Você está na página 1de 10

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

O presente artigo tem o objetivo de discutir a questão da pesquisa em


educação e especificamente em educação infantil, apontando para a
lacuna existente em relação à história da escola, dos métodos
pedagógicos, enfim das questões relacionadas ao cotidiano escolar
vivenciado pelos agentes dessa instituição: pais, alunos e professores.
Assim, descreve alguns aspectos de uma pesquisa a respeito da política
de educação pré-escolar em Mato Grosso do Sul- que inicia-se nos anos
70, a partir do projeto implantado pela Secretaria Estadual de
Educação denominado Casa-escola infantil do bom senso e que
baseava-se no método Montessori. Teve como fonte principal os
relatos orais de professoras que trabalharam no período, a observação
do espaço físico das salas de pré-escolas, fotografias da época e alguns
documentos escritos.

Palavras chaves: Educação infantil, Método Montessori,


Mato Grosso do Sul – anos 70,
Casa-escola infantil do bom senso

This article attempts at discussing the question of research in


education and specifically in child education, stressing the lacuna
existing regarding the history of schooling, pedagogical methods, in
short, questions related to daily life in schools as experienced by the
agents of this institution: parents, students and teachers. Thus, some
aspects of a research project are described with respect to the politics
of pre-school education in Mato Grosso do Sul – initiated in the
1970s, with the project begun by the State Secretariat for Education,
called the Sensible Home-Children’s School, founded on the Montessori
Method. Its basic research source were the oral reports of teachers
working during this period, the observation of the physical space of
pre-schooling classrooms, photographs of the epoch and some written
documents.

Keywords: Child Education; Montessori Method;


Mato Grosso do Sul – 1970s,
the Sensible Home-Children’s School.

64 Intermeio: revista do Mestrado em Educação, Campo Grande, MS, v. 8, n. 15, p. 64-73, 2002.
Fatos e Fotos na
Educação Infantil em
Mato Grosso do Sul:
Anos 70 *

Anamaria Algumas palavras iniciais


○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

Santana da Silva O presente artigo tem o objetivo de discutir alguns


pontos relativos à metodologia utilizada numa pesqui-
Professora do Depto de
Educação do sa a respeito das origens da educação infantil no esta-
Centro Universitário de do de Mato Grosso do Sul.
Corumbá/UFMS e Refere-se a um projeto implantado pela Secretaria
doutoranda da Estadual de Educação nas escolas do estado de Mato
FE/UNICAMP
Grosso1, durante os anos 70, que previa a instalação
das “Casa- escola infantil do bom senso” e que pode
ser considerada a primeira iniciativa pública de in-
centivo à educação pré-escolar naquele estado.Tratava-
se de uma proposta baseada no método montessoriano
e que foi implantada com a preocupação de garantir
espaço físico e mobiliário próprios para as crianças

*
Esse texto foi elaborado a partir dos resultados de uma pesquisa
realizada para a publicação de um livro sobre experiências pioneiras
em educação infantil nos diversos estados do Brasil (MONARCHA,
Carlos (org) Educação da infância brasileira: 1875-1983. Campinas:
Autores Associados- FAPESP, 2001) e contou com a colaboração de
Mariete Félix Rosa.
1
O estado de Mato Grosso foi dividido em 1979, sendo criado o

65
estado de Mato Grosso do Sul.

