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Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

A Fragilidade Democrática

Problemas Anunciados nas Democracias Liberais no Século XIX

Pedro de Araújo e Silva, 153438

Dissertação de Licenciatura em Filosofia

Orientador de Especialidade: Professor Doutor José Gomes André

Seminário de Investigação: Professor Doutor Pedro Galvão

12 de junho de 2023
Silva 2

Resumo:

O objetivo deste estudo consiste em destacar os principais problemas democráticos


anunciados no século XIX que se verificam atualmente. Começo por contextualizar as
Revoluções Americana e Francesa devido à sua relevância para os ideais democráticos
modernos – destacando-se o sucesso e insucesso de cada uma respetivamente. De seguida,
exploro os problemas apresentados por Tocqueville e Stuart Mill – o individualismo extremo,
a falsa sensação de liberdade e o perigo do paternalismo de Estado – e as soluções propostas
pelos mesmos – o incentivo à individualidade e à participação pública. Por fim, auxilio-me de
Constant para sintetizar as ideias presentes no trabalho e visto destacar a importância do
comércio para à época, para realizar uma ligação às democracias contemporâneas –
especificamente, o caso português. Desta forma, procurei demonstrar como as adversidades
enunciadas se verificam atualmente, alertando para os eminentes perigos que acartam e
inferindo possíveis soluções que possam amenizar a situação – focando-me na educação, que
considero ser o pilar fundamental das sociedades.

Palavras-chave:

Democracia, problemas, liberdade, igualdade, despotismo, filosofia política.

Índice:

1. Introdução ............................................................................................................................ 3
2. Os Dois Polos Democráticos do Século XIX ...................................................................... 4
2.1. A Emocional Revolução Francesa ................................................................................ 5
2.2. A Racional Revolução Federal ..................................................................................... 9
3. A Matriz dos Problemas Democráticos ............................................................................. 12
3.1. Uma Igualdade que Cega ............................................................................................ 15
3.2. Ilusória Liberdade ....................................................................................................... 17
3.3. Despotismo Tangente à Democracia? ........................................................................ 20
4. Soluções Democráticas para Problemas Democráticos ..................................................... 22
4.1. A Importância da Excentricidade ............................................................................... 22
4.2. Dois Propulsores Notáveis do Interesse Público ........................................................ 25
5. Reflexão e Considerações Sobre a Investigação ................................................................ 28
Bibliografia .............................................................................................................................. 36
Silva 3

1. Introdução

O advento da Democracia moderna é, sem dúvida alguma, um dos mais importantes


marcos do avanço civilizacional do Homem e, embora inicialmente mais restrita relativamente
aos participantes permitidos, a sua ideologia inerente liderou uma natural evolução,
culminando no atual abrangente processo democrático. Contudo, “… nenhum governo criado
e administrado por seres humanos poderá ser perfeito…”1: na teoria, a democracia parece o
melhor sistema dentro dos possíveis, mas por depender do Homem, possui na prática perigosas
fragilidades, que são diariamente ameaçadas por diversos fatores.

As fragilidades democráticas não têm passado despercebidas nos tempos que correm,
mas com a quantidade de informação de fácil acesso sobre a História do século passado, qual
foi a ignição das novas tensões? Para responder a esta questão, é necessário recuar ao momento
da eclosão das democracias liberais – o advento das revoluções Americana e Francesa no fim
do século XVIII. Contudo, embora a Constituição americana seja de 1787 e a república
francesa tenha caído em 1799 com o “golpe de Estado de 18 de brumário”, é a partir do século
XIX que se estuda a democracia com mais rigor e profundidade. Nos Estados Unidos da
América documentou-se detalhadamente a evolução do regime e no mesmo período e local,
Alexis de Tocqueville através das suas observações, leituras e conversas com uma série de
notáveis americanos, recolheu informação que estudou e pensou, resultando na publicação, em
duas partes (1935-40), da famosa obra Da Democracia na América.2 No velho continente
destacaram-se John Stuart Mill, autor de Sobre a Liberdade e alguns ensaios que revelam o
contraste entre o seu entusiasmo pelo governo democrático e o pessimismo quanto ao que a
democracia pode fazer;3 e Benjamin Constant, cujo discurso intitulado A Liberdade dos Antigos
Comparada com a dos Modernos sintetiza essencialmente os dois filósofos e abordando a
questão do comércio, permite transitar para a análise contemporânea dos problemas indicados.
Constituindo a base do meu trabalho, os dois primeiros filósofos enunciaram as qualidades do
sistema democrático – destacando-se a Igualdade em Tocqueville e a Liberdade em Stuart Mill
– mas também foram capazes de prever as falhas desta nova forma de organização política.

Tendo em conta os marcantes eventos históricos que definem as primeiras eclosões


democráticas, considerei pertinente abordar Tocqueville, Stuart Mill e Constant por alguns
motivos: embora Constant fosse cerca de 30 anos mais velho, Stuart Mill e Tocqueville

1
Madison, “Majority Governments.” 528.
2
“Alexis de Tocqueville.” Britannica Academic.
3
“John Stuart Mill” Britannica Academic.
Silva 4

possuíam uma diferença de idade inferior a um ano, tornando a sua muito próxima
temporalidade importante ao estudar os seus escritos sobre os problemas; Tocqueville escreveu
talvez das mais importantes obras sobre a democracia, descrevendo em duas extensas partes as
observações e conclusões que retirou do processo democrático norte-americano, pelo que
considero essencial ao estudo que realizei; Stuart Mill, embora não vivendo numa democracia,
foi um dos mais importantes defensores de movimentos progressistas e da liberdade em si,
sendo muito importante a sua vivência num país regido pela padronização na análise deste
problema nas democracias; Constant vivenciou a própria Revolução Francesa, o que lhe
permite falar com propriedade relativamente aos erros que aconteceram para a democracia não
ter sido bem sucedida na França. Além disso, Tocqueville sendo francês conhece bem a sua
História recente, permitindo-lhe realizar uma análise mais fundamentada sobre o sucesso
democrático que acontecia nos Estados Unidos, em comparação ao insucesso que o movimento
democrático teve em França; e Stuart Mill sendo inglês conecta-se com a História da
independência americana face ao seu país.

Em relação aos problemas, poderiam ser indicados vários, mas de forma a realizar um
estudo mais sintético, acredito que demarcar a Individualidade e a Liberdade como os dois
grandes focos dos problemas democráticos, a par do Paternalismo de Estado que surge de
ambos, elucida eficazmente sobre o que nos aguarda o futuro. De forma a complementar a
exposição, auxilio-me de Constant na parte final com o intuito de sintetizar os problemas
enunciados e, introduzindo a variável do comércio, realizo uma breve análise ao cenário
contemporâneo face a estes problemas – com especial foco na minha realidade, que é a de
Portugal. Assim, espero alertar para os problemas que ainda hoje se sentem e se acentuam cada
vez mais, referindo igualmente as soluções propostas por Tocqueville e Stuart Mill, ao mesmo
tempo que infiro dos dados expostos sobre a realidade portuguesa, possíveis soluções atuais
que facilitariam possivelmente o processo de incentivo ao exercício democrático.

2. Os Dois Polos Democráticos do Século XIX

Falar da democracia moderna no século XIX requer uma breve contextualização dos
motivos para a sua emergência, principalmente a Revolução Francesa e Americana. O ano de
1789 não só é a grande linha divisória da História moderna da França, como também marca a
transição da Era Moderna para a Era Contemporânea – “o fim da era pré-moderna caracterizada
por um tradicionalismo organicista e religiosamente sancionado”.4 Foi a partir deste momento

4
“France.” Britannica Academic.
Silva 5

que se iniciou a legitimação do individualismo laical, tanto na vida política como na social, que
se materializou junto da racionalidade no constitucionalismo escrito e governo parlamentar,
embora a Revolução Americana tivesse sucedido previamente à Revolução Francesa.5

2.1. A Emocional Revolução Francesa

No contexto francês interessa, primeiro que tudo, estudar em que consiste o Antigo
Regime (ancien régime), de forma a entender os desenvolvimentos do século XVIII e as
consequentes repercussões no século XIX. Fundamentalmente, é definido pela interligação das
formas políticas, económicas e sociais do Estado, pois embora sendo maioritariamente um
conceito político, a clara ressonância económica e social esteve sempre presente.6 Na sociedade
deste período, todos os seus integrantes eram súbditos do monarca francês. A vida dos civis
franceses, membros de todas as classes sociais e escalões, enquadrava-se numa série de
instituições que se sobrepunham e detinham regras que permitiam o direito de usufruto de
certos privilégios aos seus integrantes – por norma, os estatutos e privilégios transitavam do
grupo para o indivíduo, o que se acabou por inverter após 1789.7 Apesar de existirem certas
leis e direitos negados a estrangeiros, não existindo um conceito de nacionalidade totalmente
desconhecido, a verdade é que este não implicava uma igualdade perante as leis criadas pelo
homem, à semelhança do que sucedeu à Revolução Francesa – na grande maioria, as leis eram
herdadas e não criadas.

Sendo uma monarquia, as justificações para a legitimidade da autoridade baseavam-se


apenas em diversas tradições – não sendo um acaso que os partidos políticos conservadores
derivam dos partidários monárquicos na assembleia nacional instituída pela Constituição de
1791.8 Além disso, como o poder régio era absolutista, caracterizava-se por uma concentração
de poderes, sendo criadas uniões entre todas as terras e passando a existir apenas uma força
militar, uma hierarquia de funcionários e uma ordem jurídica cada vez mais unificada. Apesar
da teoria política monárquica se ter agregado à Igreja para a estabelecer e proteger dentro do
reino, debates acerca do absolutismo já colocavam o rei acima de tudo, incluindo a Igreja – o
absolutismo promove a ideia de um poder ilimitado e inquestionável, o que inevitavelmente
entra em conflito com o poder eclesiástico. O lema inglês Dieu Et Mon Droit (Deus e o meu
direito) demonstra esta situação, tendo Jaime I em 1610 discursado que o rei se legitima a si

5
“France.” Britannica Academic.
6
“France.” Britannica Academic.
7
“France.” Britannica Academic.
8
“National Assembly.” Britannica Academic.
Silva 6

próprio, visto receber diretamente de Deus o seu poder9 (teoria do direito divino dos reis).
Portanto, a legitimidade da autoridade também era justificada dogmaticamente.

