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david sylvester Um olhar sobre Giacometti

Maria Thereza Rezende Costa


tradução
Alberto Giacometti, Portrait of David Sylvester, 1960,
óleo sobre tela, 116 x 89,5 cm, Moma.
Prefácio 9

parte i parte ii
1 Perpetuando o transitório 17 6 Armadilhas 75

2 Um cego na escuridão 23 7 Com ligeiras variações 117

3 Um disco tempo-espaço 35 8 Perder e achar 137

4 A pertinência dos opostos 45 9 Uma coisa totalmente desconhecida 151

5 O resíduo de uma visão 49 10 Uma presença separada 187

11 Uma espécie de silêncio 193

Entrevista 209

Nota biográfica 249

Referências 255

Agradecimentos 267
A John Hewett

Prefácio
quando fui a paris pela primeira vez, em setembro de fotografias dos gessos tiradas por Patricia Matisse, a repro-
1947, três anos depois da Libertação, dava a triste impres- dução em fac-símile de uma carta autobiográfica do artis-
são de escassez de uma arte nova que fosse realmente es- ta junto de alguns esboços de suas esculturas mais antigas,
timulante. A única coisa que parecia despertar a atenção tudo era reverentemente passado de mão em mão.
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era a obra em curso de Giacometti, famoso antes da guerra Mas em Paris não havia como ver as esculturas a me-
por seu O palácio às quatro horas da manhã (Le Palais à quatre nos que se tivesse acesso a seu ateliê. No outono de 1948,

Prefácio
heures du matin) e por outras esculturas surrealistas, e tam- fui convidado ao apartamento que Daniel-Henry Kahn-
bém pelo fato de, aos trinta e tantos anos, ter saído subi- weiler dividia com Michel e Louise Leiris, e Giacometti
tamente de circulação. Vem dessa época o boato segundo encontrava-se entre os presentes. Foi a partir daí que pas-
o qual ele teria passado quase toda a vida fazendo e refa- sei a ir com certa frequência a seu ateliê.
zendo, sem cessar, esculturas, pinturas e desenhos de uma Comecei a tentar escrever sobre sua obra em 1955 e re-
única e mesma cabeça ou de uma única e mesma figura. digi a introdução do catálogo de uma pequena exposição
Em 1946, os Cahiers d’Art haviam publicado dezesseis pá- retrospectiva da qual fui curador, na Arts Council Gallery,
ginas com ilustrações de suas esculturas e desenhos re- em Londres. O texto é o capítulo de abertura deste livro
centes, que pareciam maravilhosos na maneira alucinada que recentemente foi (como quase tudo nele), até certo
como expunham uma figura ou cabeça no espaço que a ponto, revisado.
circundava. Mais tarde, na primavera de 1948, Giacometti No final de 1959, completei a versão de uma monogra-
fez sua primeira exposição individual em catorze anos na fia. Embora ela tivesse sido aceita pelo editor, peguei-a
Galeria Pierre Matisse em Nova York. Cópias importadas de volta, pois queria dar prosseguimento a esse trabalho.
do catálogo, que traziam um ensaio de Jean-Paul Sartre, Duas partes do texto em seu estado bruto sobrevivem, no
presente volume, nos capítulos 2 e 3. No verão de 1960, tinuei trabalhando nele e o enviei ao editor, mas, depois
Giacometti pediu-me que posasse para um retrato, e as de algum tempo, quando estava compondo a primeira
vinte sessões, cada uma com duração de várias horas, prova, abandonei tudo. Ficara claro que um texto escrito
contribuíram com material novo que foi depois utiliza- como estudo para uma obra ainda em andamento não po-
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do. O avanço se fazia lentamente. Uma parte, consolidada dia ser de repente convertido num texto sobre o tema de
em 1962, constitui, aqui, o capítulo 4. Nesse meio-tempo, um corpo de obra perfeitamente acabado.

Prefácio
Patricia Matisse concordou em não somente deixar-me Continuei a trabalhar no livro de maneira descontínua
reproduzir uma seleção das fotografias de esculturas já e só consegui dar-lhe forma depois de perceber que esta-
existentes, mas também em tirar outras especialmente vam faltando duas coisas essenciais. Uma era o fato de o
para o livro. Estas culminaram numa série de fotos do texto ter que respeitar a passagem do tempo, de ter que
ateliê tiradas poucos dias antes da morte do artista. permitir que os temas-chave aparecessem diversamente
Em 1964, quando Giacometti veio a Londres para tratar desenvolvidos em diferentes pontos da obra. A outra era
de uma grande retrospectiva que se realizou na Tate Gallery o fato de ele ter de se dividir em duas partes: a primeira,
no ano seguinte, e da qual fui curador, a bbc gravou duas formada por capítulos escritos no tempo presente, isto é,
entrevistas com ele, que aqui aparecem transcritas. Estas enquanto o artista vivia, e a segunda, formada por capí-
também contribuíram com material que aproveitei em tex- tulos começados durante seu tempo de vida, mas comple-
tos meus. Um dos capítulos que, por exemplo, faziam parte tada numa época em que ele já estava morto. O último
do catálogo constitui o capítulo 5 do presente volume. capítulo é um caso à parte, que foi abordado somente du-
No entanto, a maior parte do livro estava ainda por fa- rante os anos 1980, e está visivelmente escrito sob uma
zer quando Giacometti morreu, em janeiro de 1966. Con- ótica diferente.

David Sylvester
Londres, 25 de março de 1994
parte i
Perpetuando o transitório
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as figuras em pé de Giacometti sugerem objetos há muito significa a tentativa de sua recaptura, pois a nossa cons-
enterrados que vieram à flor da terra para serem observa- ciência do acontecido o impele para o passado. Os dias
dos à luz. Fósseis talvez, mas também colunas ou cariáti- passam e toda a consciência se transforma em nostalgia.
des – mais precisamente, cariátides em sua postura com- O sentimento do transitório nessas esculturas é o de perda.
pacta e frontal, com a diferença de que, em Giacometti, as É também a expressão de um fato. As proporções del-
figuras são tênues demais para guardar essa semelhança. gadas e as superfícies revoltas podem ser sobrecarregadas
Mas elas não são etéreas: têm uma densidade que nos faz com uma massa de evocações românticas cujo peso tal-
lembrar as cabeças encolhidas preservadas pelos canibais. vez exista para compensar a falta de massa corporal, em-
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São figuras sem nada de “supérfluo em seu corpo”, como1
bora a conjunção dessas propriedades também sirva para
o Starbuck em Moby Dick, sua magreza sendo uma “con- sugerir simplesmente que, por motivos subjetivos ou ob-
parte i

Perpetuando o transitório
densação”. jetivos, nossas sensações, sempre cambiantes, deixariam
Essa imagem de uma figura de pé é sempre a de uma de ser sensações se fossem fixadas como se prende uma
mulher ereta. Ela possui sua contrapartida: a imagem de borboleta com um alfinete. Para serem presas ou fixadas,
um homem, igualmente de pé, mas, no caso, uma figura isso teria de ser feito de forma menos brutal. Ora, o obje-
ativa, caminhando ou apontando com a mão. Há também tivo de Giacometti, como ele próprio explicita, é “trans-
os bustos de um homem que, de certo modo, são ativos, mitir uma sensação tão próxima quanto possível àquela
com a cabeça atenta, vigilante. A fêmea é passiva, uma que sentimos quando olhamos o tema”. 3 A seu ver, por-
figura de pé e imóvel, ou ao lado de outras enfileiradas, tanto, não há dúvida sobre o fato de a sensação ser fugidia.
exibindo-se (de fato) num bordel à espera de serem esco- E para deixar isso claro, ele usa formas cuja aparência
lhidas, ou então mostradas isoladamente como se estives- contradiz nossas noções sobre a aparência das coisas.
sem esperando na rua. Naturalmente, existem mais atributos em nossas sen-
Mas ali, de pé, não estão inteiramente paradas. Sua super- sações do que essas formas pretendem transmitir. Uma
fície, quebrada e agitada, vibra, e as figuras, rígidas em sua das pistas para descobrirmos o que elas podem ser está
postura, tremem perpetuamente na tensão do movimento. nas pinturas e nos desenhos que, sendo menos extrava-
gantes em suas proporções (em geral, feitos com modelo-
Um cego tateia seu caminho na noite. -vivo), têm uma leitura mais fácil.
Os dias passam e me iludo em agarrar, reter o fugaz. 2
O aspecto mais surpreendente nas pinturas, e um pouco
menos nos desenhos, é a densidade de seu espaço. A atmosfe-
O transitório está por toda parte, nada jamais pode ser re- ra não é transparente: é tão visível quanto as formas sólidas
capturado. Contudo, o simples pensar de uma ocorrência que ela circunda, quase igualmente tangível. Além do mais,
não está claro onde a forma termina e onde começa o espa- a um de nossos braços – evidentemente não tem relação
ço. Entre massa e espaço há uma espécie de interpenetração. alguma com o volume real do corpo humano. Há uma es-
Ao mesmo tempo, as pinturas e desenhos dão enorme pécie de centro e, fora deste, uma sugestão de massa que
ênfase à distância entre as coisas que estão nelas e o olho se dissolve no espaço. Ora, o volume é confessadamente
do observador. A perspectiva é quase sempre alongada, uma quantidade desconhecida, o que subentende uma
produzindo um efeito como o da visão pela extremidade quantidade desconhecível: o fato de os contornos se mos-
errada de um telescópio, realçando, dessa forma, a proxi- trarem elusivos na realidade é transmitido pelo fato de
midade ou a distância de uma figura ou um objeto. As ex- simplesmente não existir um contorno na escultura.
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tremidades próximas dos corpos tendem a ser alargadas, Mas voltemos ao alongamento. Não seria ele seme-
como acontece nos instantâneos, isto é, em imagens cuja lhante ao tipo de deformação produzido em pintura por
parte i

