acabado
debaixo da ponte, mas não é capaz de agradecer o pai bom que
teve.
— Eu... – A voz falha, nunca fui boa em enfrentá-lo, nunca
fui boa em discordar dele, no fim, ele repetiu tanto que não
podíamos seguir sem ele que acreditamos, mamãe morreu achando
que ele era bom, mas muito cuidadoso e ciumento, mamãe partiu
achando que era amor.
— Acho que chega dessa brincadeira de independência,
você precisa voltar para casa, vou esquecer tudo isso e vamos
seguir em frente, é minha filha, sua mãe morreu e só tem a mim.
— Estou com pessoas boas.
— Ingratidão é o nome disso – ele diz perdendo um pouco
a paciência, aos poucos vai mostrando que é o mesmo, que não
demoraria mais que um dia para mostrar as garras e me prender
para sempre sob o peso de suas exigências e loucura. – Não pense
que vai se esbaldar por aí por meses e aparecer aqui grávida daqui
um tempo achando que vou abrir a minha porta, ou volta logo ou eu
que não vou querer mais você por aqui.
— Estou bem – digo em um fio de voz esganiçada.
— Duvido! – ele diz agora bem irritado. – Estou sendo
generoso em aceitar você, essa gente vai mandá-la embora logo,
você é como a sua mãe, sem grandes talentos. Sou seu pai, Emily,
sei que é minha obrigação cuidar de você, não queria que fosse
embora, fugiu e eu respeitei que a morte da sua mãe te deixou
confusa, estava com os Turner aqui próximo e eu sabia que cedo ou
tarde voltaria para casa, mas agora partiu para longe.
— Eu não vou voltar – digo juntando coragem.
— Depois de 18 anos cuidando de você, abrigando,
alimentando, agora me dá as costas sem nem ao menos saber
como estou. – Fecho meus olhos deixando as lágrimas correrem
porque eu sei que ele tem razão, estou sendo ingrata. – Nunca te
dei um tapa sem que merecesse, estava fazendo o que os pais
fazem, meu pai era ainda mais rigoroso comigo e nunca fugi dele.
— Mentira! – digo em um quase grito, desabafo de
angústia e medo. – O vovô era bom e carinhoso, nunca foi bravo,
nunca!
— Está gritando comigo e me desmentindo? Emily, você
não perde por esperar. – Ele desliga e fico de pé, tremendo de
medo, eu não devia sentir culpa por deixá-lo, mas sinto, e se ele
tiver razão? Se eu mereci tudo isso, se eu errei deixando meu
próprio pai?
Talvez eu esteja sendo uma péssima filha, egoísta e
covarde, talvez meu lugar seja mesmo com ele, minha mãe viveu
vinte anos com ele e morreu ainda gostando dele, eu também quero
gostar do meu pai, mas só consigo lembrar do ciúme, só consigo
lembrar das vezes em que ele a machucou como se ela não fosse
gente, de como eu nunca podia ter amigos e sair como todo mundo,
só me lembro dele controlar roupas, hora de dormir, filmes, livros,
qualquer minuto de atraso era porque eu estava com um garoto,
com minha mãe era ainda pior, não deixava ela trabalhar, se ela
demorava a atender o telefone ele dizia que tinha um homem em
nossa casa com ela, que ia descobrir, que eu acobertava as traições
dela.
Não posso me sentir culpada por sentir medo, quando ela
se foi eu sabia que seria o seu único alvo, eu tinha que agarrar a
chance de fugir, tem uma voz dentro de mim que diz que mamãe
aguentou até eu ter idade para sair de casa e me cuidar sozinha,
não é certo ir de bom grado para as mãos do algoz, não é justo
comigo.
Se ao menos ele tentasse se tratar, mas eu nem saberia
como dizer a ele para procurar ajuda.
Coloco o telefone de volta e juro a mim mesma que nunca
mais atendo ao telefone e se um dia, Jay ou Lolla o atenderem,
então eles decidem o que fazer.
Uma dor atravessa meu coração e me sinto sozinha e triste,
deixo a casa precisando de ar, com medo da solidão da casa de
Lolla, parece que estou andando sem destino, mas não é verdade,
uns minutos e estou diante do jardim mais lindo que já vi.
O perfume que vem das flores me faz lembrar do cheiro
dele e de sua casa, é um lugar tão cheio de amor e compreensão,
pacífico, podia passar todas as horas da minha vida dentro desse
pequeno castelo, cercada pela beleza das flores e na companhia
dele e seria feliz.
Queria saber onde ele está, o que está fazendo, talvez
tocando, talvez apenas reunido à família, com Lumière a seus pés
como sempre, a rua está vazia e silenciosa e me demoro olhando
para as janelas e o jardim, encostada no muro da casa do outro lado
da rua, só de estar perto dele assim já me sinto mais protegida,
como se eu pudesse simplesmente correr para dentro desse lugar e
nunca mais ser atingida por nenhum mal, penso em seu sorriso e
ele me aquece o coração, sua voz e o toque dos seus dedos lendo
minha aparência, sinto falta de Guy mais do que de respirar, fui uma
tola fugindo dele, é tarde, ele nunca mais tentou e talvez jamais
volte a me convidar para seu mundo, mas sei que nunca fui tão feliz
como nas horas em que passei em sua companhia.
Guy surge em uma varanda, talvez seja seu estúdio, não
tenho certeza, pode ser seu quarto, os dois ficam lado a lado
naquela parte da casa, ele não sabe que estou aqui, nunca vai
saber, mas gosto de olhar para ele aspirando o ar da noite,
pensativo talvez, é tão bonito, está tão perto e ao mesmo tempo
inalcançável.
Quero sair daqui, mas não consigo, não até uma lufada de
vento o fazer esfregar os braços e dar meia volta seguindo para
dentro, ele fecha as portas altas e acabou, é simbólico, mesmo sem
saber, ele fecha suas portas para mim, feito um aviso agourento, um
arrepio me percorre, talvez meu fim seja a casa do meu pai e sua
truculência. Pode ser que todo pai seja um pouco como ele e eu é
que estou querendo demais. Quem sabe não sou mesmo a filha
ingrata que ele diz?
Capítulo 15
Guy

— Você se acostuma, amigo – digo enquanto corro meus


dedos por seus espessos pelos. – Dá um pouco de medo e
insegurança no começo, mas com o tempo... um dia não será mais
uma prisão, é apenas mais uma coisa sobre você. Vai sentir mais as
coisas porque é seu meio de compreender o mundo melhor. – Ele
lambe suavemente minha mão, deitado em minha cama, confortável
e silencioso, meu velho amigo sem vontade de continuar. – Eu ainda
preciso de você, Lumière – sussurro o que só consigo dizer a ele e
mais ninguém. – Eu ainda sinto medo vez por outra, não pode achar
que seu trabalho acabou.
Deito a seu lado, as lágrimas correm por meu rosto
enquanto sinto seu cheiro e o calor que vem dele, tantas as noites
que me encolhi ao seu lado sentindo a proteção de sua simples
companhia.
Agora tudo que quero é devolver a ele a sensação de
segurança que ele sempre me proporcionou.
— Não está sozinho, ainda é a luz da minha vida, Lumi,
mesmo que não veja mais o caminho que vamos seguir, não quer
dizer que acabou. Eu não sei como pedir para você ficar se está tão
cansado, mas eu não consigo me despedir. – A dor vem e protegido
pela solidão eu deixo as lágrimas correrem e os soluços, embora
baixos, são a expressão da dor de perdê-lo. – Não sei como deixar
você ir, Lumière. Não consigo fazer isso. Sinto muito.
— Ele sabe que você consegue. – A voz de Emily no quarto
chega a parecer um sonho, me confundo entre tentar parar de
chorar e me sentar. Não achei que ela voltaria a esta casa. –
Lumière conhece sua alma, então ele simplesmente sabe o quanto
é forte. Acho que ele precisa que seja forte pelos dois, porque deve
ser difícil para ele deixar você.
Sua voz soa cada vez mais perto até que sinto ela afundar
no colchão ao meu lado.
— Emily. – Minha voz sai entrecortada, não queria parecer
tão abatido.
— Você pode chorar, não tem nada errado em chorar por
seu melhor amigo. – Sinto sua mão tocar meu rosto como se ela
tentasse secar minhas lágrimas, minha mão mergulhada nos pelos
de Lumière, a cabeça baixa e a dor agora misturada à emoção
totalmente nova que me invade com a presença de Emily.
— Por que está aqui? – pergunto a ela mesmo querendo
simplesmente ignorar e apenas aproveitar sua presença.
— Devia ter perguntado se me queria aqui. – É uma
simples constatação que vem com a natureza simples que ela tem
de reagir.
— Não! – digo com pressa de não a magoar, e com medo
de afastar Emily. – Só fiquei curioso, é bom ter você aqui. – Minha
voz ainda soa magoada pela dor que estou sentindo, sua mão
percorre os pelos de Lumière e esbarra em meus dedos.
— Lolla me contou que Lumière estava doente, eu não
pensei em nada, apenas vim. – Prendo minha mão a dela, é bom ter
Emily aqui. – Sinto muito, Guy.
— Obrigado. – Não sei direito o que dizer, ela me viu no
momento de mais dor. – Me diz como ele está? Não tenho coragem
de pedir aos meus pais para me falarem sobre ele, sua expressão.
Descreve ele para mim.
— Contemplativo, tem os olhos presos em você, não parece
com medo ou com dor, apenas tranquilo, mergulhado na paz que é
estar ao seu lado.
— Acho que está acabando – conto a ela com o coração
partido. – Eu sempre soube que aconteceria, talvez não sempre,
mas têm alguns anos que eu penso nisso. Achei que seria natural e
simples, que eu aceitaria por respeito a tudo que ele fez por mim,
mas eu não consigo – desabafo com ela o que não consigo dizer
aos meus pais ou Coline. – Me sinto culpado por implorar a ele que
fique mais tempo quando... quando ele está tão cansado.
— O amor às vezes é um pouco egoísta – ela me diz com
talvez a experiência de quem perdeu a mãe tem tão pouco tempo.
— Deve te trazer lembranças tristes – digo sentindo sua
voz triste e o calor que vem da mão delicada presa a minha.
— Eu não queria que ela fosse embora, mamãe era tudo
que eu tinha, mas eu fingi que podia continuar sem ela, menti
fingindo que estava tranquila. – Agora sua voz soa com a amplitude
de sua dor e sou eu a apertar sua mão com força para dar apoio. –
Ela pediu que eu procurasse proteção e conforto, eu fiz o que me
pediu depois que ela se foi. Não gosto de ficar sozinha porque eu
sinto a dor voltar com força, mas eu continuo fingindo que sou forte
e que posso continuar, talvez um dia depois de tanto fingir, eu me
torne mesmo forte.
— Você é, Emily. Muito mais forte do que pode acreditar ou
fingi muito bem. – Levo sua mão aos lábios e beijo seus dedos.
Obrigado por vir.
— É meio tarde, talvez você queira dormir, eu não pensei
muito quando vim. – Tem tanto tempo que estou no quarto, não sei
mais se é dia ou noite, desci com ele no fim da tarde, demos uma
volta rápida pelo jardim, ele não quis comer, mas bebeu um pouco
de água, quando voltamos para o quarto se deitou na cama, quase
não conseguiu subir e agora eu nem sei dizer se ele está aqui
porque quero ou apenas porque não consegue descer.
— Eu não tenho planos de dormir – digo apenas querendo
que ela fique. – Temo dormir e... e acontecer quando ele estiver
sozinho. Não quero deixá-lo sozinho um só instante.
— Jantou aqui – Emily comenta talvez encontrando a
bandeja que está ainda sobre o móvel.
— Meu pai trouxe. Já jantou?
— Sim. Posso usar o seu telefone? Vou pedir a Lolla para
ficar, você se importa? Posso ficar sentada aqui com você e se ele...
– Ela deixa a frase morrer porque é dura demais para ser dita.
Entrego meu celular a ela, ela solta sua mão da minha e deixa a
cama.
Talvez esteja caminhando pelo quarto enquanto liga para
Lolla, sua voz soa mais distante e acho que está na varanda, o som
sai um pouco abafado, como se estivesse tentando tampar a boca
com a mão.
— Lolla, vou passar a noite aqui no Guy, não vai acontecer
nada, é só companhia para ele, porque ele está triste e o Lumière...
você sabe – Lolla diz algo porque ela fica muda. – Obrigada, Lolla.
Boa noite.
Escuto seus passos de volta enquanto meus dedos voltam
a passear por Lumière que ressona me fazendo sorrir. Dormindo
feito um anjo, que seja apenas um dia cansativo.
Não é isso que está acontecendo, Jimmy esteve essa
manhã aqui, ele sabe, é veterinário, ele disse o que está realmente
acontecendo, ofereceu levá-lo para nos poupar, mas eu não podia
permitir.
— Avisei a Lolla que vou ficar – Emily diz voltando a se
sentar ao meu lado. – Devia voltar a se deitar com ele e dormir um
pouco, eu o acordo se for preciso. – Balanço a cabeça negando.
Acomodo-me na cabeceira da cama, atiro um travesseiro
para ela, acho que Emily se ajeita também, não sei se vamos
amanhecer aqui, talvez eu tente levá-lo para sala, mais tarde, mas
por enquanto, podemos só passar o tempo juntos. Minha mão não
deixa os pelos de Lumière. Quero que ele saiba que eu não o deixei
por um só segundo.
— Tive medo – ela conta. – Tive medo de passar muito
tempo com você.
— Medo de passar tempo comigo?
— Sim. Eu não sabia o que estava sentindo, mas você
podia estar sendo só gentil e eu estaria ocupando você, nunca vou
ser uma pianista, nós dois sabemos disso. Não queria invadir
demais sua vida e eu... eu nem sei se devo falar essas coisas
agora, porque você está triste, mas preciso dizer que queria
continuar vindo, mas achei que não era certo, por muitas razões.
— Gosto da sua companhia, se essa é a razão foi tolice,
nunca pensei que se tornaria uma grande pianista, mas a música
faz bem e aprender um instrumento ajuda em muitas outras coisas,
era só uma maneira de ficarmos perto.
— Pensei também na Lolla e no Jay, que eles poderiam
pensar que eu não sou uma pessoa respeitadora, vim em busca de
construir uma vida sozinha e ficava o tempo todo com você, então...
eles podiam pensar coisas.
— Você não os conhece, mas entendo seus medos – digo a
ela. Faz sentido as razões pelas quais se afastou, eu fiquei inseguro
com tantas coisas, por que ela não ficaria também? – Mudou de
ideia?
— Sim. Agora, quando Lolla estava à mesa do jantar e
disse sem aviso no meio de uma conversa simples que vocês aqui
estavam sofrendo e que o Lumière... eu pensei que todo o resto era
tolice e vim.
— É mesmo tolice – concordo com ela.
— Oi. – Coline surge correndo, sinto quando sobe na cama
e se deita entre mim e Lumière. – Vim dar boa noite.
— Pijama lindo! – Emily comenta.
— Durmo assim sempre, meu pai e minha mãe também
dormem de pijama, o Guy dorme sem camisa, só de shorts, Holly
diz que ele é sensual.
— Coline! – reclamo do comentário sem medidas.
— Holly que disse, falou que pena que você é velho. –
Escuto o riso de Emily adorando o constrangimento. – Ela acha que
vocês dois são um bom casal, sensuais. Ela vai namorar um cowboy
quando crescer, mas acha que vai ter que arrumar em outra cidade,
não tem um bom cowboy para ela em Horses Valley.
— Já deu, boa noite, Coline, é melhor você ir para cama –
digo constrangido.
— Boa noite, meu amor. – Só pode ser para Lumière. –
Lindo, lindo, lindo. – Escuto os beijos barulhentos. – Pelo tudo no
meu nariz. – Ela ri. – Te amo. Boa noite, Emily, vocês vão se beijar?
— Não! – ela responde ainda rindo.
— Tchau, bobalhão!
— Tchau, bobalhona. Amo você – Ela se afasta correndo e
penso na inocência que existe em minha irmã, alheia as reais
condições de Lumière, me lembra eu mesmo nessa idade, andando
atrás de Peggy Sue e discutindo a vida amorosa dos casais do Vale.
— Sua irmã é linda. Uma misturinha dos seus pais na
aparência, mas com um jeitinho de Mandy.
— Ela é linda e arteira, me lembra muito minha infância, eu
ficava atrás da Peggy Sue que é um pouco mais velha e só falava
de rapazes, os casais da cidade, e eu lá, palpitando em tudo e
reproduzindo feito papagaio suas falas.
— Lolla contou que ela está voltando para o Vale, parece
que chega no fim de semana.
— Sim, falei com ela ontem, ela merecia essa Lua de Mel
pelo mundo, dei umas dicas sobre Paris, uns telefones de amigos
caso precisasse, mas ela é Peggy Sue Sanders, casada com Kyler
Allen, todo mundo os conhece.
— Deve ser horrível. – É uma maneira de ver as coisas.
— Nem todo mundo sonha com fama – concordo com ela
pensando que deve mesmo ser insuportável não ter um único lugar
no mundo onde não saibam quem você é.
— Com o que você sonha? – ela me pergunta, sinto a cama
se mexer, depois seus dedos esbarram de novo nos meus enquanto
afaga Lumière.
— Eu sonho com meu trabalho sendo reconhecido, com a
vida simples que tenho aqui, essas coisas. – Dou de ombros. –
Quais seus sonhos, Emily?
— Quero ter uma casa minha e um trabalho, descobrir uma
coisa que eu saiba fazer, quero... pouca coisa, não é?
— Na medida da sua felicidade, não importa se para os
outros é muito ou pouco, tem que ser do tamanho do que te faz feliz.
Ela fica pensativa e silenciosa, me acomodo mais perto de
Lumière, ele parece dormir tranquilo, talvez a respiração um
pouquinho alterada, Jimmy diz que vem pela manhã a menos que
ele precise durante a noite, aí é só ligar.
— Com licença, meninos. – Mamãe surge no quarto, pelos
passos, papai está com ela. – Nós viemos dar boa noite. Pensamos
em ficar, mas Emily está com você.
— Estamos bem – digo fingindo força como Emily disse,
não quero ouvir essa nota de dor na voz deles. Ganho beijos na
testa, acho que Emily também e sei que os dois estão a olhar para
Lumière, um fungar esclarece que mamãe está chorando.
— Eu nem sei o que sentir – ela diz com a voz corroída
pela dor. – Nos acorde se precisar, Guy.
— Pode deixar.
— Coline... como vamos contar a ela? – Mamãe continua.
— Meu amor, o Lumière ainda está aqui, não tem nada a
contar – papai diz em um negacionismo típico de quem sempre teve
medo da dor.
— Você está certo, talvez ele amanheça melhor – ela diz
talvez na tentativa de nos consolar.
— Boa noite – dizem juntos, Emily responde em um fio de
voz repleta de sua timidez.
Ficamos de novo sozinhos, pego o celular para ouvir as
horas, quase meia-noite, suspiro pensando que podia ser apenas
um sonho ruim.
— Você o treinou?
— Não. Ele... é engraçado, eu queria uma companhia,
sonhava em ter um cachorrinho e quando meus pais finalmente
ficaram juntos, eu sabia que seríamos uma família e então foi
quando uma cadela do rancho teve filhotinhos e o Elton me ajudou a
escolher o Lumière.
— Ele chegou bebezinho?
— Sim. Crescemos juntos, ele era tão esperto e foi
aprendendo truques e eu não sei como, mas ele... aprendeu sozinho
que eu tinha limitações e precisava de ajuda, foi fazendo o que era
preciso para cuidar de mim, me desviando de perigos, me guiando
pela casa, depois pelas ruas e por fim, eu entendi que tinha um cão-
guia além de um grande amigo.
— Tão bonito. – A voz dela soa suave como a fada que
imagino que seja. Sinto quando se aproxima de mim e procura
minha mão. – Lumière ama você.
— E eu o amo – admito cheio de certeza. – Ele é parte
dessa família.
Sinto quando ela se aproxima mais de mim, se acomoda em
meu peito e ficamos em silêncio, seu calor a me fortalecer, nem
acredito que ela está aqui, que vai ficar comigo nesse momento de
dor.
Tento relaxar a mente, um braço a envolver Emily, a outra
mão sobre os pelos de Lumière.
Um sobressalto me desperta, Emily não está mais em meus
braços, mas minha mão ainda descansa sobre Lumière.
— Estou aqui. – A voz soa tranquila e sua mão procura a
minha. – São 5h da manhã. Ele abriu os olhos agora, se mexeu um
pouco e você despertou.
— Quero descer com ele – aviso a ela. – Tem um perfume
incrível que desprende das flores ao amanhecer, ele gosta. Às
vezes, eu tinha insônia, minha cabeça ficava focada em alguma
melodia e eu saía com ele para o jardim, podia sentir como fazia
bem.
— Vamos. – A voz dela soa embargada por lágrimas, um
sinal de alerta dispara em meu cérebro, percorro o corpo de
Lumière, a respiração está mais cansada.
— Emily... – Quero voltar a chorar, me debruçar sobre ele e
me derreter em dor. Ela segura meu rosto, usa as pontas dos dedos
para secar minhas lágrimas.
— Ele não pode sentir isso, ele vai ficar com medo e
preocupado com você, precisa ser forte, tem que fingir. – Balanço a
cabeça afirmando, ela se afasta, seco meus olhos, engulo a dor e
fico de pé, ergo Lumière nos braços e Emily caminha perto de mim
como se eu precisasse ser guiado.
Descemos as escadas sem fazer barulho, na sala ela
apressa o passo e quando me aproximo da porta sinto a brisa
invadir a sala. Passo para o jardim, levo Lumière nos braços até
perto da fonte e o coloco no chão, ele logo se deita, nem mesmo
quer dar uma volta. Sento-me ao seu lado, escutando o barulho
suave da água a cair, com a dor a me rasgar o peito.
— É um bom lugar, amigo, prometo nunca me aproximar
demais da fonte, não tenha medo, vou cuidar de tudo, eu entendo
seu cansaço. Aceito se precisar ir. Tem tantas coisas que não
vamos fazer juntos. – Meu choro se mistura ao de Emily. – Eu não
sei como deixá-lo ir. Desculpe!
— Jimmy, você pode vir agora? – É a voz do meu pai e
ouvi-lo um pouco mais atrás de mim traz a certeza de que está tudo
se acabando.
Acomodo-me no chão, meu corpo a acolher o de Lumière e
o silêncio que nos envolve é quebrado apenas pelo som suave da
fonte a correr água limpa, um fungar ou outro, leves soluços. Fico
abraçado a ele, correndo meus dedos por seus pelos, afagando o
canto abaixo da orelha, seu lugar preferido para receber carinho,
pensando em todos os anos juntos, o riso, as coisas destruídas, o
trabalho compenetrado e incansável de me guiar, as horas e horas
debaixo dos meus pés ao piano, fica as boas lembranças de todos
os anos juntos.
Sua respiração vai diminuindo, minhas lágrimas molhando
seus pelos, a mão de Emily descansando sobre meu ombro. Até
que ele dá um longo suspiro e tudo se acalma, ninguém se move,
não tem som, além da água a correr feito um recado da vida, o
interminável ciclo de vida e morte, a beleza triste das boas
lembranças, o fim de uma era, o buraco profundo e vazio e as
minhas lágrimas a molhar o corpo do irmão que se foi.
— Papai! – A voz de Coline cheia de dor corta o silêncio
respeitoso da despedida.
— Está tudo bem, anjo. Não chora, ele precisava
descansar. – Não é o bastante, ela soluça profundamente, não é
preciso enxergar para saber que está nos braços do meu pai,
escondida em seu ombro, protegida. Eu conheço esse lugar, ainda
caibo nele, mas não consigo deixar Lumière.
Escuto o carro parar, os passos apressados e o paralisar
da constatação. Jimmy não chegou a tempo e não importa, não
havia nada a ser feito. Era hora de despedir.
— Eu sinto muito. – Sua voz soa solene. – Guy... eu posso
levá-lo para o rancho e cuidar de tudo.
— Não! Não! – Não consigo me afastar dele, não quero me
despedir, não quero que acabe a maciez dos seus pelos e o cheiro
que vem dele. – Não quero que ele vá embora.
Devia mostrar a maturidade que todos dizem que tenho,
mas eu só consigo ser aquele garotinho de sete anos que ganhou
um amiguinho e não consegue ficar longe dele.
— Filho! – Minha mãe se aproxima, me puxa pelos ombros
para me afastar de Lumière e eu odeio me afastar dele, é como
permitir que ele vá embora para sempre. – Ele não vai embora, está
bem? – Ela segura meu rosto, depois me envolve em seus braços
protetores. – Lumière vai ficar aqui, no nosso jardim, perto da fonte.
— Coberto por Gérberas coloridas, mamãe. Promete?
— Prometo. Por favor, meu filho, precisa ser forte. – Meus
soluços se espalham e confundem com os de Coline e Emily. –
Quero que entre com a Emily agora, o Jimmy vai cuidar disso com
seu pai.
— Vem, Guy! – Emily me puxa pela mão, me solto das duas
para me debruçar mais uma vez sobre Lumière, uma última vez,
afago seus pelos e beijo o focinho ainda quente.
— Obrigado, Lumière. – Sinto as mãos de Emily
procurarem as minhas, seus cabelos esbarram em meu rosto com
um perfume suave de mel e morangos silvestres, ela me faz ficar de
pé, envolve minha cintura e deixamos o jardim. Deixamos Lumière,
ele não vai mais correr por entre as flores, não vai mais me guiar
feito lamparina iluminando a vida, ele se foi.
Capítulo 16
Emily

Não tem força na morte, ficamos todos vulneráveis e isso


talvez seja o mais bonito, porque podemos ser fracos depois do fim,
como fui quando mamãe me deixou e me debrucei sobre ela
deixando a fraqueza me tomar.
Acompanho Guy até o sofá, ele cobre o rosto com as mãos
e chora enquanto eu tento abraçá-lo para confortar sua dor, sei que
nada pode mudar suas emoções agora, mas também me lembro de
como eu queria que alguém me abraçasse e estivesse ao meu lado
naquele dia dolorido.
Não sou alguém que sabe o que dizer, então fico silenciosa
ao seu lado, escutando sua dor e sendo solidária a ela.
Mandy entra trazendo Coline que está inconsolável, a irmã
deixa a proteção da mãe para se encolher no colo de Guy, isso
parece contê-lo um pouco, eu e Mandy trocamos um olhar, ela está
chorando, sei que amava Lumière, mas como mãe, é pelos filhos
que chora, porque não pode arrancar deles essa dor.
Coline é a primeira a se refazer, depois de não temer as
lágrimas, elas simplesmente deixá-la como se seu coraçãozinho
estivesse limpo.
A garotinha toca o rosto do irmão, alisa carinhosa
enquanto Guy vai se controlando, ela beija o rosto do irmão com
todo seu amor inocente.
— Não chora mais, Guy. Passou, a Emily vai cuidar de você
e eu vou lá ficar no colo da mamãe.
— Estou bem, bobalhona – ele diz cheio de dor. Beija a
irmã e ela o deixa. Mandy leva a filha para longe, as duas somem
saindo para o jardim, Guy caminha até a porta lateral que está
aberta e dá exatamente para a parte do jardim onde está a fonte,
vou até ele.
Guy procura minha mão e ficamos imóveis diante da porta.
Ele respira fundo.
— Descreve para mim? – Não quero fazer isso, é tão triste,
mas não posso dizer não a ele. Guy tem direito de saber.
— Ele está enrolado em lençóis brancos. Jimmy e seu pai
estão terminando de cavar, está em um lugar bonito, pertinho da
fonte, numa parte bem plana do terreno, cercado por grama e flores.
— Lumière se foi, eu perdi meu amigo para sempre e não
sei se isso algum dia vai parar de doer. Sinto falta dele.
— Onde estiver meu tesouro, estará também meu coração.
Você me contou essa história. – Eu o lembro. – Era o tesouro dele,
então o coração de Lumière está aqui. – Toco seu peito na altura do
coração, uma onda de ternura parece nos invadir e suprimir um
pouco sua dor, ele me puxa para seus braços, minha mão ainda se
mantém em seu peito mesmo quando em silêncio, ficamos imóveis
com ele a me envolver.
— Doce Emily. – Guy diz beijando meus cabelos e voltamos
ao silêncio, até que Mathieu se aproxima.
— Filho, está tudo pronto. – ele diz tão abatido pela dor do
filho que sinto pena.
Lumière foi carregado por ele até seu lugar de descanso,
Jimmy ainda segura a pá ao lado da terra, Mandy se aproxima
trazendo Coline pela mão, a pequena carrega flores coloridas.
— Vamos. – Guy me solta, mas eu procuro sua mão, quero
ficar com ele todo tempo que puder, nos reunimos em torno da
sepultura, é tão triste, não quantas pessoas podem entender esse
tipo de amor, mas sei que eu posso, me dói ver a dor dos
Montpelliers e dói em Jimmy também, percebo sua tristeza.
— Quer dizer alguma coisa, Coline? – Mandy convida a
garotinha que coloca algumas de suas flores nas mãos do irmão.
— Vou sentir saudade, Lumière, agora você vai ser um
jardim. – Ela atira as flores e em seguida seca uma lágrima, volta
para perto da mãe, é uma das cenas mais tristes que já vi na vida.
— Guy! – Mandy o convida. – Está à sua frente, dois passos
de você – ela explica e ele apenas balança a cabeça concordando.
— Alguns seres nos deixam para virar estrelas e iluminar
nossos caminhos, mas você sempre foi estrela, Lumière, então
agora será jardim, para perfumar e colorir. Amo você, sinto sua falta
e foi há pouco, mas vai passar, não se preocupe comigo. – Ele atira
as flores sobre o corpo e deixa seu braço cair ao longo do corpo,
parece vencido pela dor, entregue a ela de um modo que me
machuca e de novo, prendo minha mão a sua para mostrar que ele
não está sozinho.
Mathieu e Jimmy começam o triste trabalho de cobrir a
sepultura e ficamos no silêncio solene da despedida. Ninguém mais
chora, é só silêncio.
— Estou indo para casa, se precisarem de mim... – Jimmy
aperta a mão de Guy.
— Obrigado por tudo. – Guy agradece a ele. – Quando eu
estiver melhor apareço.
— Certo. Espero você. – Jimmy avisa indo até Mathieu e
depois Mandy, para mim, um aceno a distância, ele não quer me
separar de Guy.
Entro com a família de volta à sala, acho que é hora de ir
embora, eu não sei bem como me despedir, quero ficar aqui perto
dele, consolar Guy, cuidar dele, mas acho que a família precisa de
privacidade.
— Acho melhor eu ir, volto mais tarde. Amanhã, volto
amanhã se não for problema.
— Fica, Emily. – Mathieu me pede, tem um tipo de súplica
em seus olhos, eu nunca diria não a um pai tão amoroso que está
sofrendo. – Precisa ao menos ficar para o desjejum. – Ainda é tão
cedo, o dia acaba de começar e já vem tão triste.
— Fica. – Guy confirma o pedido.
— Tudo bem, mas vai tomar ao menos um copo de leite?
— Sim – ele diz sem ânimo, nos sentamos todos em torno
de uma mesa bem colocada dez minutos depois, é um ambiente
triste, mas cheio de amor. Está no modo como se olham e cuidam
uns dos outros, Coline no colo do pai, que vai forçando umas
colheradas de cereal na boca da filha que parece regredir um pouco
por conta da tristeza.
— Hoje o papai não vai trabalhar, vamos passar o dia
juntos – ele diz a garotinha. – Que acha de assistirmos um pouco de
desenho na sala?
— Mamãe vai ficar também?
— Claro que vou, anjo.
— E o Guy? – ela questiona.
— Seu irmão não dormiu muito essa noite, ele e a Emily
vão ficar lá em cima descansando um pouco, depois eles se juntam
a nós para o almoço.
Gosto de saber que eles querem que eu fique e acho que
Guy também quer, não reclama, não nega, apenas aceita o que as
pessoas dizem enquanto parece mergulhado em memórias que o
faz triste.
É impossível exigir dele outra reação, subimos logo depois
dele se forçar a tomar um copo de leite.
— Não quero dormir – Guy me avisa quando chegamos ao
quarto.
— Tudo bem, mas podemos deitar um pouco. Eu não dormi
um único segundo. – É verdade, mas não acho que consiga dormir,
principalmente sozinha com ele no quarto, é estranho e me deixa
com vergonha, mas não há nada de errado em me deitar um pouco
com ele, sobre as cobertas, vestidos e em um dia cheio de dor, isso
não é mais do que cumplicidade e carinho.
Guy se deita com o rosto voltado para o teto, não sei como
é para ele, se cria imagens ou apenas sente as coisas, algum dia
talvez eu pergunte. Tomo coragem de me estender ao seu lado, ele
abre os braços como um convite e me acomodo em seu peito, seus
dedos mergulham em meus cabelos, é o carinho mais gostoso que
já recebi na vida. Minha cabeça em seu peito, seus dedos a me
afagarem os cabelos.
— Voltou para minha vida na hora certa. Obrigado, Emily,
não teria vencido essa noite sem você, não teria conseguido
enfrentar esse momento sozinho.
— Fico feliz em poder estar aqui. Quer dizer, não feliz, eu...
— Eu entendi. – Ele me corta, beija o topo da minha cabeça
e fecho meus olhos aproveitando o momento de intimidade que não
me assusta, é tão bom estar aqui com ele, sentir seus dedos em
meus cabelos, o coração batendo em seu peito, o silêncio do quarto
e a brisa quem vem das janelas e balança as cortinas levemente.
Uma onda de paz me invade e espero que ele esteja
sentindo também, é tão bom que me relaxa a ponto do sono me
dominar e durmo nos braços de Guy.
Desperto com um susto, Guy está de olhos fechados e tão
tranquilo que acho que ele dormiu, queria saber as horas, corro os
olhos por seu quarto, mas é claro que eu não vou encontrar um
relógio, seu celular vai começar a falar se tocar nele.
Não sei se dormi por uns instantes ou o dia todo, mas foi
tão bom que me sinto renovada.
Eu me afasto de Guy lentamente para não o despertar,
deixo a cama e vou até o banheiro. Lavo o rosto e escovo os
cabelos, deixo tudo no mesmo lugar para não deixar Guy louco a
procura de suas coisas, essa parte eu já entendi perfeitamente.
Acho que agora vou embora e o deixo dormindo, ele
precisa descansar e quando volto para o quarto está bem relaxado,
sorrio desejando voltar a me aninhar em seus braços, mas não faço
isso, saio do quarto evitando barulho, desço as escadas lentamente,
como se fosse uma fugitiva, a sala está silenciosa, a casa toda
parece mergulhada no silêncio.
Será falta de educação sair sem aviso? Melhor do que
invadir cômodos em busca de alguém.
— Emily! – A voz firme de Mathieu me desperta dos meus
devaneios fugitivos em um susto tolo que me faz pular para o lado,
encontro seus olhos e o meio sorriso do homem elegante que está
diante de mim. Guy será um homem muito bonito quando chegar
aos cinquenta.
— Desculpe! – digo levando a mão ao peito me refazendo
do choque.
— Eu que devo me desculpar por assustá-la.
— O Guy está dormindo, estou meio perdida. – Olho em
torno em busca de um relógio.
— Duas da tarde – ele avisa com um sorriso e fico em
choque pelo tempo que dormi. – Fui chamá-los para o almoço, mas
dormiam e decidimos deixar.
— É eu... – Meu estômago range com a palavra almoço,
espero que ele não tenha ouvido. – Eu... acho que é melhor que ele
continue a dormir.
— Obrigado por vir, Emily, você foi importante essa noite e
especialmente... essa manhã.
— Muito triste tudo isso – digo olhando para o chão, ele me
intimida demais, é um homem tão elegante e educado, parece um
desses condes de romances de época.
— Muito. Apaguei todos os vestígios dele, potes de ração,
coleira pendurada na porta, as camas espalhadas pela casa, menos
a do quarto do Guy, vai ser dolorido quando ele se der conta.
— Ele vai ser forte, não é mesmo, Mathieu? Guy precisa
ultrapassar isso, eu temo que ele fique muito triste por muito tempo.
— Ficar triste não é muito a natureza dele. – Mathieu sorri.
– Ele costuma se recuperar rápido.
— Acho que sim.
— Vai ficar por perto, Emily? Não devia me meter, mas não
resisto a perguntar.
— Prefere que eu fique longe? – Dá uma dor no meu
coração, uma vergonha que eu nem consigo controlar direito, meu
rosto queima. Quero cavar um buraco e me esconder.
— Não. Eu jamais diria algo assim, nunca me meteria na
história de vocês, desculpe se fiz parecer que sim, mas me
preocupo com meu filho e ele ficou bem triste nesse período em que
esteve evitando vê-lo.
Nem posso negar que fiz isso, porque eu fiz, ainda me sinto
envergonhada, mas ao mesmo tempo, aliviada com essa situação.
— Também fiquei bem triste – conto a ele em um arroubo
de honestidade e coragem, Mathieu dá um sorriso bonito e só
consigo pensar em como Guy se parece com ele.
— Imagino que sim. É bem-vinda, Emily, não sei suas
razões para se afastar e acredito que elas devem ter sido fortes,
mas estou feliz que está de volta e prometo nunca mais me
intrometer.
— Está tudo bem – aviso um tanto atrapalhada com sua
presença no silêncio da mansão Montpellier.
— Todo pai é assim intrometido e preocupado, só quero o
bem do Guy. Não vai ficar chateada comigo?
— Nunca – digo tentando sorrir, mas só consigo pensar no
meu pai e se eu estou sendo a pessoa má e egoísta que ele acha
que sou. Mathieu também acha que os pais fazem isso. – Eu acho
melhor ir para casa, volto amanhã, se o Guy...
— Não quer comer alguma coisa? Brenda já foi, mas
deixou a comida no forno para vocês.
— Ah, não, eu... prefiro ir e como em casa, quer dizer, na
casa da Lolla.
— Tenho certeza de que a Lolla não ficaria nada feliz em te
ouvir falar assim, aquela é sua casa – ele diz de um jeito tão gentil
que me emociona, eu sou tão boba e carente. – Mandy foi levar a
Coline para brincar no rancho, ela esquece tudo quando está por lá,
brinca com os meninos do Shane e ama cuidar da Cassady, eu
fiquei para... cuidar de vocês. – Ele ri de sua fala. – Está aí outra
coisa que não devia fazer, Guy ficaria ofendido se me ouvisse
dizendo algo assim.
— Acho que não. – Sorrio dessa vez sem me forçar. – Sinto
muito por sua perda, senhor Montpellier.
— Obrigado, mas não precisa me chamar assim, Mathieu
está ótimo.
— Certo, vou tentar. Melhor eu ir, até... logo. Vou aproveitar
a tarde para ver umas aulas do meu curso – digo apenas para ele
não pensar que fico todo tempo à toa.
— Está estudando o quê?
— Administração, mas é só um curso on-line, para ver se
consigo um emprego.
— Emprego? Acho que posso te ajudar nisso – ele diz
ganhando minha atenção, minhas pernas até tremem um pouco. –
Qualquer coisa na área de escritório, é isso que procura?
— Eu procuro qualquer coisa em qualquer área – aviso a
ele que sorri.
— Vou pensar em umas coisas e depois conversamos.
— Obrigada – digo animada. Aceno antes de deixar a casa
e me demoro um instante olhando para a sepultura de Lumière,
quando um nó se forma em minha garganta eu me apresso para
casa.
Lolla vem tomar um café e conversar sobre tudo, conto a
ela como foi e ela seca lágrimas enquanto me escuta.
— Que coisa mais triste, eu jurava que aquele bichinho era
imortal. Nem acredito que isso aconteceu, imagino como estão
todos. Coline nem conhecia o mundo sem o Lumière.
— Triste demais.
— Vou deixar que descansem hoje, amanhã vou dar um
pulo na casa deles com o Jay.
— Coline vai gostar – digo triste. – Todos vão.
— Não se fala em outra coisa no Vale, ele era como um de
nós, ninguém o olhava como um cachorro. Bem, vou voltar ao
trabalho, come alguma coisa. Fiquei feliz que parou de fugir do Guy.
— Tolice, ele... é especial.
— Muito.
— Lolla. – Chamo quando ela pensa em deixar a cozinha.
Atenciosa, ela volta a se sentar. – Acha que sou ingrata com meu
pai? Talvez seja verdade e ele me trate desse modo brusco porque
quer o meu bem.
— Seu pai não é brusco, Emily, ele é violento – ela declara.
– Eu sei o que sente, sei como ele entrou na sua cabeça e faz você
pensar que está sendo ingrata com a única pessoa que realmente
se importa com você.
— Acho que me sinto assim às vezes. – Ela aperta minhas
mãos sobre a mesa.
— Ninguém que te machuca, de nenhum modo, com
palavras, ou ações está certo, ninguém.
— Entendo. Minha cabeça sempre embaralha – não conto
da ligação de uns dias atrás. Sei lá se estou errada, mas prefiro não
preocupar Lolla com isso.
— Vamos conversar mais sobre isso, tenho histórias para te
contar e quando quiser, liga para a minha sogra, Niara tinha boas
conversas com a sua mãe, ela vai te ajudar a entender.
— Obrigada por tudo, Lolla. – Ela faz uma careta, depois
abre um sorriso.
— Estou aqui pensando que vou morrer de saudade de
você aqui quando encontrar seu caminho, essa noite que passou lá
na Mandy, eu e o Jay falamos sobre como sentimos sua falta.
— Fico feliz. – Ela sorri, beijo suas mãos presas as minhas
e ela me imita beijando as minhas.
— Vou trabalhar.
Eu tomo banho, como, estudo a tarde toda, janto com Jay e
Lolla mais cedo que de costume e depois de ajudá-los com a louça
do jantar estou sem sono e querendo falar com Guy.
Quem sabe passo em frente à sua casa e se as luzes
estiverem acesas toco para saber como ele está. O telefone toca me
causando um arrepio pelo corpo, meu coração dispara de medo
quando Jay caminha para o telefone, engulo em seco pensando que
só pode ser meu pai e agora eles vão saber que ele me ligou, e pior,
talvez fiquem bravos por trazer problemas.
— Oi Guy, eu sinto muito. – Do inferno para o céu em uma
frase. – Ela está aqui.
Jay me estende o aparelho sorrindo, eu fico vermelha de
vergonha quando pego o telefone.
— Alô.
— Você está bem? – ele me pergunta.
— Sim, e você, descansou?
— Bastante. Liguei para agradecer e... convidar você para
vir aqui, podemos tocar um pouco, é cedo.
— Eu vou – aviso animada, quase nem consigo esconder a
sensação de alegria que me toma por saber que vou encontrá-lo. –
Já estou indo, quer dizer, pode ser agora?
— Sim, seria... ótimo.
— Tchau, eu estou indo. – Desligo meio atrapalhada, Jay e
Lolla estão rindo.
— Bom passeio, uns beijos sempre ajudam a esquecer a
tristeza – Lolla diz me fazendo arder de vergonha.
— Volto mais tarde.
— Sem pressa, é Horses Valley, não tem nenhum perigo
andar à noite, no máximo vai encontrar o Estrela da Noite, mas ele é
só um fantasma – Jay diz rindo.
— Acho que não, acho que ele é de verdade.
— Ela não acha isso, só quer me contrariar. – Jay brinca
quando aliso os cabelos e olho para porta ansiosa. – Vá! – ele diz
rindo e aceno correndo para sair.
Capítulo 17
Guy