Contudo, recuando até aos séculos XVI e XVII, estava já em curso uma importante
revolução político-ideológica. Se em 1610 Jaime I promovia uma teoria do direito divino dos
reis, quinze anos depois Hugo Grotius defendeu o direito natural, que reclama um primado da
razão no reconhecimento dos direitos e poderes – constituindo uma grande relevância nestas
alterações e afastando o direito divino.10 Um dos três principais fundamentos da democracia
moderna também emergiu nesta época – o princípio a soberania popular. Johannes Althusius
argumentou que a soberania é a fonte de poder e este provém da agregação do povo enquanto
um, pois é o povo quem atribui poder ao Estado, que tem de agir de forma a proteger o povo,
consistindo essencialmente numa relação simbiótica – o povo necessita do Estado para existir
e o Estado precisa do povo para ser legítimo.11 O segundo foi a materialização do ideal de
liberdade por via do direito de oposição – obrigando o monarca a governar justamente e da
melhor forma, pois caso se torne um tirano, o povo tem o direito a opor-se, visto amar a
liberdade.12 Por fim, o terceiro fundamento consistiu na igualdade natural. Durante a Guerra
Civil Inglesa escreveram-se textos muito radicais e exóticos de filosofia política, sendo os
Levellers uns dos seus autores – defendendo uma nivelação social, sendo contra a hierarquia e
afirmando que o melhor seria uma sociedade igualitária.13

Estes exemplos demonstram como os ideais de soberania popular, liberdade e igualdade


não eram desconhecidos, tendo progressivamente adquirido força, despoletando revoltas e
movimentos de abolição ou alteração dos poderes. Contudo, o sucesso relativamente rápido
destes ideais resultou também das transformações socioeconómicas que aconteciam na Europa,
como o surgimento do comércio livre e, consequentemente, da burguesia; das teses que
apoiavam o secularismo, defendendo a diminuição do poder eclesiástico nos assuntos do
Estado, ou a desagregação total das duas entidades, o que reforçou a autonomia dos reis e do
próprio poder político; e do advento do Protestantismo, que embora tenha impactado o
Cristianismo em relação aos seus devotos, foi também um movimento cultural e de
características políticas, destacando-se a aversão à hierarquia, a crença na autarquia, o foco no
indivíduo (do que faz por si e para si) e a importância dada à opinião da comunidade

9
Jaime I 107.
10
Grotius e Tuck 150-151.
11
Althusius 13.
12
Brutus 97, 145.
13
Lilburne 31-32.
Silva 7

relativamente ao que nela acontece. Importa notar que o Secularismo e o Protestantismo estão
fortemente associados à Revolução Francesa e ao desenvolvimento dos EUA respetivamente.

Retornando ao século XVIII, em França era sentida uma tensão notável. O soberano
poder monárquico e a tamanha disparidade de condições entre os estados devido aos privilégios
da nobreza e do clero, foram fervendo a situação até que, em 1789, se atinge o ponto de
ebulição. Luís XVI convoca uma Reunião dos Estados Gerais, a última por sinal, em que se
votava por categoria/Estado – a nobreza, o clero e o povo – que era sempre problemática por
conta da “falsa” votação: de forma a manter os seus privilégios, a nobreza e o clero associavam-
se sempre nas votações, o que gerava sempre uma derrota do povo, que sentindo-se pouco
ouvido e representado, procurou um novo método de voto através do apoio popular, surgindo
a assembleia nacional detentora de decisão legítima e representante da soberania popular.

Embora o tema do nacionalismo seja muito extenso e complexo, é difícil analisar a


transição francesa para a democracia sem ter em conta esta nova ideia. O conceito moderno de
nação foi impulsionado e estabelecido em parte pela Revolução Francesa: a Europa formou-se
segundo a necessidade de instituir um Estado forte, um poder sólido e com capacidade de
governo sobre leis, etc., ao longo de séculos (como as transformações dos séculos XVI e XVII
referidas anteriormente indicam); contudo acabou por ser demorado devido à dificuldade de
provar ao povo a legitimidade do seu poder sem o recurso à violência. A procura de uma nova
legitimação do poder e monarca, resultante da vontade de emancipação do povo, constituiu
também um problema sério porque o terceiro estado desconhecia outros modos de governação,
e originou a vontade de lhe unir a ideia de nação, que seria usada como um fundamento e sendo
praticamente apenas uma substituição do que o monarca já realizava. E a ideia de nação era
extremamente importante, pois promovia a noção de união ao povo através da eliminação da
validação do governo central/monarca e da defesa da soberania popular na legitimidade do
poder, valorizando-se a comunidade – o que criou um novo termo de nação, pois até então este
termo referia-se apenas a um grupo de privilegiados (natio).14

Na prática, seguiu-se a elaboração de um novo modo de poder segundo a ideia de


representação da soberania popular, passando-se a nomear as suas organizações de Estado
como assembleias e removendo-se ligeiramente a centralização do poder, providenciando
direitos a grupos sociais que não os detinham (como a liberdade de movimento, propriedade e
expressão) e reconhecendo-os politicamente. Resultando apenas da procura de uma nova

14
Schulze 101, 107.
Silva 8

legitimidade, observa-se nestas ideias um ideal democrático que derruba praticamente todo o
sistema e estrutura política. O que é exigido pela democracia é congruente com a ideia de
nação, sendo forças complementares e interdependentes, pois o desenvolvimento da soberania
do povo está diretamente associado à ideia de democracia; e a vontade de direitos iguais
também realça o ódio aos privilegiados e combate as diferenças de classes, sendo este
essencialmente o motor da revolução francesa – associando o conceito de nação à ideia de
liberdade e igualdade.15

Foi Emmanuel Sieyès, abade católico e grande teórico da Revolução Francesa, que
escreveu o influente O que é o Terceiro Estado? – o berço do novo conceito de nação, que está
diretamente associado à ideia de democracia. O teórico francês afirma que a nação consiste
num corpo popular unido e submetido à mesma legislação, pois só através das leis é garantida
a igualdade entre os membros da nação – significando uma comunidade de leis onde todos são
representados pelo mesmo parlamento/assembleia. Como a nobreza e o clero possuíam
privilégios, que se opõem ao direito comum, foram excluídos da comunidade, visto defenderem
interesses particulares ao invés do interesse comum defendido pela nação;16 a perseguição dos
grupos privilegiados foi inclusive incitada por Sieyès, pois eram uma ameaça às ideias que
surgiam – mas caso renunciassem aos seus privilégios, poderiam pertencer à nação, uma vez
que esta era universal e baseada em ideais de inclusão e integração. 17 A igualdade e a partilha
de lei comum são a base do Estado e o fundamento da ideia de nação, sendo esta a criadora e
legitimadora da constituição, que pode ser alterada segundo as suas permissões e consoante a
aprovação da representação.18 A organização da nação serve um patamar de igualdade,
tornando o monarca numa figura simbólica e passando o papel decisório ao parlamento (uma
ideia democrática), de forma a valorizar o interesse e a opinião do povo representativamente
(ideia da soberania popular). Sendo a representação do interesse público o objetivo, face à
regente representação do interesse privado até então, a representação é a maneira mais prática
de demonstrar a vontade e o interesse do povo – a assembleia deve ser eleita e possuir uma
relação direta com o povo, preferencialmente segundo o modelo do espelho representativo.19
Esta ideia aliada à revolução transformou completamente o modelo de regime até à data, sendo
necessário o conceito de nação como fundamento para ocupar o lugar deixado pelo rompimento

15
Hermet 86.
16
Sieyès 97-98.
17
Sieyès 101.
18
Sieyès 136.
19
Sieyès 153.
Silva 9

do Antigo Regime – o nacionalismo e os ideais democráticos tornam-se duas forças que se


alimentam mutuamente, verificando-se em alguns artigos da Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão e disposições da Constituição de 1791.

2.2. A Racional Revolução Federal

Descrita a caótica Revolução Francesa, atravessando o oceano atlântico e recuando um


pouco no tempo, desembarcamos no Novo Mundo tal como os primeiros colonos britânicos,
que iniciaram o processo de colonização na América do Norte – dia 14 de maio de 1607 data a
fundação da primeira colónia inglesa permanente em solo norte americano, denominada
Jamestown, na Virgínia.20 Em 1620, dá-se a colonização de Massachusetts com a fundação de
Plymouth, mas desta vez por europeus Peregrinos, que acabaram por emigrar para a América
do Norte com o objetivo de criar uma sociedade moral devido à perseguição religiosa que
sofriam no Velho Mundo (eram separatistas da Igreja de Inglaterra).21 Inclusive, um mês antes
do estabelecimento da colónia, surgiu a primeira estrutura escrita e promulgada de governo
(uma espécie de contrato social, onde concordaram definir regras que promovam a uma melhor
experiência) no território que é atualmente os Estados Unidos da América – o Pacto do
Mayflower.22

Este documento demonstra um dos elementos da cultura política estado-unidense


prévios à independência – a experiência comunitária:

… pelos presentes, … na presença de Deus e uns dos outros, estabelecemos uma aliança
e reunimo-nos num corpo político civil, para a nossa melhor organização e preservação,
… e em virtude disto, decretar, constituir e criar leis justas e iguais, decretos, atos,
Constituições e ofícios, de tempos a tempos, conforme o que for considerado mais
adequado e conveniente para o bem geral da colónia …23

Este é o espírito de uma sociedade que sente o dever de promover a entreajuda e a ideia de uma
sociedade unida, de forma a garantir a sobrevivência nesta nova terra – pois a taxa de
sobrevivência da viagem era muito reduzida, a própria colonização do local era arriscada e
poucos subsistiam, resultando numa pequena dimensão populacional nas colónias. Além disso,
sente-se neste pacto uma forte influência religiosa, demonstrando que em certos aspetos

20
“Jamestown Colony.” Britannica Academic.
21
“Plymouth.” Britannica Academic.
22
“Mayflower Compact.” Britannica Academic.
23
“Agreement between the Settlers at New Plymouth – 1620.”, p. 1841.
Silva 10

inspiravam-se no tradicionalismo britânico e europeu, mas sem perder a vontade de inovar.


Este pacto assemelha-se à Nova Aliança (visto o termo “aliança” ser mais fiel ao covenant
original), uma ideia que pode ou não ser oriunda das crenças religiosas e que levava a
comunidade a sentir-se “escolhida”. Com o crescente fluxo de chegadas de colonos
separatistas, o sentimento de serem escolhidos acabou por criar um certo mito do
“excecionalismo” – aqueles que chegaram à América do Norte e os seus descendentes tinham
o importante papel de erguer uma espécie de mundo novo perante o caos que figurava na
Europa; e o facto de se terem isolado num novo local fê-los pensar como agir e se adaptarem
melhor, levando-os a entender que poderiam arriscar um pouco mais e experimentar coisas que
no Velho Mundo não seriam sequer tentadas. Até hoje, os cidadãos estado-unidenses sentem
uma responsabilidade para com o resto do mundo, tendo uma certa ideia de heroísmo perante
os restantes países.