Perpetuando o transitório
perspectiva é ótica e não idealizada. A escala das formas algum procedimento anamórfico? Uma espécie de ana-
em relação às dimensões do retângulo (que é geralmente morfose distorceu a figura ou cabeça esculpida para que,
definido em algum ponto dentro das dimensões da tela dessa maneira, a imagem incorpore uma perspectiva ca-
ou do papel real) é peculiarmente expressiva em sua paz de sugerir que ela foi vista de certo ângulo ou a cer-
locação no espaço. ta distância e se ponha a um determinado afastamento
Giacometti, portanto, está preocupado com problemas imaginário de nós, que é independente de seu distancia-
com os quais Cézanne também se confrontou: o da inde- mento de nossa pessoa como objeto. Em outras palavras,
finição do contorno que separa o volume do espaço e o da é como uma figura numa pintura que, fixada de uma vez
distância entre as coisas e o olho. A semelhança estilís- por todas no espaço, se mantém indiferente à distância
tica entre seus desenhos (talvez o aspecto mais perfeito que estamos da tela. Além disso, as formas são algumas
de sua arte) e os de Cézanne não é superficial. Por isso, os vezes colocadas numa espécie de gaiola que define o espa-
atributos de sensação que assediam Giacometti não apre- ço que as circunda tal como o espaço contido num quadro,
sentam nenhum problema maior com que a pintura ain- ou então são concebidas em relação à base em que se as-
da não tivesse deparado. No caso da escultura, entretanto, sentam de maneira tal que a proporção das figuras junto
se poderia pensar que esses atributos estivessem fora do a essa base funcione do mesmo modo que entre as figuras
campo de ação de seus recursos. Mas a insistência de Gia- e o primeiro plano num quadro. Ao mesmo tempo, as su-
cometti em não admitir isso é o que determinou a forma perfícies têm a vitalidade e autonomia de textura de uma
que suas esculturas tomam. superfície pictórica.
Aquela longa figura delgada com sua superfície que- O que mais importa não é o fato de a linguagem da es-
brada – às vezes, da nossa altura e com espessura inferior cultura ter sido ampliada, e sim que, ao usar proporções
cujos efeitos ultrapassam os padrões normais da escultura,
Giacometti cria uma pungente e misteriosa imagem de
cabeças e figuras humanas que, apesar de sua fragilidade,
dominam o espaço em que parecem se perder.

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parte i

Um cego na escuridão
a obra atual de giacometti no terreno da escultura sentadas estão geralmente vestidas, assim como os ho-
apresenta três temas recorrentes: um busto de homem, mens nessa posição –, e mais umas poucas composições
um nu de figura masculina andando e um nu de figura em que também aparecem figuras. Além disso, há algu-
feminina de pé e parada que, como o busto, é marcada- mas paisagens, naturezas-mortas e interiores de ateliê.
mente frontal. As esculturas podem ser mostradas de Os desenhos, em quantidade razoável, apresentam uma
forma individualizada ou em composições de dois, três, gama maior de temas.
quatro, cinco, oito ou nove unidades. Estas podem reunir A escultura é feita de gesso ou argila; alguns dos ges-
unidades de uma mesma espécie – grupos de mulheres sos estão pintados aqui e ali de preto ou cor de ferrugem;
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de pé ou de homens caminhando –, ou podem combinar alguns dos bronzes foram pintados na cor da carne e do
unidades de duas espécies – uma mulher de pé com um cabelo. Entre 1935 e 1939, praticamente todos eles foram
parte i

Um cego na escuridão
homem caminhando ou, então, um busto de homem com feitos com modelos-vivos; depois, até 1953, a maioria foi
mulheres em pé –, mas nunca combinam as três modali- feita de memória; e, a partir dessa data, tanto de memória
dades ao mesmo tempo. Às vezes, as composições apre- como de observação. A maioria das pinturas e dos dese-
sentam-se como cenas possíveis na vida real, como no nhos foi executada do natural. Os modelos para as escul-
caso da combinação de uma mulher de pé com diversos turas, comparativamente, também são poucos. Em geral,
homens caminhando, que, sem dúvida, representa figu- restringem-se a sua mãe, Annetta, a sua mulher, Annette,
ras numa rua; às vezes, elas são arranjos palpavelmente e a seu irmão, Diego.
artificiais, como no conjunto de mulheres de pé junto a Giacometti costumava ocupar-se com várias escultu-
um busto; e às vezes são artificiais, mas de forma menos ras e pinturas simultaneamente. A espessura da tinta, na
inequívoca, como quando grupos de mulheres que se ofe- maior parte das telas, indica que a tarefa lhe exigiu muito
recem à clientela de um bordel são traduzidos num esque- tempo. As esculturas, da mesma forma, são em geral o re-
ma que as mostra enfileiradas como se numa parada. sultado de um longo trabalho. As de memória estão exe-
A partir de 1935 é possível que Giacometti não tenha cutadas numa maneira bem característica de Giacometti,
produzido mais que uma dúzia de esculturas que fujam que reflete a curiosa combinação de uma autocrítica exa-
desses três temas. Seria difícil imaginar outro escultor cerbada com a busca de espontaneidade. Enquanto ain-
ocidental moderno com tamanha parcimônia de temas. da está sendo realizada – e isso pode levar alguns anos –,
Em suas pinturas, os principais assuntos são os de uma uma escultura de memória poderá ser totalmente des-
figura sentada, quase sempre com as pernas cruzadas, e truída e refeita muitas vezes, e cada recomeço geralmen-
os de um busto. Há também algumas figuras femininas te representa todo um dia ou toda uma noite de trabalho
mostradas de pé, nuas e sozinhas – ao passo que, quando contínuo. No final, se verá que aquela diferença percebida
entre o primeiro estágio e o último era uma coisa insigni- porque acha que, finalmente, tenha dado completude à
ficante que certamente poderia ter sido resolvida com uns obra, mas por sentir que naquele estágio seria inútil levar
poucos ajustes aqui e ali. Mas não, a escultura tinha de ser adiante o trabalho, pois sabe que se fosse prosseguir em
desbastada até sua armação todas as vezes que alguma al- busca da finalização jamais terminaria qualquer coisa.
teraçãozinha se fizesse necessária para, em seguida, ser A interação entre espontaneidade e esforço prolongado,
recomeçada e, por fim, rapidamente concluída. É como em seu método de trabalhar, significa uma atitude to-
se o processo da criação consistisse numa série de ensaios talmente diferente da interação que preside a criação do
e o ensaio final fosse o espetáculo, embora o ator ignoras- Homem com carneiro de Picasso. Este conseguiu começar e
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se quando um ensaio fosse se transformar em espetáculo. concluir num único dia essa figura em tamanho natural,
Essa prática de começar inúmeras vezes do zero um tra- mas isso após ter feito diversos desenhos preparatórios.
parte i

Um cego na escuridão
balho que, apesar de feito às pressas, gasta largos períodos Ele procedia à maneira tradicional, dos estudos à conse-
de tempo não pode ser explicada pelas exigências técni- cução da obra, ao mesmo tempo conferindo-lhe vitalida-
cas do uso do gesso ou da argila; ela se deve exclusivamen- de e um caráter de produção espontânea.
te a um tipo de necessidade interna. Giacometti precisa A questão do inacabado e inacabável é, evidentemente,
estar sempre continuando, sempre continuando a fazer uma das coisas de que a arte moderna trata. A tradicio-
a coisa, sempre tentando infindavelmente obter aquilo nal distinção entre uma obra inacabada e outra acabada
que quer, mas não por meio de remendos: evidentemen- deixou de ser clara há algumas centenas de anos, mos-
te, ele não consegue tolerar que uma mudança seja feita trando-se já nebulosa nos estilos tardios de mestres como
de fora para dentro; precisa, a cada vez, fazê-la de dentro Michelangelo, Ticiano e Rembrandt: na verdade, esse é o
para fora, revivendo todo o proceso de sua criação. Tem fator mesmo que governa nosso conceito de “estilo tardio”.
de continuar seguidas vezes durante meses ou anos a fio Com a chegada do impressionismo, obras executadas com
e ao mesmo tempo levar a obra a um ponto de realização a marca da indefinição começaram a reclamar os mesmos
tão instantânea quanto humanamente possível. A figura, direitos que outras cuidadosamente realizadas: enquanto
em sua imobilidade, tem de ganhar vida como se subita- um estudo de Delacroix é a preparação para uma pintu-
mente brotasse do nada em forma de um todo inalterável. ra definitiva, um estudo de Boudin é para ser visto como
Como um todo inalterável porque ela é concebida completo em si; o caso de Whistler versus Ruskin foi jus-
como um todo indivisível. E inalterável somente no tamente um debate sobre a validade desse reclamo. Uma
sentido de ele considerá-la indivisível, não no sentido vez que passou a ser impossível ter certeza sobre quando
de se ater à finalização. Quando ele para de trabalhar uma obra estaria ou não acabada avaliando o seu grau
na escultura e permite que ela vá para a fundição, não é de “completude”, seguiu-se que não somente os artistas
podiam declarar prontas obras que pareciam inacabadas, conflito entre pretensões antagônicas de representação e
mas também declarar inconclusas obras aparentemente arquitetura pictórica, e os paradoxos de que o pintor tenta
terminadas. Não há diferença radical entre um Cézanne refazer em duas dimensões o que existe em três, de que
“acabado” e um Cézanne “não acabado”, pois Cézanne é ele dá a impressão de estar pintando o que vê, embora
inacabável. Na obra de Giacometti, esse estado de indefi- não possa se impedir de pintar o que conhece, e de que
nição se apresenta de forma especialmente explícita – so- seu ponto de vista aparente é único, apesar de seu ponto
bretudo devido a seu costume de incluir em suas exposi- de vista real ser múltiplo. No cubismo, a lógica da pintu-
ções modelos de gesso e gessos originais de peças ainda ra, as exigências da linguagem em si, são discutidas em
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em andamento ao lado de bronzes, e também em virtu- termos de pintura. Com o dadaísmo, o próprio status da
de da rusticidade das superfícies dos próprios bronzes. arte – sua validade moral e seu papel cultural – torna-se
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Um cego na escuridão
Já que uma obra é inacabável, uma escultura – e, nesse parte do tema da obra, e Duchamp leva às últimas con-
caso, uma pintura também – com a fatura espontânea sequências a questão sobre o que é válido como material
do esboço – por ser executada em sua última fase e nas para fazer uma obra de arte. Num dos ramos do surrea-
anteriores tão rapidamente como um esboço – tem de se lismo, Magritte vale-se de uma série de enigmas semânti-
apresentar como uma versão final; mas, a despeito de ter cos ao examinar a diferença entre a realidade e a imagem
sido feita como um esboço, ela não é esboço, é uma for- pintada da realidade, bem como a relação entre ambas; em
mulação resultante de longas considerações. E, apesar de outro ramo, o reconhecimento do espectador daquilo que
ser uma formulação resultante de longas considerações, foi usado como técnica automática ou quase automática
não faria sentido dar-lhe uma aparência final, porque pode tornar-se parte integrante da experiência da obra.
ela não tem pretensões de ser uma formulação acabada. O expressionismo abstrato, naturalmente, herdou a explo-
Outra questão relacionada à arte moderna é a da arte ração surrealista do automatismo, mas ao dar muito mais
em si, talvez a partir de obras que vão de Courbet a Ma- ênfase à realidade pictórica da obra, ele faz um novo ato
tisse, nas quais se pode discernir visivelmente o autor de de fé na arte e afirma o valor moral da pintura como ativi-
cada uma. Tal uso da arte como parte da iconografia pode dade que dá realidade a uma ordem pictórica imprevista
ser encontrado, por exemplo, na série Ateliês, de Braque, (quase sempre numa escala que é reflexo direto dos gestos
ou, mais propriamente, nos quadros de Giacometti que re- humanos naturais, declarando, assim, que a obra espelha
produzem seu ateliê. Com os cubistas, a obra passa dessa as ações de um homem que se porta espontaneamente
contemplação direta de si para a exposição de seus proble- como ele mesmo). E, porque nenhuma parte menor do
mas, deixando à mostra aqueles conflitos e paradoxos que conteúdo da obra é a luta por meio da qual sua ordem evo-
a pintura, até então, sempre quis esconder, disfarçar – o luiu do caos, essa arte também está voltada para si mesma.
Depois de um período de adesão ao surrealismo, Giaco- qualidade plástica é somente uma manifestação da maior ou
metti põe-se a fazer algumas tentativas para representar a menor obsessão do artista com seu tema; a forma é sempre
realidade externa como ele a vê, ignorando a percepção de proporcional à obsessão. 4
que não pode esperar sair-se bem. Outros de sua geração
(Balthus, por exemplo) também tentaram lidar com a reali- Mas no caso de Giacometti a obsessão levanta uma ques-
dade de forma direta, mas parecem ter sentido a necessidade tão de natureza até certo ponto filosófica: o que realmente
de acreditar que o que estavam tentando era possível de ser queremos expressar quando pretendemos representar na
feito. A originalidade de Giacometti está em combinar em arte nossa percepção da realidade?
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sua arte objetivos bastante tradicionais com uma autocons- O elemento voltado para si mesmo na arte do século xx
ciência não tradicional das limitações inerentes a ela. Sua está igualmente presente em todos os outros aspectos da
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Um cego na escuridão
arte está voltada para si mesma, ela é uma crítica à arte, um cultura do período e é o que provavelmente faz com que
desnudamento de certos paradoxos, uma análise do proces- este seja radicalmente diferente de tudo que lhe antece-
so por meio do qual uma obra é realizada, uma interroga- deu. Exemplos óbvios, que têm como tema a natureza da
ção sobre a validade do tipo de arte que identificamos na criação e sua relação com a realidade, são – e é significante
iconografia de suas pinturas. Estas apresentam um mundo que não tenham quase nada mais em comum – Ariadne em
mais ou menos confinado nas quatro paredes de seu ateliê, e Naxos, Seis personagens em busca de um autor, Os moedeiros
os objetos nesse mundo – excetuando a mobília e os apetre- falsos, Lolita, Doutor Fausto, Sonetos para Orfeu, East Coker.*
chos de um ateliê – são dois ou três modelos que aparecem O tema é a arte em si, não a figura do artista, um dos grandes
muitas e muitas vezes, sempre nas poses convencionais das assuntos do século xix.
escolas de arte, ou seja, como modelos, não como persona- Nas artes populares, o cinema produziu nos últimos
lidades e muito menos como protagonistas de alguma ação anos uma boa safra de westerns em que as convenções e
dramática. De onde um presumível envolvimento total com valores do gênero estão até certo ponto explicitamente ex-
a arte (independente de qualquer dúvida sobre a possibilida- postos, e os atores cômicos modernos, por sua vez, estão
de efetiva de a arte justificar suas pretensões), com a condi- constantemente explorando a piada sobre a piada que aca-
ção de que o valor desse envolvimento dependa de ser a arte baram de contar e a maneira como a plateia reage a isso.
não uma presumível atividade artística, mas uma arte a ser- O tempo todo estão lembrando à plateia que a melhor piada
viço de uma visão da realidade. Como escreveu ele em 1945: é o absurdo de sua situação por tentarem ser absurdos.