Intermeio: revista do Mestrado em Educação, Campo Grande, MS, v. 8, n. 15, p. 64-73, 2002.
pequenas, material montessoriano e for- sua função burocrática, pragmática; é
mação permanente para as professoras difícil o administrador público que te-
envolvidas no trabalho. nha clareza do seu valor histórico. Por
A pesquisa procurou descrever o tra- outro lado, os arquivos históricos são
balho pedagógico realizado com as cri- raros e funcionam muito precariamen-
anças, as concepções de criança e de te. Assim, nos dias de faxina da escola
infância presentes no projeto, o espaço tudo o que não é útil é jogado fora.
físico da casa-escola, os cursos e a for- No entanto, se por um lado, a quase
mação das professoras, o trabalho da ausência de material escrito foi um pro-
blema, por outro, foi
o impulso que nos
Esse privilégio das fontes escritas e dos documentos levou a enfrentar o
oficiais tem como conseqüência, a exclusão da desafio de trabalhar
com outras fontes
possibilidade de se escrever e conhecer a história de pesquisa, quais
de uma grande parcela da população. sejam os relatos
orais, a observação
do espaço físico das
equipe de coordenação, a participação salas de pré-escolas e as fotografias.
dos pais, a clientela atendida. Além dis- É a respeito dessa metodologia que
so, discutir a respeito do papel que essa farei algumas reflexões.
proposta exerceu sobre os rumos da pré- Tradicionalmente, os pesquisadores em
escola no estado de Mato Grosso do Sul. história da educação tem recorrido aos
Considero que essa pesquisa insere- documentos escritos como a única ou
se no conjunto maior de pesquisa que principal fonte de dados de suas pesqui-
têm procurado compreender as origens sas. Entre a história oral e a documental,
da educação infantil no Brasil: quais os dificilmente um historiador consideraria
teóricos que exerceram (ou exercem a primeira tão importante e segura quan-
ainda) influências no trabalho cotidia- to a segunda. (Martins, 1993)
no na pré-escola; como as professoras Esse privilégio das fontes escritas e
vêm construindo um conjunto de conhe- dos documentos oficiais tem como con-
cimentos e de práticas a respeito da seqüência, a exclusão da possibilidade
educação das crianças pequenas; quais de se escrever e conhecer a história de
as categorias básicas para se compre- uma grande parcela da população.
ender a especificidade do trabalho com Segundo Martins,
crianças de 0 a 6 anos de idade. “são os que em público ou diante do estranho
Assim, a pesquisa iniciou-se com uma permanecem em silêncio: as crianças, os ve-
lhos, os agregados da casa, os dependentes, as
visita a três escolas2 onde o projeto foi mulheres. Ou os mudos da história, os que não
desenvolvido: Centro Educacional José deixam textos escritos, documentos”. (p. 16)
Rodrigues Alves (em Aquidauana), Cen- A partir desse problema, vários es-
tro Educacional Júlia Gonçalves Passa- tudiosos vêm repensando as formas de
rinho (Corumbá) e Centro Educacional se fazer pesquisa histórica e mudanças
Lúcia Martins Coelho (Campo Grande). significativas vem sendo experimenta-
Nas três escolas visitadas não foi das no sentido de se redefinir os méto-
encontrado nenhum material escrito; dos, as fontes e os documentos que po-
esse é um problema no qual se esbar- dem ou devem ser considerados e que
ram os pesquisadores: nos órgãos pú- possam inserir novos personagens, no-
blicos, um documento existe apenas pela vos dados ou até mesmo novas inter-

2
O projeto foi implantado nos Institutos de Educação das quatros principais cidades do antigo estado de
Mato Grosso; a presente pesquisa abrangeu as cidades que pertencem atualmente ao estado de Mato