Os Protestantes valorizavam os Códigos Legais e as Cartas de Governo devido à


perseguição que sofriam na Europa – os tribunais britânicos decidiam segundo a jurisprudência
(common law), pelo que leis escritas e documentos como uma Constituição não estavam
presentes24, o que permitia abusos de regras e poder, neste caso sofridos pelos Protestantes.
Como referi na secção anterior, a Reforma foi muito importante para o desenvolvimento dos
EUA, como Antero de Quental refere em 1871:

Quem pode hoje negar que é em grande parte à Reforma que os povos reformados
devem os progressos morais que os colocaram naturalmente à frente da Civilização? …
As nações mais inteligentes, mais moralizadas, mais pacíficas e mais industriosas são
exatamente aquelas que seguiram a revolução religiosa do século XVI: Alemanha,
Holanda, Inglaterra, Estados Unidos, Suíça.25

Existia um espírito revolucionário no Protestantismo, pois os homens que desembarcaram no


Novo Mundo já se revoltavam contra os órgãos eclesiásticos na Europa, causando uma
desconfiança das autoridades externas aliada ao individualismo.

Todos estes elementos foram cruciais para o desenvolvimento dos EUA, mas foi por
conta da Guerra dos Sete Anos que a faísca da independência americana se soltou. Embora os
britânicos tivessem saído vitoriosos contra os franceses, a sua economia foi praticamente
destruída com a guerra, levando o parlamento inglês a aumentar os impostos nas colónias

24
“Common law.” Britannica Academic.
25
De Quental 19.
Silva 11

americanas. Claro que os colonos não aprovaram esta medida, instaurando-se um sentimento
de revolta contra o governo britânico, que levou a população a questionar-se acerca de quem
eram e qual o seu estatuto – questões que surgiram devido à ausência de representação no
parlamento britânico, pensando no seu autogoverno e que eram escravos dos ingleses. A partir
daqui o governo inglês continuou a aumentar os impostos, gerando conflitos (como a Boston
Tea Party) até que, em 1775, começa a Guerra da Independência – surge um debate nacional
sobre o estatuto das colónias caso se organizassem, estabelecendo o Congresso Continental –
e no ano seguinte a Declaração da Independência.26 Após a rendição dos britânicos em
Yorktown, na Virgínia, os estadunidenses escreveram os artigos da confederação porque
tinham de pensar no modo de ação do seu futuro governo, mas devido aos diferentes ideais das
13 colónias, estas não se quiseram unir num só órgão político com medo de criar uma
autoridade interior que atuasse da mesma forma que o Parlamento inglês. Como a confederação
servia para garantir uma união mínima entre os novos estados, contudo sem um real poder, e
tendo em conta o fim do medo dos ingleses, a motivação para a união dos estados e para o
respeito pela confederação ou para que sentissem a necessidade de mantê-la era insuficiente –
acabando por, em 1786, acontecer a desagregação dos estados americanos.27

Contudo, no ano seguinte, dá-se a Convenção de Filadélfia – um encontro de pessoas


quase filósofas do direito e da teoria política, que acordaram discutir o seu futuro e
eventualmente escreveram a Constituição dos EUA. A motivação para tal surge do receio de
invasões possíveis por parte das forças europeias presentes nas colónias adjacentes (Canadá,
Louisiana e Flórida), e devido à comunidade ser bastante letrada e inteligente, com
conhecimento histórico, linguístico e legal. Ainda assim, os estados não se queriam unir e
diminuir o poder próprio – contudo James Madison consegue sugerir um meio termo que foi
aceite.28 Nesta época já existia muita produção escrita, sejam jornais ou panfletos, assim como
reuniões de livre participação onde se debatiam variados temos, figurando-se uma certa
liberdade de expressão nos 13 estados. Desta forma, diversas fontes intelectuais influenciaram
a Revolução Americana, mas relativamente aos futuros processos democráticos destacam-se,
no racionalismo das Luzes, John Locke acerca dos direitos naturais e do contrato social e
governamental, e Montesquieu sobre o caráter da liberdade britânica e os requisitos
institucionais para a sua realização; na tradição inglesa republicana e radical, consideravam

26
“United States.” Britannica Academic.
27
“United States.” Britannica Academic.
28
“United States.” Britannica Academic.
Silva 12

Algernon Sidney um mártir da liberdade civil29, além dos Levellers que referi na secção
anterior.

Desde o período colonial que existiam eleições, pelo que o republicanismo (o termo
usado para descrever essencialmente a democracia) focava-se mais no papel do povo, da
comunidade e o seu envolvimento – perguntava-se se o povo estaria preparado para tomar pelas
suas mãos a escolha, e construção de um destino comum e de um órgão central de poder e
representação.30 Rejeitavam qualquer tipo de autoridade imposta e o republicanismo devia ser
o tipo de governo mais respeitado e apoiado, visto ser o povo quem o erguia para seu próprio
benefício, segundo os melhores modelos concebidos pelas suas razões e dirigido por quem
escolherem31 – apenas o republicanismo se encontra em harmonia com o caráter dos norte-
americanos, com os elementares princípios revolucionários e com a determinação de confiar
as experiências políticas nas capacidades do Homem.32 Contudo, Madison resume a principal
diferença entre o republicanismo e a democracia francesa em dois pontos diferentes: primeiro,
“nenhum governo criado e administrado pelo homem pode ser perfeito; que o menos imperfeito
é, portanto, o melhor governo; que os abusos de todos os outros governos levaram à preferência
pelo governo republicano como o melhor de todos os governo, porque é o menos imperfeito”33;
segundo, receava que um governo revisto com muita frequência fosse perigoso, visto a
arbitrariedade causar instabilidade social e ser antagónica aos pressupostos democráticos.34

A democracia francesa não teve sucesso por estes motivos, pois toda a emoção presente
revolução conjugada com a baixa literacia do grupo revoltante, levou a uma enorme
instabilidade, tendo sido criadas várias constituições num curto espaço de tempo; enquanto do
outro lado do oceano atlântico, as pessoas foram muito mais racionais, pensando, debatendo e
escrevendo muitas coisas sobre a política e o seu futuro. Estes dois dispares resultados serão
fundamentais no estudo dos problemas das democracias anunciados no século XIX, visto os
EUA terem prosperado muito rapidamente, ao passo que a França viu surgir um novo e mais
brutal tirano que o anterior.

29
Baylin 27, 34.
30
Hamilton 49-50.
31
Cooper 653.
32
Madison, “O Federalista N.º 39” 351-352.
33
Madison, “Majority Governments.” 528.
34
Madison, “From James Madison to Thomas Jefferson, 4 February 1790.”
Silva 13

3. A Matriz dos Problemas Democráticos

Tendo em conta que a democracia se ergue em conformidade com a nossa crença de


que nascemos todos iguais, englobando naturalmente a liberdade também, o dogma capital da
democracia aparenta ser a igualdade. Estando presente na nossa vida há muito tempo, embora
não num contexto total, é possível observar nos principais teóricos do contratualismo que o
ponto comum entre si é a igualdade legislativa.

Em 1651 na obra Leviatã, apesar de Thomas Hobbes conceber um Estado muito


tangente ao autoritarismo, o seu heurístico momento do contrato social demonstra como os
homens preferem abdicar da sua liberdade em prol de uma igualdade, neste caso legislativa –
transferindo cada um o seu direito a governar-se a um homem e autorizando as ações deste.35
Salientando que Hobbes refere também assembleia de homens, mas a sua preferência é
notoriamente monárquica. Contemporaneamente, John Locke na obra Segundo Tratado do
Governo, ainda num registo heurístico e mais próximo de uma ideologia democrática, descreve
que o momento do contrato social resulta do consentimento de cada homem – aceitam ingressar
num Estado civil de forma a preservar as suas liberdades e direitos36, ou seja, limitam a
liberdade de forma garantir uma igualdade entre todos. No século seguinte, Jean-Jacques
Rousseau na obra O Contrato Social, contrariamente aos filósofos britânicos, retrata o contrato
social como a melhor forma de organização do corpo social. Assim, o melhor Estado social é
o mais verossímil possível ao estado de natureza de forma a preservar a liberdade e igualdade
naturais, sendo a versão civil destas um estado de independência e a negação da arbitrariedade
respetivamente – salientando que a igualdade se restringe apenas à subordinação de leis.37

Antes de mais, é importante destacar brevemente que a liberdade e a igualdade estão


interligadas no exercício democrático, visto a primeira consistir na autonomia e independência
e a segunda garantir esta condição – caso contrário seria expectável a usurpação do direito à
liberdade de uns por outros, cessando completamente com qualquer tipo de igualdade.
Aprofundarei mais a questão da liberdade na secção seguinte. Assim, conjugando os três
filósofos supracitados com as conceções gerais que possuímos acerca do que consiste a
igualdade, conseguimos definir os seus pontos mais elementares.

35
Hobbes 146.
36
Locke 51, 120.
37
Rousseau 65-66.
Silva 14

Nenhum ser humano é, a priori, superior a outro no sentido de não existir uma estrutura
hierárquica prévia à edificação de uma sociedade, que defina vantagens e benefícios a certos
indivíduos. Desta forma, cada um detém uma igualdade perante os outros, sendo todos
independentes e intrinsecamente detentores das faculdades necessárias para se comandarem.
Importa notar que esta igualdade não integra o campo natural, visto as nossas capacidades física
e mentais serem totalmente arbitrárias – mas é por este motivo que se deseja não só uma
igualdade legislativa (o ponto comum dos contratualistas já aqui referidos), como também uma
igualdade de oportunidades e de condições. Todos os integrantes da democracia concordam na
submissão às mesmas leis, aplicadas igualmente a todos de forma a garantir a sua liberdade e
igualdade, sem que um subordine outro às suas regras, cessando com a arbitrariedade. Sob a
condição de não infringir a lei, cada um de nós está capacitado de coordenar o rumo da própria
vida como quiser, relativamente aos assuntos privados; quanto aos públicos, a participação
nestes é um dever e liberdade que possuímos, visto impactarem toda a comunidade na qual
estamos inseridos – o homem detém o controlo do desígnio da sua vida particular e pública,
exercendo a sua liberdade individual e política respetivamente.

A redução à individualidade pelo ser humano é também revelada pela igualdade social
como uma fraqueza, pois nenhum indivíduo logra de uma total autossuficiência por ser incapaz
de se salvaguardar de todo e qualquer perigo – na verdade, consente uma obrigação de
coexistência em sociedade com outros indivíduos, reduzindo o receio na sua vida e tornando-
a mais confortável, e viabilizando empreendimentos inexequíveis individualmente. Como a
cultura e o conhecimento surgem apenas numa sociedade, no caso de ser democrática a
igualdade inibe uma maior legitimidade por existência ou a retenção do monopólio do
conhecimento por parte de um homem ou grupo de homens – permitindo a cada um pensar e
procurar a verdade por si próprio, visto poderem exercitar a própria razão e inteligência, e
negando uma validação maior de uma crença em relação a outra, devido à universalidade do
direito a ser ouvido com igual respeito e atenção.