A noite está fresca, acaba de escurecer, Coline ainda está


abatida e quieta, nosso jantar é tão triste que não me lembro de
noite pior. Talvez quando ficamos só eu e o papai, depois de tudo
que aconteceu, mas nada assim desde a chegada da minha mãe às
nossas vidas.
Ligar para Emily tranquiliza meus pais que sobem para
ficarem com Coline logo depois do jantar, eu a espero no jardim,
sozinho no jardim pela primeira vez, é quase como quando eu
estava aprendendo a me direcionar e me reconhecer sem a visão,
ainda pequeno, com minha mãe a me incentivar e meu pai a temer.
Falta a certeza de que Lumière me trazia, seus olhos
abertos para me defender e seu pequeno aviso a cada um que
chegava perto.
Não tenho mais lágrimas, só um buraco que eu sei que vai
se fechar, ou ser de novo preenchido, sei que ele não ficaria feliz
com tanta tristeza assim, mas são só umas horas sem ele, eu não
estou pronto, não depois de todos esses anos juntos.
— Guy! – A voz suave dela soa como um bálsamo. Meu
coração vibra em resposta. Eu não sei como isso foi acontecer, mas
Emily tem poder sobre minhas emoções.
Sorrio enquanto escuto seus passos se aproximando e
quando ela para diante de mim, posso sentir o perfume suave de
mel e morangos que vem dela.
— Como você está? – ela me pergunta enquanto procuro
sua mão, não para um aperto formal, preferia provar seus lábios,
mas eu não sei o que ela faria, nem mesmo entendo seus
sentimentos.
— Um pouco melhor. É bom que tenha vindo. Eu não sei se
devia ter ligado, não sei se isso é um problema...
— Não é – ela diz rápido. – Queria vir. Estar perto de
você... nessa hora. – Ela completa.
— A noite está fresca quer ficar aqui fora? – pergunto a ela
que demora a responder.
— Quando você toca, fica mais feliz – ela diz me roubando
a tristeza para substituir por um sorriso.
— Sim, eu fico, podemos ficar no estúdio. O que acha?
— Acho bom. Eu ainda me lembro das notas – ela me
explica e percebo que ainda seguro sua mão.
— Vamos descobrir. – Eu a levo pela mão em direção ao
estúdio, atravessamos a sala silenciosa.
— Seus pais saíram? – ela questiona enquanto me segue
pelas escadas.
— Não. Eles estão no quarto, a Coline vai passar a noite
com eles, estão tentando agradá-la. – A verdade volta à minha
mente como um soco, o vazio de não ter mais que pensar em ração,
banho, água fresca, passeios no jardim antes de ir para cama.
— Ela é tão pequena, não sei como deve ser para ela. –
Abro a porta do estúdio, ela passa por mim, e fecho a porta atrás de
mim, nos acomodamos lado a lado ao piano. Ele está fechado e
descanso as mãos sobre a madeira lisa. – Quando meu avô morreu,
eu não entendia nada sobre perder alguém, foi meu primeiro contato
e doeu bastante, mas eu admito que me recuperei rápido, as coisas
lá em casa ficaram tão difíceis que eu nem tive tempo de sofrer.
— Perdi minha mãe, junto a visão e um pouco meu pai
naquele tempo, foi tudo de uma vez e eu nem sei como me senti,
era tão pequeno, por mais estranho que pareça, acho que o que
mais me fazia sofrer era a distância do papai, ele fingia não estar
longe, mas estava.
— Vocês são muito parecidos, ele te ama demais. – Sim, é
visível a boa relação que tempos, mas não foi tão fácil.
— Era assim antes do acidente, depois sumiu tudo e ele me
evitava, não como pode estar pensando, ele me protegia demais,
mas nos desconectamos e foi a minha mãe Mandy que trouxe isso
de volta.
— Sorte ela ter aparecido na vida de vocês.
— Muita – eu concordo. – Foi há tanto tempo que agora é
como se tudo aquilo não tivesse realmente acontecido, é como se
tivesse sido um tipo de pesadelo meio nebuloso.
— Tenho medo de que a minha mãe se perca em minha
memória e se torne um sonho sem rosto, voz – ela me conta e eu
me aproximo mais dela.
— Nunca esqueci o rosto do meu pai, Emily. Não vai
esquecer sua mãe.
— E nenhum de nós vai esquecer o Lumi – ela diz
passando seu braço em torno do meu e descansando a cabeça em
meu ombro. – Senti falta do piano e de... você.
— Também senti sua falta – confesso a ela. Abro o piano e
dedilho umas notas, Lumière não está deitado em sua cama me
ouvindo tocar e isso é uma dor avassaladora, mas eu quero não
pensar nela, quero pensar apenas em Emily aqui comigo, com seu
perfume suave e a voz de fada.
— Insistiu bem pouquinho – ela comenta me fazendo sorrir.
— Sou francês, Emily, é bom se lembrar disso, somos um
pouco impacientes.
— Não foi muito maduro o que eu fiz – Emily constata e não
posso desmenti-la, porque também acho, ao mesmo tempo, não
temos nada, só uma amizade que se iniciou e ela não me deve
explicações e tem lá seus motivos para agir como agiu. – Acho que
concorda. – O tom é leve e risonho, me faz sorrir. – É seu sangue
francês de novo? Nem para dizer que não achou imaturo.
— Eu achei imaturo – aviso e ela ri ainda mais.
— Bem, agora já foi, não vou mais me comportar assim. –
Meus dedos deixam de dedilhar o piano.
— O que isso quer dizer?
— Na prática? – ela quer confirmar.
— Isso, o que quer dizer na prática?
— Não tenho a menor ideia.
— Vai ganhar um Dó bem grave! – Eu me estico para tocar
a primeira tecla esbarrando em Emily e sentindo um pouco do seu
hálito e respiração tamanha nossa proximidade.
O som fica ecoando pela sala e não me afasto dela, ainda
continuo perto, sinto que ela também não me repele.
— Esse é o momento em que ficamos frente a frente e
você me olha um tantinho apaixonada? – pergunto a ela.
— Sim, pensando se vai me beijar ou se afastar. – Minha
mão deixa o piano para tocar seu rosto, é a mão sobre sua pele a
guiar meus lábios ao encontro dos doces lábios de Emily.
Toco seus lábios de modo suave, sentindo a maciez de sua
boca, levemente úmida e delicada, com perfume de mel e
morangos, ela me recebe com doçura, abre os lábios suavemente
em um convite que me faz sentir o coração descompassar, tem uma
melodia a nascer em seus lábios e morrer nos meus, feito gotas de
orvalhos no dourado do amanhecer, seu beijo tem perfume e somos,
feito pétalas de rosas, em um veludo suave que me fascina.
Suas mãos tocam meu rosto, descem delicadas para
descansarem em meu peito, enquanto as minhas seguram o rosto
macio e delicado, correm para a nuca e a maciez dos cabelos.
É um beijo carinhoso, desbravador e ao mesmo tempo,
cheio de intimidade e marcas de uma história que ainda não
contamos, mas eu sei que vamos contar juntos, é um longo beijo de
certezas, encontrei o que ainda achava cedo para procurar, estou
preso no emaranhado de seu coração e doçura, rendido.
Eu sinto a dor ser roubada do meu peito, substituída por
uma emoção complexa feito tocar Franz Liszt.
Nós nos afastamos um instante, é aquele momento em que
não se sabe o que dizer e ao mesmo tempo não é necessário
palavras, não seria se pudesse ler seus olhos como os livros e
filmes demonstram em histórias de amor, mas eu não leio olhos.
— Você é uma sonata em Si Menor – conto a ela.
— O que isso significa. – Sua voz soa suave, sinto felicidade
nela.
— Complexa, inexplicável, mas também perfeita. Um
desafio.
— Guy... – A voz se perde.
— Quero beijar você mais uma vez. – Seus dedos tocam
meu rosto.
— Gosto do seu jeito de ver – ela diz me tocando o
coração. – Você é bonito sob o julgo dos meus olhos e ainda mais
bonito nas pontas dos meus dedos.
— Você é perfeita na delicadeza dos seus lábios – ela
responde levando minha mão de volta ao seu rosto, como que
guiando meu caminho e meus lábios de novo envolvem os seus.
Doce Emily.
Quando nos afastamos outra vez, depois de longos beijos,
meu coração está quieto.
— Gosto do beijo – ela diz parecendo tímida.
— Nunca tinha beijado antes.
— Claro que sim. – Soa incerto e dou um meio sorriso que
ela compreende como dúvida. – Uma vez, na escola, eu tinha
quatorze anos e beijei um menino, beijo rápido, mas era beijo sim.
— Como é beijo rápido? – pergunto rindo enquanto brinco
com seus dedos agora presos aos meus.
— Só encostar os lábios. – Escuto o som de um beijo.
— Beijou as costas da mão? – pergunto só para provocar
Emily.
— Sim.
— É assim que explica as coisas a um cego? Não tem
coração?
— Guy eu... – Sua voz soa tensa e me faz rir. – Você bem
que entendeu – ela diz me dando um leve empurrão.
— Com meus lábios aqui, tão perto e disponíveis? Ah, eu
acho que não gostou nada do beijo.
— Gostei – ela diz rápido.
— Como é que foi o beijo com o seu amigo na escola?
Sinto os lábios dela tocarem os meus em uma rapidez que
nem dá tempo de reagir.
— Assim! – ela conta. – Depois eu corri, mas foi tolice...
estava com medo do meu pai, ele soube por que eu não fui muito
boa em esconder e... – A voz desaparece, dá para sentir a frase ir
perdendo o tom de humor até mergulhar em uma dor profunda e se
perder.
— E? – insisto.
— Ele não gostou de saber e me deu uma surra. Não é
bom de contar – ela diz soltando minha mão, sinto que se arruma de
frente ao piano quando sua perna esbarra na minha, então está na
melodia que aprendeu, cheia de angústia a apertar as teclas do
piano, movida por um tipo de raiva que não permite errar notas, mas
machuca a alma e o piano, seguro suas mãos.
— Ei... às vezes, mesmo não sendo bom contar, é preciso –
digo pensando em mim, em como precisei um dia contar ao meu pai
como foi o acidente, como foi que a luz se apagou em minha vida e
livrá-lo da culpa que carregava.
— Tem dias que me sinto um monstro por ter deixado meu
pai. – Sua voz soa magoada e embargada por lágrimas que querem
rolar. – “É para o seu bem, Emily”, é como ele sempre terminava as
broncas, os castigos e mesmo as surras. “Eu sou seu pai, estou te
educando”.
— Sinto muito por isso. Não precisava ser assim, não é um
monstro por deixá-lo.
— Talvez ele me ame e ache mesmo que é assim que se
educa.
— Talvez – digo a ela por que tem alguma verdade nisso,
mas não sei muito sobre eles, ela não conta, como posso opinar? –
Mas não posso ajudar se não sei como era. Isso não quer dizer que
tenha que me contar.
— Pode mudar o que pensa sobre mim – ela confessa. –
Eu acho que pode mudar tudo.
— Duvido – aviso a ela. – É esse seu medo? Que eu goste
de você só esse pouquinho que muda por conta de algo do seu
passado?
— Acho que sim. – Dou um leve empurrão em seu ombro,
escuto um riso baixo.
— Paris tinha sons e cheiros diferentes quando cheguei.
Diferentes das férias em Paris, era a Paris do conservatório, muito
esforço e horas sem fim de aulas e treino, eu queria ser um virtuoso
e não se torna um, sem esforço. Dedos a doer todo fim de noite.
Enquanto minha família toda se movia para uma vida que não era a
que eles queriam, tudo por mim.
— Isso é bonito e amoroso da parte deles.
— Sim. Eu ficava apavorado, realmente apavorado, mas a
minha mãe nunca me deixou me render ao medo, ela não me
permitia temer pessoas e a aceitação delas, mamãe me fez forte.
— Mandy é um anjo.
— No primeiro dia eu não queria ir. Era um pianista bom,
mas treinado aqui, um autodidata praticamente e então estava no
mais importante conservatório de Paris, com os melhores e, eles
podiam enxergar e ler partituras e eu precisava decorar com a ajuda
de alguém.
— Achou que não conseguiria?
— Sim. Depois do dia no conservatório eu ia para casa e
me sentava com o papai ao piano e treinava para a aula seguinte,
ele não é um grande pianista, minha avó sim, ela o ensinou, mas
nunca foi sua grande paixão, mas ele me ajudava, no dia seguinte
eu amanhecia querendo desistir, mas eu não podia porque o piano é
minha vida e eu voltava e voltava e um dia eu me sentia tão bom e
tão pronto quanto meus colegas e, os professores me tratavam com
reverência e respeito e me destaquei.
— Você é muito forte.
— Conheci uma garota lá. Marion. Violinista, namoramos
um tempo, ela queria seguir carreira em uma sinfônica e nos
perdemos, mas eu não acho que a amava, nem ela me amava, só...
gostávamos das mesmas coisas e foi interessante descobrir coisas
com ela.
O silêncio de Emily parece carregar uma nota de ciúme.
Ela me faz sorrir, não são sentimentos nem mesmo parecidos.
— Pensei que Marion não pudesse gostar de mim porque
eu era cego, depois pensei que gostava porque eu era músico, meu
pai me disse que eu não estava me dando valor, sempre vinculando
os sentimentos dos outros a algo que não me definia. Entende?
— Sim. Acho que entendo. Quer dizer que você não vai
gostar ou desgostar de mim por conta do meu passado ou porque
eu sou a pior pianista do planeta terra.
— E adjacências, galáxia. Caso tenha dúvidas. – Agora seu
riso soa finalmente leve e me faz tão bem que é confuso sentir isso,
esse prazer em sua felicidade é tão grande e intenso que me
assusta e ao mesmo tempo instiga.
— Gosta de mim? – ela pergunta.
— Gostar parece muito superficial – explico a ela. – Não
descreve meus sentimentos, me sinto apaixonado. – Silêncio, talvez
esperasse ouvir o mesmo, mas Emily é tímida, acho que não
responderia sem um incentivo. – É o que sente?
Estamos de novo frente a frente, eu não sei o que minhas
expressões contam a ela, mas procuro suas mãos, o modo como se
prendem as minhas diz muito de seus sentimentos, Emily não se
esquiva.
— Eu também estou apaixonada, achei que não devia
sentir isso, então fugi um pouco de você, mas continuei sentindo e
sinto agora muito mais forte depois do beijo.
Deixo suas mãos para sentir os cabelos macios que correm
suaves ao longo do seu corpo, pouco abaixo dos ombros, com
pequenas ondas nas pontas.
— Vamos descobrir o que acontece depois desse beijo –
digo antes de roubar seus lábios em mais um beijo que parece
apenas pontuar com mais detalhes o que sinto.
— Guy... – agora meu nome em seus lábios soa quase
como um suspiro e me emociona que ela esteja a reagir, Emily
também sente. Não sei se somos jovens demais para tanta
intensidade, mas sentimos.
— O que fazemos com esse sentimento, Emily?
— Não sei responder, eu só sei sentir isso, só sei querer
ficar perto.
— Acho que temos que cuidar desse sentimento. – É a
única maneira, viver isso, não importa a idade. Sempre quis me
apaixonar de verdade, pareço melhor do que era há umas semanas,
mesmo com a perda que sofri e talvez também por ela, eu não sou
mais a mesma pessoa.
— Eu não sei como cuidar dele.
— Eu sei. Namora comigo? – Silêncio nunca foi problema
para mim, mas agora ele parece me assustar, ela não responde, fico
pensando se não quer, se não está pronta, talvez não saiba como
dizer não, mas quando as dúvidas me dominam, sinto seus dedos a
tocarem meu rosto, percorrerem as linhas da sobrancelha, olhos,
boca e nariz.
Emily leva minhas mãos ao seu rosto, sinto a umidade de
uma lágrima a correr, será sempre assim, doce, romântico e
intenso?
— Quero namorar você, Guy, aprender como é seu mundo
e mostrar o meu para você.
Dessa vez é ela a tomar a iniciativa e sua boca procura a
minha, as mãos que tocam seu rosto agora envolvem sua cintura,
não planejamos sentir isso, mas agora que sentimos, é como se o
destino estivesse pronto a nos unir desde o início dos tempos,
mesmo antes do mundo, nada é mais certo do que sermos um par.
Capítulo 18
Emily

Deixamos o piano para nos sentarmos abraçados no chão


do estúdio, acho que esse sempre será meu lugar favorito no
mundo. Onde ele disse estar apaixonado, onde dei o meu primeiro
beijo, um beijo cheio de sentimento e um pouco de curiosidade,
onde comecei a namorar com o único que posso amar.
Ele tem um braço a me envolver, fico querendo correr com
o tempo e ser sua namorada há um ano, saber como é ser seu par
nas festas, como é andar por aí de mãos dadas e conhecer seus
amigos, conversar com alguém e dizer, “meu namorado”.
É bom pensar nisso, nas coisas que vamos viver, mas
talvez seja hora de me abrir um pouco com ele, contar sobre a
minha infância e porque pedi socorro e deixei meu pai. Quem sabe
ele se torna meu melhor amigo e me ajuda a entender tudo isso.
— Quero contar tudo – digo a ele que usa o celular para
baixar a música que está tocando ao fundo e regando nossos
sentimentos com um pouco de romance.
— Estou aqui, sempre vai poder me contar tudo.
— Meu pai batia na minha mãe e em mim. – Dá vergonha
contar isso ele sendo filho de Mathieu, tão educado e elegante.
— Acho que já tinha entendido isso.
— Sempre foi assim. Ele tinha ciúme da mamãe o tempo
todo, ela mal podia sair para o mercado sem que isso virasse uma
briga, quando eu era bem pequena, não entendia bem e achava
normal, chorava e me escondia, mas não sabia que era só lá em
casa.
— E em muitas outras casas pelo mundo.
— Quando minha avó morreu, o vovô veio morar com a
gente e acabou, papai não tinha coragem de fazer isso na frente do
pai dele e o vovô adorava minha mãe. Foram anos muito bons, ele
ainda era bravo, eu não podia ir brincar na casa das minhas
amiguinhas e elas nunca viam a minha casa, não podia nem falar de
meninos e a mamãe e ele ainda discutiam e ele fechava a cara e
ficava sem falar com ela, mas aí o vovô consertava tudo.
— Gosto dele.
— Deve gostar mesmo, o vovô era ótimo. Quando ele
morreu eu sofri demais, mas o pior foi assistir tudo voltar, quase que
instantâneo meu pai voltou a ser o que era.
— Isso é deprimente. – Ele beija minha mão e me encosto
em seu ombro, suspiro na proteção do seu afeto que deixa tudo
mais fácil.
— Fui defender minha mãe e foi a primeira vez que ele me
bateu. – Vejo o corpo dele reagir ficando tenso. – Depois era
sempre, eu ou a mamãe, as duas, um inferno.
— A violência é sempre o inferno. Não faz sentido.
— Para ele fazia, era o jeito de corrigir nosso
comportamento, ele era doido, tudo que mamãe fazia era
questionado e ele achava que ela tinha amante e ela achava que ele
ia mudar, melhorar, que era porque ele a amava demais.
— Já vi matérias sobre isso, Emily, é a prisão que eles
acabam por conseguir minando a autoestima e as forças da pessoa
agredida. – Não sei se entendo o que ele quer dizer.
— Minha mãe virou alguém muito triste, mas esperançosa
dele melhorar.
— E você?
— Só triste – conto sem saber se ele pode sentir a minha
tristeza. – Depois ela ficou doente e ele melhorou, acho que ele
gostava disso. – É horrível fazer esse relato, porque penso em como
tudo isso doeu e quanto isso me afeta e nas imagens que talvez ele
crie e no mal-estar que meu passado provoca.
— De sua mãe estar doente?
— Do controle, quanto mais doente, mas sob o seu poder,
ele se sentia feliz por controlar absolutamente tudo. – Meu olhar se
perde no passado enquanto ele brinca com uma mecha dos meus
cabelos.
— Ele é bem problemático.
— Muito. No finzinho, acho que ela teve um momento de
lucidez, pediu que eu me cuidasse, que pedisse ajuda. Foi o que eu
fiz, em um arroubo de coragem, em pleno velório da minha mãe,
quando vi Niara chegar, não sei se você a conhece, é a...
— Mãe do Jay, sim eu conheço a família dele, são ótimas
pessoas, muito engajadas em causas sociais.
— Me aproximei dela sem meu pai perceber, disse que
precisava de ajuda, que temia por mim estando sozinha com ele, eu
sabia que se voltasse com ele depois do velório a vida seria bem
difícil, então, após o funeral, Niara e o marido avisaram meu pai que
eu iria com eles e ele tentou ficar nervoso, mas acabou não tendo
coragem de reagir, acho que no fundo ele achou que eu acabaria
voltando, mas não voltei.
— Muito corajosa. – Ele me faz sentir realmente corajosa,
não sei bem se fui, mas sinto como se tivesse sido. – Estou
orgulhoso.
— As vezes temo estar sendo ingrata com o meu pai, ele
sempre dizia que eu era ingrata, que ele se esforçava e eu não fazia
nada certo, era egoísta e a mamãe também, mas ela até tentou
trabalhar, não deu certo porque ele ficou louco de ciúme e não tinha
maquiagem que cobrisse as marcas, eram tantas brigas, ela sofreu
tanto que preferiu desistir.
— Emily! – Ele me aperta em seus braços, me faz sentir tão
protegida, é como se ninguém pudesse me machucar agora. – Não
tem que sentir isso, essas coisas todas são resquícios da
dominação dele, ele precisava que acreditasse nisso para se sentir
fraca e dependente, então não faça isso, não se renda a ele assim,
você fez bem em ir embora e cuidar da sua vida.
— Acho que sim.
— Fala com a Lolla, ela viveu coisas parecidas, pode
explicar.
— Ela faz isso sempre – conto a ele, depois me dou conta
que é tarde e que eu preciso ir. Namorando ou não, tenho que me
impor limites. – Guy, acho melhor eu ir para casa.
— É, talvez seja, mesmo querendo que fique. Vejo você
amanhã?
— Quer?
— Se me lembro bem, é minha namorada, acho que devia
vir jantar aqui em casa oficialmente, para me dar a chance de
apresentá-la aos meus pais. Quem sabe traz a Lolla e o Jay?
— Vou morrer de vergonha! – Eu nem sei como dizer a
Lolla e Jay. – Melhor não. Acho que podemos contar sem fazer um
jantar, porque é bem estranho, parece... formal, nem tenho roupa
para um evento desse aqui na sua casa.
— Está aí sua primeira vantagem em namorar um cego.
— Não tem graça, Guy! – Ele ri.
— Ah! Não, não seja como todos, ria comigo, gosto de
brincar com a minha condição. Me empodera. É assim que domino
tudo isso.
— Não prometo nada – digo a ele pensando que acho que
nunca vou conseguir brincar e rir disso, só mesmo o Jimmy parece
capaz de tal coisa.
Fico de pé e ele se levanta comigo, é hora de ir, não quero,
mas preciso, por mim amanhecia sentada ao seu lado, ouvindo
música baixinho e conversando com ele.
— Peggy Sue está chegando da Lua de Mel, vamos
esperar e convidamos ela também para o jantar, quem sabe
armamos o encontro do Jimmy e da Penny Lane?
— Fiquei amiga dela, acho que ela é bem legal, talvez ela
me ache uma boba, mas é sempre gentil comigo e me fez
companhia esses dias, eu sei que ela quer o Jimmy de volta, mas
acho que ela não sabe direito como.
— Dois cabeças-duras, aposto que basta um encontro, eles
têm química. Quando ficarem frente a frente vai acontecer.
— É bom, ela foi ao Drunks com o James uns dias atrás,
achou ele um cara legal, disse que não dava para terem nada, mas
ele disse que ficava feliz com a amizade dela, achei bem esperto da
parte dele.
— Olha minha namorada toda entendida do jogo do amor –
ele diz me puxando para seus braços. – Sacou que ele quer
conquistá-la aos poucos?
— Sim – afirmo envolvendo seu pescoço.
— Primeiro beijo de boa noite – ele avisa antes de me
beijar longamente, um beijo tão carinhoso que meu coração parece
ficar aninhado e protegido.
— Vamos descer Guy, é tarde.
Evitamos barulho pelo corredor, vejo a luz de uma televisão
pela fresta de uma porta, escuto um burburinho, deve ser seus pais
e a irmã ainda assistindo televisão, ao menos não é assim tão tarde.
Na sala, ele ainda segura minha mão e me puxa para mais
um beijo, eu podia beijá-lo para sempre, não tinha ideia de que seria
assim tão bom, faz meu coração descompassar, mexe com minhas
emoções de tantos modos, beijar é muito bom.
— Segundo beijo de boa noite – ele diz quando voltamos à
caminhar e quando chegamos ao portão da mansão, depois de
atravessar o jardim de modo lento eu sinto a vida pulsar e as
esperanças me preencherem a alma, acredito que posso construir
uma história, desenhar um novo caminho e ser feliz para sempre.
Acho que gostar de alguém é assim, faz a gente mais forte,
corajoso, cheio de esperança.
— Terceiro e último beijo de boa noite, tem que ser bem
especial – ele diz quando me envolve, as vezes fico em dúvida se
ele realmente não enxerga, está sempre tão bem localizado, parece
atento a cada som, eu não sei bem como ele faz, mas sabe
exatamente onde estou e quando sua mão me envolve a cintura, é
uma sensação diferente, parece que meu corpo se arrepia todo só
de sentir o dele, seu abraço e sua boca cobrindo a minha, tudo
parece me causar uma onda de emoções novas e sei o nome disso
e não pensei que sentiria assim tão rápido. Eu desejo mais do que
beijos, meu corpo deseja.
Quando nos afastamos estou meio tonta, é divertido e pisco
algumas vezes me obrigando voltar à realidade.
— Te vejo às 7h? – ele questiona e acho que vou morrer de
saudade até lá.
— Sim.
— Marcamos o jantar para o fim de semana, o que acha?
— Você fala com a sua mãe e depois combinamos. – Ainda
não sei nem o que os pais dele vão achar do namoro, talvez não
gostem nada disso, ou podem gostar, Mathieu disse que não se
meteria e que só queria o filho feliz, eu quero o mesmo.
— Ela vai adorar, vai querer trazer todos os amigos e dar
uma festa, mas acho que... não é momento de festa. – Guy acaba
de sentir a falta que Lumière faz a ele, dá para perceber sua dor
mudar totalmente sua postura.
— Sim, não é tempo de festa. – Vou até ele e beijo seus
lábios, beijo roubado, beijo rápido e divertido.
— Roubando beijos!
— E fugindo. Até amanhã, Guy! – Corro para longe e ainda
o escuto gritar um boa noite e cuidado, meu sorriso não deixa meus
lábios até estar trancando a porta do lado de dentro, quando me
volto, Lolla e Jay estão abraçados no sofá, assitindo algum filme
tenso, Lolla está roendo a unha dele, porque ela jamais roeria suas
unhas incríveis.
— Pausa, meu amor. – Ela pede e ele passa a mão na
calça antes de pegar o controle, faz uma careta divertida que me
obriga a voltar a sorrir, então ganho os dois pares de olhos. – Pode
se sentar e começar a falar. Como oficial espalhadora de notícias de
Horses Valley tenho o direito de ser a primeira a saber.
Eu obedeço sentando-me na poltrona, melhor contar logo e
descobrir de uma vez o que eles acham disso.
— O Guy está melhor, menos triste e... e... nós... – Mordo o
lábio, os dois estão com cara de riso, eu sou muito boba, aposto que
não vão pensar nada demais. – Estamos namorando. Ele pediu e eu
aceitei, nos beijamos, muitas vezes – depois que digo me
arrependo, namoro inclui beijos, eu não precisava falar isso.
— Gosto dela, aprende Jay. É assim que se dá
informações, caprichando nos detalhes – Lolla brinca trazendo alívio
à conversa. – Está feliz? – Balanço a cabeça afirmando. – Que bom,
isso é o que importa.
— Eu sei que tenho que encontrar trabalho e um lugar, não
vou ficar com a cabeça no Guy e esquecer o resto.
— Devia. – Jay dá de ombros. – É jovem, acaba de viver
uma experiência difícil, dedique-se um pouco ao coração Emily,
ninguém espera que encontre nada assim rápido. Ainda nem
terminou o curso.
— O Jay está certo. Quero que você se preocupe com seu
coração, quando ele estiver de novo feliz então vai surgir algo que
realmente goste de fazer.
— Eu sonho em trabalhar logo, talvez pudesse sair daqui e
vocês voltariam a ter liberdade.
— Não atrapalha, Emily, entenda isso – Lolla suspira. – É
bom ter você conosco e me faz sorrir, me faz companhia, aprendo
com você.
— Comigo?
— Aquela torta de legumes que você fez. Foi um grande
aprendizado, não foi, Jay?
— Ah! Foi. Você é boa nisso, muito boa e nós somos bons
em comer – ele brinca e fico de pé pronta para deixá-los.
— Já? Não quer contar mais um pouco? – Lolla diz
apenas na provocação e balanço a cabeça rápido negando. – Estou
feliz, você é uma garota jovem e livre, então seja feliz e se quiser
conversar, estou sempre aqui.
— Obrigada, Lolla. Você tem sido uma ótima amiga.
O casal volta para o filme e eu para o mundo dos sonhos, é
assim no banho e depois na cama, enrolada nas cobertas sonhando
com os beijos do Guy até pegar no sono.
O dia é tão demorado, me distraio um pouco na aula, mas
não é o bastante para me fazer esquecer Guy.
Depois das 5h, Penny bate à porta, é tão bom ter para quem
contar sobre tudo que aconteceu que quase a abraço de tão feliz
por recebê-la.
— Que sorriso! – ela diz enquanto eu a puxo para dentro e
nos acomodamos no sofá.
— Ele me beijou! – Agora sou eu a sorrir feito uma boba. –
O problema é que eu não consigo parar de sorrir.
— Isso foi um grande passo.
— Tem um ainda maior.
— Transaram?
— Não! – Fico até meio chocada, eu acho que vai
acontecer e acho que quero que aconteça, mas não assim rápido, já
no primeiro dia juntos.
— Não seria nada demais. – Ela ri do meu rubor.
— Estamos namorando. Eu vou hoje à noite na casa dele,
acredita que já estou morrendo de saudade?
— Claro que acredito, começo de namoro é sempre assim
– ela quase suspira e posso ver que mergulha em suas emoções.
Espero que ela e Jimmy se entendam logo. – Estou feliz, Emily,
você merece.
— Eu não sei bem como vai ser de agora em diante. Nunca
namorei.
— Vocês ficam juntos todo tempo possível e no resto do
tempo ficam querendo ficar juntos – ela me conta. – Era assim com
o Jimmy, foi assim até o último dia.
— Queria que voltasse a namorar com ele, e seríamos dois
casais.
— Não é tão simples. – Seu riso se desfaz, os olhos
entristecem um pouco. Isso não é certo. – James foi tão legal, por
que não posso simplesmente me apaixonar por outro cara?
— Não sei.
— Seria mais simples e o Jimmy bem que merecia isso. Me
ignorar como ele está fazendo é péssimo. Estou com raiva dele,
muita raiva.
— Ele foi muito atencioso com o Lumière e foi ele que fez
todo trabalho de enterrar. – Ela faz bico.
— Vê o que ele faz comigo? A raiva já passou e já quero...
vê-lo, falar com ele, esmagar aquele nariz. – Ela é um carrossel de
emoções que me faz rir, mesmo eu sabendo que não deveria, para
ela é bem sério.
— Você é bem corajosa. Devia ir até ele.
— Estou a um triz de fazer isso. Amanhã a Peggy chega,
quem sabe esse encontro acontece.
— Estou nervosa de conhecer o casal – conto a Penny que
junta as sobrancelhas meio sem entender. – Penny, é a Peggy Sue
Sanders e o Kyler Allen. Astros, o mundo todo os conhece!
Ela tem uma explosão de riso, fico até constrangida, mas
logo Penny se controla.
— Desculpe, é que para mim e todos aqui do Vale é só a
Peggy, a garotinha da família Sanders, da farmácia, é só... a minha
amiga do colégio.
— Para mim uma estrela – explico.
— Vai se acostumar. – Penny abre a bolsa. – Vim na
verdade te trazer isso. – Ela me entrega um celular em uma
caixinha, fico de boca aberta.
— Penny que lindo. Parece novo!
— Usei só uns meses, ele é muito bom. Está pronto para
usar.
— É um presente? – Ela balança a cabeça afirmando. –
Obrigada.
— Bobagem, estava perdido em uma gaveta e agora pode
falar com seu namorado o dia todo. – Ela pisca me fazendo rir.
— Acho que só vou usar para isso.
— Que nada, também vou ligar de vez em quando. – Penny
fica de pé. – Bem, eu só vim trazer isso, tenho uns trabalhos para
corrigir, preciso preparar aula da semana, muita coisa para fazer.
Levo Penny à porta animada e grata, a minha vida começa
a ganhar uma identidade, parece que finalmente estou descobrindo
quem eu sou e como posso ser feliz.
Penso no meu pai, nessa confusão que fica em minha
mente a cada vez que algo dá certo em minha vida, a culpa por tê-lo
deixado e a felicidade por estar encontrando um caminho.
Olho para o aparelho feliz e disposta a navegar um pouco
nele antes de ir encontrar o meu namorado. Eu tenho um namorado
e amo isso.
Capítulo 19
Guy