66 Gross do Sul.

Intermeio: revista do Mestrado em Educação, Campo Grande, MS, v. 8, n. 15, p. 64-73, 2002.
pretações de fatos já conhecidos ou co- Um exemplo recente é o trabalho de
nhecidos parcialmente. Faria Filho (2000) que, ao estudar a
Cambi (1999) afirma que a partir escola primária pública de Belo Hori-
dos anos 60, vem sendo desenvolvido zonte no início do século XX utiliza-se
um modo radicalmente novo de se fazer dos relatórios dos diretores dos grupos
história. Ele aponta três revoluções na escolares, e dos inspetores da instrução
historiografia: pública, além de cartas, ofício circula-
“A primeira referiu-se aos métodos e afirmou res e despachos encontrados no Arqui-
sua liberalização e seu radical pluralismo. A vo Público Mineiro.
segunda tratou do tempo, dando vida a uma
visão pluralista e dialética do tempo históri- Segundo o autor,
co. A terceira voltou-se para os documentos, “Por meio desses documentos, tivemos acesso
ampliando essa noção articulando-a e desen- a novos personagens da educação pública mi-
volvendo uma nova percepção das fontes e neira. Creio ser um outro aspecto bastante
uma nova organização dos arquivos. Dessas positivo da pesquisa, acessa não apenas, nem
três revoluções, amadureceu uma imagem crí- fundamentalmente, as autoridades do ensino
tica da história que trouxe à luz o pluralismo ou mesmo aqueles inspetores e diretores mais
das abordagens e a complexidade de sua conhecidos. Estão aqui presentes em boa par-
fisionomia, assim como a dialética do tipo de te, muitas das pessoas que mais produziram
pesquisa que vem investigá-la.” (p. 29) a educação publica escolar mineira através de
uma intensa atividade de apropriação das dis-
Ginzburg (1987) no prefácio à edi-
cussões e práticas pedagógicas que se produzi-
ção italiana de O queijo e os vermes am no Brasil e no exterior.” (p.16)
discute as mudanças que estão ocorrendo Quando se trata da educação infantil,
na pesquisa histórica e afirma: essa lacuna é ainda mais visível, pois a
“No passado, podiam-se acusar os historiado- educação das crianças pequenas é con-
res de querer conhecer somente as ‘gestas do
reis’. Hoje, claro não é mais assim. Cada vez siderada uma questão menor e sempre
mais se interessam pelo que seus predecesso- esteve à parte do sistema oficial de en-
res haviam ocultado, deixado de lado ou sim- sino. Somente com a Constituição de
plesmente ignorado. ‘Quem construiu Tebas 88, a educação infantil passa a fazer
das sete portas?’ - perguntava o ‘leitor operá-
parte do sistema educacional, portanto
rio’ de Brecht. As fontes não nos contam nada
daqueles pedreiros anônimos, mas a pergunta até então, o atendimento a essas crian-
conserva todo o seu peso.” (p.15) ças ocorria a partir de projetos e pro-
Na área da história da educação, essas gramas temporários, com caráter expe-
mudanças também estão ocorrendo, mas rimental, sem a preocupação com a con-
durante muito tempo predominaram os tinuidade. Assim, é muito difícil (às vezes
estudos que se preocupavam apenas com impossível) encontrar dados a respeito
os aspectos relacionados ao sistema edu- da educação das crianças menores de 7
cacional, aos proje-
tos e programas ofi-
ciais e à legislação.
Assim, ainda há
Cambi afirma que a partir dos anos 60, vem sendo
uma lacuna que desenvolvido um modo radicalmente novo de se fazer
aos poucos está
sendo percebida e história. Ele aponta três revoluções na historiografia...
preenchida ao se
pensar a história
da escola, dos métodos pedagógicos, en- anos de idade nos documentos e relató-
fim das questões relacionadas ao coti- rios dos órgãos oficiais principalmente
diano escolar vivido pelos agentes des- nos anos anteriores à década de 80.
sa instituição: pais, alunos e professo- Alguns pesquisadores 3 a partir da
res. contribuição de diversas ciências como

3
Na área da educação infantil podemos citar alguns autores como Sonia Kramer, Tizuko Kishimoto,
Moisés Kuhlmann, Ana Lúcia Goulart de Faria, entre outros. Ver MEC. Bibliografia Anotada, 1995.