Embora na teoria esta igualdade pareça quase perfeita, a verdade é que numa sociedade
onde todos os membros são iguais, a sua relação com esta característica pode encaminhá-los
para dois fins antagónicos – a liberdade e a tirania, que Tocqueville compreende ao estudar a
situação democrática americana e francesa, respetivamente38, cujo motivo desta ambivalência
o aristocrata francês procura entender. Alcançar a resposta para esta situação implica analisar

38
Cit. por Franco, 20.
Silva 15

quais são as tendências e perigos resultantes da igualização de condições e a causa delas, e a


possível forma de evitar as suas adversidades – sendo o estudo da relação do ser humano
democrático com a igualdade e a liberdade, e a sua natureza indispensável à realização desta
tarefa.

Como referi no início desta secção, o dogma fundamental da democracia aparenta ser a
igualdade de condições, visto ser procurada incansavelmente pelos homens. E tendo em conta
o que escrevi até aqui, a consideração de Tocqueville por esta característica não só
complementa com chave de ouro este ponto, como também constitui o elo de ligação com a
secção seguinte. O filósofo, então, refere essencialmente o motivo da igualdade ser a máxima
da democracia:

Penso que os povos democráticos têm um gosto especial pela liberdade, entregues a si
próprios, procuram-na, amam-na, e só dolorosamente se vêm separados dela. Mas, pela
igualdade, a sua paixão é ardente, insaciável, eterna, invencível; querem a igualdade na
liberdade e, se não podem alcançá-la, desejam-na na mesmo na escravidão. São capazes
de suportar a pobreza, a servidão, a barbárie, mas não a aristocracia.39

Esta afirmação, embora possa parecer a muitos um pouco extrema, descreve essencialmente
um grande problema da igualdade: enquanto a igualdade demonstra imediatamente os seus
resultados após aplicada, a liberdade não é assim tão instantânea nesse aspeto. Ou seja, a partir
do momento em que se instaura uma igualdade, os seus efeitos são logo notórios – ninguém
tem vantagens sobre os outros, sociais ou legais – mas os da liberdade não, porque deter uma
liberdade igual é um efeito da igualdade. Podemos equiparar os resultados da liberdade a
investimentos: por exemplo, a liberdade permite-me ingressar no ensino universitário, mas isso
não significa que entrarei, que terei emprego quando sair e se gostarei realmente. A liberdade
não obriga as pessoas a seguirem certos caminhos de vida só porque podem, ao contrário da
igualdade que obriga a que sejamos todos iguais legalmente, pelo menos. Acredito que esta
questão é também contributiva para o amor cego pela igualdade que os homens possuem,
esquecendo-se dos malefícios consequentes de uma extrema igualdade – sendo um deles o
obscurecer da liberdade.

39
Tocqueville 590.
Silva 16

3.1. Uma Igualdade que Cega

A partir do momento em que o Estado garante a salvaguarda dos direitos dos cidadãos,
estes deixam de sentir a necessidade de serem ativos na vida dos demais – o cessar da luta pela
igualdade promove a transição do foco da liberdade para a esfera privada, onde os homens se
concebem individualmente sem qualquer esforço e orientam para a tal esfera e para si próprios
os seus sentimentos.40 Contudo, parece ser incompreensível ao homem (propositadamente ou
não) que esta liberdade de conduzir a própria vida é apenas possível por via do Estado, a
estrutura que protege e promove este benefício; e, mais importante ainda, é a igual liberdade
de participação pública adquirida, que junto da democracia se torna um dever. Tocqueville
define esta situação como individualismo, onde o cidadão se isola dos restantes e vive apenas
na sua bolha social mais próxima (os amigos e a família), abandonando a sociedade que ergueu
a si mesma.41 Realisticamente, este problema democrático acaba por ser eterno porque a
tendência para o individualismo neste governo é inevitável; logo, o melhor que se pode fazer
passa por manter um equilíbrio entre o individualismo extremo e a tirania da maioria (social e
institucional), ambos problemas perigosos para o exercício da democracia. Passando à
explicação do primeiro de seguida.

Num individualismo extremo, os homens acabam por confundir a sua independência


por uma autossuficiência, acreditando genuinamente que se bastam a si próprios para existir e
sobreviver, o que é possível observar atualmente: uma pessoa comum sem grandes devaneios,
que trabalha cinco dias por semana das nove da manhã até às cinco da tarde, e ostenta um
salário que permite viver confortavelmente, não pensa que depende dos outros; porque mesmo
o emprego sendo dado por outro, a pessoa está inserida numa sistema onde existe oferta de
emprego em qualquer lugar, pelo que nem acredita ser dependente do empregador – estes
indivíduos “… não devem nem esperam nada de ninguém; habituaram-se ao seu isolamento e
imaginam que o seu destino depende exclusivamente deles próprios.”42 Contudo, se a
autossuficiência do homem na generalidade parece ser dubitável, então no âmbito democrático
é completamente irrealista, visto os ideais assentarem na participação ativa dos membros da
sociedade, ou seja, exercitando a liberdade política. Além disso, a força democrática não resulta
de um indivíduo singular, mas sim do agregado de indivíduos iguais e individualmente fracos

40
Tocqueville 813.
41
Tocqueville 591.
42
Tocqueville 593.
Silva 17

– que é necessário, pois o desenvolvimento da sociedade acontece por via da associação dos
seus integrantes.

O trabalho nos povos democráticos é muito bem visto e apoiado, pois não existem
heranças (no sentido de os antepassados mais próximos terem sido igualmente trabalhadores)
– situação que a igualdade promove e reabilita, visto não se sentirem também degradados
porque todos recebem rendimentos consoante as suas funções.43 Contudo, a própria vontade do
trabalho e ocupação da vida privada cessam com a disposição e disponibilidade do interesse
dos homens para com a vida pública e política, contribuindo também para a procura de
liberdade nos espaços privados ao invés dos espaços públicos, o que gera uma certa alienação.
Este conforto democrático resulta de uma época muito ativa e cheia de afazeres, e da decretação
dos assuntos públicos ao Estado, por falta de tempo e de gosto em ser ativo publicamente.44
Aquilo que interessa ao indivíduo é o que recai sobre ele, tudo o resto é descartável e, por
consequente, desinteressante; a menos que ganhe algo com isso, embora esse interesse no outro
seja, essencialmente, um interesse pessoal. Assim, como se pode interessar um cidadão no
ambiente público se, por exemplo, não usufruir do mesmo por opção: qual é o interesse de um
homem na construção de uma escola primária se não tem filhos e, portanto, não ganha nada
com isso? O individualismo não permite interessar-se e pensar no bem comum acima do
pessoal.

Desta forma, a aquisição de poder pelo Estado sobre o que é publico conjugada ao foco
dos homens sobre a esfera privada, devido ao desinteresse, abre espaço a apropriações,
oportunismos e autoritarismos – sendo um dos motivos para a ameaça do “Estado Tutor”
(Nanny State), uma situação onde, por conta da saturada providência de vários aspetos e da
própria felicidade, o Estado tornar-se-ia quase um “pai”, fornecendo tudo os cidadãos ao ponto
de conseguir facultar também as suas próprias ideias. O conforto da democracia retira-nos
muitas vezes o elemento de revolta e, até mesmo, de questionamento de certos momentos e
eventos, e a tolerância social e individual é tão extensa ao ponto de se idealizar que o regime
democrático nunca age erradamente – o que não é correto, de todo.45 Assim, este Paternalismo
do Estado cria uma sociedade amorfa, visto nascer segundo a ideia de ser legalmente justificado
e não sendo tão visível por ser concebido sob a capa de um consentimento. Contudo, o “Estado
Tutor” não resulta apenas da igualdade extrema – o problema da tirania da maioria também

43
Tocqueville 655-656.
44
Tocqueville 813.
45
Tocqueville 837.
Silva 18

contribui para tal. Explicarei na secção seguinte como a individualidade promove uma
liberdade ilusória, devido à tirania da maioria).

3.2. A Ilusória Liberdade

O problema do amor desmedido pela igualdade não termina na delegação de tudo o que
é público ao Estado – presumindo que ninguém detém a autoridade intelectual, como o homem
não pode procurar todas as verdades por si mesmo (pois é finito e limitado), a adoção de
determinadas crenças para pensar e viver torna-se inevitável também. Visto todos beneficiarem
de uma igualdade, é natural que todas as opiniões possuam o mesmo peso, levando a que a
relevância de uma opinião seja determinada pelo número de vozes que a expressam, e não por
quem a expressa.46 Assim, nas sociedades democráticas a opinião da maioria detém um enorme
poder e, tal como referi anteriormente, ao comparar-se à restante população, o homem sente-
se fraco e insignificante ao seu lado – o sentimento de igualdade é tão forte nos cidadãos ao
ponto de cessar com o génio e reforçar a norma, visto ninguém querer “sair da caixa” e ser
julgado, ou mesmo punido, pelos outros. Como Tocqueville afirma:

À medida que os cidadãos se vão tornando mais iguais e mais semelhantes, diminui a
tendência de cada um para acreditar cegamente num certo homem ou numa certa classe.
Aumenta o estado de espírito que tende a acreditar nas massas e é cada vez mais a
opinião geral que conduz o mundo.47

A opinião da maioria, nos tempos democráticos, é muito influente nas sociedades, visto
a igualdade retirar do cidadão a sua fé nos demais por serem muito semelhantes, e direcioná-la
para o juízo público, que se torna praticamente dogmático porque os homens não acreditam
que, se maior parte pensa de um modo, que esse modo não seja o correto.48 O próprio Rousseau
já concordava com esta situação, pois seria o melhor princípio para se aproximar do que seria
a vontade geral do povo – visto ser o mais próximo da unanimidade e estando a maioria ou a
minoria erradas, o mais provável seria a minoria enganar-se.49 Por este motivo, o indivíduo
sente-se também esmagado pelo facto desta opinião ser legitima – embora retire proveito da
igualdade, a sua opinião não aparenta ter qualquer importância e relevância, pois a maioria
governa legitimamente.

46
Stuart Mill 31.
47
Tocqueville 497.
48
Tocqueville 497.
49
Rousseau 123-124.
Silva 19

Esta situação torna-se problemática quando pensamos nas minorias, pois embora
continuem a existir livre e igualmente em relação à maioria, a sua voz ou não é ouvida por esta
ou é, mas não lhe é dado o devido valor e importância – ameaçando a liberdade intelectual que
se adquiriu com grande esforço. Assim, surge o problema da tirania da maioria, que recai em
dois campos: o institucional e o social, que Tocqueville aborda, mas é este o ponto de
introdução de um dos filósofos mais importante nesta matéria – John Stuart Mill – que embora
não tenha vivido num regime democrático, escreveu sobre a importância da individualidade e
liberdade de pensamento.