— O bobalhão está namorando! – Coline cantarola


enquanto pula no meu pescoço e me beija a bochecha. – Amo a sua
namorada linda!
— Ela é mesmo linda! – concordo com Coline. – Não é para
ficar no meu pé quando ela chegar.
— Que ciumento! – Ela ri. – Guy, a Emily vai com a gente
para Paris? Quando a gente for em férias?
— Espero que sim. Vou cuidar disso. Papai, acha que
conseguimos tudo que é preciso para ela ficar com a gente em Paris
nas férias?
— Vamos cuidar disso – ele diz parecendo distraindo,
escuto folhas de papel em sua mão.
— Está trabalhando?
— Só terminando de ler um documento, não saia daí que
quero falar com você.
— Tudo bem – respondo um tanto curioso.
— Coline, vem ajudar a mamãe! – minha mãe grita da
cozinha.
— É tão triste não ter o Lumi, ele adorava ficar atrás de uns
petisquinhos na cozinha. – A voz de Coline soa tão triste que me
machuca. Tem uma dorzinha em mim, uma que me acompanha e
rouba um pouco da minha felicidade, um buraco que me lembra o
tempo todo que falta algo. É assim a vida, sempre falta algo e não
se pode deixar essas pequenas dores vencerem.
— Coline!
— Já vou, mamãe! – Coline deixa meu colo. – Que chata –
sussurra me fazendo rir.
— Pronto! – meu pai diz enquanto escuto o barulho das
folhas. – Então, Guy. Eu pensei em dar uma ajuda para a sua
namorada. – Sorrio só de ouvir. – Todo bobo!
— Um pouco – admito. – Que ajuda?
— O Vale não tem muitas oportunidades de trabalho e acho
que ela não deve querer ir para Dallas em busca de trabalho, então
eu pensei em contratá-la como assistente.
— Mas você nunca teve um assistente aqui em todos esses
anos.
— Porque eu realmente não preciso de um – ele explica. –
Mas claro que sempre tem trabalho a fazer e ela podia me ajudar,
ajeito um espaço na sua sala de estudos, ela vem meio período,
toda manhã quem sabe, pago um salário razoável, talvez seja bom
para ela.
— Seria perfeito para ela. Seguro, importante para ela se
sentir útil.
— Mas e para você, como seria?
— Unir o útil ao agradável – admito. – Gosto de pensar nela
por perto. Também fico feliz de a Emily ter uma chance, ela se sente
mal de viver na casa do Jay e da Lolla, como se estivesse
incomodando o casal.
— Ótimo, então vou falar com ela essa noite no jantar, ela
pode começar amanhã.
— Obrigado, papai. Vai fazer toda diferença para ela. Emily
é sozinha, ela ainda vive com a culpa pelo distanciamento do pai.
— Sempre admiro Lolla e Jay, o que eles fazem é
impressionante.
— Mas com a Emily é diferente, porque não é uma
temporada e ela não é uma criança, ela vai começar a própria vida.
Precisa de um lugar para morar, precisa de um trabalho.
— Vou pagar um valor decente, filho, para ela ter essa
chance, mas...
Ele se cala e fico à espera, sei que ele não precisa é só
temporário. Talvez seja isso que ele esteja tentando encontrar
palavras para me dizer.
— Não é para sempre, eu sei.
— Não era bem isso. Emily precisa descobrir o que a faz
feliz, não acha? Uma vida aprisionada a um trabalho que odeia, uma
menina tão jovem.
— É, papai, eu sei, mas acho que ela precisa começar e
tenho certeza de que vai aceitar e ficar muito feliz com o trabalho.
— Sim, mas quando achar que ela encontrou algo que a
faça feliz, me conte.
— Pode deixar – suspiro sorrindo, a voz dela toma meus
ouvidos feito melodia de Bach, me arrebata de tantos modos, ela
mexe com todo tipo de emoção. Penso nela triste e isso me atinge,
penso nela feliz e também me atinge, quando ri é como primavera,
quando chora é o inverno, quando me beija o verão escaldante dos
trópicos.
— Ah, o amor! – Meu pai me provoca.
— Não começa, pai, já chega a Coline que com toda certeza
vai me envergonhar em público.
— Claro que vai, por que acha que tivemos outro filho?
— Muito engraçado – reclamo no instante em que meu
telefone toca.
— Estou de volta! – Peggy Sue grita ao telefone. – Paris é
linda, toda Europa é, Viena. Meu Deus! Guy, tomamos chocolate
quente em um bistrô em Viena, eu nem sei o que dizer, fomos
reconhecidos em Veneza, quer dizer fomos reconhecidos em muitos
lugares, mas em Veneza, um grupo de turistas nos cercou pedindo
autógrafos e fiquei para morrer de tanta alegria.
— Oi, Peggy Sue! – Rio de seu desespero. – Que bom que
está bem e de volta. Kyler também gostou?
— Muito. Somos muito felizes. Estamos até decididos a ter
um filho, daqui cinco anos.
— Puxa! Acho que vai ser incrível. Está na sua casa?
— Sim. Minha sogra veio mais cedo e arrumou tudo. Adoro
dizer minha sogra, estou tão exultante que me sinto meio idiota.
— É porque você está meio idiota! – Seu riso tem melodia e
me diverte pensar sobre isso.
— Bom, minha sogra arrumou tudo e até deixou o jantar
pronto, meus pais estão vindo e vamos fazer um jantar de família.
Quer vir?
— Desculpe, Peggy, sabe que eu te amo, mas a minha
namorada está vindo jantar aqui, é tipo um primeiro jantar em família
com ela.
— Ah... Meu... Deus! Disse namorada?
— Disse!
— Ky! O Guy está namorando! Conte tudo, como ela é,
quantos anos, o que... como...
— Amanhã conto tudo, o que acha?
— Pode ser, vem almoçar e traz a garota, vamos começar a
trabalhar no nosso espetáculo, não tenho muito tempo aqui. Aceitei
alguns compromissos em Nova York para duas semanas. É todo
tempo que tem.
— Uma estrela é uma estrela – provoco Peggy Sue, mas
ela simplesmente ama tudo isso. Nasceu para o show. – Te vejo
amanhã.
— Falta um bom restaurante nesse Vale, não acha?
Podíamos nos encontrar em um restaurante, almoçar e depois
seguir para sua casa e trabalhar a tarde toda no seu estúdio.
— Vem para cá então, e damos um jeito, eu, você, a Emily
e o Ky cozinhamos.
— Ótimo. Pode ser. Até amanhã, tanta coisa para contar.
Saudades. O Ky mandou um beijo.
— Outro para ele, mas avisa que agora eu sou
comprometido.
— Ele vai ficar com o coração partido – ela brinca antes de
desligar.
— Peggy Sue está de volta ao Vale. Acha que a Emily vai
sentir ciúme?
— Filho, é bom que não alimente isso, talvez ela sinta um
pouco, mas ela vai entender que a Peggy é quase como sua irmã
mais velha.
— Foi o que eu disse a ela. Amanhã nos reunimos todos
aqui para trabalhar.
— Ótimo.
— Agora vou dar uma volta no jardim e esperar a Emily. –
Meu coração se aperta, Lumière correria na minha frente, pronto
para brincar e cheirar o jardim.
Eu sinto sua aproximação, uma leve brisa parece trazer seu
perfume ao mesmo tempo que escuto seus passos. “Onde estiver
seu tesouro, está também seu coração”. A frase me vem a mente,
como me sinalizasse que a cada passo de Emily em minha direção,
é meu coração voltando para casa.
Temo pensar mais profundamente sobre isso, parece tão
cedo, mas é tão forte e tão importante o que sentimos.
— Oi! – digo quando ela chega mais perto.
— Caprichei no perfume – ela brinca me fazendo sorrir. –
Queria que sentisse que estou chegando.
— Deu certo. – Estendo a mão e ela prende seus dedos
aos meus. Puxo com delicadeza Emily para meus braços e seus
lábios encontram os meus em um beijo longo e cheio de saudade.
Um longo dia sem ela.
— Senti saudade de você – ela me conta quando meus
dedos tocam seu rosto e sinto os traços cheios de leveza e o dobrar
dos lábios que denunciam um sorriso.
— Pensei em você o dia todo. – Ela toca meus lábios com
os seus.
— Ganhei um celular da Penny. Estou feliz, posso mandar
mensagens de voz para você o dia todo.
— Vamos ficar insuportáveis. – Rimos juntos da ideia, mas
o fato é que eu não consigo nem pensar em ficar longe dela.
— Só um pouquinho. Posso contar como estou vestida?
— Parece ótima ideia. – Sorrio pensando sobre isso. Talvez
eu goste que ela me diga como está vestida, melhor seria percorrer
o tecido com minhas próprias mãos e descobrir.
— Achei um vestido lindo perdido na mala, mamãe
reformou para mim há uns meses, pouco antes dela ficar realmente
doente, ele tem mangas bufantes e cintura marcada, é bem rodado
e azul com detalhes em branco.
— Está linda! – digo usando a mão para fazê-la girar em
torno de si mesma e depois cair de volta em meus braços. Ela
envolve meu pescoço e nos beijamos, acho que não consigo parar
de beijá-la.
— Eles estão se beijando aqui fora, mamãe! – Coline grita
a plenos pulmões. Nós nos afastamos e escuto o riso de Emily
enquanto domo a vontade de cortar a língua da pequena
intrometida. – Mamãe está procurando vocês, vamos jantar.
— Oi, Coline! – Emily a cumprimenta e escuto seus
passinhos apressados enquanto Emily deixa meus braços e se
move. – Você tem um ótimo abraço.
— Minha mãe também acha. Vamos entrar?
— Claro. – Emily procura minha mão e sinto um leve
titubear quando dou uns passos.
— Eles estão felizes, está tudo bem – aviso sabendo que
ela está morta de vergonha dos meus pais. Eu é que deveria estar,
nem imagino as coisas absurdas que ela vai ouvir e aposto que
termina a noite folheando algum álbum de fotos ou pior, assistindo a
vídeos antigos e constrangedores da minha infância.
Meus pais estão a nossa espera na sala. Aposto que nem
conseguem esconder os rostos de satisfação.
— Emily, muito bem-vinda! – meu pai diz de modo pouco
discreto, disse meia dúzia de vezes para agirem naturalmente.
— Você está linda, meu anjo. Estamos muito felizes em
recebê-la.
— Mãe, ela vem quase todos os dias – resmungo sabendo
que Emily está nervosa.
— Não como namorada – minha mãe rebate. – Sente-se,
querem... beber alguma coisa?
— Obrigada, Mandy eu não bebo.
— Suco de uva! – Meu pai emenda. – É o preferido do Guy.
Em taças, suco de uva em taças como se fossem adultos, não... não
quis dizer que não são.
— Ah, meu Deus, me leva – resmungo prestes a derreter
de vergonha.
Emily aperta minha mão em sinal de querer ir comigo,
congelo um sorriso no rosto.
— Estavam se beijando. Maior beijão de língua, eu vi a
língua do Guy. – Coline completa o desastre do primeiro jantar
oficial. Aperto firme a mão de Emily com medo que ela fuja e me
deixe aqui com eles.
— Estou indo buscar o suco.
— E nós vamos nos sentar aqui e fingir um desmaio – digo
puxando Emily para o sofá.
— Estamos felizes. Temos direito de comemorar – meu pai
explica.
— Claro – ela responde em um fio de voz.
Depois de um brinde a uma noite bonita, o que jamais
brindamos antes, muito menos com taças cheias de suco de uva,
mas são meus pais e eu os amo, apesar desse momento
constrangedor.
O tilintar das taças, mesmo em um momento desses que
constrange, me emociona, por fim, quero comemorar, Emily chegou
tão suave, não senti acontecer.
— Vamos jantar? – Mamãe convida depois de uns goles no
suco. Emily se ergue ao meu lado, seguimos para sala de jantar e
me acomodo na mesma cadeira de toda uma vida.
— A decoração está toda em verde, sua mãe colocou
folhagens em um vaso lindo, mas não no centro da mesa, está na
lateral, os pratos também são verdes, no tom das folhas em uma
toalha de renda branca. – Emily descreve. – A comida já está
servida. Purê de cenoura, cebolas caramelizadas, costela assada,
que imagino estar derretendo na boca com molho de mel e
mostarda, a salada passa por todos os tons de verde, do mais
escuro ao mais claro, folhas crocantes, pequenos tomates e
torradinhas se misturam na travessa, está lindo.
— Mandy, você perdeu o emprego – meu pai brinca.
— Parece que ela faz isso muito melhor do que eu –
mamãe concorda e prendo minha mão a de Emily sobre a mesa.
Levo aos lábios, beijo com carinho imaginando o rosto suave se
enrubescer com o toque.
Começamos o ritual, mamãe começa a servir a todos, já sei
que as travessas estão pesadas demais para que passe de mão em
mão, nesses casos, minha mãe nos serve e tudo isso é pensado
para não me constranger.
— Sem salada, mamãe. – Coline tenta. Aposto uma mão
como será ignorada, eu tentei algumas vezes e ela nunca me deixou
livre da salada.
Depois de todos servidos, começamos a comer.
— Peggy Sue já chegou, esqueci de contar, mãe.
— Ah, que bom – minha mãe responde.
— Amanhã ela vem aqui, Emily, vem te conhecer, ficou
muito animada quando contei que estamos namorando.
— Contou a ela?
— Sim, somos como irmãos, então é claro que contei, só
não contei antes por que ela estava em Lua de Mel, vai conhecer o
Ky também, aposto que vai gostar muito dos dois.
— Sim, ele é lindo. – Coline continua. Pelo riso da mamãe,
meu pai não achou muito divertido. – Holly acha. Ela me disse que
eles fazem um casal maravilhoso, vou contar que agora o casal
mais bonito da cidade todinha é o meu irmão e a Emily.
— Por que os meus filhos sempre se aproximam dos mais
velhos? É como ver o Guy contando todas as fofocas de casais da
cidade – meu pai brinca.
— Emily, ele era um pequeno intrometido, sabia tudo da
vida amorosa de todo mundo, passava o dia atrás da Peggy Sue e
suas amigas, elas só falavam de rapazes e casais, então ele
entendia tudo da vida amorosa da cidade – minha mãe explica.
— Pense nisso como algo bom, aprendi como me
comportar com as meninas, serei um ótimo namorado e vou lutar
pelo título de melhor par da cidade.
— Ei, não tente – meu pai responde. – Peggy Sue nos deu
esse título há anos.
— Novos tempos, papai – devolvo a brincadeira.
— Acho que o Shane e a Gwen são o casal mais bonito,
por enquanto, mas agora têm o Guy e a Emily e tenho que achar
meu irmão o mais bonito.
— Ache isso enquanto come a alface – mamãe insiste.
— Não faz careta, bobalhona – implico com Coline.
— Mamãe! Fala para ele parar, eu não tô fazendo careta,
só um pouco de careta.
Rimos juntos, como em todas as vezes que nos reunimos,
porque somos felizes juntos, porque a vida nos presenteou com a
joia que é minha irmã, com um lindo jardim e o amor dos meus pais,
agora Emily vem completar o pacote de felicidade e eu seria um tolo
se não pudesse reconhecer a beleza que é minha vida.
— Sobremesa? – mamãe pergunta ao fim do jantar. – Não
tive tempo de pensar em nada, então comprei o bolo de laranja da
Lily e tem calda extra, expliquei que era para receber minha nora.
— Nem sei o que dizer. – Emily está com a voz trêmula,
sinto que está feliz, ela procura minha mão, aperto com delicadeza
seus dedos entre os meus, que nossa felicidade a contagie e que
viver perto de nós seja um presente para ela como é para mim.
— Me ajude com a louça, vamos levar essa e trazer o bolo
– mamãe pede a ela e isso é bom, faz com que se sinta em casa.
— Agora mesmo.
— Eu também ajudo. – Papai se oferece e em minutos,
estamos comendo bolo de laranja.
— Emily, estive pensando. – Meu pai começa. – Está
fazendo um curso de administração, não é?
— Sim, é só um curso básico, coisas simples, não é nada
grande.
— Estive pensando se aceitaria uma vaga como minha
assistente. – Um leve silêncio, mas consigo sentir o ambiente. A
atmosfera muda, dá para notar sua ansiedade e alegria. – Meio
período é tudo que eu preciso, pode ser pela manhã, quem sabe
das 9h da manhã a 1h da tarde? Aceitaria?
— Isso é mesmo sério? Quer dizer, é porque precisa ou
apenas porque namoro o Guy, não comecei a namorar com ele
pensando...
— Sabemos disso, Emily. – Minha mãe se apressa.
— Preciso de alguém que cuide da agenda, envie e-mails,
documentos para a matriz, prepare minhas videoconferências, uma
vez por mês passo uns três ou quatro dias em Dallas, seria bom
alguém aqui cuidando das coisas. Aceita?
— Se eu aceito? Eu nem acredito, é maravilhoso. Vou
receber um salário? – Meu pai ri, mamãe o acompanha. – Desculpe
perguntar, mas eu...
— Um bom salário, é claro.
— Quando eu começo? Guy, você ouviu isso?
— Sim. É bem legal – digo tentando parecer muito animado
para que ela não sinta qualquer constrangimento em aceitar. –
Tenho certeza de que vai achar o trabalho fácil.
— Obrigada, Mathieu, prometo que não vou decepcionar.
— Tenho certeza de que não – ele garante.
— Esse deve ser o melhor dia da minha vida. – E talvez
seja o meu também, Emily está aqui e eu não me lembro de sentir o
que sinto por ela, não me lembro de ter tanta fé em uma história
como tenho na nossa. Ainda não quero dizer que é amor, mas é ele
que está chegando e em algum momento vai invadir meu coração e
nunca mais me deixar.
Capítulo 20
Emily

— Está tudo bem eu trabalhar para o seu pai? – pergunto


enquanto ouvimos música abraçados e solitários na sala íntima. O
jantar foi bem tranquilo e terminou com um convite maravilhoso que
eu nem sei como agradecer, acho que a Lolla vai ficar muito feliz.
Uma sorte ter começado aquele curso e principalmente
deixar o Mathieu saber que estou estudando, acho que isso o fez
me convidar para o trabalho. Assistente de um homem importante
como ele deve ser muito bom e vou me esforçar para não fazer
nenhuma bobagem.
— Claro. Vou gostar de ter você aqui. – Corro os dedos
pelo seu rosto.
— Eu não posso ficar namorando na hora do trabalho,
muito espertinho. – Beijo Guy e me acomodo em seu peito.
— Destruiu meus sonhos. – Seus dedos brincam com os
fios dos meus cabelos. Rio de seu drama. Fecho os olhos para
aproveitar seu carinho, mas não consigo parar de pensar em meu
futuro trabalho.
— O que acha que eu visto?
— Nada demais, vai trabalhar em casa, Emy.
— Emy... eu gosto. – Sorrio pensando que ninguém, nem
mesmo meus pais me chamaram assim. – Se a Peggy Sue não
gostar de mim?
— Por que ela não gostaria de você?
— Sei lá, Guy, ela é famosa e viajou o mundo, eu não
conheço nada, acho que nem sei do que poderíamos conversar.
— Peggy Sue é só uma garota do Vale que foi morar longe.
Ela é como a Penny Lane, como eu. Também sou artista. Não me
achava famoso o bastante? – ele me provoca e me abraço mais a
ele. Depois de lavarmos a louça juntos, viemos namorar e ouvir
música, mas está começando a ficar tarde e quero contar a Lolla e
me preparar para o trabalho. Dá pena deixar esse cantinho. Queria
amanhecer assim, abraçada a ele.
— Acho sim, famoso, lindo e muito especial.
— Vai me deixar vaidoso. – Ele devia ser, porque tem muito
talento e a vaidade nem sempre é ruim. Beijo seus lábios e suspiro
pensando que não dá mais para ficar, tenho que ir embora. –
Primeiro beijo de boa noite – ele diz quando ficamos de pé.
A casa está silenciosa quando atravessamos os cômodos
em direção ao jardim, ele me puxa pela mão quando chegamos ao
jardim e nos beijamos mais uma vez, todo beijo é uma nova
sensação no meu coração, fico sempre atordoada, feliz como se
fosse uma criança em noite de Natal.
— Segundo beijo de boa noite – ele brinca tocando meus
cabelos, vou ficar com tanta saudade, estou parecendo mesmo uma
boba de tão apaixonada.
— Me liga para dar boa noite?
— Todos os dias a partir de hoje – ele responde enquanto
caminhamos de mãos dadas até o portão, me aperta o coração não
ter Lumière a nos seguir. – Último beijo de boa noite. – Guy anuncia
no portão, é sempre o mais longo beijo, aquele que vai guardar
nossa saudade. Quando me afasto estou com o coração
sobressaltado e uma sensação especial a me percorrer o corpo,
acho que não vai demorar muito para nosso namoro avançar e eu
não acho que vou reclamar disso. Ele não pode ver meu rosto arder
de vergonha dos meus pensamentos e isso é bom.
— Tchau! – digo me soltando dele e apressando o passo
para não acabar desistindo.
Jay está trabalhando na mesa da cozinha quando chego,
Lolla ouve música na sala, ela me sorri generosa quando entro, eu
me sento perto dela com um sorriso idiota no rosto que não me
deixa mais.
— Mathieu me convidou para trabalhar com ele.
— Ele é mesmo muito generoso, Mandy tinha me contado,
espero que dê tudo certo, Emily. E o Guy, o que achou?
— Ficou feliz por mim. – Ela toca meus cabelos.
— Seu único defeito é ser assim linda do jeito que é. Fico
olhando e não tem um nada para melhorar, mais garotas como você
e eu estaria falida.
— Que nada – digo envergonhada. – Lolla, obrigada, você
tem mudado minha vida.
— Eu só estou ajudando, Emily, quem tem mudado sua
vida é você mesma.
— Obrigada mesmo assim. – Beijo seu rosto antes de
correr para o quarto. Vai ser emocionante começar minha vida.
Um trabalho, salário, namorado, talvez uma casinha minha,
tanta coisa boa acontecendo e ainda sobra aquela culpa apertando
meu coração, meu pai. Ele não telefonou novamente, mas sei que
vai, ele vai jogar esse jogo comigo enquanto puder.
Guy me telefona antes de dormir e ficamos mais de uma
hora conversando, nunca pensei que teria tanto assunto com
alguém. Quando o celular desperta salto da cama animada e com
medo. Hoje é um dia importante, vou ter meu primeiro dia de
trabalho e conhecer Peggy Sue e Kyler.
Não posso agir feito fã, nem posso ficar com ciúme do Guy,
eu não tenho ideia de como me comportar na frente dela.
Coloco minha melhor roupa, arrumo os cabelos um pouco,
uso um par de brincos e sapatos baixos. Lolla e Jay estão à mesa
do café da manhã quando me junto a eles.
— Bom dia! – Jay me sorri emocionado. – Está muito bonita
para o seu primeiro dia de trabalho.
— Obrigada.
— Minha mãe vai ficar muito feliz, Emily.
— Acho que sim, mas estou com medo de fazer uma
bobagem logo de cara.
— Mathieu é compreensivo e vai ensinar o serviço.
— Lolla, acha que namorar o Guy atrapalha?
— Por que atrapalharia?
— Ele pode não me mandar embora para não deixar o Guy
triste.
— Então isso não atrapalha, ajuda.
O riso de Lolla se espalha, Jay ri também, mas balança a
cabeça em negação, ele entende o que quero dizer.
— Emily está falando sobre ética, ela não quer trabalhar se
não merecer a chance.
— Então dê o melhor de si, meu anjo.
— Certeza de que vou fazer isso – digo finalmente me
sentando para o desjejum.
Quando chego à mansão, Mandy está saindo de mãos
dadas com Coline. Ela me sorri no jardim. Espera que caminhe até
elas sem desfazer o sorriso, eles são uma linda família.
— Bem-vinda. – Mandy me abraça. – Boa sorte hoje. Estou
indo levar a Coline na escola, depois vou passar no salão e visitar a
Harper, passar a manhã toda fora. Espero que fique bem.
— Sim. Eu vou ficar. – Curvo-me para beijar o rosto de
Coline. – Boa aula pequena. Divirta-se.
— Só um pouco, escola às vezes é um pouco chato – ela
suspira. – Queria ir na minha tia Harper também e no salão da tia
Lolla.
— Mas vai à escola, estudar e aprender cada dia mais.
Tchau, Emily, o Mathieu te espera no escritório.
Assisto as duas partirem e entro cruzando os dedos para
tudo correr bem. A casa está silenciosa, acho que Guy ainda não
acordou. Ele é um artista, tem outros horários.
— Com licença. – Mathieu ergue os olhos e me sorri gentil
e educado. Usa uma camisa azul clara de mangas longas, calça
social, um homem de negócios, estando em casa, é de se esperar
que se vestisse mais despojado, mas está muito bem composto
como se fosse ao escritório, usa até mesmo gravata e um terno
descansa nas costas da cadeira. – Bom dia, senhor Montpellier. –
Sinto que é a melhor maneira de chamá-lo em hora de trabalho.
— Bom dia, Emily. Não precisa me chamar assim, pode ser
apenas Mathieu. Deve estar se perguntando por que uso terno
mesmo em casa – Balanço a cabeça concordando e ele me sorri
mais amplamente. – Trabalho em casa, mas me reúno com gente do
mundo todo, então preciso estar apresentável.
— Entendo. Estou bem? Posso tentar me arrumar melhor.
— Está ótima. – Ele fica de pé e me indica as estantes. –
Aqui vai encontrar documentos que posso precisar, inclusive têm
semanas que juro a mim mesmo que vou organizá-los e nunca faço,
pode fazer isso, acho que é um bom começo, vou te ensinar a usar
meu e-mail e se conectar com o escritório em Chicago, basicamente
é isso, pequenas coisas que me tomam tempo, mas que não
chegam a ser muito empolgantes.
— Para mim serão. – Prometo a ele animada com a
chance.
— No mais, pode me perguntar e tirar dúvidas sobre tudo.
O que acha?
— Perfeito. – Ele sorri de novo.
— Vamos começar com a organização dos documentos? –
Balanço a cabeça concordando. – Ótimo, toda a parte inferior da
estante têm papeladas, coisas antigas e mais novas, tudo que tiver
mais de cinco anos quero que separe em uma pilha, depois olhamos
juntos o que pode ser descartado, o resto separe como achar
melhor para ficar organizado e guarde. Pode fazer isso.
— Sim. – Sorrio achando que é simples e divertido.
— Pode usar um pedaço da minha mesa, vou ficar aqui
lendo uns contratos e resolvendo umas coisas, me chame se
precisar.
— Posso ficar aqui no chão?
— Com 18 anos a vida é muito mais simples – ele brinca. –
Pode sim, eu é que ficaria uma semana com dor nas costas.
Mathieu volta para a sua mesa e me sento sobre o tapete,
não sei bem o que vou encontrar, mas por uma hora vou me
ajeitando, encontrando papéis, descobrindo do que se tratam,
separando pelas datas.
Só o incomodo uma vez, de resto, fico me virando sozinha,
escuto os passos de Guy e meu coração se acelera quando me dou
conta que conheço seu andar.
— Bom dia – ele diz chegando à porta do escritório.
— Oi filho, sua namorada está aqui.
— Eu sei, segui o perfume. – Ele é tão carinhoso e
romântico, eu estou tão feliz com ele, acho que nada mais pode me
fazer feliz.
— Dez minutos de intervalo para um café e um beijo no
namorado, Emily – Mathieu diz risonho enquanto meu rosto queima
de vergonha, mas não me faço de boba, deixo meu lugar no chão
apressada e vou encontrar Guy.
— Bom dia – ele diz quando passo meus braços por seu
pescoço e ele envolve minha cintura. Trocamos um beijo rápido. –
Toma um café comigo?
— Dez minutos – digo apressada e seguimos os dois para
longe do escritório.
— Como está indo?
— Muito bem, seu pai é tão maravilhoso. – Ele sorri quando
chegamos à cozinha e tem uma mesa posta para ele.
— Uma melodia me surgiu na mente na hora de dormir, tão
intensa que tive que ir para o estúdio, me consumiu toda a noite.
— Passou a noite acordado?
— Sim, quando algo assim acontece é impossível resistir.
— Um artista – digo orgulhosa dele. – Peggy Sue vem
mesmo aqui?
— Sim, vamos cozinhar juntos, tudo bem?
— Sério? – Isso sim me anima, deve ser das coisas que
mais gosto de fazer na vida. A melhor depois de ficar com Guy. –
Ajudo, eu mesma posso cozinhar.
— Sozinha não, todos juntos. – As pessoas realmente
acham que fazer isso é um tipo de problema, estão sempre tentando
me impedir, é tão bom estar em uma cozinha testando pratos,
depois assistindo as pessoas comerem e estão sempre achando
que isso é abusar de mim.
Deixo Guy em seu café da manhã e volto ao trabalho, no
meio da manhã, escuto o piano, essa é a casa mais especial que já
estive em toda minha vida, eu podia viver aqui com eles e seria
muito feliz. São todos gentis, amorosos, tem o Guy, que me faz feliz,
tem Coline que me faz sorrir e o piano que me expande o coração, é
como um pedacinho de céu perdido em uma cidade.
— Emily. Terminamos por hoje – Mathieu diz afastando a
cadeira e desligando o computador. Quase meio-dia, vou ter que
sair, encontrar a Mandy na casa da Harper e depois vamos até
Dallas, espero que se divirtam com Peggy e Kyler.
— Fui bem?
— Muito melhor do que imaginei, e muito rápida também,
pode ir mais devagar. Deixe essas coisas aí mesmo e continua
amanhã de onde parou.
— Está certo, obrigada. – Deixo sua sala, encontro Guy ao
piano, eu me acomodo ao seu lado, ele sorri e começa a única
melodia que sei tocar, imediatamente meus dedos o acompanham
ao piano.
— A quatro mãos é sempre melhor – ele brinca e me
encosto em seu ombro.
— Nunca fui tão feliz, Guy.
— Faço parte disso?
— É a razão.
Ele toca seus lábios nos meus, suspiro quando seus dedos
tocam meu rosto.
— Linda – ele diz carinhoso.
— Tchau, meninos – Mathieu diz nos deixando. – Voltamos
apenas a noite. Coline vai ficar com a Maggie, podem trabalhar
bastante e se divertir também. – Mathieu nos deixa sozinhos, meu
coração se acelera um pouco, fico querendo que Guy avance um
pouco, mas não sei bem como dizer, têm curiosidade e também
ansiedade, eu sinto coisas em seus braços, coisas que não quero
reprimir, ao mesmo tempo temo parecer uma garota atirada, meu
pai confundiu demais minha cabeça.
Suas mãos correm por meus braços, ele tem dedos
delicados, quando as mãos deixam meus braços e envolvem minha
cintura enquanto nos beijamos, meu coração descompassa, é isso
que ele me provoca, esse bater forte de coração, essa incerteza
misturada com esperança.
— Que lindos! – A voz nos afasta, fico surpresa ao notar de
pé na sala, linda e exuberante, Peggy Sue Sanders e Kyler Allen, o
casal que esteve nas grandes telas do cinema e nos palcos, que já
vi dando entrevistas e sendo fotografados em prêmios e festas.
Tudo que eles fazem é notícia e agora estão aqui, de pé e rindo
enquanto eu e Guy nos afastamos e eu estou corada demais para
reagir.
— Chegaram – Guy diz simplesmente.
— Na hora errada, pelo visto – Kyler brinca quando ficamos
os dois de pé, é um casal tão bonito e estão tão arrumados sem
parecer que se arrumaram, o perfume dos dois se espalha pelo
ambiente, Peggy Sue é a moça mais bonita que já vi na vida. Tinha
que ser uma estrela.
— Peggy Sue e Kyler, eu conheço vocês – digo um tanto
atrapalhada com Guy ao meu lado risonho.
— Pois nós também a conhecemos, é a namorada do Guy.
– Peggy se precipita para um abraço, aperto a mão de Kyler em
seguida e os dois parecem como eu, apenas pessoas comuns
enquanto cumprimentam Guy e logo depois Peggy corre os olhos
pela sala, vai até o piano e toca umas teclas cheia de melodia, ela é
mesmo perfeita, canta, dança, atua e toca piano.
— É uma bela casa – Kyler diz com a mão no ombro de
Guy.
— Tanta saudade, passei tantas horas aqui – Peggy diz
saudosa. – Eu e o Guy ao piano, ensaiando apresentações para a
festa da cidade. Bons momentos. – Seu olhar fica subitamente triste.
– Lumière. – Os olhos marejam e posso ver Guy entristecer, ele
sente falta dele o tempo todo e eu só queria ajudá-lo a vencer.
— Doeu muito, ainda dói um pouco, essa noite tive que
deixar a cama porque uma melodia me veio à mente, era sobre ele
e a luz que sempre foi em minha vida.
— Vai passar – Peggy diz afastando a tristeza. – Guy, eu e
o Ky estamos... eu nem sei dizer, esse projeto, é tão lindo, cada
canção, cada letra, todo o roteiro, você não é apenas um virtuoso,
você é um tipo de gênio.
— Peggy está certa, passamos boa parte da Lua de Mel
envolvidos nisso.
— Sério, Ky? Gastou tempo na sua Lua de Mel com o
musical? – Guy os provoca e o casal ri.
— Fome! – Peggy diz animada. – Não tem ninguém nesta
casa? Onde estão todos, e a Brenda?
— Ela está de férias e o resto por aí, em compromissos.
— Ótimo, vamos comer um sanduíche e trabalhar – Ky
convida e já me desanimo, ninguém nunca me dá chance de
cozinhar.
— Podem trabalhar um pouco na cozinha, enquanto
preparo o almoço, eu realmente amo cozinhar e se precisar de
ajuda conto com vocês – digo animada pela chance de usar a
melhor cozinha da cidade.
— Adoro sua namorada, Guy. – Peggy passa seu braço
pelo meu. – Vamos.
Levo uma hora cozinhando enquanto escuto as conversas
sobre o trabalho, melodia, letras, cenário.
— Os bailarinos serão todos de uma escola que estudamos
quando não tínhamos grana, era uma Associação, em um lugar
pobre, eles nos deram uma chance e vamos retribuir, atores
queremos pegar no curso do nosso primeiro professor, será um
espetáculo que conta a trajetória de um casal que luta por um lugar
ao sol e vamos usar pessoas nas mesmas condições que as
nossas, que sonham como um dia nós sonhamos.
A fala de uma verdadeira estrela, até me emociona.
Quando nos acomodamos para comer, Peggy e Kyler estão
impressionados com tudo que fiz em uma hora.
— Olha essa mesa, Ky? Não vimos nada parecido em toda
Europa. Adoro falar que estive na Europa. – Ela sorri para mim. – Se
soubesse quantos sonhos impossíveis eu tive, Emy.
— São os melhores sonhos. – Ky completa. – Aqueles que
achamos impossíveis.
— Qual seu sonho impossível, Emy? – Guy me pergunta
procurando minha mão para prender a sua sobre a mesa.
— Meu sonho impossível é cozinhar, queria ter um
restaurante bem pequenininho, com comida sempre fresca, serviria
só almoços, serviria comidas caseiras, sobremesas leves, saladas e
sopas, carnes de panela dessas que levam horas e teria uma
prateleira com geleias, compotas e doces para vender.
— Esse é seu sonho? – Guy parece surpreso. – Não sabia.
— Acho que eu também não – digo rindo. – Me ocorreu
agora, pareceu tão perfeito. – Dou de ombros. Guy, leva minha mão
aos lábios e beija carinhoso.
— Vai realizar esse sonho também, está cercada de gente
que realizou seus próprios sonhos. – Ele me sorri e continuamos a
comer e conversar sobre o espetáculo, eu posso imaginar como
será bonito, passo a tarde assistindo a eles ensaiarem no estúdio, a
voz do casal é absolutamente incrível e quando cantam juntos é
qualquer coisa de mágico.
— Estive pensando que você terá que ir a Nova York por
uns dias, Guy. Temos muito que coordenar. Vai ter que contratar a
orquestra e treinar os músicos, pensei que podia fazer ao menos a
estreia já que não acredito que ficaria toda a temporada.
— Não ficaria mesmo. Recusei uma turnê tem umas
semanas.
— Amo que ele é despojado. – Peggy ri.
— Quero investir na produção com vocês – ele avisa. – Vou
colocar uma parte do dinheiro, vamos dividir em três. O que acham?
— Que você é esperto, será uma megaprodução, vamos
ganhar dinheiro e prêmios e acabar no cinema.
— Está vendo, Emy? É isso, você está cercada de
sonhadores – Kyler brinca comigo e eu os admiro ainda mais.
— Guy, vem com a gente quando partirmos, fica ao menos
uma semana para dar start, depois volta quando estivermos mais
perto da estreia. – Peggy o convida e sinto que ele se preocupa,
mas não se nega.
— Ainda falta uns dias para partirem, vamos trabalhando,
até lá eu decido.
— Vamos ler a peça, aproveitar a Emy aqui – Peggy
pede. – Quero ouvir a opinião dela. – Guy se acomoda ao piano, os
dois pegam seus roteiros e eu me sento como se fosse a plateia.
Mesmo sendo tudo cru, sem muito treino, com erros aqui e
ali na melodia, letra e mesmo falas, o show é lindo e me emociona,
no final, estou aplaudindo enquanto lágrimas correm por meu rosto.
— Será um sucesso, é lindo e torci muito, do começo ao fim
– digo a eles ainda emocionada. Já não olho para eles como
estrelas, eles me parecem apenas pessoas e gosto disso, são como
o meu Guy, muito talento, porém cheios de humanidade.
— O idealizador não ganha nem um beijo? – ele diz me
convidando para seus braços e corro para ele, feliz e emocionada.
Sonhos podem se realizar, mesmo os impossíveis.
Capítulo 21
Guy