* As obras citadas são: a ópera de Richard Strauss com libreto de Hugo von Hof-
[...] em qualquer obra de arte o tema é primordial, não impor- mannsthal, a peça de Luigi Pirandello, os romances de André Gide, Vladimir
ta se o artista tem ou não consciência dele. A maior ou menor Nabokov e Thomas Mann, e os poemas de Rainer Maria Rilke e T. S. Eliot. [n. e.]
A expressão mais evidente da tendência do “estar voltado Caso meu trabalho tenha valor, ele será duplo: [...] penso ter
para si” teria naturalmente de ocorrer na filosofia. A maior resolvido os problemas no que é essencial. Se não me engano,
revolução da filosofia moderna foi a rejeição da ideia se- o segundo valor desse trabalho é mostrar quão pouco se con-
gundo a qual competiria ao filósofo pronunciar-se sobre a segue quando se resolvem tais problemas. 5
natureza e estrutura do mundo em favor da ideia de que
ele direcionasse seus questionamentos para a discussão so- Giacometti assim se expressa a respeito de uma de suas
bre até onde o discurso filosófico pode chegar, sobre qual é primeiras obras: “Eu tinha a impressão de que ela era, de
precisamente seu escopo válido, e, portanto, para a análise certa maneira, parecida com as coisas e comigo mesmo”, 6
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da linguagem. E a maneira como Giacometti aborda sua no entanto, “era sempre decepcionante ver a forma que eu
obra me traz à lembrança o nome do maior desses filósofos, realmente tinha conseguido dominar acabar reduzida a
parte i

Um cego na escuridão
Wittgenstein. Os dois têm alguns traços em comum: a de- tão pouco”. 7 Após o longo silêncio que se seguiu, a obra que
dicação total a uma atividade e a recusa a levar a sério pres- emergiu tinha um acabamento bem mais provisório, tan-
supostos sobre o propósito e as possibilidades dessa ativi- to assim que, num prefácio escrito em 1945, para as ainda
dade; há um sentimento semelhante de que essa atividade incompletas Investigações filosóficas, Wittgenstein escreve:
não se destina a produzir obras de arte ou de filosofia, mas
trata-se de uma busca que jamais conduzirá a uma solu- É com sentimentos duvidosos que as entrego ao público. [...]
ção conclusiva; há uma paixão semelhante pela economia, Eu gostaria de ter produzido um bom livro. Não resultou as-
paixão que em Giacometti transparece na parcimônia de sim; mas já se foi o tempo em que eu poderia melhorá-lo. 8
seus temas e que também se exerce em seu instinto para
diminuir, para eliminar; há uma relutância semelhante Giacometti escreveu recentemente sobre as obras que está
em não querer mostrar sua obra ao público – Giacometti fazendo:
fez sua primeira exposição em 1932, a seguinte em 1934 e a
última em 1948. O primeiro livro de Wittgenstein saiu em Tudo o que eu conseguir fazer será nada mais que uma pá-
1921 e o segundo em 1953, dois anos depois de sua morte. lida imagem daquilo que vejo, e meu sucesso será sempre
Em termos gerais, as duas carreiras são de fato muito pa- menor que meu fracasso ou talvez sempre igual ao fracasso.
recidas. Ambos construíram rapidamente uma reputação Não sei se trabalho para fazer alguma coisa ou para saber
prestigiosa e influente com suas obras iniciais, um tanto por que não consigo fazer o que quero. 9
esquemáticas e formais, que eles consideravam conclu-
sivas apesar de limitadas. Como escreveu Wittgenstein A vida dos dois mostra que estavam sempre prontos a sa-
no prefácio de seu Tractatus Logico-Philosophicus: crificar qualquer coisa em nome de suas investigações:
viviam com extrema austeridade, recusavam qualquer
forma de compromisso e sentiam desprezo pela ideia de
usar a arte ou a filosofia para fazer carreira. Ligada a isso
está a determinação comum a ambos de atribuir mais va-
lor a lugares inesperados do que às invencionices de seus
camaradas de profissão: Wittgenstein afirmava que, se a
filosofia tivesse qualquer coisa a ver com o conhecimento,
a revista Mind teria menos páginas de assuntos relevantes 3
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do que as histórias de detetive; Giacometti diz que, para


ele, há menos realidade na obra dos escultores contempo-
parte i

Um disco tempo-espaço
râneos do que nos soldadinhos de estanho nas vitrinas
das lojas de brinquedos.
num texto escrito em 1946, “O sonho, o Sphinx e a mor- Pedro em Roma e sobre a diferença entre as dimensões
te de T.” (“Le Rêve, le Sphinx et la mort de T.”) , Giaco-
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aparentes e mensuráveis das duas construções. Isso, por
metti registrou diversas experiências, recentes e antigas, sua vez, o levou a falar de dimensões de cabeças e dimen-
ocorridas tanto enquanto dormia como quando estava sões de objetos e das diferenças e afinidades entre objetos
acordado, que lhe pareceram misteriosamente interco- e cabeças vivas, o que o trouxe de volta a sua principal
nectadas. O texto se inicia com a descrição minuciosa de preocupação na época.
um sonho e um sonho dentro do sonho que ele havia tido Sentado num café, pensando em todas essas coisas e
durante a noite após ter percebido que pegara qualquer tentando pôr tudo no papel, ele subitamente teve a sensa-
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coisa num bordel de Paris, chamado Le Sphinx. Prossegue ção de que todos esses acontecimentos existiam simulta-
com o relato de certos acontecimentos que vieram depois, neamente em torno dele e que o tempo estava se tornan-
parte i