Intermeio: revista do Mestrado em Educação, Campo Grande, MS, v. 8, n. 15, p. 64-73, 2002. 67
a sociologia, a antropologia e a história, e sim apenas de apontar alguns aspec-
vêm tentando romper com essa limita- tos que foram percebidos durante a rea-
ção e construindo um conjunto de co- lização da referida pesquisa.4
nhecimentos a respeito da história da Quando se trabalha com relatos orais,
educação brasileira que inclua a histó- o material da pesquisa vai se constitu-
ria das crianças, dos professores, enfim indo durante o processo, os informantes
dos sujeitos da história. sempre têm um nome para indicar, um
Segundo Demartini (1995) documento, um material escrito ou uma
“trabalhar com relatos orais de professores foto para mostrar, o que enriquece e
seria uma forma de acrescentar novas ver- complexifica o trabalho.
sões e indagações à pouco conhecida história
da educação de diferentes segmentos da popu- A diversificação das fontes ao mes-
lação brasileira e à própria história do funcio- mo tempo em que amplia as possibilida-
namento do sistema educacional” (p.7). des do trabalho, traz novos problemas
Assim, a história oral surge como uma pois exige um exame mais criterioso do
possibilidade de trazer à tona e regis- material, a comparação entre as infor-
trar acontecimentos, experiências, sa- mações e a busca de outras fontes que
beres, histórias de pessoas ou grupos possibilite o confronto das afirmações.
que por motivos diversos ficaram à A visita às escolas proporcionou, pri-
margem da história oficial. meiramente, localizar as professoras
Segundo Oliveira (1999) que trabalharam no período e observar
“a história oral é parte da pesquisa na Socio- o espaço físico das salas de aula.
logia, na Antropologia, na Psicologia, na His-
tória, enfim, ampliou espaços e ganha cada
dia mais reconhecimento como possibilidade
de contar e contribuir com a história que está As vozes:
sendo feita, vivida, por toda a sociedade”.
(p.60)
Segundo Thompson (1992)
histórias, momentos e lamentos
“A história oral é uma história construída em Foram realizadas entrevistas com 8
torno de pessoas. Ela lança a vida para dentro professoras: 3 conversaram por telefo-
da própria vida e isso alarga seu campo de ne e outras 05 nos atenderam pessoal-
ação. Admite heróis vindos não só dentre os mente. Foram professoras que trabalha-
líderes, mas dentre a maioria desconhecida do
ram no período, tanto na coordenação
povo” (...)Traz a história para dentro da co-
munidade e extrai a história de dentro da co- do projeto como em sala de aula.
munidade ( p. 44). As entrevistas foram individuais,
Hoje, o debate sobre os rumos da his- semi-estruturadas que partiam das se-
tória oral é bastante amplo; muitas ques- guintes questões: Fale um pouco da ex-
tões são levantadas a respeito dos limi- periência da casa-escola. Como era o
cotidiano das salas?
Qual a importância
Assim, a história oral surge como uma possibilidade da casa-escola para
de trazer à tona e registrar acontecimentos, experiências, vc?
Mais importante
saberes, histórias de pessoas ou grupos que por motivos do que as pergun-
tas, foi o diálogo
diversos ficaram à margem da história oficial. que se estabeleceu
entre pesquisador e
tes e possibilidades dessa forma de se pesquisado pois nesse tipo de trabalho,
fazer pesquisa. Esse artigo não tem a as questões vão surgindo para ambos e
pretensão de discuti-las profundamente é no processo que as idéias vão se orga-

4
Oliveira (op.cit.) faz uma discussão interessante sobre história oral e cita os seguintes autores: BOSI,
THOMPSON, HALBWACHS, QUEIRÓZ, ROUSSO, JOUTARD, PRIORE, DEMARTINI, GLAT, AMADO &

68 FERREIRA, SIMSON, MEYHY, PORTELLI, ALBERTI, FERREIRA.

Intermeio: revista do Mestrado em Educação, Campo Grande, MS, v. 8, n. 15, p. 64-73, 2002.
nizando, fazendo surgir dados, opiniões, Assim, seguindo o caminho da autora
avaliações. Houve, também os silêncios, acima citada e enfrentando a difícil
as respostas deixadas para depois, os questão da objetividade/subjetividade,
telefonemas posteriores para esclarecer consideramos que os relatos das profes-
uma ou outra questão. As professoras soras foram fundamentais para o le-
entrevistadas ressaltaram o fato de que vantamento de dados e para organiza-
nunca haviam tido a oportunidade de ção das informações a respeito do proje-
falar sobre a experiência e considera- to casa-escola infantil do bom senso (sua
ram a pesquisa
muito importante.
Demartini (op. No conjunto de depoimentos,
cit.) ressalta que o
relato oral só existe uma questão a ser destacada é a presença
quando há uma es-
cuta que tem de ser
marcante da subjetividade.
atenta, cuidadosa e
paciente.
Por sugestão de uma das professoras estrutura e seu funcionamento, as ati-
entrevistadas, realizamos um encontro vidades realizadas no dia-a-dia, as reu-
com algumas professoras do projeto em niões, o trabalho em equipe).
Campo Grande; o que foi uma experiên- Por outro lado, as informações foram
cia muito interessante pois, além de ma- complementadas pelo material escrito
tarem as saudades, as professoras tro- que elas tinham guardado e empresta-
caram idéias, fotos e forneceram mui- ram para consulta: planejamentos se-
tas informações para a pesquisa. mestrais, anuais, relatórios, e apostilas
No conjunto de depoimentos, uma com orientações teóricas e práticas a
questão a ser destacada é a presença respeito do método Montessori, elabora-
marcante da subjetividade. Como traba- das pela OBRAPE , instituição que dava
lhar com pessoas e menosprezar essa os cursos para as professoras e presta-
dimensão? Como garantir a objetivida- va assessoria à Secretaria Estadual de
de dos dados? Educação.5
Segundo Oliveira (op.cit) Os relatos orais das professoras per-
“Considerando toda a subjetividade presente e mitiram apreender aspectos importan-
a necessidade da objetividade, caminhamos na tes da experiência. Para elas, a experiên-
mediação entre essas questões inspirando-nos
na fala de ELIAS (1997), quando ele trata das cia foi um sucesso 6;
relações de envolvimento e distanciamento do “... então ele foi constituído sobre uma pro-
objeto da pesquisa, dizendo que esse processo posta de você apresentar um sistema especi-
não é tão definido assim, especialmente nas alizado da pré-escola que não existia né, um
chamadas ciências sociais, pois a vida dos in- sistema onde toda a equipe era devidamente
divíduos que compõem a sociedade está cerca- capacitada, a equipe era homogênea, uma equi-
da por processos cegos, caminhos que os im- pe muito bem trabalhada, tanto é que ela foi
pedem de medir, quantificar, definir, direcionar criada nos moldes do Montessori..”
os rumos de forma clara e objetiva, o impre- Esse sucesso é atribuído principalmen-
visto torna-se parte e alimento das relações te, a três aspectos: dedicação ao traba-
sociais e da vida. (p.73) lho, organização e união da equipe;