— Você não quer ir? – Emily me questiona percebendo


minha insegurança.
— Sem Lumière é complicado, sinto falta dele e desde que
ele se foi eu nunca mais saí. Me dá um pouco de medo.
— Entendo. – Seu tom é preocupado e carinhoso. Trago
Emy mais para perto de mim, a partida está próxima, se for, tenho
que marcar meu voo para amanhã.
Uma semana em Nova York para dar a partida nos
preparativos para nosso empreendimento, quero muito ir, quero
fazer parte disso desde os primeiros detalhes, mas não gosto de
ficar dependente e Lumi me dava a sensação de ser livre.
— Seu pai disse que iria com você. – Ela me lembra.
— Sim, eu sei, é que gosto de ser independente e ao
mesmo tempo, não quero tirar o meu pai da vida dele, toda vez que
o papai faz algo assim ele se culpa pela minha condição, ele venceu
muito da culpa que tinha, mas sempre sobra um pouco.
Ela se encolhe em meu abraço, a noite está fresca e uma
brisa leve traz o perfume das flores que se mistura ao cheiro dela.
Adoraria levá-la comigo, mas não quero tirá-la do trabalho, vai fazer
parecer que não é importante, que só está trabalhando com meu pai
por ser minha namorada e eu não quero isso.
— Peggy e Kyler vão estar por perto, tem sua bengala e é
tão forte e inteligente.
— Você acredita em mim, confia, não tenta me proteger o
tempo todo como se eu não fosse capaz – comento emocionado,
toco seu rosto e noto a expressão leve e confiante, ela realmente
acredita em mim e na minha força, se não sou forte sempre, posso
fingir ser e no fim é a mesma coisa.
— Quem dera eu fosse forte e corajosa como você. Deve ir
sozinho e voltar rápido, vou morrer de saudade.
— Uma semana inteira longe de você não parece mesmo
fácil, mas vou voltar correndo.
— Cheio de saudade? – ela me pergunta com essa voz
suave que me arrepia e espalha o desejo.
— Morto de saudade. – Garanto antes de um beijo que não
devia começar tão intenso se não vai terminar com nossos corpos
envolvidos e entregues.
É difícil me conter, mas não quero pressionar Emy, quero
deixá-la livre para ir se acostumando com nossa história, ao menos
até que sinta que está pronta, ou me dê um sinal de que é isso que
quer.
Sua boca é macia e seu beijo é totalmente especial, nunca
senti nada igual ao que sinto quando estamos juntos, é completo,
perfeito e é só o começo, suas mãos percorrem meu peito e
mergulham em meus cabelos, toda vez que ela faz esse caminho
sinto meu corpo todo acordar e nessas horas tenho vontade de
correr para longe dela ou carregá-la para minha cama.
— Emy – sussurro seu nome e escuto seu suspiro. Sua
boca procura a minha e um novo beijo acontece.
— Vocês dois só ficam se beijando. – A voz de Coline nos
afasta apressadamente, tenho certeza de que Emily está vermelha
de vergonha e eu de raiva.
— E você só fica atrapalhando – reclamo com Coline,
alguém precisa ensinar a ela sobre privacidade.
— Que chato, deixa eu ficar um pouco com a Emy também.
Minha pequena e inconveniente irmã se senta exatamente
entre nós dois, pelo riso de Emily, ela não se importa.
— Me conte as novidades – Emy pede a ela, a pequena
fofoqueira vai desembestar a falar. Suspiro resignado, era um ótimo
beijo e tinha potencial para mais do que isso. Coline ainda vai
crescer e se apaixonar e eu vou estar lá, para devolver a gentileza.
— Mike disse que o Jimmy anda chateado com essa
história da Penny Lane. Gwen e Shane pegando no pé dele e ele
sem querer dar o braço a torcer, bem feito, não vai ganhar prêmio
de melhor casal.
— Porque esse é meu – digo a elas e as duas riem.
— Peggy Sue diz que ainda é o papai e a mamãe, depois
dela e do Kyler, na escola todo mundo quer autógrafo dela, mas é
só a Peggy Sue, eu disse a eles, porém não se importaram, querem
autógrafo mesmo assim.
— Então o Jimmy está sofrendo por conta da Penny? –
pergunto pensando que alguém precisa unir esses dois.
— Mike falou assim que vai caçar o Estrela da Noite e
pedir a ele para resolver essas coisas do coração, Mike acha que
eles são amigos, porque foi o Estrela da Noite que contou que ele ia
nascer.
Coline não tem limites, ela vai falando e falando sem parar,
contando histórias, emendando com reclamações de amiguinhos da
escola, coisas que precisa fazer, não parece disposta a ir a lugar
nenhum, fica no jardim, sentada entre nós dois, conversando feliz da
vida.
— Coline! – A voz do meu pai, vinda de longe, soa como
uma bênção. – Coline, filha!
— O papai está chamando, bobalhona – eu aviso para o
caso de não ter ouvido.
— Aqui fora, papai! – ela grita de volta.
Um breve silêncio se faz, só quebrado pelo riso de Emy que
adora nossas pequenas rusgas de irmãos.
— Filha, você veio atrapalhar o namoro do seu irmão? –
Meu pai surge no jardim, no fundo ele acha engraçado, todo mundo
se diverte, menos eu.
— Papai, a Emy é minha amiga também, o Guy tem que
aceitar isso. – Dessa vez eu não consigo conter o riso, ninguém
consegue.
— E eu tenho que aceitar que minha filha prefere ficar aqui
com a Emy do que comigo jogando videogame?
— Tá bom – ela diz logo animada, isso é algo que eles
gostam de fazer juntos e que eu nunca pude fazer com meu pai, não
me ressinto, pelo contrário, fico feliz por Coline poder suprir essa
necessidade.
Coline nos deixa sem despedidas, apenas corre para junto
do meu pai. Ele se afasta enquanto escuto a conversa dos dois ir
morrendo ao longo do caminho.
— Acho que também tenho que ir – ela diz sem querer se
despedir. Nenhum dos dois quer. – Decidiu?
— Sim, não será nada fácil, mas eu vou e não vou deixar
meu pai ir comigo, não sou mais o garotinho que ele segue a
distância pela cidade eu vou ficar hospedado na casa da Peggy, só
vou resolver coisas do trabalho de qualquer modo.
— Me deixa tão orgulhosa e com tanta saudade. Acha que
vou poder assistir a estreia? Queria muito ir, mas fico pensando no
preço da passagem e...
— Não abro mão de ter você ao meu lado na estreia, Emy,
é minha namorada, claro que vai assistir. Será um presente de
namorados.
— Não sei se é bom, eu não vou poder te dar presentes
caros assim. Não por enquanto.
— Só quero você na minha vida, minha linda, só isso que
preciso para ser feliz. – Ela toca meu rosto, seus dedos percorrem
minha pele em um carinho do tipo que eu mesmo faço quando
quero ler sua expressão. – Olhos fechados?
— Sim, para te ver como você me vê. – Beijo seus lábios,
um longo beijo que em um instante, passa para o estágio em que
estávamos quando fomos brutalmente interrompidos por aquela
pequenina intrometida.
É Emy a nos parar, com as mãos espalmadas em meu
peito de modo gentil, suspiro contendo o desejo e a vontade de
nunca mais soltá-la.
— Eu sei que tem que ir, amanhã nos vemos. Quero passar
a tarde com você. Me ajuda a fazer a mala?
— Ajudo, mas pode ser que eu chore. – Ele sorri e me beija
os lábios. Nossa relação começa a mudar aos poucos, nessas
semanas em que estamos juntos, enquanto eu trabalho com Peggy
no show e ela trabalha com papai, ficamos mais próximos, ficamos
mais íntimos a cada dia e sei que caminho estamos seguindo.
Em algum momento vamos transbordar, ultrapassar limites
e isso é tudo que quero. Só consigo pensar nela em minha vida, só
consigo pensar nela em meu coração, só consigo ver um futuro com
Emily.
Ela me deixa de pé diante do portão, escuto seus passos
se afastando e quando caminho para dentro sei que será uma nova
batalha a enfrentar na sala.
Papai joga videogame com minha irmã, escuto o som do
jogo e já me acostumei com ele e com o modo como Coline sempre
lamenta quando perde.
— Senta aqui comigo, filho. – Minha mãe convida e sigo
sua voz até o sofá, um pouco distante do papai e Coline jogando. –
Estava lendo.
— Vou me deitar aqui com a cabeça no seu colo e você
pode continuar com seu livro.
— Está bem? – ela pergunta enquanto afaga meus cabelos.
— Sim. Mãe, eu preciso ir a Nova York e quero ir sozinho. –
O afago para por um instante e depois continua. – Não quero ir com
meu pai, vou ficar a semana toda.
— Acho uma ótima ideia, vai ficar em um hotel ou com a
Peggy?
— No apartamento da Peggy, vamos trabalhar juntos,
começar a produção, depois retorno e vou resolvendo daqui, volto
no mês da estreia para ensaiar os músicos. O que acha?
— Acho ótimo. É o seu trabalho, nem sei como vai conciliar
isso morando aqui no Vale.
— Gosto daqui, tenho meu estúdio e dá para fazer muita
coisa. – Silêncio, enquanto Coline reclama que está perdendo. –
Meu pai vai ficar chateado?
— Não. Ele vai ficar preocupado, mas você é um homem
adulto e livre, já devemos ser muito gratos por ainda morar conosco,
poderia muito bem partir para uma vida mais independente.
— Você não se importaria, não é?
— Me importaria muito, mas aceitaria se achasse que é o
melhor para você. Sempre vou aceitar suas escolhas.
— Vai me ajudar com o papai?
— Vou. Pensou em convidar a Emily? Pode pagar as
despesas dela e Peggy a receberia sem problemas.
— Eu sei, é que Emy é minha namorada, não minha dama
de companhia, ela tem um trabalho, claro que o papai dispensaria
seus serviços por uns dias, mas talvez ela sentisse que o trabalho
dela não é importante, além disso, eu quero provar estar realmente
sozinho. Agora que o Lumi...
— Entendo. Vamos falar com o papai e tudo fica resolvido.
Vai partir quando?
— Arrumo tudo amanhã e vou depois, viajo com a Peggy e
o Ky e volto sozinho em seis ou sete dias.
— Parece perfeito. Tenho tanto orgulho da sua coragem.
— Você me ensinou, mamãe. – Ela beija minha testa,
aproveito seu colo e o cafuné para relaxar um pouco, pensar em
Emy e no que vai ser ficar sem vê-la por uma semana inteira.
— Coline! Hora de dormir – mamãe diz e espero pela
reclamação.
— Mãe, você só manda eu ir dormir, o Guy dorme quando
ele quer.
— O seu irmão é adulto.
— Se deu mal, bobalhona – brinco e ganho um beliscão da
mamãe. – Aí!
— Ah! Se deu mal também. – Coline comemora.
— Sobe, filha, já vou lá ler um pouco com você – papai diz
e Coline passa por cima de mim para beijar minha mãe.
— Boa noite, mamãe. – Ela me abraça deitando sobre mim.
– Boa noite, bobalhão!
— Dorme bem – digo beijando sua testa e ela apoia o
joelho na minha barriga para descer. – Aí, Coline, está me
esmagando.
— Corre! – papai pede e Coline desaparece subindo
correndo as escadas, conheço os sons como ninguém, posso
compreender movimentos, através dos pés e os de Coline são
sempre pesados, é sempre correria. – Pronto, agora podem me
contar o que estavam cochichando.
Eu deixo o colo da minha mãe para me ajeitar no sofá e
parecer maduro e decidido.
— Não quero que vá comigo a Nova York – digo de uma
vez e nesse instante, não poder dimensionar suas reações é um
problema, talvez seu rosto diga algo que eu não posso ler apenas
com os ouvidos, então espero.
— Entendo. Quer ir com...
— Sozinho, papai. Vou com a Peggy e o Ky e volto sozinho
em sete dias. É o que eu quero, não gosto de te tirar de casa para
me acompanhar, não quero que a mamãe vá e não quero que me
peça para levar a Emily como se ela fosse minha babá, isso me faria
mal e também a ela.
— Vai ser difícil não proteger você o tempo todo, mas eu
entendo que tem suas necessidades e pelo que vejo, a mamãe já
achou que tudo bem.
— Achei. Também acho que vou ficar morrendo de
saudade, talvez eu me junte a Emy e chore um pouco. – Escuto o
beijo que papai e mamãe trocam.
— Acho que o papai vai se encarregar de cuidar de você e
da sua saudade.
— Conte com isso – ele me diz e sorrio. – Respeito sua
decisão, filho.
— Obrigado, papai. – Ele aperta meu ombro. Estendo a
mão e ele me puxa para um abraço. – Pai, Emy quer ter um
restaurante, ela gosta de cozinhar e é com isso que sonha, um
pequeno restaurante, acho que ela quis dizer um bistrô. Deixou
escapar em uma conversa, servir comida caseira e simples,
almoços, achei tão bonito e interessante, não temos nada assim em
Horses Valley e a senhora Anderson está falando em ampliar a
cidade, quer trazer incentivos, quem sabe ela ajudaria e com novos
moradores...
— Seria um sucesso – papai diz tranquilo.
— Vamos dar um jeito de ajudar, não agora, acho que ela
precisa de mais tempo e mais certezas, também precisa confiar
mais na gente.
— Verdade.
— Vamos nos recolher? – Mamãe convida e acho que é o
melhor. Dormir um pouco e descansar.
Vou saber me virar bem na casa da Peggy e somos como
irmãos, ela me ajuda se precisar. Pego o pijama na terceira gaveta,
metódico, é assim que vive um cego, nada nunca fora do lugar e
com isso, liberdade, mas vou estar em um lugar estranho.
Organizo tudo na mala e no banheiro assim que chegar,
desse modo não vou precisar de ajuda para o básico, o resto é mais
simples, tenho meu celular e sempre posso pedir a Peggy que me
ajude, ela já foi tão importante para mim, sem ela nunca teria me
adaptado a escola, acho que pode ser uma boa aventura dividir a
casa com ela por uma semana.
Deito-me mais tranquilo e confiante, Emily confia em mim,
minha mãe também, no fundo, mesmo meu pai com todo seu medo,
acredita que posso dar conta de algo como isso e vou deixá-los
orgulhosos.
Sinto que eu e Emy temos uma chance de ter um futuro
juntos e eu não quero me apoiar nela para tudo, quero dividir com
ela a vida e não depender dela.
Sorrio pensando em sua voz suave, nas mãos delicadas e
no som horrível que ela produz toda vez que toca em meu piano.
Escuto sua voz com meu pai no escritório pela manhã, não
os atrapalho, tento realmente fazer com que se sinta em um
trabalho, depois de tomar meu café, sigo para meu piano no estúdio,
tenho que organizar tudo para trabalhar em Nova York por uma
semana.
Felizmente Peggy e Ky têm um piano em casa, não que
Peggy seja uma grande pianista, mas seu amor por música é maior
que seu pouco talento para as teclas e ela tem não só um piano,
mas outros instrumentos.
Quando desço para o almoço, papai e Emy já terminaram,
nos reunimos em torno da mesa do almoço, ela ainda fica bem
tímida fazendo as refeições conosco, mas tem se esforçado e meus
pais são apaixonados por ela, nada que se compare a Coline, acho
que ela se espelha em Emy e não nos deixa sossegados por muito
tempo.
— Papai, pode cuidar da minha passagem? – ele faz isso
com dois telefonemas, acho que ele gosta de me ajudar ao menos
nisso.
— Claro, vou marcar seu voo junto com Peggy e Ky.
— Jato de luxo – aviso achando graça. – Peggy adora
esbanjar.
— Ela tem que manter o status de estrela – mamãe
comenta. – Além disso, aposto que ganha sempre primeira classe
das companhias aéreas.
— Pode ser, quem mandou eu escolher o piano? – brinco
sabendo que o pianista fica sempre meio escondido enquanto o
resto do elenco brilha.
— Eu acho que é um presente para todos que escolheu o
piano, é o melhor pianista do mundo. – Emy me elogia e ganha
risos.
— Eles estão com ciúme, Emy, não liga – defendo seus
elogios. – Vamos arrumar minha mala?
— Vamos. – Sua voz soa triste e eu sei que será bem ruim
ficarmos separados, mas também importante. Quero ver como é
ficar uns dias sem ela, perceber como isso me afeta.
Abro a mala sobre a cama, ela parece um tanto quieta. Sei
que é difícil, mas são só uns dias, talvez não seja realmente sobre
nos separarmos.
— Quer me contar o que você tem?
— Nada. Você vai viajar, eu vou sentir saudade, só isso.
— Tem certeza? – aposto que não é isso, conheço tão bem
sua voz, os pequenos deslizes em seu timbre, mas talvez ela queira
guardar para si e preciso respeitar.
— Tenho. O que precisa?
— Pode pegar as peças e eu organizo na mala em ordem,
um conjunto por dia. Calça, camiseta, acho que uma jaqueta quente
é o bastante.
— Não vai usar um terno, uma camisa de botões, dessas
mais elegantes? – ela me pergunta e acho graça, eu uso terno
apenas quando me apresento e mesmo assim detesto quando
restringe meus movimentos, mas algumas audições pedem algo
mais formal.
— Não, linda, não vou em nenhum compromisso formal.
— Vai sair à noite?
— Talvez sim, jantar quem sabe. Peggy e Ky são bem
famosos por lá, talvez me arrastem para uns eventos.
— Vai encontrar com um montão de moças lindas.
— Prometo não olhar para nenhuma delas – brinco, mas
ganho um leve empurrão.
— Muito engraçado. Se elas cantarem bem vai ter ouvidos
para elas.
— Só me interesso por pianistas ruins, que namoram
comigo. – Puxo Emily para meus braços e acho que esbarramos em
algo, acabamos um sobre o outro na cama, meu riso e o dela
desaparecem, meus dedos tocam seu rosto enquanto sinto seu
corpo sobre o meu. Posso notar a respiração pesada dela. – Vou
sentir sua falta, Emy, pensar em você todo tempo e voltar o mais
rápido que puder.
— Promete?
— Provo! – digo antes de capturar seus lábios em um longo
beijo, é ela a se afastar, sentando-se e me puxando com ela.
— Melhor arrumar logo essa mala, vai me telefonar toda
noite? Mesmo quando estiver com as garotas lindas em jantares de
astros?
— Vou telefonar toda noite.
Ela me rouba um beijo rápido, então sinto que se afasta e
nos envolvemos em arrumar a mala e preparar tudo que preciso, é
bem mais fácil fazer isso em sua companhia, no fim, quando tudo
está pronto, saímos juntos para um sorvete e uma passada na casa
dos pais de Kyler, onde Peggy e Ky jantam em despedida.
Deixo Emily em sua casa, volto sozinho, literalmente
sozinho e meu coração se aperta, porque é nessa solidão que mais
sinto falta de Lumière, podia chorar de saudade, mas engulo minha
dor, ele merecia seu descanso, agora está em nosso jardim, no seu
lugar preferido, e eu devo a ele a coragem de seguir em frente.
Sozinho até que encontre quem sabe, daqui um tempo, um novo
companheiro, não agora, ainda não consigo.
Capítulo 22
Emily

— Bom dia. – Mathieu me cumprimenta assim que chego à


sua sala com um chumaço de papéis em uma pequena pilha
organizada por data. – Começou cedo.
— Sim, eu acordei bem cedinho hoje, como vocês nunca
trancam, resolvi vir trabalhar, Lolla e Jay foram cedo para Dallas,
não quis ficar sozinha.
— Ah, é verdade, acho que eles disseram qualquer coisa. –
Mathieu se acomoda melhor na cadeira. Eu me sento no chão para
colocar a pilha no lugar. – Acho que eles vão dormir em Dallas.
— Sim. – Meu coração se aperta um pouco, Guy partiu
ontem e já estou morta de saudade e agora Lolla viaja e tenho que
ficar sozinha na casa, vou morrer de medo, como é que alguém que
está juntando dinheiro para morar sozinha pode conseguir isso se
teme uma noite de solidão?
— Emy, acho melhor você passar a noite aqui. – Olho para
ele, mas Mathieu está debruçado em seu trabalho, fala comigo
enquanto ao mesmo tempo, parece concentrado em seus relatórios.
– Fica no quarto do Guy, ele vai adorar saber disso.
— É sério? – Devia ser madura e recusar com educação,
enfrentar meu medo, mas só consigo comemorar por dentro
tamanha minha felicidade e alívio.
— Não que o Vale seja um lugar perigoso, mas eu prefiro,
já basta o Guy longe de casa e me tirando o sono. – Ele ergue os
olhos e me sorri. – Depois do trabalho vá buscar uma muda de
roupa, se quiser pode convidar a Mandy para ir com você.
— Estava morrendo de medo – admito e ganho um sorriso.
– Mas acho que buscar roupa eu posso ir sozinha.
— Perfeito, Coline vai ficar feliz em tê-la só para ela.
— Acho que eu e ela podemos fazer algo juntas.
— Tenho certeza de que sim – ele diz voltando a se
concentrar no trabalho, termino de ajeitar as pastas e os
documentos, a pilha de papel agora organizada dentro do armário. –
Emily, pode enviar esses e-mails? Estou te mandando todos, tem os
endereços.
— Claro. Mathieu, eu encontrei muitos documentos da
floricultura misturados, então separei aquele lado da estante só para
eles.
— Obrigado, Mandy e Maggie estão sempre caçando
papéis, isso vai ajudá-las muito.
— Certo. Vou mandar os e-mails – aviso deixando sua sala.
Guy deve estar superocupado em Nova York, eu não
imaginava que poderia sentir ciúme, mas acho que sinto um pouco,
ele é bonito, inteligente e um pouco famoso, ao menos no mundo
dele, pelo que Peggy Sue disse, Guy é uma lenda.
Tenho certeza de que um monte de garotas vai querer ficar
com ele. Peggy brincou que ficaria de olhos abertos e cuidaria dele,
até sorri na hora, mas eu sei que ela não impediria Guy de se
envolver com alguém e eu nem queria.
Quando meu telefone toca logo depois do almoço, corro
para atender sentada perto da fonte, onde as flores na sepultura do
Lumière começam a crescer, é um local sagrado para ele, agora é
para mim também e quero conversar com Guy aqui.
— Oi. Que saudade.
— Eu também, estou cheio de saudade, não tenho muito
tempo, vou começar uns testes agora, mas precisava ouvir a sua
voz.
— Queria estar aí – confesso.
— Queria que estivesse – ele concorda. – Vai estar comigo
da próxima vez em que eu vier. Está bem?
— Sim. Eu estou. Hoje vou dormir aqui na sua casa, seu
pai disse que posso ficar no seu quarto, tudo bem?
— Tudo, mas agora estou meio bravo de estar aqui e você
aí, na minha cama, sem mim.
— Guy! — Meu rosto cora de um jeito que parece que ele
está aqui na minha frente, escuto seu riso e acabo por rir também. –
Acho que eu gostaria muito mais se estivesse aqui.
— Quem sabe quando eu chegar? – Vou estar com tanta
saudade, só não sei se os pais dele não vão achar ruim.
— Será que seus pais se importam?
— Com certeza não. A questão é, você se importa? – Sei o
que essa pergunta significa e me sinto pronta, mordo o lábio com
medo de responder. Ao mesmo tempo, meu coração acelera de uma
maneira, não consigo pensar em mais nada, só na vontade que
sinto de estar abraçada com ele, sentindo seus beijos.
— Se você me convidar, eu vou dizer sim. – Cubro o rosto
com a mão livre, acho que ele demora um pouco para responder,
talvez surpreso, nem são 2h da tarde e olha a conversa que
estamos tendo.
— Bem, o convite está feito – ele diz um tempo depois. –
Estou com vontade de pegar o próximo avião para casa.
— Queria que viesse, mas eu sei que precisa estar aí,
cuidando das coisas. O espetáculo vai ficar tão lindo. Como vão as
coisas?
— Peggy e Ky escolheram dois bailarinos surdos, achei
especial, vão fazer parte do corpo de dança, é importante essa
representatividade.
— Tenho certeza de que vai chamar ainda mais atenção
para o espetáculo.
— Minha linda mercenária! – ele me provoca e sorrio. Faço
uma careta e depois suspiro. – Tenho que ir, não quero deixar
ninguém esperando. Fica bem, ligo de noite, quando estiver deitada,
bem confortável, na minha cama, vai deixar seu perfume nela.
Morangos silvestres e mel.
— Me deixa com mais saudade.
— Se cuida, meu anjo. – Só de ouvi-lo me chamar assim, já
sinto o meu coração dançar de felicidade. Guy é tão carinhoso.
— Você também. – Espero que ele desligue, então coloco o
celular no bolso do jeans. Encaro a água a correr suave pela fonte,
eu não sei mais viver sem o Guy. Tenho vontade de dizer que o
amo, mas também tenho medo de parecer uma boba. E se ele não
disser que me ama de volta? Ainda vou amá-lo, mas será triste.
Aproveito o começo da tarde para ir buscar uma muda de
roupas, Mandy fica trabalhando com Maggie na floricultura, Coline
está na escola e Mathieu continua a trabalhar, eu podia ajudá-lo,
mas ele disse meio período e acho que prefere trabalhar sozinho.
A casa de Lolla está como deixei, silenciosa e vazia, me dá
um arrepio pensar que devia passar a noite aqui sozinha. Sei que
sou adulta, sei que sou uma mulher e que escolhi isso, mas não é
nada fácil crescer, não ter ninguém que me diga como devo viver.
Levo a mochila nas costas, aproveitando o dia bonito e
ensolarado, pensando em Guy e na sua volta.
Os grandes portões estão sempre abertos na mansão
Montpellier, não é incomum algum morador andar uns metros pelo
jardim para ver o esplêndido trabalho de Mandy, não é só um jardim,
é o mais belo jardim que já vi, digno de um palácio, as pessoas
gostam de ver e fotografar, até álbum de noiva já fizeram no jardim e
soube que houve um tempo em que era apenas uma terra seca e
morta, em uma casa triste e vazia, nem consigo imaginar Guy
vivendo aqui, um garotinho triste e solitário que foi salvo pelo amor
de Mandy, quando Lolla me contou os detalhes da história eu até
chorei.
Agora toda essa beleza e felicidade, um lar carinhoso e
repleto de amor, um pedacinho de paraíso como deveria ser toda
família, diferente do que foi a minha, queria que minha mãe tivesse
provado um pouco disso, ela teria gostado, no fim, acho que ela
nem acreditava mais que existisse tal coisa.
— Emily. – A voz do meu pai soa tão perto, por um instante
penso ser um eco do meu passado, justo quando estou a pensar
nele, escuto seu chamado, um arrepio percorre meu corpo, uma
onda de culpa e tristeza. – Emily. – Não é uma ilusão, me volto
antes de fazer a curva no jardim para encontrar a porta da sala, é
mesmo meu pai, de pé, na linha do portão, me olhando firme.
Meu coração descompassa, sinto medo, sinto tantas coisas
diferentes que nem sei explicar, quero correr para dentro e buscar
proteção em Mathieu, ele está em casa, vai trancar as portas e
impedir meu pai de entrar.
— Vai ficar aí parada? Ou vem falar comigo aqui, ou me
chama para entrar, sou seu pai. – Pisco indecisa, sim, ele é meu pai,
me deu a vida, me criou e eu não sei o que fazer, o medo se mistura
a culpa e caminho lentamente para encontrá-lo.
— Pai – digo empurrando a palavra pela garganta. Fico
diante dele, uns metros de distância para me proteger. – Como...
— Encontrei você? – Balanço a cabeça afirmando.
— Pelo que sei não fugiu. Niara disse que viria morar com o
filho dela e a esposa em Horses Valley, eu não te deixaria vir se não
soubesse para onde.
Ele tem alguma razão, talvez até complicasse Lolla e Jay
se não informassem meu pai do meu paradeiro, mordo o lábio, um
mundo de imagens tristes me invade a mente, Guy não está aqui
para segurar minha mão e dizer que tudo vai ficar bem.
— Mesmo assim. Como encontrou essa casa?
— Assim que cheguei à cidade, eu perguntei por Emily, a
menina que chegou com Lolla, logo me indicaram. Cidade pequena
é assim, pensou que estava escondida de mim? – Não pensei sobre
isso, no fundo tinha um pouco de medo de encontrá-lo, ou ser
encontrada por ele, ao mesmo tempo que achei que seria
importante esse encontro, mas assim? Sem aviso, quando ainda me
sinto tão perdida, é assustador.
Olho para dentro em busca segurança, ele percebe e ri sem
realmente achar graça.
— Vai gritar por socorro? Sou seu pai, Emily! – Como se ele
algum dia tivesse me deixado esquecer.
— Não – digo fingindo uma coragem que não sinto. Se
fingir muito, talvez eu mesma acredite.
— Como está? O que faz nessa mansão?
— É a casa do meu... – Desisto de contar sobre Guy, isso
pode dificultar tudo. – Do meu patrão, trabalho aqui.
— Achou emprego. Muito bom, vamos ver se dura – ele diz
me olhando dos pés à cabeça. – Estive doente, depois que falei com
você ao telefone, peguei um resfriado forte, dias de cama – ele me
conta. – Teria vindo antes não fosse isso.
— Sinto muito. Que bom que está melhorando. – Engulo
em seco, a culpa ganhando do medo.
— Me pergunto se acha certo eu ficar velho e sozinho e
você aqui, podendo cuidar de mim e agindo como se não tivesse
pai.
— Eu... eu não queria isso.
— Claro que você queria, eu não te mandei embora, foi
porque quis.
— Você melhorou. – Ele balança a cabeça em uma
negativa.
— Não acha que está na hora de deixar esse fim de mundo
e voltar para casa? Estou de carro, deixei na frente da igreja, vim
andando e pedindo informação. Passa na casa da Lolla e pega sua
mala, chegamos rapidinho em casa. Vamos?
— E o meu emprego?
— Não precisa de emprego, tem casa e tem a mim. Já
brincou bastante de independente, agora vamos voltar, acha que
sua mãe gostaria de ver você perdida por aí? Acha que ela
aprovaria me deixar doente em casa enquanto brinca de adulta?
Eu não vou com ele, por mais culpa que sinta, eu não
quero voltar a viver aquela vida, não tem nada que ele diga o faço
que me force a voltar, nem mesmo a culpa pode fazer isso.
— Eu não vou.
— Entendi. – Ele cruza os braços, posso ver que está
perdendo o humor, eu queria gostar dele como Guy gosta de
Mathieu, mas não consigo, só consigo me lembrar da dor física de
suas agressões e de ver a mamãe sofrendo com seu ciúme e
violência. – Ainda quer brincar mais um pouco. Esse emprego não
deve durar muito e a Lolla com certeza logo se enche de ficar com
você atrapalhando a vida dela.
— Por que acha que vou perder o emprego?
— Porque você é tão incompetente quanto sua mãe. –
Está aí meu pai de verdade, sempre me fazendo sentir menor.
— Ela era uma mulher maravilhosa e não devia fazer assim
dela, principalmente agora que ela se foi.
— Estou perdendo a paciência. Sou seu pai, quero o seu
bem, quero cuidar de você como é minha obrigação.
— Já cresci, não tem obrigação nenhuma. Agradeço que
me deu teto e alimentação, mas as pessoas precisam de mais do
que isso – digo em um rompante de coragem. – Você me batia, você
batia na minha mãe, fazia ela se sentir um lixo e nos fez muito,
muito infelizes.
— As coisas não são como antes. Sua mãe não está mais
aqui, agora somos eu e você, talvez eu tenha sido muito rigoroso,
mas sempre foi para o seu bem.
— Pai, você prometia sempre para mamãe que ia mudar e
fazia de novo e se eu a defendia, me machucava.
— Ficou com o coração duro – ele me acusa, será que
fiquei mesmo? Será pecado abandoná-lo assim? – Não me perdoa
e não me dá outra chance. Vai ser diferente, agora que sua mãe não
está mais aqui, eu entendo meus erros, foram para o bem, todos
eles, bati querendo ensinar, mas sei que passei dos limites, não vai
mais acontecer, quero que volte para casa.
— Eu estou bem.
— Estou vendo – ele diz olhando o casarão. – Essa casa,
um monte de gente com pena de você, mas isso vai passar, essa
casa não é sua, eu sou a sua família. Vou te dar um dia. Volto
amanhã, vou me hospedar por aqui.
— Papai, não precisa, eu prometo que vou visitar você,
mas morar...
— Pensa, amanhã te procuro aqui, não vou atrapalhar, só
vou esperar que se decida. Se quiser mais tempo... quem sabe faço
diferente. Um dia é pouco, vai ter uma semana para decidir, não vou
mais machucar você, mas quero que volte para casa.
Busco em seus olhos alguma verdade, mas não consigo
encontrar, eu tenho muito medo dele, medo de voltar e ser agredida,
agora tenho uma vida, não quero deixar meu namorado, o emprego,
essas pessoas que me fazem sentir protegida e respeitada, mas
tem uma pequena culpa que me acompanha, como se devesse a
ele.
Meu pai não espera por minha resposta, apenas me dá as
costas e caminha em direção à igreja e eu fico a olhar sem me
mover, juntando forças para reagir.
Será que estou sendo um monstro? Não sei o que pensar,
se Guy estivesse aqui, talvez pudesse ouvir o que ele acha, ele
sempre é tão sábio.
Ando para dentro da casa, com o coração apertado e ao
mesmo tempo, querendo ser forte. Mathieu está na cozinha
preparando café.
— Oi – ele diz distraído. – Quer um café? Estou lendo uns
relatórios e me deu sono.
— Obrigada, acho que seria bom. – Ele me olha, parece me
investigar.
— Está tudo bem?
— Sim, estou bem. – Minto sem saber como contar, com
medo de que a ideia de que meu pai está me procurando mude as
coisas para os Montpelliers. Talvez como pai, ele ache que é o
certo. Voltar e viver em minha família, talvez fique preocupado, eu
não sei o que sentir no momento.
— Saudade. – Ele constata com um sorriso de orgulho. –
Também sinto falta dele, mas seu namorado é muito forte e esperto,
ele vai se dar bem sozinho e quando voltar...
— Podemos buscá-lo em Dallas? – Peço sem pensar
muito, nem sei de onde vem a coragem de pedir, Mathieu me olha
rindo.
— Muito bom, aprovado, adoraria buscá-lo, mas se fizesse
isso, ele diria que eu o protejo demais, mas quando a namorada
quer ir buscá-lo porque está cheia de saudade...
— Ele não vai achar ruim? – resolvo perguntar.
— Nem um pouco. Vai adorar. Podemos passar em algum
lugar para jantar e depois voltamos.
— Legal! – digo animada. – Quer uns biscoitos?
— Boa! – ele diz e pego o pote, enquanto ele serve o café.
— Cheguei. – Mandy se junta a nós, Mathieu conta o plano
de buscar Guy e ela aprova, por um tempo me distraio com eles,
então Coline se junta a nós e acaba que Mathieu não trabalha mais
e ficamos conversando e rindo. Perto das 17h, Penny Lane surge na
porta e nos sentamos no banco do jardim para conversar.
— Vim te contar que tomei uma decisão importante – ela
diz meio brava, na verdade, ela parece muito brava.
— O quê? – pergunto preocupada.
— Estou indo nesse momento encontrar com Jimmy, vou
jogar na cara dele o quanto ele é um idiota e depois... depois eu
acho que vou para casa chorar e me arrepender, então, seja uma
boa amiga e me impeça.
— Impedir? – Tudo que eu queria na vida era ser assim
corajosa como Penny e ela quer que eu a impeça de ir atrás da
felicidade?
Capítulo 23
Penny Lane

Emily é tão delicada, gentil e sensata, ela tem que me


ajudar a desistir dessa ideia maluca de confrontar o Jimmy.
— Eu não quero ir me humilhar, então você deve ter alguma
coisa a me dizer que me impeça de ir até lá.
— Penny, eu acho que você devia ir – ela diz com a voz
delicada, dá de ombros um tanto arrependida de concordar comigo.
— Acha mesmo? – suspiro arrependida da ideia. – Eu não
sei. Ele voltou para a cidade e ele começou a me ignorar, fugir dos
lugares que sabia que eu estaria, então se ele tivesse algum
interesse...
— Quem sabe não é tudo um mal-entendido?
— Duvido. Que tipo de mal-entendido poderia ser?
— Quando cheguei aqui e vim jantar e conhecer os
Montpelliers com a Lolla, achei o Guy um metido. Ele nem olhou
para mim, pensei que ele era um esnobe. – Nós duas rimos, Emily é
mesmo uma bonequinha inocente.
— Triste. Porém possível. Guy não tem nenhuma
dificuldade dentro dessa casa que demonstre que ele não enxerga.
— Exatamente, mas eu saí tirando minhas conclusões,
imagina se eu o tivesse evitado por conta disso? Hoje eu não seria a
namorada dele e a garota mais feliz do mundo, menos hoje que
estou meio angustiada.
— Jimmy e eu nos conhecemos bem, namoramos por um
tempo razoável até nos separarmos. Não foi briga, foi um fim
maduro, agora agimos como duas crianças. Ele agiu. Eu até fiquei
esperando que ele me procurasse nos primeiros dias.
— Você também não o procurou. – Mordo o lábio.
— Emily, vim para me convencer a não ir atrás dele, não
para me convencer a perdoar o que eu nem sei se tenho que
perdoar.
— Tá bom, é que acho que se for de uma vez, pelo menos
esse impasse acaba, ficam juntos ou terminam e, neste caso seria
para sempre. Aí você pode recomeçar a sua vida.
— Não vou até lá buscar entendimento, vou até lá para
esfregar a cara dele no chão do estábulo. – Emily ri com vontade
enquanto eu sou tomada por uma onda de desanimo.
— Você é muito engraçada.
— Estou é furiosa. Jimmy é um babaca e quero dizer isso
diretamente a ele.
— E se ele estiver pensando em você, com saudade e só
esperando uma oportunidade?
— Emily, você não é a pessoa certa, pena Lolla estar fora
da cidade, acho que vou tentar a Harper. – Ela pode estar certa, não
tenho muita experiência e estaria encolhida chorando se estivesse
passando pelo mesmo que ela.
— Acho que Harper pode ser uma boa escolha, ela tem
experiência e vai saber te ajudar.
— Estou só falando sem parar – aviso a Emily. – Eu acho
que só quero mesmo desabafar, estava em casa, fui procurar um
livro para um trabalho escolar e encontrei uma foto nossa e isso...
isso acabou comigo.
— Entendo – ela suspira.
— Eu ainda amo o Jimmy, é estranho, porque eu não devia
amar, ficamos tanto tempo separados, vivemos tantas coisas
diferentes ao longo desses anos, ele viajou por aí enquanto eu só...
me formei e voltei. Consegui um emprego comum, em uma vida
comum e nunca foi um problema, acho que...
— Jimmy também parece gostar de uma vida simples, eu
não acho que isso separa vocês. Talvez o professor de educação
física.
— Não – eu digo rindo. – Ele não tem chance. Nunca teve a
menor chance.
—Mas ele gosta de você.
— Não escolhemos de quem gostar. – Dou de ombros e
Emily parece pensativa, ela busca uma maneira de dizer e seja o
que for, eu quero ouvir – diga, Emily, o que está pensando?
— Acho que cheguei na cidade quase ao mesmo tempo
que o Jimmy e desde que eu cheguei existe um boato sobre você e
o professor, também sei e isso foi você que me contou, que ele
tentou e você esclareceu tudo, ele inclusive disse que gostaria de
manter a amizade mesmo assim, o que é bem esperto, quem sabe
um dia desses ele dá sorte?
— Acha que o Jimmy ouviu o mesmo e por isso não foi me
procurar? – Ela dá de ombros me deixando pensativa. Talvez, se
fosse o contrário o que eu faria? Acho que iria esfregar umas
verdades na cara do Jimmy.
Não, eu não faria nada, eu nem mesmo lutaria, aceitaria
calada, fingindo que não me importo, escondendo a dor, é assim
que agiria.
— Por isso que eu não quero impedir você de ir até lá.
Quem sabe isso é o que precisa para resolver tudo isso com o
Jimmy, eu o admirei tanto, quando Lumière estava morrendo... é
difícil falar, sinto saudade dele, principalmente porque eu sei o
quanto Guy sente a falta dele, mas o Jimmy foi tão presente e
carinhoso, apoiou o Guy, cuidou do Lumi.
— Emily, ele é veterinário e amigo do Guy, natural! – Emily
ri, ela até que tenta não rir, mas não consegue evitar.
— Arruma uma desculpa para tudo, só para poder continuar
brava com ele.
— Furiosa! – Eu lembro. – Acho que só preciso de um
drink, vou dar um pulo no Drunks, quem sabe a Harper está por lá e
toma uma cerveja comigo.
— Eu não posso ir junto, mas acho que seria bom relaxar
um pouco – afirmo apenas com um movimento de cabeça.
— Eu vou assim que me disser por que não está muito bem
hoje, não acho que seja só saudade do Guy.
— Não é. Sinto falta dele, mas hoje é meu pai, ele me
procurou.
— Aqui? – Ela balança a cabeça concordando. – O que ele
queria?
— Quer que eu volte com ele, fez promessas de que não
faria o mesmo, mas eu não acredito muito.
— Então não volte.
— Acha que eu seria uma ingrata? Queria tanto que o Guy
estivesse aqui, ele tem bons conselhos, me faz sentir mais segura.
Meu pai me assusta.
No fim, Emily é tão jovem, ela e Guy vivem um lindo amor
repleto de pureza e inocência, têm qualquer coisa neles que me diz
que será sempre assim.
— Se tem medo do seu pai, não deve cogitar voltar a viver
com ele. É bem simples, mas pode contar ao Guy, liga para ele e
explica.
— Esse é um momento importante para ele, uma vitória
estar sozinho, temo contar e ele pegar um avião e voltar correndo.
— Ele faria mesmo isso. Sempre tem Mandy e Mathieu ao
seu lado, sem contar Lolla Queen. Lolla e Jay estão prontos para te
ajudar.
— Acha que pedir esse tipo de conselho pode criar
problemas para o meu pai, eu fico sempre insegura sobre isso –
suspiro olhando para ela.
— Que grandes tolas nós somos. – Ela me sorri
concordando. – Tenho que ir, se precisar me chame.
— Obrigada, você também, não sei se ajudo muito, mas
estou aqui – ela diz me abraçando, depois segue comigo até o
portão e fica rindo de mim quando pego o caminho do Drunks.
Uma professorinha tem todo direito de se afundar na bebida
uma vez na vida. Ninguém pode me condenar.
O Drunks ainda não está muito cheio quando entro, depois
de um instante de estranheza de todos, o bar volta ao ritmo normal,
cowboys jogando e bebendo, me encosto no balcão. Noah me olha
meio surpreso.
— Uma cerveja, Noah.
— É bem difícil não pedir seus documentos – ele brinca me
entregando uma garrafinha. Abro apoiando na quina do balcão e ele
arregala os olhos um tanto surpreso.
— Ninguém é uma coisa só – digo virando a garrafa em um
só gole. Noah está boquiaberto quando coloco a garrafa de volta ao
balcão vazia. – Mais uma.
— Harper! – ele grita por sobre o ombro, depois me serve
outra garrafa, Harper surge vinda da cozinha. Abre um largo sorriso
quando me vê.
— Penny Lane! – Ela se encosta no balcão. – Dia ruim?
— Talvez. – Dou de ombros.
— Ainda é meio cedo para... – Concentro-me em virar a
outra garrafa. Quando coloco a garrafa vazia no balcão ela dá de
ombros. – Nunca é cedo demais. Mais uma saideira?
— Por que vocês têm um bar se estão sempre tentando
impedir as pessoas de se embriagarem em paz? – eu pergunto e ela
troca um olhar com Noah.
— Nunca sei responder essa – Harper avisa. – Quer
conversar?
— Na verdade, eu estou tomando um pouco de coragem.
Coragem líquida e dourada. – Pisco tomando um gole curto na
terceira garrafa, agora preciso dê um tempo para a bebida fazer
algum efeito. – Amanhã os pais dos meus alunos vão estar
chocados na porta da escola comentando sobre a professora no bar
dos cowboys bebendo no balcão.
— Provavelmente – ela concorda. – Mas não é crime. A
menos que chegue bêbada na escola, mas essa é a última não é
mesmo? Não queremos um estrago irreversível.
— Talvez eu queira – digo deixando o balcão e indo me
sentar em uma cadeira próxima a janela.
— Música triste, Noah! – Harper diz antes de ir me
encontrar e sorrio pensando em como ela é sempre forte. Uma
música típica de quem perdeu tudo soa alta pelo pequeno salão,
Harper ri e eu acabo rindo ainda mais. – Jimmy?
— Sim. Odeio o Jimmy!
— Aposto que odeia.
— Odiava o Noah?
— Por anos, com todas as minhas forças, com a mesma
proporção com que eu o amava. Hoje eu amo muito mais que odeio,
mas têm umas manhãs que eu o odeio um pouquinho. – Ela ri. –
Basta olhar para Holly e me lembro porque o amo acima de tudo e
então... – Ela dá de ombros risonha. – Somos felizes.
— Não sei como arrancar aquele imbecil de dentro de mim,
mas eu queria, com toda minha força eu queria.
— James. Está saindo com ele, não ajudou em nada?
— Por que todo mundo acha que eu tenho algo com o
James?
— Ele meio que deixa a entender – Harper avisa e suspiro.
– Talvez Jimmy pense o mesmo.
— Que diabo de amor é esse que não o faz lutar por mim,
ainda que ele ache que eu tenho alguém, por que ele não veio me
exigir uma explicação?
— Homens e suas limitações, ele vai esmagar os
sentimentos, mas não vai te procurar nunca, orgulho ferido. Acho
que ele esperava que estivesse na porteira do rancho à espera dele
no instante em que anunciou a volta, mas você não estava.
— Imagina ele chegar casado, noivo, namorando? Eu
nunca iria atrás dele, não prometemos nada um ao outro. Acho que
ele não sente minha falta, me esqueceu e só não me procura por
medo de ter que me dizer isso pessoalmente.
— Então a coragem líquida é para ir atrás dele e perguntar?
– ela me questiona.
— Exatamente.
— Não é melhor esperar um momento em que não esteja
assim meio alterada? – Viro a garrafa em um só gole.
— Não! – digo deixando umas notas sobre o balcão. – Até
amanhã, quando eu vier beber para esquecer que bebi e fui atrás
dele.
Harper não me impede, acho que ela sabe que eu não vou
parar, ninguém pode me parar, não essa noite, é o ponto final, e
amanhã vou esmagar o James para ele parar com essa história de
insinuar que temos algo.
Que idiota, como ele pôde espalhar essas coisas? Isso não
tem o menor sentido.
Meus passos são pesados e o calor do começo da noite
parece me deixar ainda mais corajosa, se mistura com a raiva e a
angústia que arde em mim e fico cada instante mais perto do rancho
Berckman.
Atravesso a estrada, podia ter vindo de carro, vou ter que
voltar andando e irritada, mas que grande idiota. Nem para
programar uma saída triunfal!
Shane está sentado na escada da casa grande, próximo a
varanda e tira o chapéu para ver melhor quando me aproximo.
— Penny Lane? – Ele parece tão surpreso que eu deveria
rir disso, mas estou brava e meio alterada para isso.
— Sim! Finalmente Penny Lane veio atrás do covarde do
seu irmãozinho, onde é que está aquele... – A gargalhada do irmão
mais velho me faz pensar se estou sendo exagerada, é bem
provável.
— Adoro isso, ele está no estábulo, mas eu vou chamar,
quero assistir de camarote.
— Não precisa, vou até lá sozinha, com minhas próprias
pernas, essas que me trouxeram até aqui.
— Tem certeza? Eu posso...
— Shiu! – Coloco o dedo entre os lábios em riste, ele faz
um sinal com as mãos na defensiva.
Apresso meu passo em direção ao estábulo, é mesmo lá
que ele devia viver. Nos estábulos com os cavalos.
— Jimmy! – digo em voz alta. – Jimmy Berckman! – grito e
minha coragem vai embora no instante que a porta do estábulo se
abre e Jimmy surge muito mais bonito do que era quando partiu,
têm coisas que são totalmente desnecessárias, esses músculos
todos por exemplo, e o chapéu, os olhos azuis, o nariz perfeito, cada
pedaço dele.
— Penny? – ele diz se aproximando cheio de surpresa.
— Isso mesmo, a velha Penny Lane, aqui estou. Já que
você é um covarde e não foi nem mesmo olhar em meus olhos e
dizer que... que...
— Bebeu?
— Não é da sua conta! – aviso levando um segundo para
me equilibrar, parece que as cervejas finalmente bateram fundo. –
Eu vim dizer umas verdades a você.
— E que verdades acha que pode me jogar na cara? – Ele
dá mais uns passos em minha direção.
— Você é um medroso! Está fugindo de mim porque não
tem coragem de olhar em meus olhos e dizer que não sente mais
nada por mim. – Jimmy fica uns centímetros apenas de distância, os
grandes olhos azuis cheios de indignação e é bem mais difícil dizer
verdades a ele assim tão pertinho, ele ainda usa o mesmo perfume.
— É sério? Primeiro você bebeu, aliás, seu aluno está lá
dentro e acho que vai ficar bem decepcionado quando vir a
professora dele bêbada gritando pelo rancho.
— Vá para o inferno, Jimmy, não fuja da verdade.
— Qual é o seu problema, Penny? Passei anos fora, vim
umas poucas vezes em férias, raramente estava na cidade, nunca
tentou me encontrar, nunca! – ele diz furioso.
— Eu não queria ver você! – grito com um nó travando
minha garganta, toda a dor de anos de separação, sufocando esse
sentimento parece explodir me libertando da dor finalmente. – Não
podia, não podia ver você e depois retornar à velha vida de
estudante, não podia ver você e não... desistir de tudo para seguir
você pelo mundo.
— Acha que vou acreditar nisso? – ele diz cheio de
confusão, tão tenso quanto eu. Jimmy se afasta, anda de um lado
para outro, como se sua mente trabalhasse a mil por hora. – Você
está por aí com o tal professor de educação física, tenho dois
sobrinhos na sua escola, Penny, eles contam do seu namoro como
o tal professor, queria que eu corresse atrás de você! Qual era o
plano, rir de mim? Era algum tipo de vingança que tinha em mente?
Porque se era isso, se deu muito mal.
— Vingança? Jimmy... eu não tenho nada com o James,
mas para saber, teria que ter ido atrás de mim, teria que gostar o
bastante para querer lutar e você simplesmente foge! Moramos na
droga de uma cidade pequena, você se esconde aqui só para não
me encontrar e quer que eu acredite que isso é por que acha que eu
tenho um namorado? Se me amasse teria lutado por mim, mas
você... eu não quero saber o que sente, eu vim terminar tudo com
você!
— Já terminamos, Penny, foi há anos! – ele diz só por
vingança, só para terminar de pisotear meu coração. – Você
inclusive já deixou outro entrar em sua vida.
— Eu não tenho e nem nunca tive nada com o James! –
grito como se só assim ele pudesse entender. – Bem-vindo de volta
ao lar, Jimmy Berckman, só vim quebrar o gelo. Agora não precisa
mais fugir e se esconder feito um criminoso, pode passar por mim
na rua e me ignorar.
Dou as costas a ele e corro. Corro desesperadamente,
cega pelas lágrimas, ainda escuto Shane gritar por mim, mas não
paro, eu só quero desaparecer para sempre, não bebi o bastante
para esquecer a bobagem que fiz, não bebi o bastante para não
sentir a dor que estou sentindo agora, odeio amar Jimmy, odeio
nunca ter esquecido o sabor dos seus beijos.
Capítulo 24
Jimmy