Um disco tempo-espaço
seguidos de outros trazidos à lembrança pelo anterior ou do um espaço circular. Fez, então, um desenho em que os
pelo sonho – que haviam acontecido, com ele dormindo acontecimentos se dispunham sobre um disco horizontal,
ou desperto, muitos anos antes (alguns eram recorrentes com ele próprio, na época em que fez isso, no centro. Mas,
e outros já tinham sido esquecidos). Enquanto relembra andando pela rua, visualizou a ideia sob outros ângulos e
os acontecimentos, conta como e quando lhe ocorreu que acabou fazendo uma construção no espaço:
cada uma das conexões existia, e fala das dificuldades
de expressar todas as relações e juntar todas as diferentes Um disco com cerca de dois metros de raio, dividido em seções
experiências de modo a formar uma narrativa coerente por linhas. Em cada seção estavam escritos o nome, a data
e efetiva. Ele conta que tentou lidar com o problema fa- e o lugar do acontecimento que lhe correspondia e, na beira-
zendo um esquema que permitisse a todos os elementos da do círculo, em frente a cada seção, achava-se um painel.
ficarem visíveis simultaneamente numa página, mas isso Os painéis tinham diferentes larguras e eram separados por
de nada adiantou para escrever uma narrativa em que to- espaços vazios.
dos os fatos aparecessem como ele desejara fazer, numa A história correspondente a cada seção estava impressa
espécie de ordem cronológica. no painel. Eu sentia um raro prazer em me ver caminhando
Nesse ponto, ele introduz mais uma série de fatos. Ao nesse disco tempo-espaço e lendo a história escrita no painel
contar o sonho a um amigo no dia seguinte, o sonho foi à minha frente, com a liberdade de começar por onde quisesse
transformado em outro que envolvia um acontecimento [...]. Era para mim muito importante a orientação de cada
ocorrido durante sua infância e outros que tinham acon- fato no disco.
tecido quando estudante na Itália; esses últimos o leva- Mas os painéis ainda estão vazios. Não sei muito bem qual o
ram a falar sobre o templo em Pesto e a catedral de São valor das palavras ou de suas relações para poder preenchê-los.11
Entretanto, ele sabe muito bem qual o valor das formas troncos finos e nus, praticamente sem ramagens até seus to-
escultóricas e suas relações, e em suas esculturas já havia, pos (e enormes blocos de granito despontando por trás delas),
de certo modo, feito o que tencionava fazer com palavras. pareciam estar sempre olhando para mim como se houvessem
Com as palavras, pretendia usar um objeto no espaço que sido imobilizadas em seu caminho e conversassem entre si. 13
tivesse uma construção rígida para, em cima desta, regis-
trar experiências fugidias, uma estrutura formal em que Mas não foi a simples cristalização e transformação de
deixasse marcas provisórias; suas esculturas registram lembranças que levaram Giacometti a escrever “O sonho,
experiências fugidias dentro de configurações compactas, o Sphinx e a morte de T.”. Sua grande preocupação era
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frontais e eretas, com uma beleza ideal paralela àquela da achar uma forma de estabelecer uma relação inteligível
geometria dos painéis. E mais, elas em geral reúnem vá- entre essas lembranças. O objeto que imaginava se desti-
parte i

Um disco tempo-espaço
rias experiências, lembranças distantes ou recentes, bem nava tanto a descrever e reunir certas experiências como
como lembranças de certas coisas que constantemente também a mostrar, em sua estrutura, a maneira como tais
está vendo. Em 1933, escreveu a respeito de seus objetos experiências se relacionam no tempo, se encadeiam na
surrealistas: consciência. Da mesma forma, as esculturas de Giaco-
metti não são meramente objetos que cristalizam sen-
Uma vez construído o objeto, tenho tendência a redescobrir sações transitórias, mas mostram as condições em que
nele, transformados e deslocados, imagens, impressões, fatos essas sensações aparecem. Seu conteúdo não é somente
que me comoveram profundamente (quase sempre sem ter o “quê”, mas também o “como” da experiência visual: seu
consciência disso) [...]. 12
tema não está apenas no que foi visto, mas também no ato
de ver. Ao representar o que viu, Giacometti está objeti-
E imagens deslocadas e transformadas são também desco- vando as condições sob as quais viu aquilo – o fato de que
bertas em sua obra recente. Em 1950, ele se deparou com a coisa é vista no espaço, o fato de ser incerta a fronteira
dois conjuntos de estatuetas de diferentes tamanhos e um entre as formas sólidas e o espaço, o fato de rapidamente
busto no chão do ateliê, colocou-os em cima de tábuas e transformar-se em lembrança o que viu, e o fato de que
ali os deixou; tempos depois, percebeu que esses objetos o aquilo foi visto a uma certa distância.
faziam lembrar paisagens. Então, olhando a composição Giacometti, porém, não somente via a figura, ele pro-
formada por um busto e sete figuras, achou que aquilo curava recriar o ato de vê-la. Sua experiência do ver é inse-
parável de seu desejo de aprisionar essa experiência numa
me lembrava um recanto numa floresta que durante anos obra de arte, do mesmo modo que em “O sonho, o Sphinx e
eu tinha visto (em meus tempos de criança), onde árvores de a morte de T.” sua obsessão com os acontecimentos e a co-
nexão entre eles é inseparável de sua obsessão de expres- aura atmosférica, e tem-se a impressão de que elas se ex-
sar a relação deles numa forma inteligível. Desse modo, as pandem e se contraem nessa atmosfera como um pulmão.
condições do ver objetivadas em suas esculturas não são As esculturas de Matisse apresentam uma figura que se vê
meramente aquelas do ver, mas as do ver com intenção toda e inteira, agora, num dado instante, em qualquer ins-
de representar: as pessoas só se preocupam com a distân- tante que seja, elas estão fora do tempo; as de Giacometti
cia em relação ao que estão olhando e com a indefinição parecem apresentar figuras tais como elas vão sendo per-
de seus contornos se estiverem tentando representá-lo, cebidas no decorrer do tempo: possuem uma espécie de
ou se tiverem o hábito de tentar reproduzir coisas. magnetismo invertido que persuade nossos olhos a não
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As esculturas de Giacometti, portanto, não transmi- se fixarem nelas, mas a passearem por cima e ao redor das
tem meramente as condições de ver, mas também as peças, construindo-as em nossa consciência nesse percur-
parte i

Um disco tempo-espaço
condições de capturar o que ele vê. Elas tornam visível so. Acho que isso acontece quando olhamos as esculturas
o processo de traduzir a realidade em arte, e nós segui- porque nenhum detalhe da figura – pois todos eles são
mos esse processo em sentido inverso. Olhando a escul- ricos e harmoniosos – foi posto ali para funcionar como
tura, vivenciamos o problema da tentativa de definir o uma formulação que pretenda ser absolutamente verda-
contorno, de encontrar o que não pode ser definido, ou o deira. A deliciosa curva de um ombro não é uma coisa
que pode e até onde pode. Por exemplo, numa escultura que possamos ter absoluta certeza de conhecer, algo que
de 1953-54, mais precisamente num conjunto de figuras admita nosso dogmatismo, ela é um mistério que preci-
de pé – em que pelo menos uma foi feita ao vivo –, a es- sa sempre estar esquivando-se de nossa apreensão e que
perada esqualidez deu lugar a proporções mais normais. pode acabar esmigalhado se insistirmos em capturá-lo.
Essas figuras são, até certo ponto, uma reminiscência de O que está ali só pode ser afirmado tentativamente. A arte
algumas das primeiras esculturas de Matisse; isso se deve de Giacometti é tentativa mas não vaga, e é justamente
tanto a semelhanças superficiais como ao fato de combi- aí que reside sua grandeza. O que essa arte faz é transmi-
narem certa formalidade de postura com uma superfície tir com precisão por que nossa percepção da realidade
rústica sugestiva de espontaneidade, informalidade, e não pode ser transmitida com precisão. (Isso parecerá
também a uma espécie de sensualidade introvertida que uma admissão de fraqueza mas somente aos que, ainda
lhes é comum. Mas de forma alguma são semelhantes no hoje, acreditam que a representação da realidade na arte
intuito. As esculturas de Matisse são perfeitamente com- seja, apesar de difícil, um ofício objetivo e acessível a to-
pactas, totalmente autossuficientes, objetos num vazio, dos os artistas de boa vontade.)
objetos cujo mundo começa e termina onde está sua su- Mais uma vez, olhando a escultura, vivenciamos a ex-
perfície; as de Giacometti parecem circundadas por uma periência do artista de sua distância em relação ao tema
da obra. A questão real da expressão de distância na es- ela faz ao espectador. Muitos dos objetos surrealistas –
cultura não é exatamente especificá-la com a mesma alguns como construções com partes móveis, outros como
precisão que na pintura: pode-se apenas estabelecer que projetos para ambientes – visavam à participação ativa do
a figura esteja aqui e não lá. A questão real é dar visibi- espectador, por meio da imaginação ou na realidade. Suas
lidade ao fato de a efígie de uma figura humana em que únicas peças de tamanho natural, ou quase, que fazem ges-
o escultor está trabalhando ficar a seu alcance embora a tos dramáticos são as de uma figura masculina chamada
figura que ele está representando esteja fora do alcance. Homem apontando (L’homme qui pointe), de 1947, cuja mão es-
Nossa experiência da obra reconstitui a relação entre es- ticada só adquire o sentido de um gesto quando passamos a
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cultor, escultura e modelo. Como objeto, a escultura está vê-la como se apontasse em nossa direção ou para alguém
a nosso alcance tal como esteve ao alcance do escultor – ou alguma coisa em nosso mundo; e a de uma figura femi-
parte i

Um disco tempo-espaço
na verdade, ela é o lado inverso de seus gestos, os vestígios nina, O objeto invisível (L’objet invisible), de 1934, que parece
de seus gestos, e a rugosidade de sua superfície salienta estar oferecendo-nos o objeto invisível que tem entre as
isso – mas a escultura como figura humana é distinta mãos. E as esculturas de épocas posteriores, quando vistas
da escultura como objeto, a primeira está fora de alcan- à distância, implicam que o observador esteja posicionado
ce. Ela é destacável do objeto. Pode dar a impressão de se na outra extremidade dessa distância. Seja de uma ou de
afastar enquanto estamos nos aproximando do objeto até outra maneira, a obra envolve o espectador diretamente e
que por fim a figura se dissolve em bronze ou gesso e fi- esse envolvimento é ilustrativo da natureza dual de uma
camos somente com o objeto. Dessa forma, a obra mostra obra de arte como objeto e como imagem.
manifestamente a natureza dual de uma obra de arte, ou Aqui, a escultura é objeto; lá, a imagem de uma figura.
seja, como objeto e como imagem – um objeto que é duro A escultura é um objeto duradouro e suas formas simbo-
e firme, inexpressivo, frio, e uma imagem que é macia, lizam essa durabilidade, mas também contêm aquilo que
harmoniosa, calorosa. não dura, na verdade, aquilo que não tem extensão nenhu-
O mundo da arte é solipsístico num sentido especial: ma no tempo. O tempo entre o instante em que o artista
uma árvore funciona como árvore independentemente de olha para o modelo que está copiando e o instante seguin-
ser observada, mas uma obra de arte é um mero pedaço te, quando olha na direção da obra para adicionar o que
de pedra ou bronze ou um pedaço de lona coberto com acabou de ver, poderia equivaler a uma eternidade, pois
tinta até que ela é vista por um observador humano que ele não está copiando o que está vendo agora, e sim o que
a interprete como obra de arte. Esse fato sobre a natureza está lembrando de ter visto. E talvez uma das implicações
da obra de arte em geral torna-se explícito na escultura seja que, se nunca tentássemos copiar o que vemos, pode-
de Giacometti por meio de determinadas exigências que ríamos continuar vendo aquilo, poderíamos nos perder no
que vemos. Não obstante, a obra está lá, uma armadilha
para capturar o incapturável que possui uma forma du-
radoura. A arte, em geral, tende a disfarçar esse paradoxo.
A de Giacometti é uma meditação acerca disso.
Em 1935, Giacometti começou a usar modelos-vivos
com a intenção de trabalhar assim durante umas poucas
semanas antes de fazer algumas composições com figura.
Durante cinco anos continuou trabalhando dessa ma- 4
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neira. Desde que recomeçou a trabalhar de memória, sua