Tocqueville afirma que a padronização e homogeneização de opiniões está ao encargo


da maioria, aliviando os homens do dever de as formar.50 A democracia permite a todos o
usufruto, se quiserem, de uma liberdade igual aos restantes integrantes – e a verdade é que
todos querem, caso contrário a adversidade da individualidade extrema não surgiria. Contudo,
o problema da tirania surge quando os indivíduos exercem essa liberdade apenas na sua esfera
privada e delegam tudo o que sejam crenças e opiniões à maioria, pois é mais fácil ser
indiferente do que participar ativamente nos assuntos públicos. Por este motivo, Tocqueville
acredita que a igualdade pode cessar com o pensamento autónomo – a liberdade intelectual
seria totalmente anulada pela democracia, acorrentando o espírito humano às opiniões da
maioria.51 Além disso, o filósofo francês também alerta para o perigo da tirania da maioria no
âmbito institucional, pois relativamente aos Estados Unidos, a opinião pública, o corpo
legislativo, o poder executivo, a força pública e o júri são todos compostos por alguma maioria,
pelo que se algum indivíduo sofrer uma injustiça, não lhe resta senão subjugar-se às leis
promulgadas.52

A democracia vive apavorada pela diferença e individualidade, visto promover e


procurar garantir a igualdade, causando a diminuição da criatividade e expressões gerais –
fabricando uma marginalidade e um certo preconceito, dando à opinião coletiva um certo poder
e influência sobre a própria individualidade, tornando-a igual às “individualidades” dos outros.
Normaliza-se uma prática, elogiando e impondo-a, provocando a maioria a influenciar as
minorias a realizá-la também, o que resulta numa integração, ou procura de validação, nos
outros – copiando as maiorias por medo da ostracização, padronizando-se os comportamentos,
ideias e preferências, que se tornam tendências. Os cidadãos vão progressivamente deixando

50
Tocqueville 497.
51
Tocqueville 498.
52
Tocqueville 301.
Silva 20

de ser cidadãos, visto a liberdade política dissolver-se completamente numa total administração
estatal da maioria, pois deixam de se envolver na ação política e na vida dos outros. A
marginalização dá-se por uma sanção pública não legal porque os comportamentos não-
normativos são socialmente excluídos, sendo esta a forma de castigo/punição – uma
reprimenda social perigosa por não se realizar publicamente, sendo mais escondida, violenta e
duradoura. A homogeneização da sociedade é o risco da normalização: perde-se o indivíduo;
rejeita-se a mudança, a criatividade, o espírito crítico, a inovação e a diferença; e produzem-se
opiniões coletivas que ganham dimensão, caráter moral e valores de verdade. Esta é a
ameaçadora tirania da maioria social, uma guerra contra o individualismo e a individualidade.53

Importa também salientar a tendência para o materialismo das sociedades democráticas,


mais precisamente um bem-estar material que, por ser incansável, resulta num promotor para
o crescente desinteresse público e político dos integrantes. Os homens querem estar um passo
à frente das adversidades e saciar os seus desejos mais pequenos com o mínimo de custo e
esforço, deixando sistematicamente a sua existência mais confortável54 – situação que aparenta
resultar da igualdade de procura dos interesses privados e do trabalho com o intuito de adquirir
um bem-estar material. Curiosamente, este ciclo de procura de conforto e aumento do foco na
bolha privada entra na atual matéria de debate acerca da dependência de dopamina: o nosso
cérebro vai se habituando a receber a mesma quantidade de dopamina com cada vez menos
esforço, o que causa diversas consequências físicas e psicológicas – portanto, em certa medida,
este problema é crónico e não tem solução previsível.

3.3. Despotismo Tangente à Democracia?

Como referi no início deste capítulo, Tocqueville alerta para as duas tendências que a
igualdade pode conduzir: a anarquia, por via da procura intransigente do homem pela sua
independência, recusando abdicar de parte da sua liberdade e focando-se exclusivamente em si
próprio; e a servidão, causada pela opressão camuflada pelo consentimento do homem no
“Estado tutor” – que é impercetível pelos integrantes da sociedade democrática, jugando-se
livres sem entender que o foco exclusivo nos interesses privados não permite tal liberdade que
acreditam ter, sendo por este motivo a mais perigosa.55 Desta forma, a tamanha indiferença do

53
Stuart Mill 32-33.
54
Tocqueville 630.
55
Tocqueville 808.
Silva 21

homem pela política abre facilmente portas a governos despóticos – desde que a igualdade se
mantenha entre os membros da democracia.

Conjugando os problemas que anunciei anteriormente – o foco no círculo privado


devido à igualdade desmedida, que resulta na delegação total dos assuntos públicos ao Estado,
a sensação de fraqueza e impotência enquanto indivíduo singular da sociedade, e a
padronização de pensamentos por falta de interesse – o homem considerando-se insuficiente e,
por ser independente, não esperando nada dos demais, tende para decidir que é apenas no
Estado que pode alcançar uma certeza de apoio e depositar a sua esperança de saciar os seus
desejos e necessidades.56 Tudo isto resulta num Estado forte e centralizado, uniformizado e
administrador de tudo o que é público e do próprio pensamento dos seus integrantes – contudo
os homens não sabem se aqueles a que delegam esta funções têm o interesse público como
objetivo, o que contribui para a crescente apatia política. Assim, esta situação culminaria numa
sociedade atomizada, onde todos pensam ter os seus direitos – igualdade e liberdade – mas não
se preocupam continuamente em se certificarem que estão assegurados, aliada a uma existência
invisível perante cada um dos outros: esta imagem não é assim tão descabida, visto ser resultado
de qualquer história distópica que retrate uma sociedade extremamente reguladora, onde todos
são iguais, têm as mesmas opiniões, os mesmos ritmos de vida e talvez até os mesmo prazeres;
um “Estado tutor” que providencie tudo o que o cidadão quer e precisa, além de preencher os
seus desejos, caminha para um despotismo cego aos integrantes, pois desde que sejam todos
iguais, é indiferente que a liberdade exista – se alguém tiver mais liberdade, o motivo de revolta
é por não ser igual aos que não têm essa liberdade, e não contra o Estado que não fornece essa
maior liberdade. Tocqueville evidencia muito bem esta questão:

… ergue-se um poder imenso e tutelar que se encarrega sozinho da organização dos


seus prazeres e de velar pelo seu destino … [que] apenas procura … [manter os homens]
irrevogavelmente na infância. Agrada-lhe que os cidadãos se divirtam, conquanto
pensem apenas nisso. Trabalha de boa vontade para lhes assegurar a felicidade, mas
com a condição de ser o único obreiro e árbitro dessa felicidade. Garante-lhes a
segurança, previne e satisfaz as suas necessidades, facilita-lhes os prazeres, conduz os
seus principais assuntos, dirige a sua indústria, regulamenta as suas sucessões, divide
as suas heranças.57

56
Franco 96.
57
Tocqueville 837.
Silva 22

A opressão passa despercebida porque este “Estado tutor” é consentido pelos seus
integrantes – aceitaram erguer um Estado voluntariamente e, sem perceberem, foram aos
poucos delegando por vontade própria tudo aquilo que receberam da democracia. Não
percebem que estão acorrentados à eterna perseguição dos interesses privados, e que esta
situação não é compatível com a liberdade que acreditam ilusoriamente ter – caímos
praticamente num determinismo estatal onde pensamos ser livres, mas na verdade as nossas
escolhas foram predefinidas pela entidade que nos governa. Tocqueville pergunta se será
possível ao Estado facultar todos os pensamentos ao homem e facilitar-lhe o máximo a tarefa
de viver.58 Ora, nas atuais democracias, esta situação já acontece em parte no sistema de ensino,
por exemplo, que é uma forma de “formatação” de indivíduos: não quero com isto dizer que é
algo mau, mas realisticamente o Estado espera obter um certo tipo uniformizado de cidadão ao
fim da escolaridade obrigatória, mantendo-o maior parte do seu tempo ocupado com ensino e
trabalhos de casa desde cedo, pelo que o restante tempo livre (já depois de realizadas as tarefas
essenciais à sua sobrevivência) é usado para lazer – habituando os homens a não pensar sobre
os assuntos públicos por não existir sequer tempo para tal. Outra situação, desta vez sobre a
facilitação da vida, passa pelos subsídios: considero extremamente importantes, atenção, mas
realisticamente são um amparo enorme do Estado, pelo que as pessoas acabam por ter menos
receio de ficar desempregadas e talvez se esforcem menos para manter o emprego. Este assunto
é muito delicado e repleto de variáveis a ter em conta, sendo o meu único objetivo demonstrar
como os subsídios são uma facilitação da vida, embora não sejam propriamente malefícios para
sociedade – a vida possui muitas facas de dois gumes e esta é uma delas.

4. Soluções Democráticas para Problemas Democráticos

Até agora a democracia aparenta ser extremamente frágil e presa num ciclo infinito de
problemas e soluções – o que não é totalmente errado, mas é possível tentar atenuar estes ciclos.
Após ter identificado os três problemas mais preocupantes, principalmente por serem portas a
muitos outros, passarei a demonstrar e explicar possíveis soluções que foram também propostas
aquando do anúncio dos problemas – a excentricidade e individualismo apresentados por Stuart
Mill, a importância de suscitar o interesse público nos cidadãos e os benefícios do
associativismo, ambos enunciados por Tocqueville, e algumas referências que Constant faz na
generalidade dos problemas.

58
Tocqueville 837.
Silva 23

4.1. A Importância da Excentricidade

Tendo em conta que o problema da tirania da maioria é criado e liderado pela sociedade,
é lógico que as próprias instituições concordem com ela, uma vez que valorizam a maioria –
ficando o homem sem opções de resolução desta adversidade e, a certa altura, nem pensa em
resolver porque já está inserido num Estado totalmente homogeneizado. É preciso fazer algo
para prevenir que a distopia transite da hipótese para a realidade, pois quanto mais tarde, mais
difícil se torna – felizmente, Stuart Mill não só alertou para esta adversidade, como também
explicou a melhor forma de combatê-la.

O liberal britânico afirma que “[a] sociedade … exerce uma tirania social mais
alarmante que muitos tipos de opressão política, … penetrando muito mais profundamente nos
pormenores da vida, e escravizando a própria alma”.59 Como referi anteriormente, embora
Stuart Mill não tenha vivido numa democracia, a sua preocupação com a liberdade e as soluções
propostas adequam-se ao problema da padronização e homogeneização da sociedade – o
filósofo viveu em plena época vitoriana, caracterizada pela padronização forçada de costumes
entre outros.60 Stuart Mill afirma ser “… necessária também protecção contra a tirania da
opinião e do sentimento dominantes”61, sendo constituída por dois fatores interligados:
individualismo e excentricidade.