Assisto enquanto ela corre para longe de mim, atordoado,


feliz, confuso, ela sente, Penny ainda sente e não tem ninguém
entre nós, só a minha estupidez e nada mais, um sorriso se forma
em meus lábios.
Quero correr atrás dela, me ajoelhar diante de suas
lágrimas e pedir perdão pelo medo que senti de ser rejeitado, pedir
que fique comigo, recomeçar, entregar meu coração a ela e nunca
mais deixá-la nem por um segundo.
Penny Lane está furiosa e quando está furiosa, fica mais
bonita, mais forte, mais inteira.
Vou atrás dela agora, não depois, amanhã ou quando tiver
um anel, vou acordar o Vale gritando por ela enquanto me declaro
para quem quiser ouvir, mas nunca mais deixo essa mulher.
— Eu não sei que merda você fez, mas irritou a Penny! –
Shane surge ao meu lado rindo de mim. – Vai ter que ficar de
joelhos e eu nem sei se vai ajudar.
— Vou pegar o Ventania, ela ainda gosta de mim! – digo
olhando para o caminho que ela fez correndo. – Penny Lane ainda
sente, eu achei... não tem ninguém, não tem professor de educação
física, tem só... esse ótario aqui fazendo tolices como quando era
um adolescente. Fugi dela como fugi da Gwen e das mudanças, fugi
porque senti medo e eu... eu fujo quando estou com medo.
— Muito bom reconhecer isso. – Shane descansa a mão
em meu ombro. – Mas está velho para fugir com medo como aquele
garoto insuportável que você era. – Balanço a cabeça concordando.
– Também está demorando demais, ela foi correndo feito um cavalo
selvagem atravessando as colinas, acha essa comparação
ofensiva?
— Acho que... melhor eu ir – digo sem conseguir me mover
e com um sorriso idiota no rosto. Penny ainda gosta de mim e nada
mais importa.
— Papai! – Callan se aproxima já enfiado em seu pijama e
com olhinhos preocupados.
— O que foi pequeno? – Shane ergue o garotinho no colo.
– Que carinha de sono. Mamãe está chamando? – Ele balança a
cabeça negando.
— Ela está chamando o Mike. – Callan avisa e eu e Shane
trocamos um olhar e uma negativa.
— Eu o vi entrando em casa perto das cinco – aviso.
— O Mike fugiu. – Callan conta nos deixando apavorados,
ele coça os olhos com sono, talvez não saiba a gravidade do que
está dizendo. – Foi achar o Estrela da Noite.
— O que disse?
— Não pode contar para o papai e a mamãe, ele falou isso.
— Shane! – Gwen deixa a casa com Cassady nos braços. –
Mike! Mike! – Ela se aproxima e engulo em seco, não acredito que o
garoto fez mesmo isso. – Não encontro o Mike em lugar nenhum, os
meninos já tomaram banho e ... – Ela nos olha é como se pudesse
ler nossos pensamentos. – Cadê o meu filho?
— Callan acaba de contar que o Mike fugiu para encontrar
o Estrela da Noite. – Os olhos dela correm a escuridão que nos
cerca, como eu e Shane, ela consegue pensar em todos os perigos
que o garotinho corre sozinho aqui fora, de cobras a penhascos, de
bandidos e águas perigosas do rio.
As pernas de Gwen fraquejam, Shane a apoia, coloca
Callan no chão. Ela aperta a pequena Cassy nos braços, suas
lágrimas correm.
— Calma, meu amor. Vamos encontrá-lo, leva os meninos
para casa, fica perto do telefone, se ele chegar não esfola o menino
antes de nos ligar, eu e o Jimmy vamos nos dividir, chama os
rapazes está bem? Liga para o Elton e ele cuida disso.
— Vai Gwen, não volto sem ele – digo deixando os dois
discutindo o que fazer e correndo para pegar um dos cavalos. Vou
deixar Ventania para Shane, os dois se entendem bem. – Vamos
Rocinante, hora de achar o Mike.
Nenhum cavalo neste estábulo é mais fiel à essa família do
que Rocinante, ele vai encontrar Mike. Shane surge correndo, antes
que eu possa notar está feito um raio montando Ventania.
— Vai pelo norte, eu vou pelo sul – ele avisa disparando
pelo campo.
Quando deixo o estábulo, Gwen está na varanda abraçada
aos meninos, sinto pena de Mike, ela vai esmagá-lo de amor e
depois arrancar pelo menos uma orelha.
Shane partiu na direção do rio, tomo o sentido contrário,
ainda escuto seus gritos por Mike ecoando pelo rancho. Garoto mais
teimoso.
Eu sabia que um dia ele aprontaria uma dessas, Mike é
treinado a andar por esse rancho, conhece o terreno, os animais,
esse garoto nasceu sobre o lombo de um cavalo, não qualquer
cavalo, mas esse que agora me leva pelo rancho.
— Vamos achar o Mike, Rocinante, aquele pestinha está
muito encrencado. – Meu coração está acelerado, eu nem gosto de
pensar nos perigos que ele corre.
A noite está escura, lua minguante, poucas estrelas para
direcioná-lo, só espero que ele tenha trazido uma lanterna. Ladeio a
cerca, não acho que ele se atreveria a deixar o rancho, Mike está
por esses intermináveis pastos.
— Mike! – grito esperando que os pastos abertos espalhem
minha voz. – Mike!
Meu celular toca e pego apressado sem desviar os olhos do
vazio escuro em torno de mim.
— Achou? – Shane pergunta assustado, sinto pena do
desespero em sua voz.
— Não. Vamos encontrá-lo, Shane, se acalma.
— Me liga se achar – ele pede antes de desligar.
— Vamos Rocinante, ele saiu antes do jantar, já pode estar
nos limites do rancho. – O que é uma caminhada infernal, não acho
que algum cowboy tenha feito isso andando.
Rocinante toma seu próprio caminho, cavalos são tão
sensíveis, quero acreditar que ele sabe o que está fazendo. Deixo
as rédeas mais soltas, esperando que o velho amigo de Gwen nos
leve até o garotinho mais maluco e aventureiro que conheço.
Quero pensar que será uma história engraçada, um riso
solto em alguma noite de fogueira, quando quem sabe muito mais
velho, o jovem Mike Berckman conte como em uma noite escura, se
aventurou atrás de um cavalo fantasma.
— Mike! – grito mais uma vez e só o ecoar da minha voz
em resposta, meu coração está apertado. Uma hora cavalgando e
finalmente lanternas.
Acharam Mike? Eu me questiono enquanto coloco
Rocinante para galopar em direção as lanternas. Para minha
decepção, vejo Elton liderando um pequeno grupo de pessoas que
usam lanternas para caçar Mike.
Se conheço o pequeno, ele vai é se esconder de medo
desse carnaval todo.
Salto do cavalo ansioso. Elton se aproxima de mim, os
olhos esbugalhados de medo.
— Nem rastro dele? – ele me pergunta e balanço a cabeça
negando. – Shane está bem ao norte, Gwen chorando com as
crianças no colo. Maggie ficou lá com ela, para o caso dele voltar
para casa.
— Vamos achá-lo. – Eu não consigo pensar em outra coisa.
— Nos dividimos em pequenos grupos – Elton me avisa. –
Tem gente para bater o rancho todo.
Elton ilumina o grupo que está com ele e posso ver Penny
entre as quatro pessoas que o ajudam. Sorrio pensando que sua
raiva não foi maior que seu carinho por Mike.
— Não vamos perder tempo! – Martinez pede apressado.
— Penny, você pode vir comigo? – Peço iluminando seu
rosto, os olhos me fulminam enquanto ela usa a mão para diminuir a
luz em seu rosto.
— Estou com esse grupo e acho...
— Mike deve estar com medo de responder, acha que o pai
ou melhor, a mãe vai colocá-lo de castigo, ouvir a voz da professora
que ele tanto ama vai deixá-lo mais confiante.
— Bem pensado – Elton diz sem perceber a tensão entre
nós. – Penny Lane vai com ele, nós seguimos mais a leste.
Continue pelo norte. Você chega mais rápido à margem do rio.
— Vamos? – Convido montando de volta Rocinante, pelo
modo pesado com que caminha para meu encontro, ela está ainda
furiosa. Estendo a mão quando ela chega ao lado do cavalo, Penny
aceita minha mão e eu a puxo dando o impulso que ela precisa para
estar finalmente dividindo a sela comigo.
Têm mil lembranças a me invadir, estivemos assim tantas
vezes, ela na minha garupa correndo o rancho, sinto suas mãos me
envolverem a cintura, coloco Rocinante em movimento, aceno para
Elton e sigo mais ao norte.
— Penny eu...
— Mike deve estar na direção do rio – ela diz me cortando.
– Ontem no portão do colégio, quando ele estava praticamente no
carro vindo para casa, ele voltou correndo e me perguntou sobre os
animais que vivem na natureza, estivemos falando sobre isso nas
aulas, como eles sempre buscam ficar às margens de rios. Ele
queria ter certeza de que era mesmo assim.
— Certo, não sei se ele está ao sul ou ao norte, mas com
certeza ele deve estar na direção do rio.
Acelero o galope, Penny jamais teve medo, ela sempre
gostou de galopar em minha garupa, com os cabelos ao vento e os
muitos sonhos que carregamos.
O som das águas denuncia a proximidade do rio. Penny
usa sua lanterna para as margens em busca de algum sinal. Ela
está muda e acho que não é hora de uma conversa, mas não vou
deixar que Penny vá embora sem saber que eu a amo.
— Melhor seguirmos andando – ela diz e está mesmo
certa. Eu a ajudo a saltar e depois faço o mesmo, levo Rocinante
pelas rédeas. – Mike! Mike, sou eu! Mike!
Ela suspira mordendo o lábio, tento tocar sua mão, mas ela
foge do toque. Seguimos lado a lado, se uma parte de mim tem a
mente em Penny a outra está preocupada com Mike e os perigos da
noite.
— Estou sempre fugindo do que pode me machucar – digo
a ela que não responde, mas não deixa de caminhar ao meu lado. –
Fugindo do desconhecido.
— Ele deve estar muito assustado. – Ela muda o rumo da
conversa.
— Não o Mike, eu estaria com toda certeza, mas Mike é
metade Gwen, metade Shane, ele não teme nada, muito menos o
rancho, à noite, os cavalos.
— E se ele cruzar uma cobra?
— Não vai se aproximar, sabe que ela não vai atacá-lo se
não chegar perto.
— Está tentando ser positivo? – ela pergunta levemente
irritada. – No meio dessa escuridão ele simplesmente pode pisar em
uma sem perceber, Mike tem oito anos!
— Talvez eu esteja! – respondo enquanto subimos o rio que
nessa parte é só um riacho de água rasas.
Ficamos mais uns metros em silêncio, iluminando o lugar,
Rocinante tão calmo que com toda certeza, não existe qualquer
perigo a nos cercar.
— Eu tinha bebido um pouco – ela diz sem aviso. – Não
devia ter cobrado...
— Estava desesperado de ciúme, me corroendo por dentro,
eu criei uma fantasia maluca na minha cabeça e quando cheguei e
ela não se concretizou eu me decepcionei. Fiz o que sei fazer de
melhor, agi como um idiota.
— Achei que nunca mais concordaríamos com nada, me
enganei – ela diz apressando um pouco o passo. Esforço-me para
alcançá-la.
— Penny espera! – Ela diminui o passo, mas não me olha.
– Vamos achar o Mike e depois...
— Não tem depois, vamos apenas... – Somos interrompidos
por meu telefone a tocar, atendo apressado e esperançoso.
— Diz que encontrou meu filho! – Gwen pergunta chorando.
— Vou encontrar, Gwen. – Prometo a ela. – Ninguém vai
voltar sem ele, quando amanhecer o Mike volta para casa, talvez ele
tenha se perdido por conta da escuridão, mas não vai estar fora do
rancho, nunca vai atravessar nossas cercas.
— Jimmy! – Ela soluça, escuto Callan chorando.
— Gwen, você nunca desistiu de mim e eu não seria nada
sem você, juro que não importa o que aconteça eu não vou desistir
do Mike, ele vai ficar bem e você precisa acalmar o Callan!
— Eu sei. – Ela volta a chorar e soluçar. – Me avisa quando
o achar. Acabei de falar com o Shane, eles ainda não...
— Fica calma, irmã. Sinto que estou com sorte e... Gwen...
Rocinante está comigo, ele vai me levar ao Mike.
— Estrela da Noite está por aí e vai proteger meu filho – ela
diz antes de desligar e guardo meu celular. Penny está com
lágrimas nos olhos.
— Como ela pode suportar isso? – Ela diz abatida, procuro
mais uma vez sua mão, de novo ela me evita e fiz por merecer.
Vejo uma pequena luz uns metros à frente, uma lanterna
próximo à margem do rio.
— Penny! – digo apontando. Dessa vez é ela a apertar
minha mão. – Acho que é ele, não tem ninguém sozinho e é a luz de
uma única lanterna. Não vamos gritar, ele pode se assustar e se
esconder.
Ela balança a cabeça afirmando e seguimos juntos, lado a
lado, a passos rápidos. Quanto mais perto, mas a luz fica forte e
finalmente podemos ver Mike à margem do rio.
— Eu sei fazer fogueira – ele está dizendo enquanto ajeita
pequenos galhos e folhas em um montinho no chão. – Agora só
pegar os fos... – O relinchar de um cavalo nos paralisa.
O belo corcel negro de pelos brilhantes se ergue sobre nós,
relincha mais uma vez nos obrigando a dar uns passos para trás.
Ele parece se colocar entre nós e Mike. É um animal
belíssimo, o maior entre os corcéis, a crina longa balança com o
movimento, quando nos sentimos prestes a ser atacados, o animal
amansa, Rocinante, estranhamente, não reage, está calmo, olho
para Penny me colocando um passo a sua frente, ela aperta meu
braço entre assustada e surpresa.
A mudança no comportamento do grande animal me deixa
surpreso, ele balança o rabo, solta ar com força, depois galopa
lindamente de um lado para outro, se aproxima de Mike e
recebemos um último olhar antes que feito um raio, Estrela da Noite
galopa em direção às colinas, desaparece na escuridão da noite e
Mike fica de pé, acenando tranquilo.
Eu ainda me demoro a reagir, me refazendo da linda
aparição, mesmo agora, eu não sei dizer se vi um cavalo ou um
fantasma, mas não posso negar que ele estava protegendo Mike e
por alguma razão, se deu conta que não éramos ameaça e partiu.
— Mike! – Penny o chama e sua voz cheia de urgência me
tira da letargia, como para o garotinho que está tranquilo, me
ajoelho para abraçá-lo e o aperto tanto que ele só faz me empurrar
um pouco ofendido.
— Achei você, Mike, eu não acredito! Mike! – Eu me afasto
dele, toco seu corpo, seu rosto, ele tem um arranhão no braço, mas
parece não compreender a gravidade do que fez. – Está tudo bem,
Mike, vou levar você para casa, encontrei você.
— Oi professora, Penny Lane. – Mike sorri para ela, depois
me olha tranquilo. – Não estou perdido, tio Jimmy, é só seguir o rio
descendo e chego em casa de novo! – ele me explica com
naturalidade.
— Tenho que avisar seus pais, Mike, tem um batalhão atrás
de você.
Agora ele começa a se preocupar, Penny o abraça, beija
seu rosto, ele sorri, agora meio sem graça.
— Encontrei, Shane! – grito ao telefone. – Na beira do rio,
estou levando seu garoto para casa. Ele estava... eu não sei, eu
nem sei... acho que vi o Estrela da Noite.
— Viu sim, tio, eu estava mostrando para ele minha
fogueira.
— Meu filho, obrigado, Jimmy, meu filho, deixa eu ouvir a
voz dele?
Coloco o celular no ouvido de Mike, ele arregala os olhos,
nem sabe o que a mãe vai fazer com ele, já posso vê-lo sendo
esmagado, apertado, engolido por seu amor.
— Oi, papai! – ele diz tranquilo, o rostinho fica
constrangido, um meio sorriso no rosto, depois sério. – Também te
amo.
— Shane! – Chamo colocando o telefone de volta ao meu
ouvido. – Estamos indo, vinte minutos e chegamos.
Desligo e me ajoelho diante de Mike, ele me olha sem
entender o que fez, os perigos que correu, está feliz.
— Lembra que viemos passar uma noite aqui? Aprendi
tudo. Estava fazendo fogueira, achei o Estrela da Noite. Eu disse
que achava ele, mas você espantou ele, tio.
— Mike... Vou ligar para sua mãe e te colocar para falar
com ela, depois vamos voltar para casa, mamãe está com muita
saudade, muito assustada.
— Ela vai me por de castigo?
— Não sei. – Entrego o telefone a ele depois de fazer a
ligação.
— Oi, mamãe! Eu est... – Ele fica mudo, ouvido, eu também
escuto Gwen, a voz abafada, seu choro de alívio.
Olho para Penny, ela deixa de olhar para Mike para
finalmente me olhar nos olhos, está feliz pelo reencontro com Mike,
esqueceu por um instante nossas diferenças.
Fico de joelhos diante dela, eu não posso deixar que saia
da minha vida mais uma vez.
— Jimmy...
— Eu te amo, Penny Lane, sempre amei você. Me perdoa.
— Jimmy, o que está fazendo?
— Devia ter um anel, mas eu estou de joelhos pedindo que
case comigo, minha vida é você, nunca deixei de sonhar com você.
— O tio Jimmy está de joelho, mamãe, ele falou que quer
casar com a professora Penny Lane. Vai casar com ele, professora?
Penny está rindo, chorando, está surpresa, está brava,
tímida, feliz.
— Hein, professora? Vai casar comigo? – pergunto mais
uma vez e ela balança a cabeça afirmando. É uma onda de amor,
uma onda de alívio, eu fico de pé envolvendo Penny pela cintura,
giro com ela comemorando feio um louco, feito o cara mais feliz do
mundo.
— Ela vai sim, mamãe – Mike avisa.
Coloco Penny no chão, seguro seu rosto com minhas duas
mãos, os olhos dela brilham.
— Te amo, te amo, te amo! – Ela me puxa pela camisa, sua
boca procura a minha e quando nos beijamos eu tenho de novo
dezesseis anos e estou beijando a garota mais bonita do Vale.
— Amo você, Jimmy, sim, sim, sim. – Rimos juntos, envolvo
Penny mais uma vez, beijo seus lábios de novo.
— Como que você sabe que eles estão se beijando,
mamãe? – Nós nos afastamos rindo. – Tio, mamãe falou para me
levar para casa agora mesmo.
— Sim, garoto, vamos para casa, temos muito que fazer,
você tem que ficar de castigo e eu tenho que beijar minha noiva.
Coloco Mike sobre Rocinante, prendo minha mão a de
Penny e seguimos de volta para casa, lado a lado, cheios de sonhos
e com os mil planos de futuro que fizemos ainda meninos, e que
finalmente é hora de realizar.
Capítulo 25
Emily

A noite está escura, os gritos por Mike se espalham, luzes


de lanternas piscam de todas as direções, meu coração apertado de
pensar que nessa imensidão de terras, tem um garotinho sozinho.
Mandy ficou em casa com Coline, mas eu me ofereci para
vir com Mathieu, posso imaginar a angústia de uma mãe no meio
dessa confusão.
Noah e Harper estão conosco, o bar foi fechado, os
homens se espalham pelas terras, e posso perceber como são
todos muito próximos.
— As primeiras horas são muito importantes – Noah diz
logo depois que Harper grita por Mike.
— Acho que estão todos nervosos à toa, Coline disse que
Mike conhece tudo e sabia o que ia fazer, o garotinho passa seus
dias correndo por essas terras.
— Mathieu, você é um pai desesperado que não tem moral
para opinar – Harper diz e ele sorri concordando.
— É sempre mais fácil olhando de fora – ele diz me
sorrindo. – Vai ficar tudo bem, Emy. – Mathieu me tranquiliza.
— Espero que sim – digo de todo meu coração. Seu celular
toca e ele atende apressado, quase derruba o aparelho.
— Jimmy encontrou! – grita quase ao mesmo tempo que
escuta. – Estão voltando para a sede.
Harper e Noah se abraçam, ela tem uma crise de choro
engraçada, se abana enquanto chora e beija Noah, tudo meio que
ao mesmo tempo.
— Que alívio, estava tão nervosa, morrendo de medo, Holly
sabia que o pequeno ia aprontar, mas não disse nada. Se algo
acontecesse...
— Nem brinca com isso – Noah diz fazendo um sinal de
gratidão.
— Aposto que todos eles sabiam, Coline não pareceu nada
surpresa e pelo modo como falou, ela também sabia dos planos do
Mike de caçar o cavalo fantasma.
— Nós vimos o Estrela da Noite! – Noah diz convicto.
— Eu não vi nada. – Harper o contraria.
Começamos a caminhar de volta para casa, meu coração
agora tranquilo e cheio de paz, o pequeno Mike está seguro, gosto
de ver as lanternas espalhadas pelo terreno seguindo todas para a
mesma direção, de volta à sede.
Quando estamos chegando, vejo o garotinho sobre o
cavalo, se aproximando cheio de si, Jimmy está ao lado, levando o
cavalo pelas rédeas e abraçado com Penny lane.
O que significa isso? Sorrio adorando assisti-los juntos,
assim que chegar a casa vou telefonar para contar ao Guy, ele torce
tanto por eles.
Gwen corre assim que os vê, Mike salta do cavalo e
desembesta para os braços da mãe. Ela o aperta tanto que acho
que vai esmagá-lo.
— Nunca mais faça isso, Mike, nunca mais. Ouviu? – Ela o
segura pelo rosto, aperta suas bochechas com as mãos
espalmadas. – Está me ouvindo.
— Está tapando minhas orelhas, mamãe – ele diz com um
bico por conta das mãos da mãe, o grupo que vai se formando em
torno deles ri. Ela volta a abraçá-lo e então o solta, Shane ergue o
menino no colo, no fundo, ele está orgulhoso, mas se esforça para
esconder isso.
— Mamãe está muito brava com você, movimentou toda a
cidade e tirou as pessoas de seu descanso, deve desculpas a todos,
Mike.
— Papai!
— Agora – ele diz depois de beijar o rosto do filho.
— Desculpe todo mundo – Mike diz com um bico enorme e
depois sorri. – Eu encontrei com ele, com o Estrela da Noite, ele me
fez companhia um tempão, mas quando eu estava acendendo uma
fogueira o tio chegou e estragou tudo! – Mike reclama.
— O cavalo estava mesmo lá. – Jimmy confirma sem soltar
Penny Lane. – Nós vimos, conte a eles, meu amor.
— Meu amor? – Meia dúzia de vozes os provoca e Penny
fica corada, já Jimmy fica todo animado.
— Vamos nos casar, o mais depressa possível, ela disse
sim.
— Desavisados achariam muito rápido, mas como
namoram desde sempre, demorou demais. – Gwen é a primeira a
abraçá-los e no meio daquela confusão de alegrias, eu fico mais
distante assistindo, Mathieu está ao telefone contando tudo a
Mandy, então o grupo abre algumas garrafas de cerveja, logo tem
uma fogueira e uma festa parece começar em instantes. Mike está
no centro de tudo, o garoto detalha sua aventura e exagera na sua
coragem e força, o pai olha com orgulho, a mãe cheia de amor e
Penny se solta um pouco de Jimmy para vir até mim.
— Parabéns! – digo sorrindo quando ela se aproxima.
— Foi lindo e romântico e ele me deixa tão brava e tão feliz.
Foi tudo um mal-entendido, tolices de falta de diálogo e conclusões
precipitadas, tanto tempo perdido.
Eu a abraço feliz por ela. Penny merece e passou
momentos difíceis com esse amor.
— Vai ser um lindo casamento.
— Vai sim, já planejamos tudo, será aqui na fazenda, em
uma tarde bonita, um Juiz de Paz, depois muita música e dança,
vamos passar uns dias em Dallas, quando voltarmos vamos morar
em Horses Valley, eu não quero morar aqui no rancho e ele não
precisa estar aqui todo tempo, então vai dar tudo certo.
— Parabéns! – Eu a abraço mais uma vez. – Guy vai ficar
feliz demais pelo amigo.
— Emy, podemos ir? – Mathieu me convida e aceito. Dou
mais um abraço em Penny Lane, Jimmy me acena de longe,
envolvido em ouvir a história de Mike.
— Amanhã depois do trabalho passo para contar tudo –
Penny me avisa e balanço a cabeça concordando.
Seguimos eu e Mathieu até o carro, me acomodo e ele
suspira assim que se senta atrás do volante.
— Por fim, tudo ficou bem.
— Que bom. Penny vai se casar, fico feliz por ela.
— Guy andou me contando as confusões do casal, fico
bem feliz que eles estão bem. Sabia que em algum momento isso
se resolveria, Jimmy gosta da Penny tem anos.
— Amor é sempre bonito.
— Sempre – ele diz dando partida. – E você, está bem?
— Feliz que encontraram Mike, também estou pensando na
saudade que sinto do Guy. – Mathieu me sorri.
— E ele de você.
— Acho que sim. – Meus olhos são uma amostra clara do
meu coração e Mathieu sorri voltando a prestar atenção na estrada.
– Acha que eu sou ingrata?
— Ingrata? Por que acha isso? – Dou de ombros com medo
de contar que meu pai me procurou. – Pode me contar, Emy. –
Gosto que os Montpelliers me chamem assim, é tão carinhoso.
— Meu pai, ele... ele diz que eu sou muito ingrata com ele,
que o deixei e ele que me deu tudo, essas coisas.
— Falou com seu pai? – Balanço a cabeça afirmando. –
Bem, ele vai usar isso contra você, é como ele sempre fez, não?
— Sim, mamãe acreditava nisso, que ele nos dava uma
vida digna, mas eu não acho que era digno apanhar dele e viver
presa, só por uns pratos de comida e um teto.
— Com certeza – ele diz já estacionando na garagem. –
Emily, você não é ingrata e não está sozinha, está bem? – Balanço
a cabeça concordando. – Tem minha família e tem a família do Jay,
Lolla e em especial o Guy. Pode confiar nessas pessoas e dividir
seus medos.
— Obrigada, Mathieu. – Agradeço por poder confiar neles,
mas escolho não contar, sei lá por que, acho que no fundo, eu tenho
medo de incomodar os Montpelliers. Quem sabe o que podem achar
do meu pai aparecendo aqui, talvez pensem que eu vou criar
problemas e decidam que o melhor é me mandar de volta para ele
ou pelo menos para longe do Guy. – Acha que eu e o Guy somos
jovens demais?
— Depende, Emily. – Ele ri quando deixamos o carro. – São
jovens para filhos, mas tem idade o bastante para o amor, entende?
– Balanço a cabeça concordando e o assunto acaba porque Mandy
vem correndo nos receber, ela quer detalhes do que aconteceu e
ficamos quase meia hora na sala contando, quando finalmente me
despeço e entro no quarto de Guy, me sinto estranha.
Primeiro fico cheia de saudade, com um pouco de vergonha
de estar em seu quarto e adorando sentir o cheiro dele em todo
canto.
Depois de um banho, eu me deito em sua cama, adoro seu
travesseiro, aspiro seu perfume e suspiro cheia de amor. Eu me
sinto boba e ao mesmo tempo feliz. Estou aqui, na cama dele,
cheirando seu travesseiro e isso pode até ser um pouco ridículo,
mas ninguém nunca vai saber, então não me importo de ser ridícula
e mata um pouco da saudade que eu sinto. Queria tocar as teclas
do seu piano agora, isso sim me faria sentir pertinho dele.
Pego o celular para ligar, ele deve estar trabalhando ainda,
Guy fica até bem tarde no piano, ou em reunião com a Peggy Sue,
mas sempre me atende não importa o que esteja fazendo.
— Alô.
— Eu estava pegando o celular para te ligar, é meio tarde,
está tudo bem?
— Sim – digo fechando meus olhos para me concentrar
apenas na sua voz. – É que o Mike Berckman fugiu de casa, sumiu
umas horas e fui com seu pai ajudar a procurá-lo.
— Sério? Encontraram? – Seu tom não esconde a
preocupação.
— Sim. Ele foi atrás do... eu não lembro o nome do cavalo
mágico.
— Estrela da Noite – Guy me conta. – A vantagem é que
esse cavalo até eu posso ver.
— Guy! – Ralho com ele.
— Me conta, anjo, ele está bem?
— Está. Disse que encontrou o cavalo, Penny e Jimmy se
entenderam e vão se casar.
— Não acontece nunca nada nessa cidade, viajo uns dias e
parece que o mundo vira de pernas para o ar em Horses Valley,
perdi toda essa diversão?
— As pessoas ficaram bem assustadas com o sumiço do
Mike. Felizmente tudo acabou bem.
— Sim. Que bom. Esteve ajudando nas buscas? Minha
namorada é uma aventureira?
— Estava com seu pai, sozinha nem saberia voltar para
casa. Estou na sua cama agora.
— Cuidado, Emy, me dizer essas coisas não é nada
produtivo, talvez eu largue tudo e esteja aí antes da noite terminar.
— Acho que adoraria isso.
— Está acabando, num piscar de olhos estou de volta, tudo
aqui já está quase resolvido, tudo que dá para ser resolvido, é claro.
Talvez eu precise voltar em algumas semanas, quem sabe
consegue vir comigo, acho que vai gostar de conhecer Nova York.
— Seria um sonho!
— Então vamos cuidar disso! – Ele promete e sorrio cheia
de saudade. – Sinto sua falta, Emy, o tempo todo, nada é realmente
bom se não está comigo para dividir a alegria, até que me viro bem,
mas ainda não é bom, porque falta você.
— Falta você aqui também, em todos os cantos, todos os
dias, sempre falta você – digo a ele depois de um suspiro de
saudade.
Quero dizer que o amo, mas não sei se é a hora certa de
dizer, eu nem sei se existe uma hora certa de dizer.
— Está muito cansado?
— Um pouco. – Escuto uma nota de piano. – Estou ainda
trabalhando, tive que fazer umas adaptações em um dos atos da
peça, para ajustar o tempo e acabei tendo que mexer em uma
melodia, Kyler me ajudou o dia todo nisso, mas agora eles saíram,
foram a um jantar importante, estão buscando recursos, patrocínio,
eu não quis ir, mas pensei que se estivesse aqui, teríamos ido
juntos.
— Acho que eu nem saberia o que fazer.
— Eu ensinaria. – Sorrio pensando nisso, ele me ensinaria
sim. – Você poderia narrar tudo e gosto tanto quando faz isso.
— Guy... você... é que eu fico pensando nas moças bonitas
de Nova York.
— Fica pensando nelas? E eu inocente achando que fica
pensando em mim.
— Bobo! – digo rindo. – Você entendeu.
— Emily, você é a única garota bonita que me interessa e
vou mostrar quando chegar, mostrar como senti sua falta e como
nenhuma outra garota poderia me fazer feliz.
— Sinto o mesmo.
— Não sei não, acaba de dizer que fica pensando nas
garotas de Nova York. – Acabo rindo com ele.
— Você adora me provocar. Vou te deixar descansar, até
amanhã.
— Até amanhã, está mesmo bem? Tem qualquer coisa na
sua voz. Preocupação?
— Saudade – digo sem estar realmente mentindo, é muita
saudade e um pouco de preocupação, meu pai vem atrás de mim de
novo e eu não sei o que fazer, mas Guy tem seu trabalho e eu
posso resolver isso, ou devia ser capaz, quem sabe Lolla Queen
chega antes, ou tomo coragem de falar com Mathieu sobre isso.
— Boa noite, linda.
— Boa noite. – Fico ouvindo sua respiração sem coragem
de desligar.
— Ainda está aí?
— Sim, sem coragem de desligar.
— Eu também. No três?
— Pode ser. Boa noite.
— Um... você é linda, dois... saudade... e... até amanhã...
três. – Desligamos o telefone e me encolho entre os lençóis com um
sorriso no rosto. Não é nada difícil dormir sentindo seu cheiro, é
como dormir no céu.