obra passou a ser uma reflexão sobre o que significa repre-
parte i

A pertinência dos opostos


sentar a realidade na arte. Sua obsessão é com o que acon-
tece quando um ser humano é visto por outro que está
obsedado em representar o que vê.
o mundo mostrado nas pinturas de Giacometti quase identificadas com ele. E as cabeças, de alguma maneira, se
nunca se estende para além das paredes de um aposento mostram tão ativas quanto as figuras caminhando. Pois
que, evidentemente, é um ateliê. As figuras nele jamais seu olhar não parece aquele – como no caso das mulheres –
estão conscientemente engajadas em atividades pessoais que reflete o olhar de alguém olhando para elas: é como
nas quais poderiam ter sido surpreendidas; elas estão se a iniciativa fosse dele. Essas cabeças parecem estar
posadas de frente para o espectador de maneira a serem vendo mais do que sendo vistas. Possuem uma vigilân-
vistas com clareza. As esculturas apresentam figuras em cia, uma atenção que tem algo do olhar estranhamente
cenários que nada têm a ver com o ateliê: uma rua com atento dos cegos, da impressão que eles dão, devido à in-
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quatro homens caminhando e uma moça de pé esperan- diferença dos seus olhos, de que eles conseguem nos ver
do, um comprido recinto onde as moças estão na extremi- enquanto somos nós que não conseguimos vê-los. Há um
parte i

A pertinência dos opostos


dade distante de um assoalho polido, um pequeno apo- poema de Giacometti em que imagens de cegueira e de
sento onde elas se comprimem de pé desconfortavelmen- movimento se fundem:
te, um quarto onde uma única moça nua é observada pela
cabeça de um homem – esta, aliás, uma versão tosca do Um cego tateia seu caminho na noite.
tema Vênus, Cupido e o organista, de Ticiano. E todas essas Os dias passam e me iludo em agarrar, reter o fugaz. 14
figuras femininas, que poderiam ser modelos num ate-
liê, poderiam igualmente ser mulheres esperando num O cego na escuridão, claramente uma imagem do próprio
bordel, numa rua ou num recinto qualquer. Estejam onde artista, é uma imagem do movimento vacilante, do alto
estiverem, o papel delas é ser vistas e devolver o olhar do grau de atenção, de uma tentativa de conectar.
espectador. Elas são mostradas de pé, imóveis, sempre Mas as mulheres nada fazem senão se postarem ali,
como se estivessem a ponto de se movimentar, mas nada oferecendo-se e continuando a se oferecer, lá, num espa-
mais fazem do que ver e se deixar ver. ço fora de nosso alcance. “Quanto mais nos aproximamos,
As figuras masculinas nunca são imóveis: uma está mais distantes elas ficam.” 15 Mantêm-se eretas, sozinhas
apontando, outra caindo, as outras caminhando. Pelo em seu próprio espaço e, qualquer que seja a conexão que
menos a uma ou duas delas Giacometti descreveu como o espectador venha a estabelecer com elas, esta só durará
sendo ele próprio; outras também poderiam ser. A cabe- enquanto ele guardar distância. “Quando caminho pela
ça colocada perto de uma mulher nua num aposento sem rua”, disse Giacometti, “e vejo ao longe uma puta vesti-
dúvida pode ser identificada com a dele, no entanto, ela da, só vejo uma puta. Quando ela está no quarto, nua, na
não parece muito diferente das muitas cabeças que fez de minha frente, vejo uma deusa.” 16 Essas figuras são intocá-
seu irmão: talvez todas elas possam, em certa medida, ser veis porque existem para ser adoradas. Elas põem as mãos
sobre os quadris num gesto que é sedutor, mas também
protetor, venerável. Quando as alcançamos, dissolvem-se
no jogo de luz por cima da superfície quebrada de uma
peça de bronze. Seus rostos, atrevidos e bonitos no outro
lado do aposento, parecem estar devastados pela sífilis
quando próximos. Elas trazem à lembrança as mulheres
nos poemas sobre sonhos do jovem Cézanne: a mulher
que se transforma num cadáver quando ele a abraça, as 5
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mulheres que lhe escapam quando ele se aproxima e que


se desvanecem quando tenta tocá-las.
parte i

O resíduo de uma visão


Não importa o que evoquem, elas fazem com que ime-
diatamente nos perguntemos se o seu oposto não seria
mais pertinente. Afinal, são insubstanciais, frágeis, e sua
superfície parece ter sido corroída pela mera exposição
à luz. Postam-se como árvores petrificadas ou como as
delgadas colunas de Persépolis. Erguem-se do chão como
se enraizadas. E equilibram-se em seus voos como san-
tos medievais zumbindo com complacência na dire-
ção do céu. São deusas remotas, imperiosas, intocáveis.
E são vulneráveis mulheres nuas que tentam atrair clien-
tes num cabaré. São como bailarinas quando se mantêm
imóveis e parecem conduzir seu corpo e o ar ambiente
para dentro de um centro estático. E são iguais aos mor-
tos, com suas cabeças inexpressivas e ressequidas como
caveiras, e os membros atados como se enfaixados para
descerem à sepultura.
houve um período, cerca de cinco anos, em que todas as Nas pinturas, o espaço é como um líquido pesado e ne-
figuras feitas por Giacometti (com exceção de uma) aca- buloso que é visto tanto quanto a massa em seu interior, e
bavam tendo uma altura aproximada de 2,5 centímetros. dificilmente é menos tangível. A massa possui uma ener-
A escala o deixava “revoltado”, por mais que quisesse
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gia dirigida para dentro, comprimida violentamente em
fazer esculturas maiores invariavelmente acabava redu- torno de seu núcleo central, fazendo com que ela pareça
zindo-as: “somente quando minúsculas é que pareciam ter uma densidade altamente concentrada; o espaço tem
um pouco verdadeiras”. No momento em que por fim
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uma energia dirigida para fora, às vezes como se explodis-
produziu algumas esculturas maiores, descobriu, para sua se para além do quadro e, ao mesmo tempo, dando quase
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“surpresa”, que “elas só guardariam semelhança se fossem sempre a impressão de estar sendo impelido, arrastado
compridas e finas”. Semelhança é a medida de Giacomet-
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pela massa ao seu centro, como se ali fosse o centro de um
parte i

O resíduo de uma visão


ti, e a tal ponto que o dogma mais caro da estética do sécu- remoinho. Onde espaço e massa se encontram há uma in-
lo xx passa a ser desprezado: “Se um quadro for verdadeiro, terpenetração. A fronteira entre os dois não é fixa.
ele será bom como quadro, e até sua pintura será neces-
sariamente bonita”. 20 O que lhe parece “semelhante” ou É a mesma sensação que muitas vezes experimentei diante dos
“verdadeiro” é algo que não pode ser previsto: pode chegar seres vivos, principalmente diante das cabeças humanas, a
de surpresa, pode dar à obra uma forma que ele teria prefe- percepção de um espaço-atmosfera que imediatamente envolve
rido que ela não tivesse. Certa vez, me disse que, de todos esses seres, penetra-os, já é o próprio ser; os limites exatos, as di-
os quadros que havia visto, aqueles que lhe pareciam mais mensões desse ser tornam-se indefiníveis. Um braço é tão imen-
verdadeiros, segundo sua maneira de perceber a realidade, so quanto a Via Láctea, e esta frase não tem nada de místico. 21
eram certas pinturas egípcias de árvores, e que ele tam-
bém havia achado – como, aliás, qualquer pessoa – que Não há contorno nem multiplicidade de contornos nas
elas eram estilizadas demais para que essa hipótese fosse pinturas para marcar a transição da massa para o espaço.
viável, até o dia em que se pôs a copiá-las. Já nos desenhos, além do mesmo recurso aos contornos
Mas quais precisamente seriam os elementos que, se- múltiplos, uma borracha é frequentemente usada de um
gundo a percepção de Giacometti, poderiam determinar lado a outro da forma quase como se suas marcas fossem
sua noção de semelhança? Talvez possam ser achados pinceladas feitas por cima dela: as marcas fazem com que
com mais facilidade se formos atrás de algumas de suas a massa pareça ter sido borrada pelo espaço. Quando elas
obsessões que transparecem nos desenhos, esculturas e cruzam a beirada da forma, a indefinição do delineamen-
pinturas e que, portanto, não podem ser explicadas como to se torna ainda mais acentuada do que se fosse causada
decorrência dos meios de cada categoria. por uma lacuna deixada no contorno, pois aqui fica evi-
dente que o artista se comprometeu com um contorno so- para parecer flexível, uma vez que as formas, em sua aura
mente para se assegurar de que este não deveria ser fixado. atmosférica, dão a impressão de se contrair e expandir à
As esculturas – com exceção de boa parte daquelas fei- maneira de um pulmão. Em algumas outras cabeças, cer-
tas antes de 1935 – têm uma superfície tosca e fluida que tas características estão lá em sua inteireza, o resto foi
parece bastante com a superfície típica de uma obra ina- simplesmente deixado de lado, como aquelas naturezas-
cabada de gesso ou argila. É como se os limites existentes -mortas “inacabadas” de Cézanne em que a parte deixada
da forma fossem provisórios. Ao mesmo tempo, as pro- de fora significa a descoberta de que alguns dos contornos
porções reduzidas fazem supor que esses limites provisó- são indefiníveis. A cabeça, em Estela ii (Stèle ii) e Estela iii
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rios não são uma medida aproximada do contorno, mas (Stèle iii ou Buste de Diego), de 1958, isola o nariz, os olhos,
simplesmente que eles não têm pretensões de fixar o con- a boca, o queixo e o plano frontal das faces e sobrance-
parte i