5
OBRAPE-RJ- Organização Brasileira de Atividades Pedagógicas- dirigida pela professora Talita de
Almeida que na época era membro da Associação Montessori Internacional.
6
É interessante observar que apenas uma das professoras teceu críticas ao projeto, tanto do ponto de
vista do suporte teórico como das atividades práticas desenvolvidas pelas professoras. Ela realçou
principalmente os aspectos ligados à alfabetização e afirmou que já naquele momento, não seguia à
risca as orientações do método. Acreditamos que o depoimento dessa professora deveria ser aprofundado,
porém apesar da nossa insistência, ela não concordou em nos atender pessoalmente.

Intermeio: revista do Mestrado em Educação, Campo Grande, MS, v. 8, n. 15, p. 64-73, 2002. 69
“Na casa-escola nós tínhamos horário para linha, então era ao mesmo tempo uma ativi-
entrar mas não para sair, a gente ficava dade coletiva e individual”
até a última criança sair e o último proble- Todos os dias era realizado o “mo-
ma a resolver, mas mesmo assim trabalhá- mento do silêncio”. A música também
vamos contentes, não financeiramente, por-
que o salário era igual ao dos outros, mas era muito valorizada:
só por você ter condições de trabalho e as “...cantava-se muito; cantos de rotina, dos dias
professoras trabalhavam juntas com a co- da semana, das datas comemorativas, para
ordenação”. parabenizar algum aluno que estava aniver-
sariando, tudo na linha.”
O trabalho diário com as crianças era
Outras atividades bastante citadas
organizado a partir do planejamento por
pelas professoras
foram os passeios
(realizados a pé ou
Nos relatos das professoras fica explícita de ônibus para pra-
ças, jardins, mu-
a orientação montessoriana dada ao trabalho... seus, e outros pon-
tos da cidade), as
festas de aniversa-
riantes do mês,
onde se comemoravam os aniversá-
atividades que poderiam ser desenvol-
rios das crianças e das professoras e
vidas de formas variadas: atividades
as festas relativas às datas comemo-
individuais ou em grupo; na linha, no
rativas.
tapete ou nas mesas; livres ou dirigidas;
O planejamento semanal das ativida-
diversificadas ou únicas; fora ou dentro
des era feito a partir da seleção dos
da sala.
conteúdos a serem trabalhados (sepa-
Nos relatos das professoras fica ex-
rados por disciplina) e o material
plícita a orientação montessoriana dada
montessoriano era utilizado como recur-
ao trabalho: a linha, o momento do si-
so para “fixar os conteúdos”.
lêncio, as atividades da vida prática são
“Nós tínhamos materiais do som, tato. Olfato,
algumas das propostas da educadora gosto, por escala. Por ex. o material de tato,
italiana Maria Montessori. você colocava a mãozinha da criança na água
Em todas as salas de aula existia a morna, secava , passava talco para aguçar o
“linha pedagógica”, um círculo pintado tato e ia trabalhar normalmente, se iniciava as
lixas, tinha a graduação das lixas, das cores,
no chão, onde eram realizadas várias dos pesos para as crianças sentirem na mão as
atividades. No início do dia, os alunos diferenças. Todo material tinha seu conceito, a
sentavam na linha para conversar, con- partir do momento que ele via, que ele tocava
tar as novidades, contar estórias, con- à aprendizagem era maior e isso que era legal
o retorno era imediato com as crianças Por ex.
versar sobre os assuntos novos, enfim,
a gente tinha um material dourado, o material
conversas informais. Era na linha, tam- mais rico do Montessori nele se trabalhava as
bém que a professora apresentava um 4 operações, noção de sinal multiplicação, soma,
material novo, descrevia suas caracte- subtração, as crianças devoravam esse mate-
rísticas, demonstrava como era sua uti- rial e vai ver se tinham dificuldades com
tabuada nas 1ª e 2ª séries”.
lização e passava para que cada crian-
As atividades gráficas sucediam as
ça o manuseasse. As atividades envol-
atividades com os materiais concretos,
vendo movimentos como andar, correr,
“somente depois de bem explorados pas-
pular (de várias formas) também eram
sava-se para o papel”. Eram atividades
desenvolvidas na linha. A professora
relacionadas à alfabetização, à matemá-
realizava os movimentos e as crianças
tica, às artes plásticas (desenho, pintu-
a imitavam.
ra, colagem).
“quase todas as atividades eram desenvolvi-
“Tinha atividades gráficas, também, onde as
das na linha. Para apresentar por exemplo os
crianças antes de passar para o papel, faziam
blocos lógicos: a professora na linha apresen-
movimentos no ar, fazia no quadro, tínhamos
tava um aspecto por exemplo as cores e daí
os folhetos de linguagem, os folhetos de mate-