**************
Estou digitando e-mails quando escuto meu pai chamar,
Mandy está na floricultura, Coline na escola e Mathieu na sala dele,
engulo em seco sem saber o que fazer, mas caminho para o portão.
— Já estava pensando em invadir. Pronta para ir embora?
– Ele tem a voz suave e alegre, me assusta ainda mais.
— Não vou, pai – digo juntando toda minha coragem. –
Posso decidir e eu não vou. Tenho um trabalho agora, consigo viver
dele e tenho... amigos que gostam de mim.
— Eu sei bem que está por aí solta. Lolla nem mesmo está
na cidade. – Ele nem parece o mesmo homem, fico sempre
esperando a explosão e como ela não vem, a dúvida me atinge
sempre, talvez ele tenha mesmo mudado ou é apenas um jogo para
me convencer. – Também descobri outra coisa. – Agora vejo uma
certa raiva cintilar em seus olhos, torço os dedos olhando para a
casa e para floricultura. – Não quer saber o que mais eu descobri?
— Não. Eu prometo que vou visitá-lo sempre que puder,
papai.
— Essa não é a casa do seu chefe, é a casa do seu
namorado, anda dormindo com ele? Enfiada nessa mansão como
se não tivesse pai para cuidar de você, é isso que a Lolla te ensina?
— Não fala da Lolla, ela é muito especial e generosa. – Uso
o mais determinado tom que consigo impor à minha voz, Lolla me
acolheu e me apoiou quando eu não tinha ninguém.
— Se fosse uns meses mais nova eu te arrastava de volta
para casa, mas não posso, então espero que me escute, você vem
comigo agora, Emily, chega dessa brincadeira. Está me ouvindo? –
Ele perde finalmente o controle, dou uns passos para trás.
— Horses Valley inteira está ouvindo. – Mathieu surge com
olhos assustadores, acho que nunca o vi tão irritado, ele é sempre
tão gentil. – Esse é seu pai, Emy?
— Está envolvida com um homem que tem idade para ser
seu pai? – meu pai diz furioso.
— Ela namora o meu filho e ele não está, mas eu estou e
não sei como funciona na sua cidade, mas aqui, as pessoas não
ficam gritando na rua.
— Estou falando com a minha filha! – Meu pai volta a gritar
e eu podia morrer de tanta vergonha, agora sim Mathieu entende
que não sirvo para Guy.
— Está na minha casa! – Mathieu responde no mesmo tom,
umas poucas pessoas que estão passando diminuem o passo, não
sei o que fazer. Olho de um para o outro, os dois se enfrentam e
temo por Mathieu, papai sempre foi encrenqueiro.
— Vamos embora, Emily! – Meu pai pega meu braço com
força.
— Solte-a ou vai terminar o dia na cadeia. Nesta cidade
existem leis e agressão é crime. Emily, você quer ir com ele?
— Não! – digo rápida e decidida. Talvez seja a presença de
Mathieu me dando força, mas sinto uma força nascer em mim. – Eu
não vou com você, não quero, você não é meu dono, é meu pai e eu
vou sempre me lembrar disso, se algum dia precisar, saiba que vai
ter em mim todo apoio, porque mesmo sendo quem é, sinto ser
minha obrigação cuidar de você.
— Não é favor nenhum! – ele diz assim que me solta o
braço.
— Também vou sempre me lembrar que me machucou e a
mamãe, por isso estou aqui, morando com a Lolla quando podia
estar na minha própria casa, vou sempre me lembrar que antes de
morrer a mamãe me pediu para procurar ajuda e deixá-lo. – Ele fica
tão chocado com a minha súbita força que desta vez é ele a dar uns
passos para trás. – Sei onde encontrá-lo e sabe onde me encontrar,
se ficar doente ou... precisar, ajudo, mas morar com você não moro
e não obedeço mais a suas ordens, nunca mais.
— Você a ouviu, eu mesmo levo Emily para vê-lo se
precisar – Mathieu diz a ele que continua em sua fúria silenciosa, os
olhos cheios de raiva.
Qualquer coisa em minha memória me leva para o dia em
que assisti encantada a Gwen domando um cavalo selvagem, sua
força, seu silêncio decidido, sua capacidade de amar aquele animal
que desejava de todos os modos esmagá-la e que por fim, aos
poucos, diante de sua força, se rendeu, curvou-se.
É essa força que ele precisa encontrar em mim, encaro meu
pai, olho em seus olhos, por um longo momento eu enfrento seus
olhos, sem gritos, sem verdades despejadas, apenas a força de
alguém que sabe o que quer e que não pode mais ser maltratada.
Ele enfrenta meus olhos, tenta impor sua força, mas eu não
me dobro, tenho força, mas também paciência e espero, não sei
quanto tempo dura, um instante, uma hora, mas vejo acontecer, ele
se rende, meu pai se rende e seu corpo todo relaxa, é quase como
o cavalo selvagem que se curvou.
— Se quer isso para sua vida, então vá em frente, não vou
mais tentar te salvar de uma vida vulgar, vá em frente e quando
arrebentar a cara, não volte. – Ele me dá as costas, é toda a dor que
vive ao seu lado vai embora com ele.
Entendo finalmente que ele não mudou nada, que assim
que colocasse os pés de volta em sua casa, tudo seria como antes
e agora ainda pior, sem mamãe para dividir a dor comigo e longe do
Guy.
Só quando ele desaparece é que consigo tomar coragem
de olhar para Mathieu.
— Sinto muito, eu... acho que pensa que não sou boa
companhia para o Guy e talvez nem queira mais que eu trabalhe
aqui, mas eu preciso dizer que não o chamei, ele... veio.
— Ontem eu disse que não estava sozinha e não está. –
Ele me sorri. – Vamos entrar e trabalhar, falei sério, quando quiser
ver seu pai eu me comprometo a levá-la, se vai se sentir melhor não
o abandonando de uma vez, tem meu apoio e só mostra o quanto é
generosa.
— Não está bravo pela vergonha que o fiz passar?
— Você? – Ele sorri. – Mocinha, não era você gritando no
meu portão e por fim, eu não senti vergonha, ele é que devia sentir,
mas seu pai é o tipo que não sente.
— Obrigada, Mathieu. Queria que ele fosse como você. –
Mathieu me sorri.
— Vamos, eu gosto de ter você conosco, Emily e sei que
meu filho está apaixonado. Então apenas esqueça o que acabou de
acontecer. – Balanço a cabeça confirmando, olho para Mathieu que
está voltando para seu escritório, ele é um bom homem, queria que
fosse o meu pai.
Fico tão angustiada, nervosa, com medo, triste, só queria
Guy aqui para me abraçar, me fazer despertar, ele é meu porto
seguro e eu sou o dele, mesmo que todos os outros sejam bons e
generosos comigo, ainda não é o meu Guy.
Capítulo 26
Guy

Uma funcionária do aeroporto me acompanha até o


desembarque onde o motorista que contratei me espera.
— Ali está, um senhor o espera com uma placa com seu
nome.
— Ótimo, esse mesmo.
— Ele é o Guy Montpellier? – A voz masculina pergunta a
minha acompanhante.
— Apenas não enxergo, senhor, mas escuto bem, pode se
dirigir a mim.
— Desculpe, rapaz, é estranho porque nunca vim buscar
ninguém que não... que ...
— Cego, pode dizer cego, não me ofende, é o que eu sou.
– Sorrio para amenizar a situação, é tão comum passar por isso que
não me atinge mais, mas eu sei que atinge pessoas que eu amo. –
Obrigado pela carona, senhorita.
— Foi um prazer, bom retorno – ela diz quando o homem
pega em meu braço na intenção de me ajudar a caminhar.
— Senhor. – Eu seguro sua mão. – Vamos fazer diferente,
eu me apoio em seu ombro, pode ser?
— Claro, só quero ajudar – ele diz enquanto coloco minha
mão sobre o seu ombro e uso a bengala para me guiar, eu só
consigo pensar em como Lumière mudava a ordem das coisas, tudo
era mais leve com ele, mais simples.
Atravessamos o saguão do aeroporto, quando chegamos
do lado de fora, sinto o calor da tarde bater em meu rosto, aspiro o
ar quente de Dallas e fico feliz ao me dar conta de que em duas
horas vou estar em casa e será uma surpresa para todos.
O combinado era meu pai vir me apanhar no aeroporto,
mas eu decidi que podia vir sozinho, Peggy ainda tentou me
demover da ideia, mas Ky ficou ao meu lado e vencemos.
Tantas pessoas nas mesmas condições que eu vivem
sozinhas no mundo, com muito menos dinheiro e muito mais
dificuldades, eu tenho muita sorte e posso reconhecer isso e
agradecer.
Acomodo-me no banco de trás, o homem guarda minha
pequena mala no porta-malas do carro, escuto a porta bater.
Percebo quando ele entra no carro e fecha a porta dianteira.
— Pronto? – ele me pergunta.
— Por favor – digo me acomodando mais no banco.
— É tão jovem para andar sozinho por aí – ele comenta me
fazendo sorrir, vai ser uma viagem acompanhada de conversa, por
mim tudo bem, deve mesmo me ajudar a me distrair.
— Já tenho idade para isso, não se preocupe.
— Faz o quê? Estuda?
— Sou músico.
— Ah! Eu não vi nenhum instrumento, músicos sempre
andam com instrumentos, toca em uma banda?
— Sou pianista, não, eu não toco em banda, nem em uma
sinfônica, escrevo para a Broadway e Hollywood.
— Novinho assim? Quanto talento. Sua mãe deve estar
orgulhosa, ainda mais sendo...
— Cego – eu completo sorrindo. – Ela está.
— Desculpe, vou me calar, não sei direito o que falar e vou
acabar deixando você chateado.
— Está tudo bem, pode conversar comigo e se expressar,
pode me perguntar as coisas, não é obrigado a saber como agir,
infelizmente ficamos em nossa maioria um tanto protegidos do
convívio social, não dá para culpar todo mundo por não saber agir.
Por isso estou aqui, andando sozinho e me colocando no mundo, de
algum modo, ajudo a pessoas como você.
— Da para entender por que já tem um bom emprego, você
é bem inteligente, gostei disso, posso mesmo perguntar tudo?
— Deve.
É o que ele faz, me enche de perguntas das mais comuns,
como eu vejo as horas até as mais complexas, é bom ter espaço
para falar disso.
— Então pode chamar de cego porque você não vê
nadinha, e tem gente que é deficiente visual porque vê um pouco,
ou luzes, ou vultos.
— Isso mesmo.
— E você vive na escuridão. – Ele imprime pena a sua voz,
eu percebo e mesmo isso posso aceitar, é alguém que não me
conhece, que sempre esteve afastado da realidade de gente como
eu.
— Não. Tem muita luz em minha vida, e eu não vejo tudo
escuro, eu não vejo. Apenas isso.
— Eu não consigo imaginar como pode ser isso.
— Não é como quando você fecha os olhos, nesse caso,
você vê a escuridão, eu apenas não uso esse sentido, uso todos os
outros.
— Certo! Isso foi ótimo, uma hora de viagem em boa
conversa, gostei muito, vou deixar você descansar um pouco.
— Também gostei bastante – digo me encostando na
janela. Uns instantes de silêncio e relaxamento bem que ajuda. –
Vou descansar um pouco – aviso antes de deixar minha mente
viajar até Emily. Tantas coisas que entendi, tanto que quero contar a
ela, conversar.
Vai ser uma surpresa para todos, depois dela me dizer que
estava na minha cama, o que mais esperava, foi uma noite de cão e
pela manhã, nada me seguraria em Nova York.
Cinco horas de voo e mais duas de estrada e só quero
mesmo abraçar Emy e dizer que eu a amo, que sabia antes de ir,
mas que Nova York me encheu de certezas.
Talvez digam que sou jovem demais para amar como amo,
mas minha alma é velha, eu aprendi a conhecer as emoções,
aprendi a enxergar com meu coração, com minha alma, com toque,
aspiração, todo meu corpo diz que é ela e, é para sempre.
Foi rápido, mas real, intenso, certo. Emily é a mulher com
quem vou construir meu futuro e assim que chegar vou dizer isso a
ela.
Sei que posso contar com meus pais, eles vão entender,
meu pai e minha mãe conhecem o que o amor pode fazer, eles
viveram um amor desses que ilumina a mais profunda escuridão,
não vão me negar a chance de viver o mesmo.
Fico sonhando com ela, com sua pele e o seu cheiro, me
imaginando em seus braços, sob os lençóis, ao som de uma sonata.
“Onde está o seu tesouro, estará também seu coração”.
Emily é meu tesouro e foi com ela que deixei meu coração
e ficar sem ele machucou.
Quero beijar seus lábios, envolver Emily, mergulhar em seu
amor, emaranhar meus dedos em seus longos cabelos.
Emily é só certeza, só vida. Podia abrir a janela e gritar pela
estrada que eu a amo, que ela é meu destino, meu futuro.
Eu amo um anjo, um lindo anjo de inocência e doçura que
compreende minha alma. Sim, eu amo um anjo.
— Chegamos – o homem diz estacionando. – Mas que
jardim lindo, parece de cinema. Acho que já vi esse jardim em algum
filme.
— Poderia ser – digo abrindo a porta e deixando o carro. A
corrida paga pela internet sempre me facilita a vida – Obrigado.
— Sua mala – ele diz colocando a mala ao meu lado e
levando minha mão até ela. – Vai ficar bem?
— Sim, estou em casa.
— O portão fica à sua esquerda – ele me avisa e eu sorrio.
— Sim, eu sei, me guio pelo perfume das minhas flores.
Bom retorno. Obrigado pela companhia.
— Boa sorte com sua vida.
— Obrigado. – O perfume das flores me guia para casa,
enquanto arrasto a mala me dou conta que nenhum outro lugar do
mundo pode ser a minha casa, este é o lugar em que quero
envelhecer, entre as flores da minha mãe e o túmulo de Lumière.
— Guy! – A voz surpresa de mamãe chega quase junto de
seu abraço. – Que surpresa! Saudade! O que faz aqui, como
chegou? Peggy...
— Vim sozinho, mamãe, já sou praticamente um
homenzinho – brinco enquanto ganho alguns beijos e outro abraço.
— Filho! – Papai se aproxima surpreso. – Tinhamos planos
de buscá-lo em Dallas.
— Oi, papai. – Nós nos abraçamos. – Estraguei os planos
de todos, acordei cheio de tanta saudade que tive que largar tudo e
voltar.
— Sabemos saudade de quem.
— Ah, bobalhão, o que tá fazendo aqui? – Coline me
pergunta enquanto tenta me escalar em busca de colo. Eu a ergo
nos braços, beijo seu rosto, cheirinho de bebê, como quando tinha
uns meses e eu ficava horas com ela no colo sentindo esse
cheirinho de irmã. – Agora não vamos mais para Dallas.
— Vamos sim, só quis fazer uma surpresa pequena ingrata
e trouxe presentes.
— Uhuu! – ela comemora me apertando o pescoço. – Te
amo.
Coloco minha garotinha no chão, beijo seu rosto antes de
tatear a mala e encontrar o zíper, abro a mala no chão da sala,
separo o presente de Emily, um colar de ouro com um pingente de
coração bem delicado, uma pedrinha vermelha que vai fazê-la se
lembrar que é o meu tesouro e que por isso, carrega meu coração.
Guardo seu presente no bolso do jeans e fico de pé.
— Divirta-se Coline, tem vários presentes para você. Tudo
bem se eu for agora mesmo ver minha namorada? – pergunto a eles
para não os chatear.
— De jeito nenhum, mas não precisa ir muito longe, Emily
está lá em cima no estúdio, sentiu tanto sua falta que teve coragem
de pedir para tocar um pouco.
— Eu tenho que contar a ela uma coisa muito importante –
digo a eles sem conseguir parar de sorrir. – Não vão perguntar o
que é?
— O que é? – papai pergunta.
— Eu a amo.
— Todo mundo já sabe disso, olha que vestido lindo,
mamãe! – Coline gosta dos presentes, Peggy Sue tem bom gosto.
Gastou uma tarde comigo em compras.
— Bem, eu estou no meu quarto, sem fome, sem pressa,
só apaixonado.
O riso dos meus pais se confunde com as pequenas
comemorações de Coline com os presentes.
Subo as escadas emocionado, Emy está tocando em meu
estúdio, enquanto pensa em mim, provavelmente a pior melodia do
mundo, sem qualquer talento, mas ainda assim, a mais bela música
do mundo.
Abro a porta com cuidado, escuto o som do piano em seus
acordes semitonados que me fazem sorrir e ao mesmo tempo me
emocionam, pelo modo como as notas não param ela não me notou
entrar.
— Perfume de mel e morangos silvestres.
— Guy! – Os dedos esbarram no teclado e mil sons se
misturam enquanto a sinto me envolver o pescoço. – Que surpresa!
— Vim pegar meu coração de volta. – Ela tem as mãos
espalmadas em meu rosto.
— Nem acredito que está aqui. – Sua voz soa emocionada
e urgente, minha boca cobre a sua antes que tudo, preciso sentir
seu sabor, matar a fome que me dominou todos esses dias quando
só pensei nela.
Finalmente estou de volta em casa, a boca de Emily é o
meu lar, seus beijos meu refúgio. Nós nos afastamos para um longo
abraço, sentir os corações se acelerarem.
— Como pode ir embora levando meu coração com você?
– ela diz antes de mais um longo beijo.
— Tanto que quero te dizer. Vem? – Eu a puxo pela mão
em direção à porta ao lado, sonhei estar com ela em meu quarto,
como ela me descreveu, Emy aperta mais minha mão quando
entramos, encosto a porta, sinto sua mão sobre meu peito, coloco
minha mão sobre a sua.
— Não pude ir para casa depois do trabalho, queria ouvir
seu coração batendo, então fui para o piano, tocar as incansáveis
notas que me ensinou, não sabia que estava esperando por você.
— Seu coração sabia – digo a ela que se encosta em meu
peito.
— Acho que sim, de todos os dias da minha vida, esse foi o
que mais senti saudade. — Corro meus dedos com cuidado sobre
seu rosto, saudoso dos seus traços, da textura da pele, de tudo que
conheço de Emy e tudo que ainda vou descobrir.
Tiro a caixinha do bolso, entrego a ela e ouço o suspiro de
surpresa.
— Guy...
— Abre – peço a ela.
— Guy... é lindo – ela diz um instante depois.
— Para nunca esquecer que é o meu tesouro e onde está
meu tesouro, está também meu coração. Eu te amo, Emily.
— Eu... eu quis tanto ouvir, quis tanto dizer. – Ela leva
minha mão até seu colo, onde posso sentir a joia a enfeitá-la. – Amo
você, Guy. Não importa que pensem que não tenho idade ou
experiência para amar, eu o amo com todo o meu coração. Como se
só você pudesse morar nele.
Sorrio enquanto sinto a joia pulsar junto as batidas do seu
coração, é como se o meu coração agora batesse junto com o dela,
no mesmo ritmo, na mesma melodia repleta de amor.
Sua boca procura a minha, sinto seu beijo cheio de
entrega, seus dedos tocam meu rosto, os meus deixam seu peito
para correr lentos pelos braços alongados, encontrar sua cintura e
puxá-la para mais junto de mim.
— Emy... eu...
— Estou pronta, Guy. Queria que me visse por inteiro.
— Amo um anjo – sussurro em seu ouvido enquanto a
sonata em Si Menor toca em minha mente, se espalhando sobre o
meu amor, nos misturando.
Meus dedos sobem por suas costas até o botão do vestido
de tecido leve, desabotoo com cuidado, com cuidado, meus dedos
afastam a peça libertando a pele macia e perfumada.
Afasto-me dela para tirar minha camiseta, trago suas mãos
para me tocar o peito, sua respiração descompassa, o coração
acelerado como o meu, o carinho das mãos suaves a me conhecer
enquanto liberto mais de seu corpo.
Minha boca procura a sua, um longo beijo que nos une
enquanto apressados vamos terminando de nos despir entre beijos
e esbarrões, sorrio antes do meu corpo se colar ao dela e sentir seu
calor por completo.
Eu a convido e de mãos dadas vamos até a cama, seus
cabelos se espalham suaves pela cama, me encantando, quando
toco os longos fios.
— Me deixa conhecer você? – pergunto a ela antes de
tocar sua pele como realmente quero.
Ela pega minha mão, primeiro leva aos lábios, sinto um
beijo leve e então Emily deixa minha mão sobre seu colo, livre para
percorrer seu corpo. Descobrindo a delicadeza dos seios, a
suavidade das curvas, ela suspira quando minha mão desce lenta
por seu abdômen, meus lábios percorrem o mesmo caminho, seus
dedos sobem suaves por minhas costas e sinto as pontas das
unhas me arranharem em uma espécie de carinho e desejo.
— Guy! – ela diz meu nome e soa com tanto amor, me
move para um novo mundo, onde nada mais existe senão, amor.
Capítulo 27
Emily

— Je t’aime, mon ange! – ele sussurra em meu ouvido,


meu coração descompassa, erra as batidas é comum em seus
braços, mas nada se compara ao que sinto enquanto Guy me
desvenda, fecho meus olhos.
Quero sentir como ele sente, provar esse momento com a
mesma perspectiva. Minha boca seca, meus pulsos aceleram, eu
não reconheço meu corpo, é tudo novo, os mistérios revelados na
beleza de um fim de tarde dourado.
— Eu amo você – Repito para que dê algum modo, ele me
entenda como estar com ele me faz viva, intensa, entregue.
Sinto como se anjos abrissem suas asas sobre nós, nos
banhando com a pureza do amor, nada é tão libertador quanto amar
e eu amo.
Amo com minha alma, com meu coração e agora também
com meu corpo. Minha boca e a dele brincam, se provocam,
procuram, ele percorre com suas mãos cada parte minha e nada me
constrange, quero que Guy me decore em seu coração, que cada
parte que seus olhos não podem ver ganhem forma em seu
coração.
— Tenho proteção – ele me conta e eu não sei se ele tinha
planos definidos, mas eu não pensaria em nada, não me importaria
com nada, porque nesse instante só meu corpo governa, só meu
desejo tem voz e sou dele, sem pensar no futuro, no passado, ou no
mundo lá fora.
Pensei que sentiria medo ou vergonha, mas me sinto
mergulhada e entregue, sua voz soa como uma oração. Aos
poucos, enquanto nos beijamos, meu corpo e o dele vão se unindo,
sem dor, sem pressa, não abro os olhos um único instante, porque
como Guy, só quero senti-lo.
— Você me fascina! – conto a ele, sem saber como conter
o desejo, sem forças para nada além de sentir seu corpo e o meu,
esta será sempre a nossa melodia. – Guy! – digo seu nome, então
sua boca encontra a minha e sinto minha alma viajar finalmente
para além de mim, numa doce tempestade de emoções que leva
dias, anos, eternidade.
Leva tanto tempo para sair do torpor, abrir meus olhos
lentamente e encontrar o sorriso suave dele enquanto suas mãos
ainda passeiam por minha pele, mas dessa vez, não para me
descobrir, não para me enlouquecer, é apenas seu carinho.
— Não sabia que podia ser tão bonito.
— Nem eu – ele brinca com seu sorriso se ampliando.
— Estou com vergonha da sua família – confesso voltando
lentamente à realidade.
— Está tudo bem, meu anjo, eles não vão pensar nada.
Somos namorados, nos amamos, estou em casa, no meu espaço,
nosso agora.
— Você me ama – digo sem conseguir parar de sorrir feito
uma boba. Aconchego-me em seu abraço, ele é tão lindo e intenso,
me faz tão feliz. – Quando descobriu?
— Quando estive longe de você, confirmei o que sentia
quando perto, que você é a garota que pode me fazer feliz e só
você.
— Estava precisando tanto de você – conto a ele que
brinca com meus cabelos. – Tanta coisa aconteceu enquanto esteve
fora.
— Deixei coisas a fazer, mas quem sabe quando tiver que
voltar vai comigo. Gostaria?
— Nós dois perdidos pela cidade grande? – Ele balança a
cabeça afirmando. – Sim, muito!
— Então está feito, vamos em algumas semanas.
— Depois do casamento do Jimmy e da Penny Lane, eles
vão casar rápido é o que ela disse. Ah! Meu Deus, ela disse que
vinha hoje aqui, se ela chegar...
— Meus pais vão dizer que não pode recebê-la, eles são
espertos. – Cubro meu rosto pensando que antes do fim da noite a
cidade toda já vai saber o que aconteceu. Guy solta uma longa
gargalhada. – Não fica com vergonha, está tudo bem.
— Sei lá. Eu fico pensando se vão falar de mim.
— Talvez falem, mas quem se importa?
— Ninguém! – digo mais decidida que nunca. – Eu te amo e
estou muito feliz e estava tão angustiada com a visita do meu pai, se
não fosse o Mathieu eu nem sei...
— Seu pai esteve aqui? – ele me interrompe.
— Sim. Queria que eu fosse com ele, primeiro tive um velho
ataque de culpa, como se eu devesse ir porque ele é meu pai, então
veio tudo à minha mente, tudo que ele fez a mamãe passar e eu
também, vi como sou feliz aqui, como as pessoas me enxergam
como um ser humano e me tratam com respeito, seu pai estava por
perto e foi protetor e generoso e quis por um instante que ele fosse
o meu pai.
— Querendo roubar meu pai – ele brinca para amenizar
minha agonia. – Eu o divido com você.
— Obrigada. – Beijo Guy. – Bem, por fim, eu acho que o
enfrentei, talvez eu esteja errada, mas ninguém tem direito o de
julgar isso, só eu e quero que seja assim, prometi e vou cumprir, vou
visitá-lo e cuidar dele se precisar, ser generosa com nós dois e
tentar esquecer tudo, mas não vou voltar a viver com ele, do jeito
que ele quer que eu viva.
— Muito bom, só me faz amar ainda mais você. Admirar
também. Conte comigo, para ir até ele no instante que ele precisar
de você, mas tem que seguir seu caminho e fazer suas escolhas. É
o certo.
— Vou pedir emprego para Lily! – conto a ele já que
estamos conversando. – Seu pai é generoso e eu sou grata, mas
Guy, ele não precisa de mim e o que eu faço... estar aqui, com
vocês, isso me faz feliz, mas não o trabalho, gosto da cozinha,
entende?
— Entendo e está certa, mas Lily também não precisa de
ajuda, ela tem a filha e o genro que a ajudam e vão herdar o lugar.
É como um banho de água fria, tinha planos de começar a
trabalhar lá, porque conheço todas aquelas receitas, um dia, quando
juntasse bastante dinheiro, eu abriria meu próprio negócio.
— Tem razão – digo meio decepcionada. – Melhor não
falarmos disso agora, essa cama tem que ser lugar de amor.
— Amor, sonhos, esperança, desabafo – ele diz com os
dedos desenhando meu rosto. – É um lugar sagrado para coisas
sagradas e nosso futuro é uma delas, eu já sei o que quero, como
quero viver, quero estar aqui com você, quero descansar em seus
braços e compor no meu estúdio, viajar vez ou outra para algum
trabalho, mas voltar, porque esse é meu lugar, no Vale.
— É bom pensar que Sempre Teremos o Vale – digo
emocionada. – Sempre quis um lugar assim, que me fizesse sentir
feliz, protegida, sem a frieza das grandes cidades.
— É exatamente assim que me sinto – ele diz entre um
beijo e outro. – Você vai encontrar um caminho.
— Até lá não vou mais pedir demissão. Não conta isso para
o seu pai. – Guy tem um ataque de riso que me deixa meio brava. –
Para de rir, Guy! Que absurdo!
— Desculpa, meu anjo. Você é tão linda. Vamos dar um
jeito nisso, tenho muitas ideias.
— Tem? Me conta.
— Que tal me beijar e me amar de novo? É uma ótima
ideia.
— Muito esperto. – Sorrio pensando que é isso mesmo que
quero. Amar o Guy e mais nada.
Tomo um banho rápido quando a noite já caiu e preciso
voltar para Lolla, ela já está de volta e nem fui vê-la, a essa hora
deve inclusive saber que o papai esteve aqui.
Guy se veste ao meu lado, tem um tom de intimidade novo
nascendo, em outro momento, ficaria tímida mesmo sabendo que
ele não pode me ver, mas agora é diferente, agora eu me sinto parte
dele, como se isso fosse um tipo de complemento.
— Queria que passasse a noite aqui – ele diz me
envolvendo a cintura quando finalmente estamos prontos.
— Não. Eu acho que ficar dormindo sempre aqui não é
certo, somos só namorados, quem sabe no fim de semana? Se me
convidar.
— Está convidada a dormir aqui todos os dias de sua vida –
ele diz me beijando os lábios e depois o pescoço.
— Amo você. Me leva lá em baixo, estou com vergonha dos
seus pais. Com medo de como eles vão nos olhar.
— As vantagens de ser cego! – ele brinca e suspiro, melhor
me acostumar, Guy é feliz demais para se importar com coisas
como essas, ele é tão iluminado e amoroso, que a vida o cercou de
bons amigos, uma linda família e muito amor.
Os pais de Guy estão na sala, o casal parece estar
decidindo sobre algo diante de papéis.
— Esse é lindo. – Mandy diz erguendo os olhos para nós
dois nas escadas. – Com fome meninos?
— Morrendo, mamãe! – Guy se apressa.
— Não fizemos o jantar ainda, mas tentem um sanduíche.
— Tenho que ir, Lolla chegou e não fui vê-la – eu aviso, o
casal me sorri achando minha decisão correta.
— Eu como qualquer coisa.
— Estamos decidindo sobre uma nova decoração de
presente para Coline, ela pediu para mudar a cor das paredes e
como ainda dorme em um quarto de bebê, vamos redecorar, quer
mudar algo, filho?
— Não, papai, meu quarto está perfeito, ainda não enjoei
da cor das paredes. – Para ouvir riso depois da piada, só mesmo se
Jimmy estivesse aqui.
— Bem, melhor eu ir. Até amanhã. – Aceno para o casal
que me sorri de volta.
— Até amanhã, querida, gostamos muito de ter você aqui, é
bem-vinda para dormir quando quiser. – Mandy me convida com a
sua gentileza.
Guy aperta minha mão, não pode ver meu rosto corar,
acabamos de ter nossa primeira vez, eu acho que está escrito em
minha testa e depois disso, fica ainda mais claro que eles sabem.
— Obrigada – Apresso-me para a saída, cruzamos com
Jerry e Coline brincando no quintal, apenas aceno para as crianças,
está uma noite linda e quente, Guy me puxa pela mão quando
chegamos ao portão.
— Vou dormir pensando em você.
— Vou sonhar com você, Guy!
— Amo você, avisa a Lolla que vai passar o fim de semana
comigo.
— Se eu não morrer de vergonha, mas tenho que admitir
que seus pais são especiais demais.
— E amam você, como eu amo. – Eu o envolvo pelo
pescoço. – Primeiro beijo de boa noite – ele diz antes de me beijar.
– Segundo beijo de boa noite, é a garota mais linda do mundo. – Ele
me beija mais uma vez. – Último beijo de boa noite. Eu amo você.
— Te amo, tchau! – Solto-me dele ou jamais me afastaria,
corro para casa dividida entre a vontade de contar a Lolla e a
vergonha, poderia ir até Penny Lane, mas talvez ela esteja com
Jimmy, aposto que foi por isso que não veio me contar, mas Penny é
uma mulher madura, não precisa dar explicações para ninguém.
Lolla está sozinha quando chego, me abre um sorriso largo
e corro para abraçá-la.
— Que abraço bom! – Eu acho que só o abraço do Guy se
compara ao abraço de Lolla Queen. Ela tem o melhor abraço do
mundo, envolve, dá segurança.
— Como você está?
— Bem. Tenho coisas para contar.
— Adoro quando alguém tem coisas para me contar – ela
brinca se acomodando no sofá, me sento ao seu lado, ficamos
frente a frente e não sei por onde começo.
— Primeiro a parte difícil. Meu pai esteve aqui. – Ela não
demonstra surpresa.
— Uma hora ele viria atrás de você. Como foi?
— Difícil, mas definitivo, não vou voltar para casa dele e
acho que agora ele entendeu, acha errado?
— Não meu anjo, isso é o certo e seguro para você.
— Mas não vou abandoná-lo, se ele precisar, eu cuido dele.
– Ela me sorri, aperta minhas mãos presas as suas. – Talvez eu o
visite de vez em quando, mas não por agora, só quando ele
realmente compreender tudo isso. Que sou sua filha, mas sou livre.
— Acho que sua mãe está orgulhosa de você. – Isso me
emociona e balanço a cabeça concordando.
— Aquelas mágoas todas, a culpa, tudo isso parece que
me deixou, estou bem decidida sobre o papai. – Lolla me puxa para
um abraço apertado, me dá um beijo carinhoso no rosto.
— Que bom meu anjo, fico bem feliz.
— Lolla... – Meu rosto queima, desvio meus olhos dos dela.
– A outra coisa que tenho que contar é que eu e o Guy...
— Transaram! – Ela completa e olho para Lolla assustada.
— Dá para perceber, não é mesmo? Sabia que dava. Que
vergonha.
— Que bobagem, não dá para perceber nada. Apenas... eu
sei que sim porque ficaram uns dias sem se ver e telefonei quando
cheguei, primeiro para o seu celular, nada, então liguei para Mandy,
pedi para falar com você e ela disse que estava no quarto e que não
pretendia atrapalhar, meio que entendi.
— Estou morrendo de vergonha! – digo cobrindo o rosto.
Lolla ri da situação.
— Não seja boba, Emily, é uma jovem adulta, dona da sua
vida e apaixonada, está tudo bem, quase tudo bem.
— Por quê? Como assim?
— Vamos ao médico amanhã cedo, precisa tomar
precauções e cuidar da sua saúde, agora é uma mulher e frequentar
o ginecologista é importante.
— Vai comigo? Nunca fui, papai não queria que a mamãe
me levasse, na cabeça oca dele era como me incentivar a ter uma
vida sexual, ele... ah, não quero pensar nele agora.
— Pensar no seu pai me causa ondas de rancor. Me conta
como foi?
— Ah, não conto não, tenho muita vergonha desse assunto,
mas estou muito, muito feliz.
— Então foi muito, muito bom – Lolla brinca. – Que acha de
prepararmos o jantar?
— Ótimo!
Lolla me conta como estão todos em Dallas, sobre a família
do Jay que me acolheu e, uma nova criança que está sendo levada
para Niara, acho que nunca conheci alguém tão boa quanto Niara,
nem mesmo Lolla Queen ou Mandy que tanto admiro têm um
coração maior que o dela. Quando, depois de tudo, vou para cama,
é Guy a me tomar todos os pensamentos, me enchendo de
saudade, falamos por quase uma hora ao telefone e então consigo
dormir.

*********

— Obrigada por me acompanhar, Lolla, morreria de vergonha


sozinha lá. – Ela me aperta a mão quando deixamos o consultório.
— Vou passar no Sanders e comprar seu remédio, não que
alguém tenha algo com isso, mas assim não fica com vergonha –
ela diz me causando um grande alívio. – Agora vá para o seu
trabalho.
— Tão chato chegar assim atrasada. Mathieu é tão legal
comigo.
— Mandy avisou a ele, com certeza, é só ficar um pouco
mais e compensar se vai se sentir melhor.
— Boa ideia, obrigada por tudo, Lolla, você é incrível.
Prometo que logo arrumo meu cantinho e deixo sua casa.
— Eu sendo incrível com você e você me dando más
notícias! – ela brinca. – Fique o tempo que quiser, Emily.
— Obrigada! – digo antes de nos despedirmos. Sigo para
casa do meu amor, nem acredito que tivemos momentos tão
especiais. E o melhor é que vamos repetir, repetir deve ser ainda
melhor, Lolla acha que tenho que conversar com ele sobre ter ido ao
médico, vou fazer isso, ser madura tem essas coisas.
Mathieu está no trabalho, Mandy no jardim, Guy ao piano e
Coline na escola, eu amo essa família e como tudo se encaixa entre
eles.
— Bom dia, meu amor! – Guy deixa o piano, eu o abraço, é
isso que eu chamo de voltar para casa, beijar e abraçar Guy. –
Sonhei com você, com nós dois naquela cama – ele sussurra em
meu ouvido, fico vermelha ao mesmo tempo, uma onda de calor me
percorre o corpo.
— Também – digo a ele que me beija outra vez e então me
afasto. – Chega, já me atrasei, não posso ficar aqui aos beijos.
— Eu vou trabalhar aqui quietinho no meu piano – ele avisa
e vou para o escritório de Mathieu.
— Bom dia, chefe.
— Bom dia, não precisa se explicar, Mandy me disse que
tinha um compromisso cedo, está tudo certo. – Ele é sempre
generoso e gentil.
Depois de umas horas fazendo quase nada, escuto Brenda
na cozinha, meu trabalho acabou e vou até lá ajudá-la, ela cozinha
bem, mas não ama como eu amo e fica feliz pela ajuda, quando a
mesa está posta, Brenda vai embora, ela nunca fica muito além da
hora do almoço, só ajuda porque todos trabalham na casa e não
sobra muito tempo para limpar e cozinhar.
Quando nos reunimos em torno da mesa me dou conta que
me sinto em casa, ao menos na hora das refeições eu não tenho
mais tanta vergonha.
— Temos um delicioso pernil assado com batatas, um
molho cítrico de frutas reduzido do caldo do próprio pernil, uma
salada verde-escura com alguns fios de beterraba para colorir e um
molho que refresca a boca feito de gengibre.
— Quem aguenta essa garota? Ela descreve de um jeito
que dá vontade de comer tudo – Mathieu brinca. – Aposto que tem
seus dedinhos neste cardápio.
— Sim, eu ajudei a Brenda. Ela já foi, mas levou um pouco
de tanto que gostou do cheiro da comida.
— Você perde muito tempo trabalhando comigo, Emy. –
Mathieu diz me assustando.
— Juro que eu não disse nada, me pediu e não falei. – Guy
me conta baixinho, não baixo o suficiente e ganho todos os olhares.
Agora cairia bem alguma piada de cego, mas Guy está silencioso.
— O que não queria que soubéssemos, Emily? – Mandy
me pergunta. – Quer dizer, se não quer contar, não precisa.
— É que eu... eu tinha pensado em pedir um emprego para
a Lily, porque gosto muito de cozinhar, mas o Guy já me explicou
que a família dela trabalha com ela.
— E por que não pensa em seu próprio espaço, como
disse que queria? Seria um lugar perfeito.
— Eu... eu penso, um dia quando conseguir juntar algum
dinheiro para começar, sei que vai demorar, mas não vou desistir.
— Emy, sabe o que eu faço? – Mathieu me pergunta e
balanço a cabeça que sim, depois que não.
— Sei um pouco, mexe com dinheiro, Bolsa de Valores, um
investidor.
— Sim, é isso que eu faço, invisto em sonhos também.
— Eu não sei o que isso quer dizer – admito.
— Que podemos ser sócios, o que acha? Dou o dinheiro do
restaurante e você divide os lucros comigo até pagar meu
investimento e mais cinquenta por cento do que investi, a longo
prazo é um bom negócio para os dois.
— Você... eu... eu não sei o que dizer. – Parece quase um
milagre, não sei se devo aceitar ou recusar, se é certo, se ele está
fazendo isso pelos motivos certos.
— Diga sim, Emy, é o que ama fazer e vai ser tão feliz
fazendo isso que logo o dinheiro investido vai voltar para o papai, é
tolice recusar só porque somos namorados.
Guy aperta minha mão, noto em seu rosto as certezas que
me faltam. Eu quero isso tanto que me emociona e assusta, nem sei
se tenho condições de ter um restaurante, administrar um negócio
como esse, ainda que começasse tão pequeno quanto sonho, meu
coração bate acelerado.
— O que me diz? – Mathieu me questiona.
— Não tão rápido! – Mandy avisa e eu estava mesmo
achando bom demais, acho que ele devia ter consultado Mandy
antes. – É muito jovem e sem experiência, nunca estudou culinária,
não sabe como gerenciar um restaurante, não sabe regras sobre
higiene, não sabe nada além do amor que sente pela cozinha.
— Você está certa, Mandy – digo já um tanto decepcionada.
— Ótimo que concordamos com isso, então vamos ao
acordo. Guy está em um grande projeto, ele tem seus sonhos, ele
escreveu aquele musical, passou anos trabalhando nele, está sendo
produzido e ele está aqui quando deveria estar em Nova York
trabalhando.
— Mamãe...
— Seis meses, vocês dois ficam seis meses por lá, alugo
um apartamento, não é certo ficarem na casa da Peggy Sue. Você
vai estudar culinária, deve haver bons cursos que não sejam tão
longos, o Guy trabalha no musical, estreia, fica umas semanas lá se
apresentando, quando retornarem então você monta seu
restaurante e o Guy volta a compor.
— Pagamos tudo e vamos sempre visitá-los. Pegar ou
largar. – Mathieu embarca no jogo de Mandy.
— É sério? – Eu nem acredito, parece perfeito demais, Guy
tem um sorriso gigante de quem acha o mesmo.
— Muito sério. São jovens demais para ficarem escondidos
nessa pequena cidade sem buscarem sonhos, quando me casei, eu
era só uma mocinha do Vale, não conhecia nada, mas Mathieu me
levou para o mundo, hoje sou uma mulher que conhece a vida e
estou aqui porque escolhi estar, mas ele me deu chance de
escolher. Merecem o mesmo. Vão conhecer tudo da gastronomia
mundial em Nova York, vão dividir espaço, objetivos, vão descobrir
se esse amor é mesmo intenso, e na volta, se ainda estiverem
juntos, pensam em um futuro, se não estiverem, ainda terá seu
restaurante e o Guy sua música, mas se no meio do caminho
resolverem que o lugar de vocês é lá fora, então que seja.
— Ela diz isso porque sabe que sempre vamos voltar para
o Vale.
Guy tem sua mão presa a minha, eu olho para todos sem
acreditar no que estou ouvindo, é como um sonho impossível
ganhando vida, meu coração parece tão maluco que temo ter um
infarto, podia dançar sobre a mesa se isso não fosse chocar mesmo
os Montpelliers, tão livres e cheios de amor.
— Está perfeito para mim – Guy conta levando minha mão
aos lábios para um beijo.
— Para mim ainda parece o sonho mais lindo e mais
impossível que já sonhei – digo a eles que trocam olhares e
sorrisos.
— Bem, então enquanto planejamos a viagem, esperam o
casamento do Jimmy e da Penny Lane, pelo que vejo será em um
mês, é o que dizem pro aí. – Penny não veio me contar, hoje mesmo
vou atrás dela saber de tudo.
— Perfeito. Mathieu concorda. Emily, você está oficialmente
demitida.
Capítulo 28
Jimmy