O resíduo de uma visão


torno. A coluna central é definida com a mais exata preci- lhas; os lados e o domo da cabeça estão ausentes. O nariz
são; o volume permanece uma quantidade desconhecida. aponta para a frente agressivamente; tudo o mais que se
É como se a recomendação de Delacroix de não se apossar acha ali parece retrair-se. Eu me dou conta de seu aspecto
do contorno, mas sim do centro, tivesse sido levada ao pé evasivo quando procuro olhar o personagem nos olhos.
da letra. Tudo que se encontra lá é um cerne duro reves- Mudo de posição tentando, por assim dizer, “capturar”
tido de uma sugestão de massa que se dissolve no espaço. seu olho, mas, para qualquer lado que eu me mova, a ca-
O espaço corroeu a massa, ou a comprimiu. Há somente beça sempre parece estar se desviando de mim, olhando
uma quantidade suficiente de massa para mostrar que o para o outro lado. Então, reparo que até a substância da
espaço só pode avançar até certo ponto, apenas um míni- face parece esquivar-se de mim. É como se o escultor ti-
mo para mostrar o quanto é preciso de massa para que o vesse tentado segurar o volume da cabeça com as mãos
espaço seja dominado. Se, por um lado, o espaço reduziu a e como se, tendo conseguido fazê-lo, achasse que a forma
massa, por outro a massa está sempre invadindo o espaço, houvesse, de alguma maneira, encolhido, se contraído, fi-
no sentido em que ela transmite a sensação de estar ocu- cando com um contorno côncavo onde era convexo, para
pando mais espaço do que se pensaria. não se deixar pegar, tal como um gato que se faz côncavo
Nada que tenha a ver com a relação entre a massa e o quando alguém o cerca e tenta apanhá-lo.
espaço pode parecer fixo. Mesmo naquelas cabeças e fi- Na peça do mesmo grupo Estela (Stèle), a face está reduzi-
guras, algumas feitas com modelo-vivo, a partir de 1954, da a um único plano frontal curvo, com o nariz projetan-
em que há relativamente pouco adelgaçamento e a cur- do-se ligeiramente. Aqui, mais uma vez, é como se o es-
va de um peito ou um ombro é encantadora e delicada- cultor tivesse tentado segurar a forma. Quando olho para
mente representada em sua plenitude, o contorno é feito esse plano frontal instável e sem feições, posso perceber
as mãos do artista modelando a figura na argila e tenho a tada é concebida – as esculturas com molduras espaciais
sensação de que, enquanto a modelava, os nervos em seus são bem o exemplo disso – não como uma entidade volta-
dedos estavam ecoando o que teriam sentido ao apalpar da para si, mas como inseparável de um contexto espacial.
o próprio rosto para descobrir exclusivamente pelo tato a O espaço em suas pinturas possui não só uma presen-
forma de um rosto. Aqui, a forma é esquiva, uma vez que ça visível e até tangível como também dimensões muito
emerge apenas parcialmente de uma massa deixada por definidas. O intervalo entre duas formas ou dois pontos
acabar. Em Estela ii e Estela iii, parte da forma emergiu de numa forma, ou entre os olhos do observador e a forma
maneira resoluta e clara, e a parte da massa que não foi é quase sempre atravessado por uma linha que indica a
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definida é simplesmente removida. No entanto, ela não distância no espaço percorrida pela visão para colocar
parece estar faltando, a impressão que dá é que ela teria alguma coisa em foco. A distância entre o observador e
parte i

O resíduo de uma visão


sido absorvida pelo núcleo central. É como se esse núcleo aquilo que é observado está algumas vezes indicada mui-
tivesse atraído de volta para si todo o volume, que parece to enfaticamente pelo uso de uma perspectiva ótica que
mais denso do que a substância existente. A matéria não aumenta as extremidades próximas do tema como acon-
necessita ocupar o lugar que ocupa na natureza porque, tece nos instantâneos. Muitas vezes todo o espaço tem
aqui, ela se encontra mais concentrada do que na natureza. uma perspectiva abrupta, estreita e alucinante, caracte-
Isso parece ser aplicável não somente a toda a obra es- rística de Tintoretto, Beccafumi e outros maneiristas e
cultórica de Giacometti como também a suas pinturas. igualmente encontrada em certos interiores de Vuillard
Frequentemente, ele fala de sua compulsão por desbastar da primeira década do século xx. É uma perspectiva que
coisas – “quanto mais retiro, maior fica”, costuma ele
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alonga o espaço quase como se ele fosse visto pelo lado
dizer, muito espantado, como se houvesse percebido isso errado de um telescópio e, nele, as distâncias estão de tal
pela primeira vez. Mas o que deve estar querendo falar é maneira aumentadas que uma figura sentada no lado
que, ao reduzir a matéria, ele trabalha de maneira que a oposto de uma sala está separada do observador por um
leva a parecer comprimida para que, em correspondên- abismo, e uma figura no primeiro plano estará quase em
cia, a escultura adquira maior presença, domine mais o cima dele. O efeito dessa perspectiva abrupta é intensifi-
espaço e, assim, dê a impressão de preencher uma quan- cado pela borda pintada, à maneira de uma moldura, que
tidade maior de espaço. Proporções mensuráveis não in- ocorre na maioria das pinturas de Giacometti e define os
fluem para encontrar as proporções corretas. O que conta limites da imagem em algum lugar dentro dos limites
é a maneira como uma escultura parece atuar no espaço. da tela (é interessante que Giacometti seja um desses ar-
Para Giacometti, a escultura é uma arte tão ilusória quan- tistas que se veem subtraindo a imagem das dimensões
to a pintura. Uma escultura tanto quanto uma figura pin- de suas telas). Essa borda plana, em primeiro lugar, aju-
da a afirmar a realidade da superfície do quadro, e isso é arraigada em mim que a visão que tenho quando trabalho é
necessário porque a própria imagem tende a dissolver o a mesma de quando não estou trabalhando. Não consigo mais
plano do quadro. Mas a borda serve, acima de tudo, para reproduzir uma figura em tamanho natural. Às vezes, num
intensificar a percepção das distâncias dentro da imagem. café, observando as pessoas que passam na calçada oposta,
Novamente, os desenhos são quase sempre formulações vejo-as muito pequenas, como minúsculas estatuetas, o que
pictóricas coerentes de formas no espaço, não estudos de acho maravilhoso. Mas para mim é impossível imaginá-las
corpos ou objetos flutuando num vazio, e há muitas vezes em tamanho natural, pois àquela distância elas simplesmen-
um retângulo desenhado dentro do retângulo da folha te se tornam aparências. Se chegarem mais perto, tornam-se
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de papel, tal como a borda nas pinturas. Isso ocorre em uma pessoa diferente. E se chegarem muito perto, a uns dois
desenhos de uma figura ou cabeça única, definindo um metros de distância, simplesmente não consigo mais vê-las. Já
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O resíduo de uma visão


ambiente dentro do qual a escala e a locação do motivo não guardam mais o tamanho o natural, invadiram todo o
podem situá-lo a determinada distância do olho. meu campo visual e vejo-as como um borrão. E se chegam
mais perto ainda, não se consegue enxergar mais nada. Você
Certa vez, quando eu tinha dezoito ou dezenove anos, eu me passou de um domínio para outro. Se eu olho uma mulher
achava em seu ateliê desenhando algumas peras que esta- na calçada oposta e a vejo muito pequena, fico maravilhado
vam em cima de uma mesa, à distância normal para uma com a figurinha que caminha no espaço, e, depois, vendo-a
natureza-morta. E as peras iam ficando cada vez menores. ainda menor, meu campo visual torna-se muito mais vasto.
Eu recomeçava e elas sempre ficavam exatamente do mesmo Vejo, então, um espaço enorme em cima e ao redor da figu-
tamanho. Meu pai, irritado, disse: “Mas faça como elas são, ra, quase ilimitado. Se entro num café, o meu campo visual
como você as vê!”. E as corrigiu. Tentei fazê-las como ele que- abrange quase o café inteiro; ele se torna imenso. Fico maravi-
ria, mas o tempo todo usando a borracha para apagar. Sem lhado todas as vezes que vejo esse espaço porque já não posso
parar de apagar, meia hora depois, as peras estavam exata- mais acreditar na realidade... – como poderia pôr isso em pa-
mente do mesmo tamanho milimétrico que as primeiras. lavras? – material, absoluta. Afinal, tudo é só aparência, não
Até a guerra, quando eu desenhava, sempre fazia as coisas é? E se a pessoa chegar mais perto, eu deixo de olhá-la, mas,
menores do que acreditava estar vendo: em outras palavras, por outro lado, ela também deixa quase de existir. Ou então
quando desenhava, eu ficava espantado por tudo tornar-se torna-se um envolvimento emocional: será que eu não estaria
tão pequeno. Mas quando não estava desenhando eu sentia querendo tocá-la? A visão perdeu todo interesse. 23
que via as cabeças em suas dimensões reais. Em seguida, pou-
co a pouco, sobretudo depois da guerra, essa tendência passou Experiências com a percepção mostram que na visão nor-
a fazer de tal maneira parte de minha natureza e estava tão mal a mente corrige a imagem retiniana para que coisas dis-
tantes não sejam percebidas pequenas, e sim em seu tama- todo e o olho do espectador. Ele observa que, entre as es-
nho natural e distantes. A tendência peculiar de Giacometti culturas produzidas pelas primeiras civilizações e pelo
é ver de uma maneira que independe de ajustamentos con- homem pré-histórico, há uma dimensão usual para uma
ceituais normais e reage àquilo que é estritamente visível. figura e para uma cabeça e que esta é relativamente pe-
Entretanto, essa não é uma maneira imparcial e não quena: “Acho”, diz ele,
seletiva de ver. Ao contrário, ela permite destacar coisas
com grande ênfase; além do mais, essa maneira de ver, que esse foi realmente o tamanho que instintivamente pare-
que nos torna plenamente conscientes da presença do ceu correto, o tamanho em que as coisas são realmente vistas.
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espaço que circunda qualquer corpo sólido, não reduz a E no decorrer da história a percepção foi mentalmente trans-
intensidade de nosso foco no corpo em torno do qual o es- formada em conceito. Posso fazer uma cabeça em tamanho
parte i