70 chamava cada criança para fazer o mesmo na

Intermeio: revista do Mestrado em Educação, Campo Grande, MS, v. 8, n. 15, p. 64-73, 2002.
mática, seriados por dificuldades (o 1º folhe- escola e na época, a casa-escola me ajudou
to, o 2º,), todo o material era mandado pela muito, os cursos que eu fiz, a minha base.”
secretaria e tínhamos apostilas que orienta- As professoras que trabalharam na
vam a aplicação, nós tínhamos toda uma sis- casa-escola foram formadas no final dos
temática com trabalho”.
anos 60/início dos anos 70. Na época, o
As atividades da “vida prática” eram
curso de formação de professoras (cur-
os momentos em que as crianças reali-
so normal) não incluía em suas discipli-
zavam tarefas (individualmente ou em
nas a questão da educação pré-escolar.
grupo) como varrer a sala, lavar seus
Assim, o trabalho na casa-escola teve
guardanapos, passar a ferro pequenas
uma importância fundamental na for-
roupas, lavar os utensílios utilizados
mação das professoras que ali traba-
em sala, lavar as mãos, escovar os den-
lharam; elas relatam que os cursos, as
tes, pentear os cabelos, amarrar sapa-
reuniões de planejamento, as discussões
tos, abotoar camisas, trocar de roupa.
com a equipe, enfim, a oportunidade de
Para a realização dessas atividades, a
desenvolver um trabalho nos moldes
sala de aula deveria se parecer com
deste projeto, representou um aprendi-
uma casa, possuindo um espelho, uma
zado significativo para elas, exerceram
pia, um tanque, uma tábua de passar
uma grande influência em suas carrei-
roupa.
ras.
No entanto, nos depoimentos das pro-
“Eu cheguei até 95 na pré-escola fazendo mui-
fessoras foi possível se ler muito mais ta adaptação, pegando um pouquinho de cada
do que informações a respeito de no- coisa para se adaptar à sua sala de aula por-
mes, datas e números; as falas nos re- que uma mudança brusca para quem está acos-
velaram sentimentos, paixões e valores tumado com o método montessoriano, depois
vem o construtivista, então você tem que se
que nortearam o desenvolvimento do adaptar. Eu até 1995 utilizei o material
trabalho. montessoriano, o pouco que a gente tinha, eu
As professoras demonstraram um utilizava nas aulas.”
grande prazer em falar daqueles tem- Ou ainda quando lamentam o fim do
pos, as entrevistas ativaram memórias, projeto e expressam um profundo senti-
suscitaram lembranças e provocaram mento de perda e revelam que se senti-
saudades. Esse diálogo entre as profes- ram impotentes diante das propostas da
soras demonstra um pouco desse senti- Secretaria do Estado.
mento: “O duro é que as pessoas que assumiram aca-
baram com tudo, não valorizaram nada do
“– Elas traziam de casa, mas na escola tam-
que significa isso tudo para nós hoje, aí veio o
bém tinha, era opcional, o lanche da tia
sistema normal, sem fundamento nenhum, você
Chica.....era delicioso... aqueles pastéis........
passava lá e via o material do Montessori
– Eu tenho até hoje
a receita de uns bo-
linhos que ela fazia
de água , sal e trigo,
eu classifiquei de “bo- A partir dessas falas, fica evidente um problema
linho do bom senso”
– Bolinho do Bom que é muito comum na educação pública: cada nova
Senso?
– É eu coloquei esse gestão quer sempre implantar novas propostas...
nome porque não ti-
nha nome e foi lá que
eu aprendi. Não passava um aniversário em
jogado no canto e você sentia a dor, porque
branco, era serenata, era bagunça, era presen-
você sabia o que custou trabalhar para conse-
te....”
guir e a importância de tudo.”
Da mesma forma, quando falam da importân-
cia do projeto em suas vidas e carreiras. A partir dessas falas, fica evidente um
“Acho que foi uma fase da minha vida que eu problema que é muito comum na educa-