A individualidade promove, ou tem a capacidade de promover, o desenvolvimento no


homem, devendo ser incentivada62 para prevenir o empobrecimento científico e cultural da
sociedade, visto a sua escassez causar um pensamento mais rudimentar e pouco criativo, e
diminuir a dignidade do homem; porque se é importante existirem opiniões diferentes, então o
mesmo se aplica à existência de vivências diferentes.63 Por este motivo, Stuart Mill elogia e
incentiva o inconformismo, pois o excêntrico (aquele que se encontra fora da norma) é quem
desenvolve a sua individualidade criativamente num plano de afirmação individual, quebrando
os estigmas e receios na sociedade onde está inserido; enquanto os indivíduos que seguem as
normas apenas por seguir, não decidem nada na sua vida nem adquirem experiência, pois
apenas o uso autónomo desenvolve a sua moral e intelecto, tal como acontece com o físico do
homem.64 “Quem deixa que o mundo … escolha o seu plano de vida por si, não necessita de

59
Stuart Mill 32.
60
“Victorian era.” Britannica Academic.
61
Stuart Mill 32.
62
Stuart Mill 116.
63
Stuart Mill 106.
64
Stuart Mill 109.
Silva 24

qualquer outra faculdade além da faculdade simiesca da imitação. Quem escolhe o seu plano
por si emprega todas as suas faculdades”.65 Poder-se-ia pensar no que as pessoas preferem: ter
liberdade e individualidade, mas enfrentar a dureza da vida que o Estado deixa de amortecer,
ou ser guiado e controlado por um “Estado tutor” que providencia tudo, bastando abdicar da
liberdade? Contudo, o importante a ressaltar são os eventos posteriores, visto que um
Paternalismo de Estado caminha para o despotismo – considerando que as pessoas não são
totalmente boas por natureza, aqueles que chegam ao governo de um “Estado tutor” facilmente
se apropriam dos seus poderes e usam para benefício próprio, começando assim o despotismo.

Culminar num despotismo é ainda mais perigoso do que viver numa democracia
paternalista, tendo Montesquieu alertado para esta situação antes de Stuart Mill e Tocqueville:
quem vive em regimes despóticos tem muita dificuldade em sair deles, sendo o melhor método
de combate prevenir que se erga um – pois deixando de ter meios de apoio e sendo facilmente
silenciados, torna-se muito mais complicado contrariar este regime.66 Enquanto a democracia
aparenta integrar um ciclo eterno de altos e baixos, o despotismo demonstra como não só é
cíclico, como todos os patamares se influenciam: o despotismo caracteriza-se pela
uniformização e centralização do poder no déspota, promovendo o seu engrandecimento e,
consequentemente, exigindo obediência aos cidadãos, elaborando uma sociedade sem voz e
dominada, tornando os integrantes seus súbditos e fortalecendo o despotismo. Repetindo-se
este círculo vicioso, é preciso um ou um conjunto de excêntricos que, com muita força de
vontade, quebrem esta rotina – daí a valorização de Stuart Mill pelo inconformismo. O próprio
tem a mesma conceção do despotismo que Montesquieu, devendo-se prevenir antes que seja
tarde: “[h]á um limite à interferência legítima da opinião colectiva na independência individual;
e encontrar esse limite, e protegê-lo contra transgressões, é tão indispensável para o bom estado
das relações humanas, como a protecção contra o despotismo político”.67

É nos momentos democráticos tangentes ao despotismo que se deve encorajar os que


pensam “fora da caixa” a remarem contra a maré composta pelas massas, exatamente porque a
tirania da maioria social marginaliza estes indivíduos, de forma a cessar com a tirania antes
que ela silencie qualquer excêntrico e seja liderada por um déspota.68 Stuart Mill vai ainda mais
longe com a proposta do Princípio do Dano, afirmando que a única situação em que o Estado

65
Stuart Mill 109-110.
66
Montesquieu 63, 118.
67
Stuart Mill 32-33.
68
Stuart Mill 121.
Silva 25

pode agir contra o indivíduo é para proteger os outros de possíveis danos.69 Devemos fazer
aquilo que quisermos connosco próprios, assim como os demais podem realizar o que
desejarem sobre eles mesmos, mas não se deve realizar o que se almeja sobre as outras pessoas
– é necessário pensar acerca do que a sociedade não deve exercer e controlar sobre a vida dos
seus integrantes, moldando assim um corpo social aberto à expressão de individualidades
pacíficas. A ideia de responsabilidade social ressalta nesta explicação, considerando o homem
soberano de si próprio; assim como um liberalismo não institucional, mas antes individual,
onde cada um conserva o seu próprio bem estar. Cada cidadão viver consoante o que desejar é
mais produtivo para o povo do que subjugá-los a todos a uma existência igual.70

Contudo, é preciso reconhecer que esta tese de Stuart Mill possui variáveis substanciais
– como se articula este princípio com a educação e a moral; qual é a fronteira entre a minha
liberdade individual e a comum, o que será dos direitos comuns se for aceitável realizar tudo
aquilo que queremos, pois devem existir regras para a comunidade; qual é da definição de dano,
pois o que é ou o que o causa não é universal, visto ser difícil pensar na relação causador/recetor
como uma característica individual, pelo que não sabemos se agimos de acordo com o que é o
dano para nós em relação aos outros. Ainda assim, o núcleo central da proposta do filósofo
britânico é muito importante, independentemente das variáveis – é preciso conservar a
liberdade e promover a individualidade.

4.2. Dois Propulsores Notáveis do Interesse Público

Longe de surpreender alguém, o desinteresse público combate-se com a prática da


liberdade pública. No seguimento da valorização da liberdade por parte de Stuart Mill, quando
os homens se esforçam para pensar e avaliar as situações, e se atualizarem sobre os eventos
públicos e políticos que os rodeiam, o pensamento crítico é desenvolvido e a resistência ao
conformismo vai-se edificando, ambos motivados pela desconfiança e atenção que brotam da
participação pública.

Só através da liberdade é que se pode fomentar o interesse público e político nos homens
– tendo de partir sobretudo deles mesmos. Ora, se como referi anteriormente, a vida está
padronizada de forma a não termos quase tempo para lazer, como se poderia suscitar o interesse
pela política? Talvez começando exatamente por esse ponto: estudar um pouco o assunto e
tentar mudar a situação, de forma a sobrar mais tempo para uma participação ativa política;

69
Stuart Mill 39-40.
70
Stuart Mill 40, 44.
Silva 26

referendos são outra opção, sendo a Suíça e alguns estados dos EUA exemplos de como essa
prática pode funcionar relativamente bem e incentivar à participação; o outro exemplo seriam
as associações, mas destacarei essas na secção posterior. Portanto, começando por entrar no
mundo político e público aos poucos, o gosto vai crescendo e levando-nos cada vez mais a
participar mais – contudo, existe um grande fator prejudicial nesta questão. Usando Portugal
como exemplo, ouve-se muito que aqueles que governam e a oposição “são todos iguais”,
sendo indiferente em quem se acredita ou vota, tornando-se muito grave quando surgem
pessoas com discursos populistas – aproveitam-se do pouco conhecimento e indiferença da
população, dizendo “verdades” praticamente sem qualquer justificação plausível, mas que são
afirmações que o povo acredita igualmente sem qualquer fundamento. Assim, torna-se crucial
alertar para estes perigos e, caso já se possua o gosto, tentar incentivar outros a adquiri-lo, pois
como Montesquieu indicou, é mais fácil evitar um despotismo do que sair de um – portanto,
evitemos o melhor que pudermos, exercitando ao máximo a nossa liberdade política enquanto
podemos.

É também possível promover o interesse público aos homens de outra forma – quando
se apercebem de que os seus interesses são congruentes com os restantes integrantes da
comunidade local a que pertencem. Tal não poderia acontecer num quadro geral da sociedade,
visto abranger um número excessivo de pessoas que vivem em contextos muito diferentes,
sendo extremamente impraticável tentar alcançar um consenso relativamente a questões que
não impactam maior parte da sociedade no geral. Contudo, num cenário comunitário, os
cidadãos acabam por entender, na maior parte das vezes, que os desejos e interesses que seguem
individualmente não só coincidem com os dos restantes integrantes, como se tornam tarefas
mais fáceis de realizar devido à divisão dos esforços. Durante a sua estadia nos Estados Unidos,
Tocqueville analisou como a doutrina do interesse bem entendido influencia e promove aos
seus habitantes uma compreensão mais fácil dessa ideia. Essencialmente, esta doutrina consiste
no pensamento de que, através da experiência, o homem entende que é-lhe mais útil e benéfico
preocupar-se com os desejos e interesses dos outros, do que apenas consigo próprio e a sua
bolha privada mais próxima.71 Esta tese sustém simbioticamente com a prática do
associativismo, que explorarei de seguida.

A igualdade de condições e participação pública no poder permitem que este emane do


povo para o governo. As associações do povo servem para discutir assuntos da comunidade –

71
Tocqueville 618.
Silva 27

promovendo a participação e a criação do espírito de familiaridade do sistema democrático.


Por esse motivo, Tocqueville elogia a descentralização que observa nos Estados Unidos através
das comunidades locais, detentores de instituições comunais cujo valor para a liberdade
equipara-se ao do conhecimento para as escolas, habituando o povo a ter poder prático no poder
governamental e tornando-o capaz e acostumado a uma espécie de autogoverno72 – pedindo,
apenas como última solução, auxílio ao governo central quando as comunidades não se
conseguem resolver. “Sem instituições comunais uma nação pode ter um governo livre, mas
não terá o espírito da liberdade”.73 Destaca-se, portanto, a dignidade do indivíduo e a sua
autonomia, e a subordinação do Estado central à autonomia dos indivíduos e comunidades,
servindo esta subordinação de barreira contra os abusos de poder do Estado

Um cidadão apenas exerce este estatuto se colocar em prática a sua liberdade política,
sendo precisamente nas comunidades locais que tal acontece, através da descentralização do
poder – os integrantes estão mais próximos ao que afeta diretamente a sua vida, gerando um
interesse maior. Caso fossem privadas a independência e a força destas comunidades locais,
observar-mos-íamos apenas um coletivo de homens administrados, sem qualquer estatuto de
cidadão.74 Quando nos deparamos com uma tarefa muito grande, muitos vezes a ajuda que
indicam é para se dividir em pequenas tarefas sucessivamente até chegarem a um ponto de
serem realizáveis sem muito transtorno – o mesmo acontece com as comunidades e instituições
comunais. Um poder centralizado afasta qualquer interesse público possível devido à distância
e tamanho que possui, daí Tocqueville elogiar o “localismo” dos Estados Unidos: uma forma
eficiente de divisão de poderes que, não só estruturalmente fortifica a democracia (a questão
dos checks and balances indicada por James Madison a favor do federalismo75), como promove
uma vontade de participação pública ativa, visto os resultados serem muito mais percetíveis.