O Drunks está cheio de velhos amigos, amanhã no fim do


dia, quando ela caminhar para mim no altar, eu sei que será um
novo começo e, será a esse novo começo que eu brindo pela
décima vez, ela está no rancho, com todas as garotas, em uma
festa que minha irmã está organizando, despedida de solteira.
— Ao Jimmy, que ele seja paciente, corajoso e mudo nas
horas difíceis – Elton brinca erguendo seu copo de suco, ele não
bebe tem anos, por muito tempo não entrou no Drunks, mas agora,
com o passar dos anos e sua confiança cada vez mais firme, ele
está forte o bastante para vir às vezes com Maggie para dançar e
ouvir Lolla e agora, para minha despedida de solteiro.
— Eu quero saber o que aquelas garotas estão fazendo no
rancho! – Guy comenta depois de virar seu copo. – Odeio ficar
bêbado! – ele diz em uma careta, para mim chega. Pai, está por aí?
— Aqui, filho, e sóbrio, não se preocupe.
— Também estou, embora eu não saiba dizer se acerto
chegar em casa de novo. Talvez termine a noite de volta em Nova
York. – Kyler diz tomando mais um longo gole de seu drink.
— Estou pensando na Lua de Mel, eu quis cancelar a
despedida de solteiro e ir direto para Lua de Mel, mas ela fez
questão – digo dando mais um gole no uísque. – Você que é
esperto, pulou despedida de solteiro, casamento e está indo direto
para Lua de Mel em Nova York – eu o provoco e Guy sorri enquanto
nega.
— Não é nada disso, estou aqui ansioso para casar, eu
amo a Emily e um dia, talvez mais cedo do que todos pensam, nós
dois vamos encontrar nosso caminho.
— Uhm! Que romântico! – eu o provoco.
— Última rodada já são quase meia-noite e minha esposa
me quer em casa a meia-noite! – Noah diz enchendo copos.
— Discurso do noivo! – Meu irmão exige só para me encher
de vergonha, nego, mas é uma gritaria, um escândalo que vai
acabar trazendo as mulheres todas do rancho.
— Discurso! Discurso!
— O.k.! – digo subindo ao palco. – Aposto que preferem mil
vezes quando a Lolla está aqui cantando!
Não importa, eles não ligam a mínima para o que vou dizer,
só querem gritar e me atirar coisas, um chapéu me acerta o nariz.
— Idiotas! Vou me casar com a mulher mais bonita da
cidade e mandar todos vocês para o inferno!
— Quero ela de volta na segunda-feira, tem uma sala cheia
de alunos esperando por ela – Jay me provoca.
— Minha filha incluindo, para minha sorte – Noah comenta.
– Porque só mesmo a Penny para conter minha Holly.
— Posso continuar? – eles ainda gritam, mas eu acabo por
conseguir silêncio. – Obrigado por serem parte disso, fiquem sóbrios
até a hora do casamento, conto com você, Shane! – Meu irmão me
olha do seu lugar no balcão, ao lado de Mathieu e Noah. – Se estou
aqui, é porque tive a sorte de encontrar você e ter a Gwen na minha
vida. Obrigado.
— Bobagem garoto, vá lá fora e seja feliz! – Noah diz me
erguendo a garrafa. – Um brinde aos noivos!
— Aos noivos! Agora cadê as strippers? – Martinez grita,
não têm strippers, metade aqui morre de medo da esposa, a outra
metade não saberia onde encontrar uma.
Nós nos despedimos todos na porta, não tenho forças para
andar e Shane passa o braço por meu ombro.
— Reza para sua noiva ter ido embora lá de casa, você tá
péssimo.
— Ela me ama, Shane e eu... eu... finjo bem. – Meu riso se
espalha e uma parte de mim sabe que não foi tão engraçado assim.
Shane me ajuda a me acomodar no banco do passageiro e se
senta, ainda vejo Mathieu ajudando Guy a caminhar para casa, acho
que nenhum dos dois está cem por cento.
Kyler segue com eles, não que ele consiga se manter ao
lado porque está em um zigue-zague interminável.
Shane dirige e aproveito para receber o vento no rosto, isso
deve ajudar bastante a me sentir melhor. Quando ele estaciona na
frente da casa, as mulheres estão se despedindo, estão lindas,
muito alegres, mais do que alegres, estão meio bêbadas. Emily está
praticamente sendo carregada por Lolla, acho engraçado como elas
estão lindas e felizes até que vejo Penny ao lado de Peggy Sue, a
amiga veio só para o casamento.
Os olhos da minha garota são lindos, ela está sorrindo e
quando me vê parece que se ilumina.
— Pegos em flagrante. Ela vai perceber que bebeu demais.
— Claro que não! Eu finjo bem, foram só... só... dois
drinks? – Shane dá uma gargalhada.
— Ela pediu para não ficar muito bêbado, você está
fedendo a todo tipo de bebida.
— Porque me atiraram bebida quando eu fazia aquele
discurso bonito e profundo!
— Cala a boca e desce do carro, firma essas pernas, fala
pouco e sei lá, reza muito.
— Assista a uma performance quase profissional! – digo a
ele abrindo a porta e de repente, o chão me atinge o rosto como se
tivesse vindo até mim.
— Mas que artista! – Shane está rindo de mim, vejo as
botas dele passando por debaixo do carro, tem uns gritinhos de
susto e umas gargalhadas, também têm terra na minha garganta, no
meu rosto, e um pouco no nariz. – Pede uma chance lá no musical
do Guy! – A mão de Shane surge estendida para mim e aproveito
para me agarrar a ela e sou erguido e quase lançado ao chão do
lado oposto. – Meu Deus, firma essas pernas!
Penny Lane para diante de mim, primeiro me olha firme,
depois sorri e então tem um ataque de riso.
— Eu beijaria você, meu amor, mas você é só terra!
— Já beijei o chão, baby! – digo tentando dar um passo em
sua direção, mas ela dá uns passos para trás.
— Está péssimo! E eu... te amo mesmo assim, isso é
incrível. – Penny vem até mim, me beija o lado esquerdo da boca.
Que não parece estar tão ruim. – Até amanhã, toma um banho,
reza, mas reza muito para essa terra toda sair e não estar com o
olho roxo, depois dorme muito, para estar lindo. – Ela se afasta indo
ajudar Lolla a carregar Emily que está muito cantora essa noite e
cantarola qualquer coisa que ninguém entende, desafinada desse
jeito só mesmo muito amor para estar com o Guy.
— E você queria casar de manhã! – Gwen brinca. – Estaria
com toda certeza bêbado na hora do casamento.
— Irmãs são uma bênção! – digo passando por todas as
garotas.
— Lolla, quer que a Emy fique lá em casa essa noite? –
Mandy questiona, ela pode ficar com o Guy e ele fica de olho.
— Guy está bêbado feito um gamba! – Shane avisa.
— Que absurdo, ele não bebe, ele é lindo e muito carinhoso
e quando ele me beija eu vejo estrelas e tem umas coisas que ele
faz... – Lolla tampa a boca de Emily.
— Vamos embora enquanto é tempo – ela diz carregando
Emy para o carro, eu ainda aceno para Penny um instante antes de
escorregar em algo, ou ser empurrado, ou simplesmente ter uma
crise de labirintite, não importa, o que sei é que enquanto o carro
parte eu sinto a terra úmida molhar minhas calças sentado no chão
próximo a escada da varanda.
— Jurava que tinha subido os degraus – digo quando
Shane me ajuda a ficar de pé.
— Você subiu, Jimmy.

*****************

Acordo com a cabeça latejando, pisco algumas vezes, a luz


me incomoda e me lembro qualquer coisa sobre encontrar Penny
aqui na porta e quando me movo e todo meu corpo dói, me lembro
dos dois tombos.
Tem uma garrafa de suco ao lado da minha cômoda, última
manhã nesta cama, minha casa ficou linda, alguns móveis dela,
algumas coisas aqui do rancho, compramos coisas novas também e
em um mês a casa estava perfeita, três quartos e um pequeno
jardim, tomo todo suco e uma aspirina, depois me enfio debaixo do
chuveiro frio, leva uns dez minutos para finalmente despertar e
quando saio do banho e olho pela minha janela, está tudo sendo
montado para a cerimônia.
— Bom dia! – Gwen cumprimenta entrando no quarto sem
aviso. Ela traz meu terno em um cabide coberto por um plástico. –
Terno passado, deixa eu ver seu rosto. – Olho para ela assustado
com seu pedido. – Ótimo, não ficou marcado.
— Marcado?
— Que cena ridícula. – Ela ri, vem até mim e me beija o
rosto. – Amo você irmãozinho. Agora vá ajudar a terminar de montar
o altar, até seus sobrinhos estão ajudando, come alguma coisa – ela
diz antes de deixar o quarto e obedeço, passo pela cozinha e levo
comigo uma maçã.
Tudo se agita e o dia corre, mal consigo parar um segundo
para descansar, Gwen me traz notícias de Penny, está fazendo o
cabelo, se maquiando, massagem, tanta coisa o dia todo.
Às 4h da tarde tudo está pronto e tenho uma hora para me
arrumar, depois de um banho longo e um prato de comida estou
pronto para me vestir e esperar por Penny.
Shane me ajuda com a gravata, nos olhamos lado a lado na
frente do espelho.
— Fazemos uma boa dupla – ele diz animado. – Genética
boa.
— Pode ser, mas eu sou bem mais bonito – digo o fazendo
rir.
— Cuida bem dela, seja paciente e generoso como eu sei
que ela será com você.
— Vamos ficar bem, se tem uma coisa que não falta é
amor.
— Ótimo, isso deve bastar. – Shane me olha um momento.
– Pensar que eu odiei quando os vi chegando aqui naquela
caminhonete velha.
— Pensar que eu tentei fugir de você e da Gwen, agora
aqui, feliz, me encontrando, vou sentir falta de viver com vocês.
— Esteve tanto tempo fora.
— Bastou uma noite em casa para me lembrar de como
sempre foi e me acostumei, tem os meninos também.
— Logo vão ter os seus meninos, pelo que sei, vocês
querem ter logo filhos.
— Sim, um casal se tudo der certo. Um garotinho que não
puxe ao Mike e uma menininha que se pareça com a Cassy!
— Mike é um pestinha esperto que vai dominar essas terras
e domar cavalos, enquanto o Callan cuida do dinheiro, aquele é um
“mão fechada”, não gasta um centavo da mesada. Vamos? Precisa
estar no altar quando ela chegar.
— Imagino tanto Penny Lane chegando vestida de noiva,
os convidados estão todos aí?
— Todos e meus meninos estão lindos prontos para entrar
na frente com Holly e Coline. Que ideia chamar tantas crianças,
Jerry também está animado.
— Penny é a professora mais querida, não dava para
chamar só os meus sobrinhos.
— Vamos noivo!
Cumprimento as pessoas, Peggy e Kyler vão ficar no altar
como padrinhos da Penny, Guy e Emily são os meus, as garotas
estão bonitas e os rapazes nem parecem ter ficado tão mal assim.
Posiciono-me com o coração batendo forte, encaro a
porteira ao longe sabendo que é de lá que ela vem com seu pai no
carro de Mathieu que é o carro mais elegante e confortável do Vale.
Ajeito o terno meia dúzia de vezes. Ando de um lado para
outro. Shane me acalma, Gwen me beija o rosto.
— Ela está chegando! – minha irmã diz emocionada. – Seja
feliz irmão, eu tenho muito orgulho de quem se tornou e tenho
certeza de que a mamãe também tem. – Abraço Gwen.
— Obrigado por cuidar de mim. Te amo, Gwen.
— Eu sei. Agora se ajeita, a Harper está organizando as
crianças, Penny está chegando.
Meu coração descompassa, minhas mãos ficam frias de
tanta emoção quando vejo o carro surgir. Ele estaciona, as crianças
começam a caminhar e uns minutos depois ela deixa o carro, dá a
mão ao pai e vem linda, delicada em um vestido incrível, ao mesmo
tempo simples como somos, nada de saias cheias de camadas e
mangas bufantes, é Penny do jeito que sempre sonhei.
Quero ir até ela e tomar seus lábios, mas espero até que
ela e o pai cheguem, os garotos se espalham pelos cantos, logo vão
estar correndo pelo terreno sem paciência para o casamento.
Aperto a mão do meu sogro, trocamos um sorriso, ele está
feliz e confiante, sempre soube que sua família adoraria, assim
como a minha, procuro a mão de Penny que se prende a minha.
— É a noiva mais linda que já vi em Horses Valley.
— Te amo, até quando está bêbado. – Levo sua mão aos
lábios e beijo seus dedos.
— Vamos começar uma nova vida, uma em que nunca,
nunca nos separamos. – Nós nos beijamos levemente.
— Espera o casamento, Jimmy! – Shane sussurra e eu e
Penny trocamos um sorriso, ela entrelaça seus dedos aos meus e
nos viramos para ouvir as bênçãos.
Não tem um longo discurso e nem nada muito formal, por
isso preferimos um Juiz de Paz, porque sempre foi nosso plano nos
casar em meio a música e dança, mais do que discursos e
promessas, nosso amor é o que importa.
Coloco a aliança em seu dedo e me lembro de sonhar com
esse instante quando entrei no avião para Arábia Saudita, não
achava que seria possível, ao mesmo tempo que nunca achei que
pudesse ser outra pessoa.
Ela desliza o meu anel em meu dedo, os olhos pregados
em mim. O juiz fala sobre amor e nos dá espaço para nossos votos.
— Que nosso amor perdure mesmo durante as
tempestades, que nos faça rir e chorar, mas que seja sempre juntos,
te amo Jimmy, como amei aquele menino rebelde que um dia foi. Te
amo para sempre.
— Nosso amor vai durar toda a vida e além dela, porque
nunca deixou de existir e já vencemos todas as provações, é hora
de dar as mãos à felicidade e caminhar com ela. Tem meu coração,
Penny Lane, tem minha alma e a eternidade não é o bastante para
amar você.
— Que sejam felizes, que se respeitem e se amem por
todos os anos de suas vidas. Eu os declaro casados! – O juiz
encerra a cerimônia com a frase clichê de sempre. – “O noivo pode
beijar a noiva.”
Meus lábios encontram os de minha garota, é o beijo do
adolescente apaixonado pela primeira vez, também o beijo do
homem vivido que ainda ama a mesma linda menina, é uma vida
desenhada em sonhos de futuro que agora são a realidade que
tanto buscamos, corri boa parte deste mundo aprendendo sobre
cavalos e só, porque foi aqui no Vale que aprendi sobre o amor e
nunca mais esqueci.
— Música! – alguém grita e antes que o beijo termine a
festa já começou, tem chuva de arroz, pétalas e muitos
cumprimentos, quando me dou conta, estamos dançando em um
palco improvisado, Lolla Queen canta, depois Peggy Sue e Kyler
cantam canções de amor do cinema, Guy toca um pouco, rimos
juntos, girando, nos beijando, os sapatos de Penny desaparecem,
ela acaba em meus braços, sentada em meu colo perto das 10h da
noite, com todos ainda festejando, depois de cortar bolo e antes de
jogar o buquê.
— Só queria montar um dos cavalos e roubar minha esposa
para nossa noite de núpcias – digo em seu ouvido.
— Melhor roubar uma caminhonete, não quero estragar
meu vestido.
— Nem eu, mas confesso que só consigo pensar em você
sem ele.
— Acho que vou jogar o buquê e depois fugimos, que tal
deixar o carro ligado, vai ser o motorista da fuga.
— Professora! Que ideia incrível, me casei com uma
delinquente! – Ela gargalha e me beija antes de ficar de pé.
— Seja discreto, vou tentar mirar na Emily, só para deixar
as garotas felizes.
— Pobre Guy! Tão novinho e vocês já determinadas.
— Sorte a dele se conseguir levar aquela garota ao altar. –
Penny me rouba um beijo, pisca e então vai chamar as garotas.
Logo tem uma roda de moças em torno dela, aceno para
Shane, ele me atira a chave da caminhonete.
— Está pronta para levá-los – ele diz dando uma piscadela.
Assisto ao lado do carro, Penny subir em uma cadeira, um pequeno
grupo de moças de Horses Valley se juntam em torno dela e Emily
está entre elas, risonha, mas sem planos de pegar o buquê.
Penny atira o maço de flores que voa pelos ares e acerta a
cabeça de Callen que está uns metros de Emy apenas assistindo
sem entender muito. O garotinho esfrega a cabeça com uma careta,
pega o buquê e entrega na mão de Lily.
É uma festa ser Lily a acabar com o buquê nas mãos e
Penny corre para mim enquanto as especulações e apostas
começam a ganhar as rodas de convidados. Por quem será que
bate o coração de Lily? Eu aposto em Butch.
— Pronta? – pergunto quando nos acomodamos na
caminhonete.
— Pronta. Amo você. – Dou partida e escuto as latas
amarradas na traseira do carro, sabia que eles iriam aprontar mais
alguma, Penny ri animada enquanto se encosta em meu ombro e
partimos juntos para nosso futuro e embora misterioso. Eu sei que
seja como for, será de puro amor.
Capítulo 29
Emily

Recebo o chapéu das mãos do chef, ele me sorri, aperta


minha mão e me observa cheio de orgulho.
— Ensinei muitas coisas a você, senhorita Lynch, mas uma
coisa chegou aqui sabendo. O amor pela cozinha veio com você, foi
bom encontrar alguém que ama o que faz e não sonha com o status
de um chef ou a fama e a fortuna, apenas amor pela culinária, isso
tem se perdido um pouco, você me lembrou as velhas “mamas”
italianas.
— Obrigada por tudo, chef, foram seis meses
enriquecedores e muito intensos, aprendi mais do que podia sonhar.
— Boa sorte em sua pequena Horses Valley, talvez algum
dia eu chegue de surpresa para conhecer seu pequeno
estabelecimento. Ele tem nome?
— Ainda não, mas mando fotos de tudo, quando finalmente
estiver pronto.
— Já está voltando?
— Não. Fico mais uns dias, meu namorado vai estrear a
peça dele na Broadway na quinta.
— Ah, você me disse, vou convidar minha esposa e quem
sabe nos encontramos lá.
— Espero que sim. Obrigada, chef! – digo mais uma vez
antes de deixar a cozinha profissional pela última vez.
Enquanto caminho pelo prédio abraçada ao meu chapéu de
chef, com o nome da escola bordado, que só recebemos depois da
conclusão do curso, eu só consigo pensar em minha mãe.
Nos seus últimos dias, quando ela me disse para pedir
ajuda e viver, deixar meu pai e fugir, encontrar um caminho, quem
sabe agora ela esteja de longe, talvez de uma estrela qualquer no
céu me observando cheia de orgulho.
Encontrei tantos anjos em meu caminho, que outro modo
eu teria conseguido mudar minha vida como mudei?
Primeiro Niara, que me tirou da casa do meu pai, me levou
com ela e me abrigou, secou minhas primeiras lágrimas, me fez
acreditar que eu podia, depois Lolla e Jay, com aquela amizade
linda e sincera, gente que não pede nada em troca, que apenas
exerce a bondade de coração aberto.
Eles me levaram para o Vale, me deram quarto, afeto e
sonhos, novos amigos, então ele chegou, o anjo mais lindo, puro e
apaixonante, me entregou seu coração sem medo.
Toco meu pingente de coração, sorrio me lembrando da
mais linda tarde de amor, quando pela primeira vez fomos um do
outro e depois tudo se encaixou, a vida ganhou tantas cores, tanta
luz.
Seco uma lágrima que escorre por meu rosto quando chego
à calçada, os grandes edifícios e o trânsito infernal me recebem
trazendo à tona a verdade de como eu amo o Vale. Horses Valley é
meu lugar no mundo, meu cantinho do paraíso, não quero viver em
nenhum outro lugar, quero amanhecer e adormecer ouvindo os
pássaros e o silêncio da pequena cidade no coração do Texas.
Entre montanhas, cavalos e cowboys, cercada de amor e
esperança, assistindo os pequenos crescerem, a vida corre muito
mais lenta no Vale, diferente dessa imensidão barulhenta e
assustadora que é Nova York.
Tive medo quando chegamos, tanto medo de que pensei
em pedir ao Guy para voltar, mas é claro que ele é só coragem e
sabedoria e me ensinou a aproveitar o que tínhamos.
Paro no farol para atravessar a avenida e caminhar até a
Broadway, para encontrá-lo no teatro em seu último ensaio geral,
amanhã vão acertar os últimos detalhes e na quinta-feira, metade do
Vale vai estar aqui para a estreia do espetáculo.
Nós nos acostumamos a dividir um apartamento, a cuidar
um do outro, namorar todo tempo livre, Guy ganhou uns quilos
enquanto provava tudo que eu ia aprendendo nas aulas, eu aprendi
um pouco sobre jogo de luz e coristas.
Conhecemos essa cidade sozinhos, nos aventurando em
passeios solitários e românticos, em que eu descrevia as belezas
que meus olhos viam e também o caos, não têm só beleza e
letreiros brilhantes nessa grande metrópole, têm dor, diferença
social, preconceito.
Coloquei tudo que vi em palavras para ele, coisas que sua
mãe não descreveria jamais, porque não quer ferir a alma dele, mas
eu sou sua metade e como tal, tenho que dividir tudo com Guy.
Sigo pelos quarteirões que já temi muito com um sorriso no
rosto, cinco quadras de distância entre o curso e o teatro, mais três
quadras até o pequeno apartamento que dividimos, dois quartos,
sala e cozinha, quando os Montpelliers vêm à cidade e, eles vêm
muito, preferem ficar em um hotel, só Coline acaba por ficar
conosco.
Jimmy e Penny Lane vieram uma vez, ficaram um fim de
semana todo conosco no apartamento e nos divertimos tanto,
passeamos, saímos para jantar, dançar, foi um fim de semana
memorável.
Lolla ainda não veio, ela não gosta da cidade, vem apenas
para a estreia porque sabe que é importante para todos nós e para
o Vale, mas Nova York traz más recordações a ela, também a
Harper, mas ela veio mesmo assim, porque Harper tem um modo
diferente de encarar as coisas.
Assim que ultrapasso as portas do teatro, ainda no saguão,
escuto a voz de Peggy Sue ecoar, ainda me surpreendo como ela
canta lindamente e cada dia melhor. Olho para o relógio, deve ser o
último ensaio, agora ela vai para casa com Kyler poupar a voz até a
estreia.
Apresso-me para pegar o finalzinho do ensaio, Guy não
está ao piano, vai estar na estreia e em algumas apresentações,
mas precisa deixar o pianista pronto para substituí-lo nos outros
dias.
Eu o vejo na última fileira do teatro, compenetrado a ouvir o
show, Peggy Sue está mergulhada no personagem, Kyler entra em
cena enquanto subo a rampa para me juntar ao meu namorado.
É o grande final, o casal principal se olha enquanto divide a
melodia, o jovem casal, que faz o primeiro ato representando os
dois mais jovens, também está em cena ao fundo, é um jogo de luz
que faz tudo parecer uma mistura de passado e presente, a letra da
música também diz muito, uma parte quando o jovem casal canta, é
como um sonho de futuro, já quando é Peggy Sue e Kyler, então é o
presente cheio de sucesso e felicidade, um final feliz e apoteótico
com os coristas entrando em cena e fazendo coro a letra da música
que imagino, fará muito sucesso quando a peça estrear.
Eu me sento ao lado de Guy, não faço qualquer barulho
para não o incomodar, sei que ele está emocionado e feliz.
— Mel e morangos silvestres – ele sussurra me
emocionando, eu não sei se tenho mesmo esse cheiro, mas sei que
não importa de onde eu venha, com quem esteja, ele sempre
percebe minha presença.
— Está lindo! – digo emocionada, até que finalmente a
música acaba no instante em que damos as mãos e nos erguemos
para aplaudir junto com todo o grupo. O diretor da peça elogia,
François está chorando umas cadeiras à frente, Peggy Sue e Kyler
se abraçam.
— Foi um trabalho magnífico, cheio de energia, uma boa
história contada com glamour e charme – François diz subindo ao
palco. – Parabéns a todos os envolvidos e ao Guy, um Montpellier é
sempre um nome de peso para se ter envolvido com o projeto.
— Ele é louco para me agenciar – Guy me sussurra outra
vez. – Vamos até eles?
— Claro! – Ele leva sua mão ao meu ombro e descemos
juntos em direção ao palco, tantas vezes narrei o espetáculo para
ele, detalhe por detalhe, ele tem uma visão do que se passa, foi ele
que escreveu, mas me acostumei a narrar cada acontecimento. –
Estão todos se abraçando, vai ser envolvido assim que chegar.
Degraus – digo quando chegamos ao canto esquerdo do palco e
subimos os degraus para nos reunirmos ao elenco.
Peggy é a primeira a abraçar, Guy. Eu não sei o que as
pessoas esperam de um Tony, mas o que vejo é um trabalho
perfeito. Boa música, ótima interpretação, sintonia, figurino e cenário
perfeitos, para mim, é digna de todos os prêmios, mas no fim, a
palavra final é do público.
— Vamos juntos jantar e brindar. Amanhã são apenas
acertos técnicos, últimas provas de figurino, hoje é oficialmente o fim
dos ensaios – o diretor diz animado.
— Claro que sim – Peggy concorda.
— Quer ir, meu anjo?
— Quero sim, vai ser divertido.
— Temos muito que comemorar, não é? – Ele me envolve.
– Minha chef de cozinha.
— Técnica, no máximo – brinco passando meus braços por
seu pescoço.
— Muito errado não ter uma formatura para sua família te
aplaudir – ele reclama.
— Olha o que ganhei, meu chapéu de chef. – Levo até sua
mão. Ele toca o tecido com um sorriso no rosto. – É branco e tem o
logotipo e o nome da escola, uma pequena assinatura no canto do
nosso mestre. Fiquei feliz, ele diz que eu tenho amor pela cozinha.
— Você tem. Como foi?
— Legal, recebemos o chapéu, apertamos umas mãos e
cada um foi seguindo seu caminho, amanhã ele começa uma nova
turma e a vida segue.
— E você brilha.
— No máximo um satélite refletindo sua luz.
— Que namorada romântica! – ele brinca me beijando
levemente.
— Vocês podem namorar no restaurante, casal, vamos? –
Kyler nos convida e seguimos com o grupo a pé até um restaurante
reservado pelo diretor, a uma quadra do teatro, pelo caminho, Kyler
e Peggy Sue param duas vezes para tirar fotos e dar autógrafos, um
paparazzo espera na frente do restaurante, é sempre assim com
eles, fotos e entrevistas, gente os parando na rua, eles gostam, eu
morreria de vergonha.
Guy também deu algumas entrevistas nesses meses,
apareceu em um programa de televisão, as pessoas o admiram e
talvez, o fato de ser cego também tenha um peso para valorizar seu
trabalho, como se isso o tornasse ainda mais especial, mas não é
verdade, ele sabe disso, mas não se importa muito que relacionem
uma coisa com a outra.
É uma linda festa no restaurante, regada a champanhe,
vinho, petiscos e pratos elegantes, eu e Guy não bebemos, tivemos
nossa cota na despedida de solteiro de Jimmy e Penny Lane, minha
cabeça dói até hoje só de lembrar e ele vomitou meia dúzia de
vezes, é o que soube.
Acho que nunca ri tanto em minha vida como naquela noite
com as garotas, Lolla, Harper e Gwen juntas é algo inacreditável, eu
mal conseguia me conter.
Perto das 10h da noite, eu e Guy partimos para casa,
andamos pelas ruas iluminadas, a noite está ótima, quente e
agradável, felizmente vencemos o inverno, foi tenebroso ver tanta
neve e gelo, lama nos sapatos e as ruas tão lotadas que mal
podíamos andar. Mandy veio com Mathieu e Coline passar o Natal
conosco e ficaram a semana toda, nem assim os ensaios pararam,
o curso também continuou e eu descobri que odeio inverno.
— Pronta para voltar para casa? – Guy me pergunta
enquanto seguimos pela rua de mãos dadas, ele usa sua bengala,
mas eu sei que sente falta de Lumière e eu sinto falta de vê-lo
completo. Conversei com Mandy em segredo, ela acha que ele está
pronto para um novo amigo, mas dessa vez, um rapazinho já
treinado. Guy e Lumière cresceram juntos, se descobrindo e
aprendendo juntos a viverem. Agora ele precisa de um guia maduro
pronto como ele está.
— Sim, e você?
— Morrendo de saudade do silêncio do Vale. Dos longos
dias de sol e do perfume das flores da mamãe.
— Vai ser um sucesso, Guy.
— Seu restaurante? – ele brinca me fazendo sorrir.
— Não. O seu espetáculo, vai ver que valeu a pena. Está
nervoso?
— Sou muito confiante do meu trabalho com o piano para
ficar nervoso – ele diz me causando inveja. Fico nervosa até para
servir um ovo mexido.
— Sabe que não deve dizer isso em público?
— Artistas são sempre um tantinho pretensiosos, é o nosso
charme – ele brinca beijando minha mão presa a dele.
Abro a porta quando chegamos ao nosso pequeno prédio,
são dois lances de escada e estamos no primeiro apartamento
diante do corredor, abro a porta e ele me faz entrar primeiro, é
cavalheiro quase o tempo todo, só esbarra mesmo em suas
limitações, mas descobri que temos todos limitações e que isso não
têm importância.
— Banho e cama? – Eu convido e ele abre um sorriso
malicioso. – Que bobo, eu estava sendo literal.
— Que pena! – ele brinca guardando a bengala, levou
umas semanas para se acostumar com o lugar, esbarrando aqui e
ali e tentamos levar com humor, hoje ele já conhece tudo e me
pergunto se vai ser fácil voltar para casa, ou ele terá que se
acostumar de novo.
Seguimos para o quarto, há seis meses que dividimos o
quarto e a vida, ainda escuto aqui e ali que somos jovens demais
para isso, mas eu sou tão feliz com ele.
Nenhum dos dois deixou sonhos de lado, ele faz o que ama
e eu aprendo mais sobre o que eu amo, não é nada demais.
Tiro o vestido e guardo o chapéu com cuidado na mala,
algumas coisas tem ido direto para a mala, pois está muito perto de
voltarmos.
Depois do banho, enquanto escovo os cabelos e o assisto
se secar, minha mente viaja para um futuro bem próximo, a volta
para casa. Fico olhando para ele através do espelho, como será
viver de novo longe dele? Acordar no meio da noite e não ter seu
braço a me envolver, cutucá-lo quando ele ronca ou ser acordada
com um beijo suave de bom dia.
Cozinhar para nós dois, passar noites em claro falando
sobre o mundo, assistindo séries, ter uma briguinha ou outra quando
um de nós quer decidir tudo sozinho. Ele sabe ser teimoso quando
quer e irritante.
— Guy, eu estive pensando na nossa volta. Quanto tempo
quer ficar aqui ainda? – Ele da de ombros jogando a toalha sobre a
pia e faço careta.
— Parece a Coline fazendo careta, já vou pendurar a
toalha! – ele me provoca rindo e odeio quando ele acerta coisas
como essa. Espero que escove os cabelos e pendure a toalha e
vamos juntos deitar, com ele me beijando o pescoço. – Aposto que
fica muito linda fazendo careta.
— Não foi exatamente uma careta, foi mais um revirar de
olhos.
— É careta sim. – Ele cai por cima de mim na cama e me
faz rir enquanto me beija o pescoço ao mesmo tempo que me faz
cócegas.
— Venceu, foi careta, mas para com as cócegas e continua
com o beijo no pescoço.
É a vez de ele rir enquanto nos arrastamos pela cama até
acabarmos deitados e abraçados, eu em seu peito e ele me
acariciando o braço.
— O que queria falar sobre a nossa volta?
— Tem um garotinho morando na casa da Lolla.
— Eu soube, Coline me disse, eles ficaram amigos.
— O que eu faço? Quer dizer, eu tenho a promessa do seu
pai de montar o restaurante e sei que ele vai cumprir, mas não tenho
trabalho ou dinheiro para alugar um lugar e sei que a Lolla me
aceitaria lá, mas...
— Mas por que voltaria para Lolla se podemos só continuar
juntos? Quando não deixa sua toalha jogada pela casa para me
incomodar a visão vivemos muito bem.
— Muito engraçado. Acha que seus pais aceitariam?
— Acho que eles nem fazem ideia de que tem planos
diferentes, parece bem natural que a gente continue o que
começamos.
— Sem casar?
— Se vai me pedir em casamento espero que tenha
comprado meu anel! – ele brinca antes de me roubar um beijo. –
Emy, eu amo você e você me ama, todo mundo sabe disso, meus
pais sabem e estão felizes, cuidamos um do outro, temos sonhos
parecidos, encaramos a vida do mesmo modo, não faz nenhum
sentido nos separarmos só porque voltamos para o Vale, é até meio
hipócrita.
— É verdade.
— Só se não quiser isso. Nesse caso tudo bem, falamos
com o papai, ele vai investir no seu sonho com você e isso é mais
do que te dar uma grana para montar seu restaurante, ele pode
alugar um espaço para você, incluir tudo isso na conta.
— Aprendi tanto esses meses aqui, me sinto tão madura e
corajosa, fiz coisas que jamais sonhei, amigos incríveis, conheci
todo tipo de pessoas, provei sabores, nos metemos em uma
confusão e quase levou um soco em um bar.
— Me esquivei a tempo. Demolidor! – ele diz dobrando um
braço para brincar como se mostrasse os músculos. Nós dois rimos.
— É que eu vivi tantas coisas, tive uma vida de dores e
mágoas, depois, uma aventura linda com você. Eu não me sinto
com 19 anos, me sinto pronta para essa vida a dois. Não quero ter
um espaço só meu se meus momentos mais felizes são com você.
— Então não temos o que pensar, talvez pensar se ficamos
com meus pais ou arrumamos um espaço só nosso, mas juntos.
— Nesse sentido eu não sei bem, tenho medo de parecer
que sou espaçosa e folgada por morar na casa dos seus pais, acha
que as pessoas vão falar sobre isso?
— Pessoas falam sobre tudo, vamos esperar para decidir,
eu amo você, Emily Lynch. Só isso que importa.
— E eu te amo.
— E você me ama, e toca muito mal. – Eu belisco sua
barriga. – Aí! Mas cozinha muito bem – ele diz se movendo para
ficar sobre mim. – E eu sou muito rápido.
— E muito lindo! – É tudo que consigo dizer antes que sua
boca capture a minha em um beijo que confirma tudo que sentimos.
Somos feitos para ficarmos juntos e nada mais.
Capítulo 30
Guy