jamais vou esquecer porque tudo o que eu ção pública: cada nova gestão quer sem-
tenho, tudo o que eu consegui de aproveita- pre implantar novas propostas não con-
mento, de conhecimento foi tudo na casa-esco-
siderando a experiência e o conhecimen-
la. Eu me formei, fiz faculdade na área de
história, mas todo o meu trabalho foi na pré- to acumulado por técnicos e professores.
Intermeio: revista do Mestrado em Educação, Campo Grande, MS, v. 8, n. 15, p. 64-73, 2002. 71
O espaço: sas duplas, mesas de quatro e mesa para
o lanche, o cabide da vida prática, a
ocupação e significados linha, as estantes na altura das crian-
ças.
Retomando a visita às escolas: a ob- A metodologia montessoriana previa
servação do espaço físico das salas de que o espaço fosse sendo ocupado, aos
aula7, constituiu-se e numa fonte muito poucos, com a participação das crian-
rica de informações a respeito da expe- ças e das professoras.
riência, pois: A descrição desse espaço físico pode
“... em todas as instituições de educação in-
fantil para as crianças pequenas de zero a seis ser feita a partir da observação das
anos de idade, o espaço físico expressará a salas, dos depoimentos das professoras
pedagogia adotada...”.Faria (1999: 95) e das fotografias que foi a terceira fonte
Reafirmando essa idéia Galardini dessa pesquisa.
(1996):
“...um espaço e o modo como ele é organizado
resulta sempre das idéias, das opções, dos sa-
beres, das pessoas que nele habitam. Portan-
As imagens:
to, o espaço de um serviço voltado para as
crianças traduz a cultura da infância, a ima- fatos e lembranças
gem da criança, dos adultos que o organiza- As fotografias foram encontradas com
ram; é uma poderosa mensagem do projeto
educativo concebido para aquele grupo de cri-
as professoras durante as entrevistas;
anças.” (p.106) são imagens de crianças e professoras
As salas de aula da casa-escola fo- em situações do cotidiano das escolas:
ram construídas especialmente para festas, atividades em sala, passeios e
atenderem crianças do jardim da infân- foram utilizadas por nós como uma
cia, num anexo das escolas estaduais; possibilidade de ilustração daquela ex-
salas muito amplas, com janelas pro- periência.
porcionando ótima ventilação e lumino- A partir das imagens é possível
sidade. visualizar a organização do espaço físi-
A organização do espaço físico foi co, o mobiliário, os materiais, a expres-
pensada para que as crianças pudes- são das crianças desenvolvendo as ativi-
sem satisfazer suas necessidades bási- dades, as roupas das crianças e das pro-
cas com autonomia: as pias, os vasos fessoras. Ou seja, as fotografias auxilia-
sanitários, a lousa, as mesas, as cadei- ram a pesquisadora a entender e com-
ras, as estantes com os materiais ti- plementar melhor os relatos, pois permi-
nham tamanho e peso que garantiam a tiram um certo retorno ao passado.
livre movimentação das crianças. Além disso, as fotografias funciona-
ram como uma fon-
te de recordações
... as fotografias auxiliaram a pesquisadora que ajudaram as

permitiram um certo retorno ao passado.


próprias professo-
a entender e complementar melhor os relatos, pois ras a se lembrarem
de vários aspectos
do projeto. Foi mui-
to interessante que
durante o encontro
As salas foram equipadas com mobi- realizado em Campo Grande, ao reve-
liário próprio seguindo a linha rem outras fotos, as professoras con-
montessoriana: mesas individuais, me- versavam entre elas e iam confirman-

7
Apesar do projeto casa-escola não mais existir, as salas abrigavam turmas de pré-escola até1998

72 quando a rede estadual de educação do Mato Grosso do Sul deixou de oferecer esse nível de ensino.