O resíduo de uma visão


paço circula. Esse foco estreitado sobre uma forma com- natural porque sei que ela é em tamanho natural. 24
pacta no espaço e essa atenção voltada para o tamanho
aparente das coisas a um determinado ponto no espaço Supondo que ele esteja certo acerca da razão para a di-
produzem a percepção alucinatória de proximidade e dis- mensão das primeiras esculturas egípcias ou sumérias e
tância que, possivelmente, é o traço mais característico outras congêneres, nós ainda não as interpretamos cons-
da obra de Giacometti. cientemente como retratos de cabeças ou figuras vistas
Trazer essa percepção de distância para uma pintura é a distância, mas dizemos que se trata simplesmente de
uma questão de controlar o espaço nocional que a pintura esculturas em tamanho abaixo do natural.
cria automaticamente; já trazê-la para a escultura é outra As minúsculas esculturas de Giacometti (feitas aproxi-
questão. O escultor tem de conquistar um espaço nocio- madamente na época em que ele parou de pensar que via
nal dentro e ao redor de suas formas, tem de conquistá- as coisas maiores do que as desenhava) não são apenas
-lo levando em conta o fato de que elas habitam o mesmo excepcionalmente pequenas como também estão mon-
espaço real que ele. E um dos critérios da escultura é, ob- tadas sobre bases que, em relação às cabeças e figuras e
viamente, que distâncias aparentes dentro de uma obra às proporções convencionais de uma base para escultura,
não deveriam ser idênticas às distâncias mensuráveis – são muito grandes – até três ou quatro vezes a altura das
por exemplo, o côncavo num dorso deveria parecer mais figuras. Consequentemente, a cabeça ou figura parece es-
profundo do que na realidade é. Mas Giacometti pretende tar muito distante, como uma pequena forma no meio de
ir mais além – ele não se contenta meramente em criar uma grande tela. É o equivalente escultórico do princípio
distâncias nocionais dentro da escultura, visa também a pictórico, segundo o qual a ilusão de distância depende
criar uma distância nocional entre a escultura como um do tamanho da figura ou do objeto em relação ao tama-
nho do retângulo. Um efeito ótico como esse certamente no primeiro caso, todas as figuras estão em primeiro
poderia ser obtido por um palito de fósforo fincado a pru- plano; no outro, estão no fundo de uma vertiginosa pers-
mo num enorme pedaço de queijo. Mas essas minúsculas pectiva. Mas, aqui, a proximidade e a distância estão tam-
figuras e cabeças são muito ricas e cheias de vida, riqueza bém transmitidas pelas proporções da massa em relação
e vida que somente surgem quando se tem a mente con- ao espaço nas filas das estatuetas: os intervalos são muito
centrada na realidade e não num artifício formal. grandes em relação aos volumes no grupo das figuras dis-
Em 1950, Giacometti fez duas composições complemen- tantes: aqui, cada uma parece perdida no espaço; as outras
tares que mostram grupos de mulheres num bordel. Cada mulheres parecem uma multidão, com uma presença físi-
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uma delas está formalizada por quatro nus de pé enfileira- ca que se eleva à altura de nosso rosto.
dos lado a lado. Numa, as figurinhas estão colocadas sobre A moldura espacial é mais um equivalente escultórico
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O resíduo de uma visão


uma base cuja altura tem aproximadamente a metade da para um atributo da pintura: a definição de um espaço
altura delas. Giacometti escreveu sobre esse grupo: “Eu à parte do espaço infinito da realidade. Uma das razões
as via quase sempre, principalmente certa noite numa de Giacometti usar molduras espaciais provavelmente é
pequena sala na rua L’Echaudé, muito perto e ameaçado- a de que, se ele desse a uma imagem escultórica seu pró-
ras”. Na outra composição, as figuras estão sobre uma
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prio ambiente, este suporia que o espaço ao redor de um
base pouco mais alta do que elas e esta, por sua vez, está objeto fosse tão visto quanto o objeto. Mas Giacometti
em cima de um estrado alto em forma de tamborete com conseguiu transmitir a mesma coisa sem ajuda desse ar-
cerca de 1,20 metro de altura, de modo que as figurinhas tifício quase pictórico. Prova disso é que ele não precisou
estão no topo de uma construção oito ou nove vezes mais depender da proporção entre uma figura e um retângulo
alta do que elas. A respeito desse grupo há uma nota expli- para dar a suas esculturas uma distância nocional. Tudo
cativa do próprio Giacometti: que fez foi lançar mão das proporções internas de uma
figura ou cabeça.
São várias mulheres nuas que vi no Sphinx quando estava As figuras individualizadas da mulher de pé, quase in-
sentado no fundo da sala. A distância que nos separava (o variavelmente, parecem se manter fora de alcance, qual-
chão era encerado), e que parecia intransponível a despeito de quer que seja a distância física do observador. Quando, do
meu desejo de atravessá-la, impressionava-me tanto quanto fundo de uma sala, vejo uma delas e começo a caminhar
as mulheres. 26
em sua direção, durante meus primeiros passos, ela pa-
rece estar mais próxima; depois, começa a se afastar de
Cada fila de estatuetas combina com sua base para se tor- mim à medida que me aproximo. Ela guarda distância, ou
nar o equivalente de um quadro de figuras num cenário – assim me parece. É como se tivesse se destacado do espaço
físico da sala e existisse dentro de um espaço separado. servado a determinada distância. A figura em geral tem
Quando chego perto, não vejo, como seria o normal, so- os pés muito aumentados e quase sempre uma base cujo
mente a parte da figura em torno do ponto que estou foca- plano do topo é inclinado, elevando-se da frente para trás.
lizando; ainda posso ver a figura inteira. E se chego muito E, quando uma pessoa põe os olhos sobre os pés e a base a
mais perto, a uma distância em que esperava ver alguns partir da posição em que o artista os teria visto enquanto
detalhes em close-up, achando que poderia apreciar certa trabalhava, eles reproduzem a aparência dos pés de um
curvatura na face, no seio, dificilmente consigo enxergar modelo ali postado e do chão que ele pisa, o dorso dos pés
qualquer coisa que lembre uma figura. Nada vejo senão aparentemente alongados e o chão que parece um plano
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uma peça de bronze e a luz trêmula por cima das impres- inclinado subindo ao se distanciar. As proporções, agora,
sões dos dedos ou da espátula do artista – um objeto duro são de certo modo anamórficas, pois há um ponto de vista
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O resíduo de uma visão


e palpável que substituiu um corpo que se fez intangível em que elas são percebidas num escorço tal que lhes dá
no momento em que estava suficientemente perto para proporções semelhantes às de uma coisa vista na reali-
ser tocado. Uma vez que a figura deixa de ser vista como dade. Com a diferença de que essas esculturas não fazem
se estivesse longe o bastante para ser vista por inteiro, ela sentido apenas no ponto onde a distorção foi retificada;
dissolve-se. existe um complexo de distorções nelas – obtidas empi-
A aspereza da superfície da escultura contribui para ricamente, não por meio do exercício consciente de arti-
isso, produzindo um efeito semelhante a pinceladas li- fícios óticos – que modifica o funcionamento normal da
vres e soltas que, a uns poucos centímetros de distância, disparidade e convergência oculares. Os efeitos ilusórios
são percebidas apenas como marcas na tela. A espessura não ocorrem quando as esculturas são observadas com
reduzida contribui para que a escultura como objeto não um dos olhos fechado. A linguagem escultural de Giaco-
atrapalhe, para que ela seja suficientemente insubstan- metti leva em conta o fato de a visão ser estereoscópica.
cial a ponto de não preencher o campo de visão quando As figuras de pé que não atuam desse modo são as quatro
se chega perto e, assim, continue a ter espaço ao redor. que têm quase três metros de altura, frutos de uma “nos-
E as proporções das partes ao longo de sua altura também talgia da grande escultura ao ar livre” 27 – uma nostalgia a
contribuem. O alongamento não é coerente, mas aumen- que Giacometti sabiamente submeteu a expressão de sua
ta gradualmente da cabeça aos pés. Por isso, quando uma maneira de ver. Se elas implicam uma distância nocional,
pessoa se põe à mesma distância e na mesma altura em esta seria uma proximidade não diferente, embora não
que o artista estava enquanto fazia a escultura, esta é tão extremada, daquela da Mulher-colher (Femme-cuillère),
reduzida num escorço tal que as proporções realmente de 1926, cujas proporções – uma imensa forma de colher fora
vistas estão muito próximas daquelas de um modelo ob- de escala em relação ao resto – sugerem uma mulher vista
por alguém agachado diante dela, com o campo de visão numa daquelas cabeças que de tão estreitas parecem cor-
quase todo preenchido pela barriga e pelas coxas de modo tar o ar. Vista de lado, ela é simplesmente um perfil em
que a cabeça e o tórax, em cima, e as canelas, na parte silhueta. Olhada frontalmente, é uma cunha impulsiona-
inferior, estejam em escorço. Esse tipo de proximidade da na minha direção. Mas ela só permanece assim num
extrema está também implícito em algumas das placas determinado ângulo muito estreito de visão. Se me movo
que se seguiram – e que, como a colher, apresentam uma uns poucos centímetros à direita ou à esquerda da rota
forma lisa e larga, sutilmente curva com um perfil fino –, de colisão, a cunha se torna um perfil – não há transição.
especialmente a Cabeça que olha (Tête qui regarde), de 1928. Quando me movimento em torno da escultura tenho a
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Quando perguntei a Giacometti se a intenção dessa cabeça impressão de ver o mesmo perfil. Embora sua forma, evi-
era dar a impressão de um rosto visto muito de perto, ele dentemente, mude um pouco, o contorno não muda como
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O resíduo de uma visão