Outro ponto positivo é o combate ao individualismo extremo, aproximando os homens.


Como referi anteriormente, não são autossuficientes pelo que se torna nefasto viver
inteiramente numa bolha privada – contudo esta associação comunal de cidadãos promove
eficazmente este problema. Os próprios EUA atualmente demonstram isso, pois embora a
democracia esteja muito longe do que foi idealizada na sua fundação, a verdade é que este
hábito de associativismo se manteve: os centros comunitários (community halls) servem
exatamente para participar ativamente nas questões que envolvem um grupo mais reduzido de

72
Tocqueville 101.
73
Tocqueville 101.
74
Tocqueville 107.
75
Madison, “O Federalista N.º 51” 469.
Silva 28

indivíduos, que estão conectados pelas mesmas situações e sentem vontade de trabalhar em
conjunto por uma comunidade melhor. E mesmo que o façam por interesse próprio
(considerado egoísmo esclarecido)76, a verdade é que acabam por lutar contra um possível
despotismo e conformismo democrático, uma vez que “[a] partir do momento em que os
assuntos comuns passam a ser tratados em comum, cada indivíduo apercebe-se de que não é
tão independente dos seus semelhantes como julgava inicialmente e, para obter o seu apoio,
deve muitas vezes, auxiliá-los”.77 Desta forma, existe um distanciamento e combate ao
individualismo extremo tendencial das sociedades democráticas – um preocupante fator que
abre portas a governos despóticos – visto preservar o bem do Estado através da cooperação
entre os homens e o investimento voluntário destes do seu tempo e recursos.78

5. Reflexão e Considerações Finais

A motivação para este estudo sobre os problemas democráticos anunciados no século


XIX foi impulsionada pelas circunstâncias que se têm vindo a passar nos últimos tempos: um
adormecimento político, a abertura ao ressurgimento de ideologias antidemocráticas, as
tolerâncias cada vez mais intoleráveis, entre outros fatores que, em conjunto, me levam a pensar
que os conceitos de igualdade e liberdade, os pilares da democracia, estão cada vez mais frágeis
– tanto por conta dos que querem cessar com eles, como devido aos que tanto os querem
defender, que acabam por impingir e obrigar à força, não diferente dos primeiros. Esta situação
é extremamente preocupante e é preciso tomar medidas para a combater; felizmente, assim
como Tocqueville e Stuart Mill, outro filósofo também alertou para os problemas democráticos
– Benjamin Constant, um franco-suíço que vivenciou e apoiou a Revolução Francesa,
exercendo um papel ativo na política e tendo escrito alguns livros sobre a temática. Visto
Constant ter escrito sobre todos os problemas que enunciei, decidi abordá-lo apenas nesta
secção, de forma a sintetizar as considerações até aqui escritas ao mesmo tempo que me foco
na sua contemporaneidade.

Embora seja anacrónico abordar Constant em termos históricos, o mesmo não acontece
ao canalizar as suas ideias para o mundo atual, visto a sua luta contra as ameaças democráticas
e as soluções propostas serem intemporais, como a criação de estruturas institucionais com o
intuito de salvaguardar a liberdade.79 Por exemplo, a descrição que realiza acerca do que

76
Tocqueville 618.
77
Tocqueville 598.
78
Tocqueville 618.
79
Izenberg 222.
Silva 29

significa a liberdade para os ingleses, franceses e norte-americanos, demonstra a sua


intemporalidade:

É o direito a sujeitar-se apenas às leis e não sofrer qualquer constrangimento à sua


liberdade arbitrariamente; o direito a exprimir a sua opinião, a escolher um trabalho e a
exercê-lo, a dispor da sua propriedade e utilizá-la abusivamente; o direito à livre
associação, independentemente dos motivos; o direito à livre circulação sem qualquer
permissão ou justificação necessária; o direito a alguma influência na administração do
governo, seja qual for a forma.80

A meu ver, a liberdade que defendemos atualmente possui praticamente todos estes direitos
que o filósofo enunciou, já que é impensável conceber uma democracia sem eles. Contudo,
existem alguns pontos aqui que são exercidos apenas na teoria: apesar de sermos independentes
na nossa esfera privada, a soberania do cidadão é apenas ilusória, visto ser restrita e quase
sempre suspensa, além de a renunciar nos escassos momentos em que a exerce.81 Esta situação
também se verifica nos tempos que correm, mas receio ser completamente inalterável por conta
da configuração democrática do governo e do tamanho populacional dos seus integrantes, visto
que em sociedades antigas a os resultados da participação política e pública eram mais sentidos
muito por conta da reduzida população, não só da região como também dos participantes dos
assuntos públicos – sendo a melhor solução a descentralização, como Tocqueville referiu.

Partindo de Constant, introduzo o último ponto crucial das democracias liberais


modernas até às que ainda estão por vir – o comércio. Para tal, o filósofo começa por enunciar
que nas sociedades antigas a guerra era a forma de se comprar segurança e garantir a existência,
refletindo-se assim a necessidade de possuir escravos de forma a ter tempo para preparar as
guerras.82 Com a evolução civilizacional, as disputas familiares antigas deram lugar a uma
massa de homens de igual natureza, independente das circunstâncias sociais, forte o suficiente
para não recear de invasores e entendendo que a guerra não passa de um fardo – acabando por
ter uma uniforme tendência para a paz.83 O comércio é um meio muito mais seguro de persuadir
o outro a concordar com as nossas vontades, tomando o lugar à guerra, pois é “… uma tentativa
de obter, por acordo mútuo, algo que se perdeu a esperança de adquirir pela violência”.84 A

80
Constant, The Liberty of the Ancients Compared with that of the Moderns (doravante The Liberty of the
Ancients) 1-2.
81
Constant, The Liberty of the Ancients 3.
82
Constant, The Liberty of the Ancients 3.
83
Constant, The Liberty of the Ancients 3.
84
Constant, The Liberty of the Ancients 3-4.
Silva 30

civilização já alcançou o momento onde se substituiu a guerra pelo comércio, sendo este agora
o foco principal dos homens e a vida das nações, pois almejam repouso e conforto, cuja fonte
é o comércio; além disso, juntamente com os progressos morais e intelectuais, e a religião, a
escravatura na Europa tinha cessado, permitindo que os homens livres possam exercer qualquer
trabalho.85

Constant chega assim a quatro conclusões: a importância política de cada cidadão e


inversamente proporcional à dimensão do seu país; a abolição da escravatura cessou com o
lazer de maior parte dos cidadãos, pois tornou-se necessário trabalhar durante mais tempo,
impactando também o tempo e a disposição geral para tratar de assuntos públicos, como referi
anteriormente; o comércio é uma atividade em permanente ação, pelo que os homens ocupados
com os negócios não desejam desviar as suas atenções, ou se o tiverem de fazer, que seja o
mais raro e momentâneo possível; por fim, e a mais importante para esta secção, o comércio
promoveu o amor intenso pela independência individual, visto ser o meio pelo qual os homens
conseguem suprir as suas necessidades e satisfazer os seus desejos, sem qualquer intervenção
do Estado, pois é sempre pior e mais dispendiosa a maneira como o Estado realiza os nossos
negócios.86 Estas afirmações do filósofo não só corroboram o que escrevi anteriormente, como
também demonstram a permanência, talvez até o agravamento, dos problemas das democracias
atuais – já tendo abordado a questão do trabalho anteriormente, importa destacar as questões
da dimensão do país e do comércio. Embora existam países democráticos de tamanhos muito
variáveis, nenhum possui verdadeiramente uma dimensão próxima à das sociedades antigas
que promovia um sentimento de importância maior relativamente às questões públicas e
políticas; ora, por este motivo e atendendo à proposta de descentralização de Tocqueville,
acredito que seja possível o futuro das democracias passar por algum tipo de federalismo – algo
que não aprofundarei, pois só por si daria para outra dissertação – visto ser, provavelmente, o
tipo de governo que melhor promove a participação dos cidadãos nos assuntos públicos: por
exemplo, os centros comunitários norte-americanos que Tocqueville refere ou o frequente uso
de referendos na Suíça, aproximam muito os seus integrantes aos assuntos públicos.

Contudo, a variável do comércio presente no individualismo democrático é


extremamente significativa atualmente – vivemos no pico da globalização, onde tudo gira ao
redor do capital e nunca para. Além disso, permitindo aos homens possuir aquilo que quiserem
(na generalidade) e saciar as suas necessidades, que motivo lhes resta para se interessarem

85
Constant, The Liberty of the Ancients 4.
86
Constant, The Liberty of the Ancients 5.
Silva 31

pelos assuntos públicos e políticos? “A nossa liberdade deve consistir no gozo pacífico da
independência privada”.87 Como referi anteriormente, devido à dimensão populacional, o
homem sente cada vez menos a sua influência nos assuntos públicos e, por isso, abdica de
muito pouco para defender os seus direitos políticos, cujo exercício gera poucos benefícios;
estes, juntamente com o crescimento exponencial do comércio, a globalização e o progresso
civilizacional, promoveram desmesuradamente os meios para alcançar a felicidade pessoal – o
nosso objetivo é assegurar os nossos benefícios privados, cuja sua garantia pelas instituições
chamamos liberdade.88 Se em 1819 Constant já discursava esta situação, passados 200 anos a
única diferença que se verifica é a sua agravação – fechámo-nos de tal maneira nas nossas
bolhas particulares com a segurança de que precisamos apenas de dinheiro (comércio) para
sobreviver, que tudo o que é política e assunto pública é apenas do interesse dos que realmente
gostam.