Eu me acomodo atrás do piano, escuto o burburinho da


plateia se acomodando, movo meus dedos em um pequeno
exercício de alongamento, puxo o ar com força e depois solto
lentamente, me acalmo pensando no espetáculo, minha mente vai
gravando ato por ato, do começo melancólico até o final explosivo,
cada melodia, cada parada, acorde por acorde, minha mente viaja
até que escuto o primeiro sinal.
Penso na primeira fila, Emily sentada ao lado da minha
mãe, depois Coline e papai, nervosos e felizes, meus amigos todos
na plateia, os críticos, mas nada disso é maior do que Peggy Sue e
Kyler no palco, o sonho que dividimos, a vida real virando fantasia
em um espetáculo.
Talvez algum dia, Peggy Sue encene a história de um lindo
anjo que veio de um passado difícil e que ao invés de partir de uma
pequena cidade, fez o caminho inverso, deixou a cidade grande e
sua dor para chegar a um Vale e, então conhecer o amor nos braços
de um sonhador que perdeu a luz dos olhos, mas nunca a luz do
coração. Já tenho a melodia perfeita, assim como o anel que
descansa em meu bolso para depois da grande estreia ir enfeitar o
dedo da minha linda.
Temos uma longa vida juntos e ela pode começar agora,
podemos nos casar e provar a vida e as novidades juntos, é assim
que queremos, ela vai me dizer sim porque me ama como eu a amo,
nossos amigos vão aprovar porque sentem o nosso amor, ele não
foi dolorido, não passou por provações, a vida fez isso comigo e
com ela, quando nos uniu, era só para nos presentear. Amor
simples, amor fácil, amor em riso, mãos dadas, inocência, apenas
amor.
Eu contei a história da garota que deixou o Vale entre as
montanhas, agora quero contar a história da garota que chegou ao
Vale entre as montanhas, mas essa ainda tem que ser vivida dia a
dia e vamos fazer isso juntos.
O terceiro sinal toca, escuto o som de todos os refletores e
pequenas luzes sendo apagadas e o silêncio se formar na plateia,
nem um único som. Imagino a coxia agitada com Peggy Sue
nervosa e Kyler ansioso, o diretor cochicha qualquer coisa entre os
músicos.
Toco a primeira tecla, sei que a luz se acende no centro do
palco, a jovem e sonhadora menina do Vale está sozinha a sonhar
com seu futuro cheio de brilho e luz, meus dedos correm pelo piano,
sua voz ecoa pela plateia e o espetáculo começa.
Nada mais existe quando toco, um mundo de cores, luz e
amor me invade, sou livre diante de um piano, sou inteiro, a música
ganha formas, me transforma, abençoa, acalma meus medos,
trasborda minha alma e o tempo deixa de existir até a última nota,
quando explodem os aplausos e, ... conseguimos!
Não é sobre prêmios, é sobre amor a arte, amor que não se
mede nos aplausos que recebemos, mas no quanto nossa história
muda a história de quem compartilha esses instantes conosco.
Algum riso, algum abrandar de dor, é só isso que importa no fim de
tudo e está lá, na exuberância da plateia que nos aplaude por
longos minutos de puro êxtase e penso em minha linda Emily e seu
orgulho por mim.
Fico de pé para receber com o grupo os aplausos, depois
sinto a mão de Peggy Sue e Kyler a me conduzirem até o centro do
palco.
— Estão todos de pé, Guy, eles amaram!
— Onde ela está? – pergunto a Peggy.
— Chorando bem aqui, na nossa frente, logo depois da
ribalta.
— Chama ela aqui! – peço a ela. Faço um sinal para frente
convidando minha garota para vir ao palco.
— Está vindo, vermelha como um tomate – Peggy brinca. –
Obrigada, Guy, traduziu meu coração nesse espetáculo, não ligo
para prêmio nenhum, fez minha história parecer ainda mais bonita
do que é.
— A Estrela do Vale será sucesso de público e crítica! –
Kyler diz apertando minha mão. – Ela está chegando. – Os dois
soltam minha mão e sinto o abraço de Emily. Suas lágrimas a
molharem meu rosto.
— Foi lindo e impecável e, tocou como um anjo.
— Toquei para um anjo! – digo em seu ouvido agora com
os aplausos diminuindo. Pego no bolso o anel, afasto Emily um
instante para colocá-lo em sua mão.
— O que... Guy! – ela diz ao notá-lo.
— Quer casar comigo? – pergunto ao som das cortinas se
fechando e o espetáculo chegando ao fim.
— Sim. Eu não acredito! É lindo, sim, sim, eu... eu amo
você. – Ela coloca o anel em minha mão. – Coloca no meu dedo –
pede-me nervosa e emocionada. Deslizo o anel em seu dedo. Puxo
Emy para meus braços e sinto seus lábios ao encontro dos meus
enquanto todo o elenco festeja o sucesso e eu, o amor. É um longo
beijo que não poderia ser em outro lugar, eu a amo e estou pronto
para viver apenas para esse amor e nenhum outro.
No meio do beijo, somos agarrados por Peggy e Kyler,
depois outros, um bando de artistas felizes e loucos nos esmagando
em um tipo de comemoração por tudo.
— Casamento! Casamento! – eles gritam enquanto tento
proteger Emy de ser esmagada. Quando nos libertam o riso ainda
continua. Eu não solto a mão dela para não nos perdermos, têm
convidados invadindo a coxia e aquela confusão que Peggy tanto
ama e que me deixa sempre meio atordoado. Meu mundo é um
estúdio e o meu piano.
— É sério? Vamos casar mesmo? – Emily me pergunta
quando estamos tentando deixar o teatro para encontrar meus pais
na calçada.
— Você disse sim! – Eu a lembro, enquanto suspira
animada.
— Vou dizer sim todos os dias. Quero vestido de noiva e
casar na igreja, com festa na praça. O que acha? Já ouvi tanto
sobre casamentos assim.
— Falta poucos meses para o meu aniversário e o
aniversário de Horses Valley, se nos organizarmos, casamos nesse
dia, com a maior festa que o Vale já viu. O que acha?
— Que eu te amo muito! – Finalmente sinto o vento no
rosto e estamos na rua. – Seus pais estão aqui.
— Parabéns filho! Foi lindo, chorei o tempo todo. – Minha
mãe me abraça. Eu a amo por quem é, e por tudo que me ensinou e
essa vitória é tão dela quanto minha.
— Me fez tão forte, mamãe, obrigado. É sua vitória
também.
— Nossa! – ela diz emocionada, depois é o abraço do meu
pai, ainda é o abraço protetor e cheio de certezas, se ele está aqui,
então nenhum mal pode me atingir.
— Pai. Obrigado por tudo, por me deixar sempre tão seguro
e protegido.
— Amo você, filho. Criou uma coisa linda, foi bem
emocionante.
— O destino criou, papai. Eu só cumpri uma promessa que
fiz a Peggy Sue quando era só um garotinho. Eu jurei que contaria
sua história e contei, mas foi o destino que desenhou essa história.
— Olha a Frozen passando, mamãe! – Coline diz sem
alcançar a importância dessa noite.
— Marcamos de encontrar todo mundo no restaurante, os
Sanders já devem estar lá, não dava para achar tudo mundo aqui.
Ali a Lolla passando, ela deve estar indo também. Harper está com
ela.
— O Jimmy veio, mamãe?
— Todos estão aqui. Gwen e Shane, Elton e Maggie, não
sobrou quase nada em Horses Valley, Noah acha que a cidade será
invadida por bandoleiros e não vamos encontrar nada quando
chegarmos – meu pai brinca.
— Vamos sair daqui – mamãe pede e sinto a mão de Emy
entrelaçar-se a minha.
Somos quase que os últimos a chegar ao restaurante,
Peggy Sue é a última porque ela gosta de aparecer e ser o centro
das atenções, é engraçado como ela ama os holofotes e eles a
amam.
Depois de um brinde pelo sucesso da peça, muitos pedidos
de bebidas e o jantar chegar, finalmente encontro oportunidade de
contar sobre o casamento.
— Anjo, vou contar a eles que vamos casar.
— Para todo mundo de uma vez? Não era melhor avisar
seus pais antes? – ela sussurra em meu ouvido. Procuro sua mão,
toco o anel.
— Esse anel é um aviso, Emy, já devem ter notado e estão
esperando o anúncio oficial.
— Que medo de ninguém gostar.
— Só vou casar com você, o resto não tem que gostar.
— Você se importa sim se eles aprovam – ela diz beijando
meus lábios –,mas admito que finge muito bem.
Realmente me importo, mas não quero deixá-la preocupada
com isso. Sei que essas pessoas em torno da grande mesa vão
achar tudo maravilhoso. Fico de pé batendo na taça com uma faca
para ganhar atenção de todos, o burburinho em torno da mesa
cessa.
— Não é cristal. – É assim que começo, o som do cristal
teria muito mais melodia e afinação. – Vem cá, Emy – peço a ela
deixando a taça e a faca sobre a mesa. Entrelaço minha mão a dela.
– Essa noite, enquanto éramos aplaudidos...
— De pé! – Peggy Sue completa.
— Aplaudidos de pé. Eu chamei minha namorada ao palco,
não apenas para agradecer esses meses aqui, em que ela foi tão
especial e importante.
— Estão todos sorrindo – Emy diz baixinho.
— Mas também para pedir, e acreditem, eu estava disposto
a implorar, por sorte não foi preciso, Emily em casamento. Mostre a
eles, minha linda.
— Eu disse sim! – Tem um pequeno e prolongado silêncio
que acaba com aplausos e cumprimentos. – Lolla...
— Estou muito feliz, Emy. Vocês dois não iriam mais se
desgrudarem mesmo, melhor que seja do jeito certo. – Lolla a
interrompe.
— Sua vez, papai. Emily precisa saber o que acha – digo
sentindo uma mão me dar tapinhas nos ombros.
— Vai casar garoto! – Jimmy me provoca.
— Acho que são um lindo casal, que se amam e nos
inspiram, acho que vão ser felizes tanto quanto são agora, mas ao
menos teremos uma grande festa – papai brinca. – É mais do que
bem-vinda a essa família, Emily você já é parte dela.
— Obrigada – ela diz emocionada. – Estou chorando. –
Emy me faz rir, ela narra realmente tudo.
— Quero falar também! – mamãe diz batendo em outra
taça. – Acho o casamento ótima ideia, só tem um problema, aquela
casa é grande demais e eu investi muito dinheiro em um estúdio,
portanto, melhor ficarem conosco.
— Eu aqui louca para Holly casar e mudar e você
querendo que o Guy fique.
— Quer se livrar de mim, mamãe? – Holly reclama sendo
agarrada por Noah.
— O papai ama você demais, filha, não liga para a mamãe,
mas sabe que não precisa casar para se mudar, não é?
— Nem pensem em libertar essa pequena pestinha – Jay
brinca e Holly faz careta.
— Vocês são muito maus comigo. Eu sou um anjo doce e
delicada.
— Eu vou morar pelo mundo – Mike avisa cheio de planos
de caçar cavalos selvagens.
— Vamos brindar aos noivos! – Maggie convida.
— Taças erguidas, Guy! – Emy me avisa e ergo a minha.
— Aos meus meninos, Guy e Emily, que tenham uma vida
de amor e esperança. – Papai deseja.
— Com lindos filhos! – Penny Lane brinca enquanto eu e
Emy dizemos não ao mesmo tempo.
— Daqui dez anos? – pergunto a ela.
— Perfeito. Quando Coline voltar da faculdade – Emy
confirma.
— Ótimo plano! – eu digo beijando seus lábios enquanto
tocamos nossas taças e, escuto o tilintar sem melodia de taças se
tocando.
Deixamos o restaurante depois da meia-noite, não sei se
me importo muito com as críticas, mas tenho certeza de que vou
acordar com Peggy Sue ao telefone lendo tudo que disseram sobre
nós.
Meus pais nos dão uma carona, até o nosso apartamento,
no carro alugado. Embora Coline chore um pouco querendo ficar,
papai tem a sensibilidade de perceber que depois de um pedido
oficial de casamento, precisamos de um momento a sós.
Não tem nada que eu queira mais em minha vida do que
beijar e amar Emily.
Subimos quase correndo e talvez esse seja o único
momento que eu gostaria realmente de enxergar, correr sem
enxergar a direção, mas Emy está comigo, hoje, amanhã, toda
nossa vida.
Abrimos a porta apressados, entre beijos e carinhos, eu
empurro a porta quando estamos do lado de dentro.
— Melhor fechar. É Nova York! – Escuto a porta e sei que
estamos seguros e sozinhos. Emy desfaz o nó da minha gravata
enquanto meus lábios correm por seu pescoço, ela usa um vestido
elegante, com um tecido fino e suave, tem um lindo decote que
mexe com as minhas emoções a cada vez que corro meus dedos
pela linha do tecido.
— Meu amor está tão lindo neste terno elegante e com
gravata!
— Seu amor e noivo! – Ela geme enquanto meus dedos
encontram o zíper do vestido.
— Meu amor e noivo tem muitos talentos com as mãos.
Encontra um zíper em segundos.
— Faço melhor do que isso! – digo em seu ouvido
enquanto meu terno fica pelo caminho, talvez na mesma direção
que a gravata. Ela agora trabalha desabotoando a camisa enquanto
vamos seguindo para o quarto. – Devo admitir que também tem sido
cada dia melhor nessa arte de despir.
— Mãos precisas, senhor pianista.
Gosto quando Emy demonstra que sua timidez ficou no
passado, ao menos quando estamos assim, envolvidos e entregues
um ao outro.
— Eu amo você! – digo em seu ouvido no instante em que
nossos corpos agora nus, encontram os lençóis macios da nossa
cama.
— Sinto esse amor e sei agora que será assim para sempre
– ela diz com os dedos mergulhados em meus cabelos. – Casar
com você. Nem acredito.
— Me diz sim outra vez?
— Sim, vou dizer sim para sempre.

************

O telefone me desperta pela manhã, Emy está espalhada


na cama, sinto um braço sobre meu peito e uma perna embaixo da
minha, quando me movo ela desperta se ajeitando em meus braços.
— Alô!
— “A peça traz o frescor que o circuito precisava. Jovens
talentosos produziram todo trabalho provando que a Broadway
deixa sua marca e promete mais algumas décadas de grandes
shows.” – Peggy Sue me cumprimenta assim, lendo um trecho de
alguma crítica.
— Escuta essa Guy! – A voz de Ky soa logo atrás e coloco
no viva voz para Emily poder ouvir. – “O casal de protagonistas
mostra que não são apenas famosos atores de Hollywood, mas
crias dos palcos onde brilham com honestidade e entrega, as
músicas são compostas por um virtuoso que não nega, ou
economiza talento. Uma estreia digna de aplausos e com chances
de crescer ainda mais ao longo da temporada, talvez o espetáculo
perca um pouco por optar por um elenco de iniciantes, mas
demonstra respeito aos palcos e preocupação com as novas
gerações de talentos para os palcos”.
— Que lindo, amor. Vocês são um sucesso!
— Essa é a melhor parte! – Peggy Sue grita ao telefone. – “
A vida de Peggy Sue Sanders é uma aventura romântica e
empolgante que beira um conto de fadas moderno, mas com o
toque perfeito entre o drama e o riso, o que poderia soar como
arrogância, sendo ela mesma a se representar é uma audaciosa
viagem muito bem escrita pelo roteirista que aliás, é mais do que um
promissor músico, é alguém já marcado pelo sucesso com espaço
garantido no circuito. Imagino que seu telefone nunca mais pare de
tocar”.
— Parabéns! – Emy diz alto para que todos a escutem.
— Tem mais, tem muito mais e só uma crítica negativa,
mas é sobre o cenário e os coristas muito jovens, mas queríamos
isso, então conseguimos, essa crítica elitista tem que respeitar
nosso objetivo. – Ky garante.
— Estou feliz, foi um sonho e um ótimo investimento. Acho
que vamos ter casa cheia toda a temporada.
— Amo você, Guy. Obrigada, muito obrigada! Não case
antes de recebermos o Tony, temos que estarmos juntos para
recebê-lo.
— Peggy Sue e suas certezas – brinco admirando sua
positividade.
Desligo o telefone emocionado, feliz, aliviado, era tão
importante para ela, para o Ky, a primeira produção deles, meu
primeiro trabalho completo para a Broadway, escrito por mim, do
começo ao fim, fizemos com o máximo do nosso amor.
Emily me beija os lábios. Sinto todo seu carinho, fizemos
isso juntos, tê-la comigo me fez mais forte e mais determinado, sem
ela não teria conseguido ficar os seis meses aqui, vencemos juntos
e vamos coroar essa história com nosso casamento e uma vida de
amor.
Capítulo 31
Emily

Meu pai corre os olhos pelo espaço, ao lado dele, sua


nova esposa sorri encantada com a decoração, ela não lembra em
nada minha mãe, ao menos não na aparência, mas tem olhos gentis
e um tanto encantados.
Ele não segura sua mão, abraça, nada, é frio como sempre
foi. Deixamos a cozinha pequena, mas totalmente completa e
organizada e vamos para o salão, são oito mesas, espaço para mais
duas se for necessário, do lado de fora, no espaço aberto, apenas
quatro mesinhas.
— É lindo, Emily. – Janeth diz reparando nos arranjos de
mesa com pequenas flores cultivadas por Mandy e Maggie, assim
como as folhas verdes que ladeiam todo o espaço trazendo frescor
e um perfume suave ao lugar.
— Pequeno, mas bem aconchegante – meu pai diz sem
muita emoção. – Vai mesmo dar conta disso, principalmente
sozinha? Essa dívida toda que fez...
— Pai, eu não vou dar conta disso sozinha, tenho o Mathieu
me orientando em tudo, eu estudei muito, fiz um curso em Nova
York, depois continuei estudando quando voltamos, passei os
últimos seis meses me preparando, enquanto montava e está
perfeito. Tem um ano que comecei com esse projeto, não fiz nada
correndo.
— Se vai casar amanhã e o namorado é rico, para que se
meter nisso? Vai morar em uma mansão, deve ter muito o que fazer
por lá, para que inventar de trabalhar? Ele concorda com isso? Vai
perder o rapaz enfiada em uma cozinha o dia todo.
— Guy está muito feliz com isso. Orgulhoso de mim, ele
como eu, acha ótima ideia eu ter uma vida, não sou propriedade
dele, sou noiva e a partir de amanhã, esposa, vamos dividir a vida,
não vou entregar a minha para ele.
— Seu pai é cabeça dura – a esposa diz dando uns passos
para longe interessada na decoração, ficamos apenas eu e ele.
— Se souber que você a machucou como fazia com a
minha mãe, eu chamo a polícia – aviso a ele que me olha ofendido,
mas não tem coragem de dizer nada. Nos vimos meia dúzia de
vezes desde que vim viver no Vale. Quase pensei em não o
convidar para o meu casamento, mas não quis carregar esse peso.
— Quando inaugura?
— Daqui duas semanas, quando voltar da Lua de Mel. Não
será um restaurante muito grande porque não quero que seja, vai
abrir apenas para o almoço e isso também é minha decisão. Guy
não se importaria de me esperar mesmo que eu abrisse às 18h e
fechasse à meia-noite, meu restaurante é do tamanho do meu
sonho, pai e, foi o Guy que me ensinou a sonhar.
— Você que sabe, não dou mais palpite, é capaz de chamar
a polícia, não é mesmo? – ele diz antes de ir se juntar a esposa. –
Vamos Janeth, o hotel é pequeno, mas tem televisão e um bom
chuveiro – ele provoca um tanto bravo porque não foi convidado a
se hospedar na casa dos Montpelliers, eles o aceitariam, fariam tudo
por mim, mas não posso e não é justo prêmiá-lo com nada depois
de tudo, assim como não o convidei para me levar até o altar e
talvez seja sua grande revolta, ele queria seguir ao meu lado
banhado na hipocrisia, mas me doeria demais e me casar com Guy
é o grande momento da minha vida, não vou deixar nada macular
esse momento.
A rua está agitada com os últimos preparativos para a festa
da cidade, meu casamento será às 11h da manhã e em seguida,
Festa da Cidade e aniversário do Guy, tudo junto em um grande
evento.
Peggy Sue veio, está abraçada ao Tony e não fala em outra
coisa, Guy não acreditava mesmo que poderia ganhar, mas fez um
discurso divertido na premiação, me fez rir quando com o prêmio na
mão disse que agora só faltava um Grammy e, eu não duvido que
ganhe um em algum momento de sua vida.
Ele recebe convites para a Broadway e para Hollywood toda
semana, gosta de trilhas sonoras e vai começar um projeto assim
que voltarmos da Lua de Mel.
— Vejo vocês amanhã. – Despeço-me do casal na frente do
restaurante. Olho para o pequeno letreiro na frente do meu sonho.
Bistrô Montpellier escrito em letras desenhadas e elegantes, uma
homenagem cheia de gratidão às pessoas mais especiais que
conheci.
Meu celular toca quando caminho para a mansão, atendo
quando vejo o nome Jimmy surgir na tela.
— Alô! – Nem acredito que ele chegou a tempo.
— Seu presente está aqui, é lindo.
— Posso buscá-lo agora? Quero que ele leve o Guy
amanhã! Acha que até lá eles vão estar entrosados?
— Com certeza, Guy vai saber o que fazer, estou em casa
te esperando. – Corro até a casa de Jimmy a uma quadra do
restaurante. É uma casa simples, dois andares, três quartos, uma
pequena clínica nos fundos, onde ele atende alguns animais da
cidade, quando não está no rancho, Penny Lane me recebe com
uma barriga enorme de oito meses.
— Olá! – Eu a abraço, depois toco a barriga. – Kendra vai
nascer no meio do meu casamento. Como ela está?
— Bem animada, devo admitir, mas já conversei com ela.
Vai se comportar amanhã, não é filha? – Penny alisa a barriga.
Jimmy surge com um belo cachorro, um labrador de pelos amarelos
que combina perfeitamente com o nome que eu e Coline
escolhemos em segredo.
— Soleil! – digo emocionada. – Jimmy, ele é tão lindo!
Posso me aproximar?
— Claro! – ele diz soltando a coleira do cão que me abana
o rabo animado. Afago seus pelos, ele pula em mim, brinca, passa
pelo meio das minhas pernas. – Sem a guia ele é como um cachorro
qualquer, gosta de brincar, descansar, comer, ama afagos, mas
quando você coloca a guia, então ele entende que vai exercer uma
tarefa importante e vai se concentrar no trabalho.
— Obrigada por me ajudar, Jimmy. Ele é tão especial,
parece mesmo como o sol. Vai iluminar os caminhos do meu amor.
– Beijo os pelos do lindo cão-guia que tem sido treinado há meses
para vir viver aqui e fazer Guy ainda mais seguro. Jimmy encontrou
o treinador, viajou até Dallas para organizar tudo, dar nome ao cão,
foi duas vezes saber se tudo estava indo bem e hoje pela manhã, foi
buscá-lo já pronto, será o presente de casamento e aniversário que
eu e Coline vamos dar ao Guy e, talvez para toda família.
— Guy vai saber como cuidar dele, Soleil não é nada
diferente de Lumière.
— Já posso levá-lo?
— Sim, trouxe ração também, você leva esse saquinho
para hoje, amanhã deixo o resto do pacote na sua casa, muito peso
para levar hoje.
— Meu marido é perfeito! – Penny brinca e ele a abraça,
beija sua barriga, está exultante porque será pai de uma menina que
vai levar o nome de sua mãe, uma homenagem que ele sempre
sonhou fazer.
— Tia Gwen está chegando – ele diz a barriga. – Acredita
que essa danadinha ama a voz da Gwen e se anima toda?
— Acredito, Gwen é alguém especial, ela é muito sensível.
— Mike teme que eu esteja grávida de um potro. – Penny
me conta rindo enquanto Jimmy faz careta – ele diz que isso explica
a alegria do bebê com Gwen.
— O pestinha não vale um centavo. – Jimmy acaba rindo.
Afago outra vez os pelos de Soleil, depois me despeço do
casal, quando deixo a casa, o cachorro parece tomar outra postura,
caminha na minha frente, me guiando e desviando de obstáculos
como se eu não pudesse enxergar, me emociona e até me arrisco a
fechar os olhos um instante.
Dá uma mínima dimensão de como é que Guy vive e
sempre o admiro ainda mais.
Ligo para Mandy pedindo que Coline me espere no portão,
a família está na maior pressa para organizar tudo, Maggie e Mandy
trabalhando feito loucas nos arranjos da igreja, é um dia especial,
um grande dia para toda cidade e também para nós. Especialmente
para essa família.
Coline corre para abraçar o cão assim que chego ao portão,
mas ele não lhe dá qualquer confiança, se mantém atento ao
trabalho de me guiar.
— Emy, ele não gostou de mim?
— Não, querida, ele está trabalhando. Está atento
pensando que preciso ser guiada. Se lembra como Lumière ficava
quando saía com o Guy?
— Ah, sim, eu me lembro, ele não ligava para ninguém. Só
prestava atenção no Guy e no caminho.
— Onde o Guy está? – pergunto ansiosa.
— No piano da sala, vai ser perfeito. Posso levar o Soleil?
— Sim! – Entrego a ela a guia e ela segue ao meu lado,
emocionada, feliz, animada. Uma garotinha que aprendi a amar
como uma irmãzinha.
Escuto o piano e imagino que em alguns dias, Soleil vai se
acostumar a deitar sob o piano para descansar, enquanto Guy toca.
Mathieu e Mandy estão na sala, de mãos dadas lado a lado
quando entramos, Mandy tem lágrimas nos olhos, o piano para no
instante em que chegamos à sala, Guy fica mudo por um instante,
então parece escutar talvez as patinhas, ou a respiração pesada de
Soleil com a língua para fora um tanto ansioso, não importa, tudo
que importa é que Guy sabe que ele está aqui, que tem outra vez
um companheiro e ninguém precisa contar a ele.
Coline leva o cachorro até o irmão, quando solta a guia,
Soleil se agita, abana o rabo e Guy toca seus pelos, percorre seu
corpo e se ajoelha no chão junto a ele.
— Ei! Amigo, quem é você.
— Este é Soleil, seu novo amigo, está aqui para ser o seu
novo parceiro – conto a ele emocionada. Guy o abraça, mudo de
emoção, o cachorro lambe seu rosto, se enrosca nele, derruba Guy
que está emocionado, deixa suas lágrimas caírem por seu rosto, me
faz chorar e rir ao mesmo tempo.
— Eu e a Emy que fizemos tudo, seu presente de
aniversário, Guy. Um cão-guia. Ideia da Emily que a mamãe e o
papai adoraram. Escolhemos o nome dele faz um tempão, não foi
Emy?
— Sim. Soleil está a sua espera há meses. – Eu me junto a
eles no chão da sala, Guy me puxa para um abraço assim que me
sente ao seu lado. Soleil nos atropela saltitante.
— Obrigado, meu amor, eu... eu estou pronto para ele, para
amá-lo como um dia amei... como ainda amo o Lumière.
— Sei disso! – aviso, beijando seus lábios.
— Pai, mãe...
— Estão aqui, chorando, abraçados e te olhando com os
olhos de amor que você sabe que eles têm para você e, o Soleil
está mordendo os sapatos da sua irmã.
— Aqui, amigo! – Ele chama e o cachorro vem correndo.
Guy segura sua guia, fica de pé, o cãozinho logo parece entrar no
clima. – Vamos dar uma volta no jardim? Vem comigo, anjo?
— Claro! – digo prendendo minha mão a sua e seguimos os
três para o jardim.
O cãozinho nos traz paz e riso pelo resto do dia, destrói um
dos arranjos, toma uma boa bronca de Mandy, depois quando o
nosso último dia de solteiros chega ao fim, depois de dar uma última
volta no jardim com Guy, ele dorme tranquilo aos pés da nossa
cama, feliz e completamente encantado com Guy, um único dia, foi
tudo o que ele precisou para entender a quem ele devia oferecer o
máximo do seu amor e companheirismo, os dois já são
inseparáveis.
Acordo na manhã do meu casamento assim que o sol
nasce, passo um longo momento olhando para Guy dormir. Penso
em meu vestido, no amor que sentimos, na bela festa, com todos
que amamos a nossa espera, na vida que vamos ter e sou grata.
Jay vai me acompanhar ao altar, podia ser Mathieu, mas
acho que ele quer estar ao lado de Guy nesse momento. Lolla vai
cantar, será lindo e especial. Será eterno.
Mandy me ajuda ao longo do dia, Lolla me maquia,
penteia, me conta suas histórias, me faz ter esperança e sonhar.
— Posso falar com a noiva – escuto Mathieu perguntar da
porta. Balanço a cabeça afirmando e ele entra no quarto.
— Está linda. – Ele sorri. – Vim desejar sorte, dizer que
estou muito feliz que é você. – Ele segura minhas mãos. – Sempre
tive medo por meu filho, mas não tenho mais, Emily, ele encontrou o
amor e o amor sempre nos guia pelo caminho certo, sempre ilumina.
— Eu tive tanta sorte de encontrar vocês. Mathieu eu...
obrigada por me deixar ser parte da sua família – digo emocionada.
— Sentimos muito orgulho de você, Emily, chegou uma
menininha assustada, mas nesse pouco mais de um ano, em que
está na cidade, se tornou parte do Vale, dessa família e proprietária
de um coração apaixonado. Ele é o meu tesouro e onde está o meu
tesouro, estará também o meu coração e, está com Guy.
— Só quero garantir que está em sua casa, Emily, por
direito, por amor. Fico grato por decidirem ficar perto, acho que não
estou pronto para ficar longe dele e agora de você. – Ele me beija a
testa. – Seja feliz, eu sei que não sou o seu pai, mas será esse
amor que vai encontrar em mim, sempre!
Abraço Mathieu em gratidão, foi tudo que sempre quis,
esse amor protetor de pai, que me faz caminhar para o futuro sem
medo.
— Vou esperar você na igreja com o Guy, ele está muito
bonito e muito ansioso. Não se demore demais.
— Queria estar lá a espera dele – brinco. – Mas disseram
que não era de bom-tom.
— Soleil vai conosco, ele cuida do Guy. Foi um lindo
presente. – Mathieu beija minhas mãos e me deixa, encaro o
espelho gostando do resultado.
— Vá ser feliz, Emily e no caminho, seja corajosa.
— Bom conselho. – Peggy Sue diz ao lado de Lolla. – Está
parecendo um anjo, é sempre assim que ele a descreve.
— É assim que me sinto. O anjo abençoado com a chance
de amar.
— Vocês não deviam andar juntas! – Lolla ri. – Que agonia
essa melação toda! Vamos logo para esse casamento do século! –
Lolla pega meu braço e, meu coração finalmente erra a batida,
chegou a hora de ser feliz.
Capítulo 32
Guy

— Como eu estou, pai?


— Muito bonito – ele diz ajeitando o nó da gravata. – A
igreja está enfeitada com lírios brancos, seus melhores amigos
estão na primeira fila, Penny ocupando o lugar de dois, Peggy está
com o Tony na bolsa, posso apostar todas as minhas fichas nisso,
mamãe está linda. Coline e Emily devem estar chegando. Lolla já
está a postos, lá fora a festa está pronta e o padre James parece
bem ansioso.
— Mamãe já está chorando?
— Só um pouquinho, bebê! – ela diz fungando ao meu lado.
– Boa sorte, eu te amo tanto, nem acredito que esse dia chegou.
— Me criou para isso, não foi? Para voar?
— Desde que sempre volte para o ninho – papai brinca.
Soleil está deitado ao meu lado, descansando, foi ele a me guiar
pelo corredor da igreja.
— Chegaram! – Padre James avisa e meu coração parece
prestes a parar de bater. Aprumo-me, não sei como é que vou
aguentar esperá-la aqui, eu devia buscar minha Emy.
— Coline está entrando – mamãe avisa enquanto a potente
voz de Lolla Queen se espalha pela igreja com sua acústica perfeita.
— Carrega um cestinho com as alianças, usa um vestidinho branco
que lembra uma nuvem – mamãe sussurra. — Agora é Emy, ela
está linda, filho, um anjo, é como descreveria, um anjo caminha para
você com um buquê de lírios brancos. Jay está bem orgulhoso ao
seu lado, seja feliz. – Ela deseja se afastando.
— Boa sorte, meninos – Jay diz quando chegam perto, toca
meu ombro e estendo a mão para apertar a sua.
— Obrigado. – Minha voz soa emocionada demais e sorrio.
Procuro sua mão para prender a minha, sinto o perfume de
mel com morangos silvestres, levo sua mão aos lábios e beijo com
carinho.
— Está linda! – digo a ela. – Mamãe a descreveu como um
anjo.
— Quer descobrir? – ela diz levando minha mão primeiro
pela manga longa. – Todo noivo tem o direito de admirar o vestido
da noiva ao entrar na igreja – ela diz baixinho, mas a igreja está tão
silenciosa, tenho certeza de que qualquer um pode nos ouvir. – Um
vestido sensorial, feito especialmente para você.
Corro a mão pelas pequenas pedrinhas e bordados ao
longo de toda a manga, chego até os ombros, desço suavemente
pelo colo. Um decote em V, todo tecido trabalhado com pedras e
bordados, uma riqueza de detalhes, vou até a cintura marcada e
toco a saia que desce com o mesmo trabalho se alargando, talvez
se abrindo ao chão como imagino. Eu me lembro de como noivas
eram uma figura bonita no tempo que eu enxergava, que me faziam
pensar em reis e rainhas em reinos distantes. Nosso reino é o amor.
Uma melodia se forma em minha mente, suave e baixa,
notas doces e longas. Minha mão sobe outra vez pelo colo, encontra
o pescoço nu, com delicadeza toco seu rosto, sem me esquecer de
não borrar a maquiagem, mamãe me ensinou quando menino. Meus
dedos tocam os cabelos presos em um arranjo com a mesma
textura do vestido, uns cachos escorrem ao encontro das costas
nuas.
— Sensual – brinco ouvindo seu riso baixo. – Vou decorá-lo
mais tarde.
— Shiu, o padre! – Ela me alerta e os convidados riem. –
Espertinho.
— Cego, mas nunca tolo! – brinco beijando outra vez sua
mão. – Amo você, estou pronto para amar para sempre.
Ela prende minha mão firme a sua, me indica a direção do
padre e ficamos silenciosos, a melodia do nosso amor vai tocando
em minha mente e eu poderia parar tudo e ir até um piano tocar
para ela, nunca mais vou me esquecer do som do nosso
casamento, em dourado e uma pincelada de azul, amarelo, um
verde-esmeralda e por fim, o vermelho-intenso em um final
triunfante de uma melodia que começou baixa longa e constante.
— Guy Montpellier, aceita Emily Lynch como sua esposa,
para amá-la e honrá-la todos os dias de sua vida?
— Sim – digo emocionado.
— Emily Lynch, aceita Guy Montpellier como o seu marido
para amá-lo, e honrá-lo todos os dias da sua vida?
— Eternamente – ela responde.
— Façam seus votos enquanto trocam as alianças, que as
bênçãos de Deus iluminem o caminho do casal.
— Essa é a sua, Emy. – A voz de Coline soa baixinho e
sorrio quando Emy pega minha mão, primeiro ela toca meu rosto
com cuidado, talvez tenha aprendido comigo, Emy usa todos os
seus sentidos, nosso amor está no toque, muito mais do que em
qualquer outro sentido.
— Guy... – A voz treme um pouco e me emociona sentir
sua emoção. – “Você preenche meu coração com música, sonhos,
esperança, me faz rir e acreditar, sou melhor com você, sou mais
forte e infinitamente mais feliz. Eu te amo e vou amar pela
eternidade, como suas músicas.”
O anel desliza suave por meu dedo, vou me acostumar com
ele, me lembrar que ele simboliza nosso amor e vai estar comigo
mesmo quando estiver sozinho, na parte de mim que me faz mais
completo. As mãos.
— Aqui, Guy! – Coline coloca o anel de Emily em minha
mão.
— Obrigado, bobalhona! – sussurro fazendo Emy rir. – Não
faz careta. – Meu sorriso se desfaz, não escrevi nada, não queria
que fosse metódico, queria que fosse espontâneo como sempre foi
o nosso amor. – “Emy... – É difícil domar a emoção, levo um
segundo controlando a vontade de chorar abraçado a ela. – Emy. –
Recomeço. – Nunca vivi na escuridão, mas sempre soube que
algum dia, o amor me traria luz, você me torna completo, é o meu
quinto sentido, meu norte e meu anjo, tem uma melodia sua que
toca em minha cabeça e nos eterniza, nosso amor nos fez imortais,
eu amo você e será sempre assim, tentei escolher uma nota para
você, mas você é uma sinfonia. Eu te amo.”
Termino de colocar o anel em seu dedo, ela descansa seus
braços em meus ombros, desce suave até meu peito e nos
beijamos, o padre diz qualquer coisa, faz a sua declaração final,
mas já estamos entregues ao nosso amor, selando com um beijo e
que a vida selou antes, com melodia e luz.
— Foi tão lindo! – ela sussurra em meus braços, enquanto
as pessoas parecem cochichar sobre a cerimônia.
— Parabéns! – Meu pai aperta meu ombro, me entrega a
guia de Soleil e deixamos a igreja. Eu, minha Emy e Soleil um pouco
à frente nos guiando.
Tenho que agradecer tantas pessoas, tem tanto amor em
Horses Valley, ficamos os dois na porta da igreja, quando somos
cercados por nossos amigos e família.
São tantos abraços e apertos de mão, o pai de Emy chega
quase no fim dos cumprimentos, aperto sua mão a princípio sem
saber quem é.
— Cuide bem da minha filha. – Meu sorriso se desfaz
diante da hipocrisia. – Você veja se respeita seu marido e cuida das
coisas. Venho para a inauguração, não vamos ficar para a festa –
ele diz a Emily sem uma única palavra de amor, sinto sua alegria
diminuir um instante.
— Está tudo bem, linda.
— Eu sei que sim, mesmo sendo desse jeito vazio de
emoção, eu prefiro tê-lo assim por perto, ao menos não levo
qualquer sentimento de culpa e vamos vivendo, tem mais gente
como eu do que como você, Guy.
Passo meu braço por sua cintura, ela se encosta em meu
ombro. Uma música country começa a tocar nos alto-falantes do
palco.
— Bobalhão, foi lindo! – Coline diz me abraçando, beijo o
topo da sua cabeça. – Parabéns. Agora a Emily é nossa, papai
disse que ela será como minha irmã.
— É isso que quero, que sejam irmãs – digo a ela.
— Também sinto isso, Coline.
— Obrigada, irmã! Acho que você vai ser minha irmã
preferida, depois do Guy! – Eu e Emy rimos, ela se solta de mim
apressada. – Vou brincar.
— Filho! – Papai me abraça. – Não sei se me acostumo
com você casado e adulto.
— Nem eu, papai. – Toco seu rosto, a expressão suave. –
Obrigado por ser meu pai, não podia ter outro melhor. Nem uma
mãe melhor.
— Já estava ficando com ciúmes. Estão lindos, foi o mais
bonito casamento do Vale, desde que entrou na igreja com o Soleil
até saírem juntos os três, tanta gente chorou que eu nem acredito.
— Amo vocês – digo aos dois quando me abraçam ao
mesmo tempo.
— Aproveitem a festa – papai diz se afastando.
— Parabéns! – Lolla Queen se junta a nós.
— Lolla, cantou como uma deusa! – Ela me abraça, me
solta talvez para envolver Emy enquanto aperto a mão de Jay. –
Obrigado por tudo Jay, me deram o amor da minha vida!
— Emily! – Lolla diz emocionada. – Anjo, é mesmo um anjo
dentro desse vestido. Foi lindo, sinto sua falta lá em casa e estou
muito feliz com sua nova vida. Agora vou almoçar todo dia no seu
restaurante.
— E nunca vai pagar – Emy brinca.
— Eu não tinha planos de pagar, querida – Lolla brinca. –
Sejam felizes e nada de crianças, vão viver.
— Só daqui dez anos, Lolla – Emily avisa.
— Perfeito, quando tiverem filhos vou me sentir um pouco
avó e não tenho pressa nenhuma disso, diferente da Mandy que
parece contar os dias.
— São todos muito jovens para isso – eu comento.
— Vou para o palco, quero vocês lá para a valsa. Antes que
você e Peggy Sue tomem o palco para a apresentação estelar, um
Tony, eu nem acredito que Horses Valley tem um Tony.
—Se cantar uma música comigo teremos um Grammy –
brinco com Lolla, seria incrível tocar piano para ela.
— Ganhe um Grammy sozinho, querido, eu já ganhei o
meu.
— Ela está falando de mim – Jay avisa.
— Os dois saíram abraçados, estão indo em direção ao
palco, a festa está linda, muita gente entre as barracas, todos muito
bem vestidos, cowboys em uma rodinha tomando cerveja, chapéus,
botas e cintos com fivelas gigantes.
— Camisa xadrez! – eu brinco.
— Todos eles. Butch está na barraca do assado, a que tem
maior fila. Harper e Noah estão com ele, no momento estão se
beijando, Holly está servindo junto com o avô, a prefeita está com
eles e o senhor Anderson está apertando mãos. Alguém parece ter
planos de substituir a esposa no poder. – Emy brinca.
— Seus pais estão abraçados dançando uma música
imaginária, ele acaba de dizer algo no ouvido da sua mãe, ela
sorriu, deve ser romântico.
— Papai é muito bom nisso.
— Coline acaba de passar correndo seguida do Jerry e do
Mike, Callan está logo atrás, mas parece mais interessado no
sorvete que acaba de derrubar na camisa. Tadinho!
— Os Berckmans são sempre os Berckmans, estão sempre
aprontando na cidade – brinco me lembrando de quando eu era
pequeno e Shane era a pessoa que todo mundo detestava e, meu
pai, por alguma razão, fez amizade.
— Shane e Gwen estão com a Cassady no colo, ela é tão
lindinha, está com o pai ganhando um beijo na bochecha da mãe.
— Elton e Maggie estão na festa? – Quero saber de todos
que amo e com quem convivo todos os dias.
— Sim, tem uma barraca com as lembrancinhas do nosso
casamento, eles estão distribuindo, Maggie é tão bonita e está tão
feliz. Penny Lane está sentada em uma cadeira dentro da barraca,
Jimmy com ela, usa um pedaço de papelão para abaná-la. Esse
bebê vai acabar nascendo no meio da festa.
— Já tivemos algo parecido no passado – brinco
vasculhando minhas memórias. – E a Peggy e o Ky?
— Com os pais do Ky e os dela, mas os dois estão
cercados de jovens, talvez querendo saber sobre o Show Business.
— E ela não para de sorrir e contar como foi maravilhoso,
acertei?
— Provavelmente. A Estrela do Vale não perde a chance de
brilhar – Emily brinca. – Ela é tão linda e traz muita esperança para
o Vale, eu vejo como a autoestima da cidade parece gigante pelas
estrelas que aqui vivem. Você, Peggy e Ky...
— A mocinha que chegou sozinha e triste e agora tem um
lindo restaurante e não para de sorrir.
— Um cavalo mágico que aparece para apaixonados e
garotinhos aventureiros.
— Em noites estreladas – eu completo. – Estrela da Noite
nunca vai deixar o Vale entre as montanhas.
— Uma canção para os noivos – Lolla diz ao microfone.
— Nossa deixa! – aviso a Emily e seguimos para a pista de
dança na frente do palco, ao menos sempre foi assim e não acho
que seja diferente essa tarde.
— Estamos sozinhos na pista – ela diz quando envolvo sua
cintura.
— Dança comigo, Emily Montpellier?
— Sempre. – Deslizamos pela pista, ela em meus braços,
seus lábios ao encontro dos meus, em um beijo suave que tem o
ritmo da voz de Lolla, uma canção de apaixonados e final feliz,
sobre estrelas e amor, sonhos e futuro.
— Agora tem que ir ao palco tocar enquanto Peggy e Ky
cantam a música que trouxe um prêmio lindo ao Vale, que está por
aí tocando em rádios e inspirando mocinhas sonhadoras – Emy me
pede. Vou até lá e no fim, atiro o buquê.
Subimos juntos enquanto Soleil fica com Coline, ele está
prestes a partir conosco em uma viagem de Lua de Mel, depois,
quando retornarmos, uma vida de riso e amor nos espera.
— Boa tarde, Horses Valley! – Peggy Sue repete o que
sempre disse em todos os anos e anos que dividimos o palco da
nossa cidade, enquanto me acomodo ao piano.
Dessa vez, não tem o riso do Vale achando a pirralha
sonhadora demais, tem pelo contrário, a euforia de estarem diante
de sua grande estrela, ela conseguiu, como todos no Vale vêm
conseguindo.
— Esse é o nosso prêmio. – Não é preciso me contarem
que ela está mostrando a todos o prêmio que ganhamos. – Ele
pertence a todos nós, ao Vale, aos que acreditaram nesse sonho e
também aos que não tiveram fé, para que comecem a ter.
Meus dedos tocam as teclas, sua voz ecoa pela cidade
enquanto sinto minha linda esposa ao meu lado, a cidade toda vibra
com a música, penso na primeira apresentação, um garotinho que
treinou semanas para não esquecer as notas e Peggy Sue, minha
eterna irmã mais velha e a mesma voz de sonho que tem hoje, mas
eu não sabia que encontraria o amor, eu apenas sonhava com ele e
não era tão bonito quanto a realidade. Ao som de aplausos termino
com a última nota.
Emily me beija os lábios antes de ir atirar o buquê, têm riso
e brincadeiras, enquanto ela parece ameaçar uma ou duas vezes,
até que atira o buquê e eu não sei em que mãos eles caem, não
importa, Horses Valley já contou muitas histórias de amor e outras
tantas serão contadas.
É o Vale entre as montanhas, onde muitas histórias se
cruzam, pessoas chegam e partem, mas com uma única certeza,
Sempre Teremos o Vale.
FIM

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