Intermeio: revista do Mestrado em Educação, Campo Grande, MS, v. 8, n. 15, p. 64-73, 2002.
do, modificando ou acrescentando no- que o país vivia? Como o método foi
vas informações àquelas dadas anteri- apropriado no Brasil (ditadura militar)?
ormente nas entrevistas individuais. Quais as influências do método no tra-
balho com a pré-escola?
É preciso ressaltar que tal pesqui-
Algumas palavras finais sa não teve o objetivo de avaliar a
Assim, consideramos que a partir da importância do método Montessori,
análise e da problematização desse mesmo porque refere-se a uma expe-
material- relatos orais, material escrito riência específica e datada exposta às
e iconográfico e observação do espaço diversas variáveis de uma determi-
físico das salas - pudemos fazer uma nada cultura.
descrição inicial dessa experiência que A nossa preocupação foi destacar a
pode ser considerada a pioneira em edu- necessidade de se contar a história de
cação pública para crianças de 3 a 6 uma experiência na educação pública
anos no estado de Mato Grosso do Sul. no estado de Mato Grosso do Sul e as
Acreditamos que a partir disso, no- fontes utilizadas na pesquisa. Acredita-
vas questões podem vir a ser levanta- mos estar contribuindo para a amplia-
das e aprofundadas, tais como: Por que ção do conhecimento e do debate a res-
Montessori? Quais as relações do méto- peito da educação das crianças de 0 a 6
do com o modelo educacional proposto anos de idade, assim como sobre as fon-
no momento (tecnicismo)? Qual a rela- tes que podem ser utilizadas nas pes-
ção do método com o momento político quisas sobre essa temática.

Bibliografia
CAMBI, Franco. História da Pedagogia. SP: Ed. UNESP, 1999.
DEMARTINI, Zeila de B. Relatos orais: nova leitura de velhas questões. Revista Portuguesa de Educa-
ção, Universidade do Ninho, nº 8, 1995.
FARIA, Ana L. G. O espaço físico nas instituições de educação infantil. IN: Subsídios para credenciamento
e funcionamento das instituições de educação infantil. Vol II. MEC, Brasília, 1998.
FARIA FILHO, Luciano Mendes de. Dos pardieiros aos palácios:cultura escolar e urbana em Belo
Horizonte na Primeira República. Passo Fundo: UFP, 2000.
GALARDINI, Ana Lia. Avaliação da qualidade no atendimento à infância. Anais do II Simpósio Nacional
de educação Infantil. Brasília, 1996.
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes- o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela
inquisição. SP: Cia das Letras, 1987.
KULHMANN JR., Moisés. Infância e educação infantil: uma abordagem histórica. Porto Alegre: Media-
ção, 1998.
MARTINS, José de S. O Massacre dos Inocentes. São Paulo: HUCITEC, 1993.
MONTESSORI, Maria. A criança. São Paulo: Círculo do Livro, 1990.
OBRAPE- Organização Brasileira de Atividades Pedagógicas. Rio de Janeiro: 1978 (II ed.)
OLIVEIRA, Magda S. Lembranças de infância: que história é esta? Dissertação de Mestrado. UNIMEP,
1999
ROSA, Mariete Félix. A educação das crianças em idade pré-escolar em Campo Grande-MS (1980-
1992). Dissertação de Mestrado. FEUSP, 1999.
SILVA, Anamaria S. Políticas de Atendimento às crianças pequenas em Mato Grosso do Sul (1983/
1990). Dissertação de Mestrado. FE/UNICAMP, 1997.
THOMPSON, Paul. 1992. A voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

Intermeio: revista do Mestrado em Educação, Campo Grande, MS, v. 8, n. 15, p. 64-73, 2002. 73

Você também pode gostar