Falando especificamente da minha realidade – a democracia portuguesa – observamos


rapidamente a força que esta situação toma e o seu perigo. Portugal libertou-se de um regime
ditatorial há relativamente pouco tempo (1974), tendo registado nas primeiras eleições para a
Assembleia da República, em 1975, uma taxa total de abstenção de 8,5% – o que representa,
naturalmente, o fervoroso exercício da liberdade recém-adquirida pelos cidadãos da nova
democracia instaurada; contudo, esta taxa cresceu muito rapidamente, tendo em 2019, 44 anos
depois, alcançado um pico de 51,4% de abstenção – mais de metade da população preferiu não
exercer a difícil liberdade política adquirida no passado.89 Este dado por si só já é bastante
preocupante, mas torna-se mais grave ao verificar que, segundo os sensos de 2021, cerca de
23% da população portuguesa possui 65 ou mais anos90 – ou seja, praticamente ¼ da população
tinha, pelo menos, cerca de 20/21 anos quando o regime caiu. Como é que em menos de 50
anos de democracia, as pessoas se esqueceram completamente do passado opressor? Constant
afirma que sendo a liberdade individual a nossa verdadeira liberdade, então devemos deter
igualmente liberdade política, pois a última é a garantia da primeira; mas negligenciamos
demasiadas vezes as garantias que a liberdade política nos proporciona, devido à falta de
atenção que lhe damos e, por consequente, a pouca paixão que por ela sentimos.91

87
Constant, The Liberty of the Ancients 5.
88
Constant, The Liberty of the Ancients 6.
89
“Taxa de Abstenção Nas Eleições Para a Assembleia Da República: Total, Residentes Em Portugal e
Residentes No Estrangeiro.” PORDATA.
90
“População Residente Segundo os Censos: Total e Por Grandes Grupos Etários”. PORDATA.
91
Constant, The Liberty of the Ancients 10-11.
Silva 32

Para acentuar os problemas, o próprio comércio além de emancipar os homens, tornou


o Estado dependente por conta do crédito que criou, pois “[o] dinheiro … é a arma mais
perigosa do despotismo e, ao mesmo tempo, a sua restrição mais poderosa”.92 O poder
monetário dos indivíduos supera o poder da autoridade estatal: o capital é acessível a qualquer
momento, de utilização mais variável e útil, tornando-se muito mais real e obedecido do que a
autoridade – o poder desta apenas ameaça e pode ser enganado através de ilusões, enquanto o
monetário recompensa e é necessário servi-lo para adquirir os seus favores, fadando o capital
à vitória.93 Novamente, Constant previu certeiramente o modus operandi não só das
democracias, como da atualidade, onde cerca de 50% da riqueza mundial é possuída por
praticamente 1% da população global, enquanto sensivelmente 1% do capital mundial é detido
por aproximadamente 50% da população mundial.94 Além disso, as questões políticas
extremamente influenciadas pelo poder monetário de certas pessoas e grupos: os candidatos
em campanhas eleitorais que defendem os interesses das empresas que as apoiam
(declaradamente ou não, como nos EUA e em Portugal respetivamente); os inúmeros métodos
de corrupção, como a proteção de entidades benéficas ao poder políticos perante a justiça, os
casos de nepotismo ou escolhas premeditadas de pessoas; ou, em casos de despotismo mais
enraizado, os grupos oligárquicos que governam os países.

Pelos motivos descritos até aqui, é compreensível que a sua agregação leve a que a
existência individual esteja menos ligada à existência política, tornando a liberdade muito mais
preciosa quanto menos tempo despendermos do exercício dos direitos políticos.95 Assim,
tornou-se necessário um sistema representativo de forma a colocar ao cargo de um grupo
específico de indivíduos aquilo que a população inteira não consegue fazer (devido ao tamanho,
por exemplo) ou que não quer fazer (devido à falta de interesse, por exemplo), mas que tenciona
ter os seus direitos e interesses defendidos – contudo, nunca deixando de vigiar constantemente
e ativamente as ações dos representantes, e retendo sempre o direito, que nasce da soberania
popular, de revogar os poderes daqueles que abusaram e traíram a confiança da nação.96
Contudo, tal como Tocqueville, Constant alerta para o perigo desta situação – absorvidos pela
nossa bolha privada, onde nos focamos apenas em prosseguir os nossos interesses e gozar da
nossa liberdade, a possibilidade de renunciar ao direito de participação político torna-se muito

92
Constant, The Liberty of the Ancients 12.
93
Constant, The Liberty of the Ancients 12.
94
Armstrong, “The Global Wealth Pyramid”.
95
Constant, The Liberty of the Ancients 12.
96
Constant, The Liberty of the Ancients 12.
Silva 33

fácil de acontecer; e quem democraticamente escolhemos para nos representar tenta sempre
que tal aconteça, incentivando-nos a decretar-lhes o maior número de ações livres que
possuímos para em troca nos devolverem a felicidade que tanto desejamos alcançar,
constituindo-se essencialmente um “Estado tutor”.97 Esta proposta é apenas uma falsa ilusão,
visto qualquer benefício que nos seja oferecido não significar nada no percurso de atingir a
felicidade porque se não estiver garantido, garantia esta que não existe se renunciarmos à
liberdade política – “[a]bdicar dela seria uma loucura como a de um homem que não se importa
se a casa está construída sobre areia porque vive apenas no primeiro andar”.98

A promoção dos direitos individuais e, no fundo, da própria categoria de sujeito, acabou


por traçar o destino das democracias – um ciclo eterno, como referi anteriormente, de altos e
baixos, que em caso mais acentuados, representam quedas de governos democráticos seguidas
de quedas de governos despóticos que as substituíram. Embora não existam dados empíricos
em quantidades relevantes para aferir esta hipótese, a verdade é que se pode prever essa
situação caso se continue a ignorar os constantes avisos e perigos: olhando atualmente para a
Europa, verifica-se a ascensão de discursos e ideais populistas e extremistas, muitos visando
limitar a liberdade e acabar com a democracia em si. Isto é extremamente preocupante, tendo
em consideração os regimes ditatoriais do século passado e as suas repercussões – guerras,
perseguições, obliteração das liberdades, padronização dos indivíduos, centralismo fortificado,
desprezo pelos integrantes da nação, entre outros. Como é que, nem um século depois, grupos
com discursos semelhantes voltam a surgir? Focando-me novamente na minha realidade, como
é que em menos de 50 anos da queda do regime ditatorial, o discurso e ação populista possuem
assento parlamentar? Como é que têm vindo a ganhar força?

O adormecimento político é um mal tremendo. Comparando as duas observações que


fiz relativamente a Portugal, podemos inferir que à medida que a taxa de abstenção cresceu, o
discurso populista cresceu igualmente – isto é, o conforto democrático vai gradualmente, com
a ilusão de ser muito seguro, pois “é impossível ressurgirem regimes despóticos depois do que
aconteceu no passado”, encantando os seus integrantes e, simultaneamente, adquirindo aos
poucos a sua liberdade política “por livre vontade”. Para agravar, existe também todo o
discurso de “serem todos iguais” por conta do descontentamento geral sobre a forma como a
nação é gerida, afastando as pessoas do exercício e atividade pública por acreditarem ser
indiferente quem colocam ao comando da democracia; sendo um dos principais

97
Constant, The Liberty of the Ancients 12-13.
98
Constant, The Liberty of the Ancients 13.
Silva 34

descontentamentos a questão monetária, demonstrando a sua sobreposição à política. Acredito


que, dado a escolher entre possuir mais capital em prol de uma liberdade restrita ou ter
liberdade, sem tanta riqueza, uma parte significativa das pessoas escolheria a primeira – o que
é assustador. Como se costuma dizer, só se dá valor a algo quando se perde esse algo, e tal não
é diferente com a liberdade: aos poucos e poucos, as pessoas mal-intencionadas vão adquirindo
cada vez mais plataforma, em diversos países, com discursos populistas similares, enquanto a
restante população adormecida se convence que “nunca ganharão força” ou “constituirão uma
ameaça representativa”.

Os governos devem urgentemente tomar medidas para combater esta situação, caso
contrário uma dissertação semelhante a esta poderá ser impossível futuramente por conta da
censura. Agrupando os problemas que expus ao longo do trabalho, podemos inferir algumas
bases por onde se pode começar a construir uma vontade de participação pública e de exercício
de liberdade política. Acredito que o fator mais diruptivo consiste no pouco tempo livre que
temos, que deve ser combatido desde os mais jovens: sem dúvida nenhuma que a escolaridade
é o pilar mais fundamental de uma sociedade, visto ser um investimento a longo prazo, sendo
compreensível a necessidade de ocupar uma parte considerável do tempo dos jovens com a
educação; contudo, além do tempo que passam na escola (tanto em sala de aula como
intervalos), é lhes exigido ainda tempo fora da mesma para a realização de trabalhos de casa;
tendo ainda em conta que uma parte considerável frequenta atividades extracurriculares (que
são muito importantes), que tempo livre sobra para fazerem o que querem? Têm de esperar
pelas férias ou alguns fins de semana que não precisem de estudar ou realizar trabalhos. Mas
repetir todos os anos de escolaridade este mesmo ritmo (num cenário hipotético em que o
estudante vive estavelmente, sem muitas variáveis) acaba por criar um hábito de apenas ter
tempo em períodos de férias essencialmente – tornando-se problemático quando os assuntos
públicos acontecem diariamente. Até aos 18 anos educam-se uniformemente estudantes para
cumprirem as espectativas impostas pelo Estado (que apenas é problemático no que toca à
padronização muito restrita, porque a educação obrigatória deve estar implementada), mas que
foram habituados a pouco tempo livre e a exercê-lo em certos períodos. Ora, alcançando a
idade adulta e adquirindo a liberdade política, o que faram estas pessoas? Tenham ingressado
na faculdade, começado a trabalhar ou muitas vezes a junção destes, continuam a ter pouco
tempo livre. Assim, juntando o facto de não existir qualquer incentivo durante a sua formação
à ação política na grande maioria dos casos, como é que estes novos adultos irão exercer os
seus direitos políticos? Como é que trabalhando e dormindo (idealmente) 16 horas no total por
Silva 35

dia, adicionando tempos de trajeto, mais a hora de almoço no emprego, o tempo das refeições,
o cansaço diário, as pessoas terão qualquer tipo de disposição para sequer querer saber? Visto
que, como referi anteriormente, muitas consideram ser indiferente a sua participação.

É preciso restruturar as cargas horárias e trocar quantidade por qualidade, primeiro que
tudo – a quantidade de tempo livre que os cidadãos possuem não é suficiente para sentirem
sequer alguma preocupação pelos seus direitos políticos. Segundo, são precisos incentivos à
participação pública ativa – ações escolares, simplificar conceitos políticos, descentralizar:
sendo em Portugal a idade mínima para votar 18 anos, quantos jovens sabem como funciona a
estrutura democrática nacional? Não sabem o que são círculos eleitorais, por exemplo. Como
podemos esperar uma taxa de abstenção baixa, quando a grande maioria da população que vota,
a única coisa que sabe é que vota no partido A que tem as pessoas B, C e D. É preciso educar,
mostrar como funciona e o impacto que podem ter – mostrar, por exemplo, que a sua não ação
pode resultar no ressurgimento de despotismo graves, regimes ditatoriais, opressores, que
restringem as nossas liberdades. Só assim se poderá penetrar na bolha particular dos indivíduos
e puxá-los para a esfera pública, caso contrário, aquilo que Tocqueville, Stuart Mill e Constant,
entre outros que não abordei, anunciaram, avisaram e previram, irá acontecer. Sendo ainda
mais grave o facto destes filósofos conceberem os problemas que referi partindo da proposta
democrática e da sua muito recente observação, enquanto nós possuímos a vantagem de ter
quase mais 200 anos de História democrática que eles e ignorarmos constantemente as ameaças
à nossa liberdade. Foi principalmente esta afirmação que me levou realizar este estudo – o
futuro que nos espero é muito incerto e está inteiramente dependente das nossas ações, pelo
que devemos agir o mais rápido possível.
Silva 36

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