respondeu que era exatamente o que pretendera. Essa sen- o faria uma forma em redondo e, se eu me mover enquan-
sação de proximidade irá ocorrer em algumas das obras to a observo, de modo a formar um ângulo, digamos, de
posteriores da série dos bustos de Annette, com sua forma 120 graus, tenho a ilusão de ela estar andando emparelha-
de certo modo esparramada, modelados na década de 1960, da comigo e se distanciando.
época em que Giacometti fazia questão de pintar posicio- A posição aparente da imagem, portanto, está disso-
nando-se inusitadamente perto do modelo. ciada, liberta, de sua posição física. Ao mesmo tempo,
A maioria dos bustos, entretanto, é como se vista à dis- a posição aparente não se limita a uma única posição.
tância em que estaríamos de alguém sentado à mesma Quando fico olhando para uma das mulheres de pé, ela
mesa. A essa distância, as formas arredondadas que uma poderá estar tão distante quanto uma pessoa do outro
cabeça humana apresenta quando vista do outro lado de lado da rua; então, de repente, ela surge imensa por cima
uma sala são deturpadas. Vemos a cabeça perto de nós qua- de mim: num momento, é como uma estatueta, um pe-
se como uma estrutura de planos: a cabeça e os ombros, quenino objeto que eu poderia segurar em minha mão,
numa visão de três quartos, tornam-se dois planos for- caso pudesse alcançá-la; em outro, ela é gigantesca. Às ve-
mando um ângulo reto. E essa é a forma de muitos dos bus- zes, essas mudanças são inteiramente subjetivas; em ou-
tos de Diego feitos de memória. Giacometti está constan- tras, podem ser determinadas pela mudança da luz. Essas
temente se referindo à total discrepância entre a impres- esculturas são extremamente sensíveis à iluminação e à
são que temos de uma cabeça humana que olhamos de localização (vistas sob uma luz errada ou a uma altura
frente e outra vista de lado – não seria possível inferir errada, seu impacto não diminui, ele é anulado). Encarar
uma a partir da outra. “Se olho você de frente, esqueço uma dessas estatuetas colocada a prumo sobre uma mesa,
o perfil. Se olho o perfil, esqueço a face.” 28 Isso é palpável os pés posicionados em ângulo reto com a parede, é uma
sensação muito diferente daquela que temos quando a do pé parecendo saltar para a frente – como quando um
giramos num ângulo, digamos, de trinta graus, e nos co- arco esticado é solto –, tem-se a impressão de que a figura
locamos diante dela como antes. Nesse ângulo, a figura está dando um passo à frente. Vista frontalmente, uma
parece ficar mais para trás: é como se o corpo humano figura, num dado momento, aparecerá destituída de peso,
tivesse encolhido e ficado do tamanho dela. Posicionada parecendo ser apenas energia lançando-se para o alto; em
em ângulo reto, a figura parece mais esticada e imponen- outro, é como se a energia se voltasse para dentro, pro-
te: eu me torno plenamente consciente de sua presença, duzindo uma massa empacotada e adensada por ela. No-
ao passo que quando ela está num ângulo mais fechado vamente, uma figura às vezes deixará de parecer afinada
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em relação à parede, parece mais independente. para se mostrar à vontade e relaxada, um corpo genero-
Até agora, tudo que se disse sobre o que poderia a “se- samente curvado; logo em seguida, já parecerá espichada
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O resíduo de uma visão


melhança” significar para Giacometti refere-se ao con- como um pedaço de elástico esticado ao máximo.
texto em que a figura ou a cabeça é vista. E quanto aos Há uma constante. Figuras e bustos olham direto para
atributos da figura ou da cabeça que mais lhe interessam? a frente deles, direto de volta para o observador. E não
A projeção de uma forma no espaço, a posição da figura, com um olhar que não vê. Quando se posa para Giacomet-
o conjunto da cabeça sobre os ombros, a articulação dos ti, tem-se a impressão de que ele quer que a pessoa fique
membros, o retesamento de uma figura de pé posiciona- olhando firme para ele, tanto quanto ele a olha: “Ele exi-
da firmemente sobre o chão e se alongando para o alto ge uma presença atenta”, 29 disse-me Annette com ironia.
através do espaço, o movimento de alguém que caminha Para Giacometti, segundo parece, o olhar é a quintessên-
hesitante, flutuante ou cauteloso: vale dizer, a maneira cia do ato humano.
como o homem age – isso parece ser aquilo que é capta- Ele estava falando sobre o contraste entre desenhar
do sobretudo nas pinturas, desenhos e esculturas, mas uma cabeça viva e desenhar um crânio. Descrevia como,
de forma mais evidente nas esculturas feitas de memória, durante um inverno no princípio dos anos 1920, deixara
que são as obras que devem mostrar aquilo que mais o de frequentar a escola de arte para passar o tempo num
impressionou. O ato retratado é, em geral, muito simples – quarto de hotel pintando e desenhando um crânio. “Um
não as posturas complicadas de um Rodin, mas aquelas dia”, prosseguiu dizendo,
naturais da arte arcaica e primitiva. No entanto, a repre-
sentação é complicada por ambiguidades. Por exemplo, às querendo desenhar uma moça, alguma coisa me surpreen-
vezes, pode acontecer que, ao se olhar para uma figura de deu, subitamente vi que a única coisa que continuava viva
pé num ângulo de três quartos, ela dê a ilusão de estar nela era o olhar. Todo o resto – a cabeça transformando-se
começando a andar, com o côncavo das canelas e o dorso em crânio – tornava-se mais ou menos o equivalente de uma
caveira. O que fazia a diferença entre um morto e a pessoa o observador, espelhando o seu próprio olhar. E sua preo-
era seu olhar. [...] A escultura de Novas Hébridas é verdadei- cupação com a distância pode ter sido inspirada pela
ra, e mais do que verdadeira, porque ela tem um olhar. Não importância que dava à ideia do posicionamento frontal.
se trata da imitação de um olho, mas simplesmente de um Quando dois seres humanos estão cara a cara, cada um se
olhar. Todo o resto é suporte para o olhar. 30 acha consciente do significado da distância exata que os
separa. A distância entre os dois mostra qual é a relação
Observando-o trabalhar uma figura de memória, tive a deles naquele momento.
impressão de que tudo que ele estava tentando criar era De frente para uma imagem de Giacometti, o especta-
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um olhar e um “suporte para o olhar”. Estou pensando dor se vê como se envolvido numa relação de reciprocida-
especialmente em certa ocasião em 1962. Praticamente de. Giacometti fez a escultura de uma moça em tamanho
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O resíduo de uma visão


todo o trabalho se concentrava na cabeça e nos pés. Suas natural com as mãos estendidas como se oferecesse um
mãos não cessavam de se mover com velocidade entre objeto invisível ao observador. Também fez a escultura de
ambos, e tudo o que ficava no meio era quase que deixa- um homem em tamanho natural com o braço estendido
do de lado, com exceção dos gestos que pareciam estar e apontando – e esse gesto só adquire sentido quando nos
constantemente medindo a distância entre a cabeça e os colocamos de frente para a figura e a vemos como se ela
pés. Era quase como se a extensão do corpo e das pernas apontasse para nós ou para qualquer coisa em nosso mun-
fosse necessária só para unir a cabeça aos pés, como se do. Nessas duas obras, um gesto dramático é usado para
estivesse lá apenas para transpor a distância entre essas estabelecer uma relação entre a figura e o espectador. Nas
duas partes: acertar essa distância com exatidão parecia esculturas de mulheres de pé nenhum gesto é usado nem
importar muito mais do que a forma que o corpo e as per- é necessário. Eu sinto em meus músculos a postura da fi-
nas iriam ter. Volta e meia, ele virava a figura num ângu- gura, sinto que estou adotando a mesma postura, sinto-o
lo de noventa graus e depois voltava à posição anterior, tão fortemente que às vezes me surpreendo imitando essa
trabalhando nela concentrado apenas em dois pontos de postura na vida real – pondo-me mais esticado e ereto,
vista: o frontal e o de perfil. A maneira de trabalhar pa- corrigindo meus ombros, colocando minhas mãos para
recia implicar que, na feitura de uma figura de pé, havia baixo ao longo do corpo. No entanto, apesar de incorporar
duas coisas que contavam: o fato de ser uma figura de pé fortemente a ação da figura, nunca – como normalmente
e o fato de ela olhar direto para a frente. acontece com uma pessoa que se sente assim – me iden-
Em toda a obra de Giacometti fica bem claro que, quan- tifico com ela, nunca tenho a sensação de me perder nela,
do ele fala do olhar como o próprio sinal da vida, está se lá onde ela está. Não sinto nem mesmo uma vibração nos
referindo a um olhar dirigido diretamente de volta para músculos de minhas mãos como se eu a estivesse segu-
rando; ou, melhor, chego a sentir isso quando me aproxi- que se firma de pé numa perna segurando o outro pé. Foi
mo da escultura, ao ponto em que ela deixa de ser uma fi- Cézanne (de acordo com Gasquet) quem disse:
gura para mim e passa a ser somente bronze; aí, então, te-
nho uma sensação em meus dedos que é como se eles esti- Tudo que vemos se dispersa e desaparece, não é? A natureza
vessem pegando no metal – no metal e não numa figura –, é sempre a mesma, mas nada daquilo que vemos permanece.
mas uma vez que o bronze volta a ser uma figura para Nossa arte tem de inspirar um sentimento de sua permanên-
mim não tenho mais a sensação de o estar tocando. Nem cia mostrando ao mesmo tempo os elementos de todas as suas
de tocá-lo, nem de me transformar nele. Tudo o que sinto mudanças. Ela tem de nos fazer percebê-la como eterna. 33
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é a posição da figura aqui, onde estou, não lá. E quanto
mais me sinto com ela, mais sinto confirmada minha se- Uma coisa que é olhada durante certo tempo é tão efême-
parte i

O resíduo de uma visão


paração em relação a ela e mais reconheço sua alteridade. ra quanto se fosse vista por um instante.
Sou o que a figura é, lá onde ela se acha, e, sendo como ela,
estou separado dela. Pode-se imaginar que o realismo consiste em copiar... um
O posicionamento cara a cara parece dizer que a rea- copo tal como está sobre a mesa. Na verdade, a única coisa
lidade de uma pessoa só é estabelecida pela relação dela que se copia é a visão que resta dele a cada instante, a ima-
com outra, mas que essa relação revela a solidão de cada gem que se torna consciente... Você não copia nunca o copo
uma, a distância intransponível entre ambas, e reconhece sobre a mesa, você copia o resíduo de uma visão. [...] cada vez
que essa outra pessoa não é projeção ou extensão dela ou que olho o copo, ele parece se refazer, isto é, sua realidade se
criatura sujeita a ela, mas um ser separado dela. Ao afir- torna duvidosa, porque sua projeção em minha mente é duvi-
mar esse estado de coisas, a arte de Giacometti define uma dosa, ou parcial. A gente o vê como se ele desaparecesse... res-
situação intolerável para o artista, pois qualquer um de- surgisse... desaparecesse... ressurgisse... isto é, ele se encontra
les quer ter a posse e o controle de tudo quanto vê. Como realmente entre o ser e o não ser. E é isso que se quer copiar. 34
Cézanne (que, segundo Merleau-Ponty, “acreditou-se im-
potente porque não era onipotente”), 31 Giacometti coloca Trabalhar de observação é trabalhar de memória: o artis-
em sua obra o sofrimento advindo da intangibilidade da ta só pode expressar aquilo que permanece em sua cabeça
realidade e a afirmação de sua inevitabilidade. “Os dias após ter olhado. E o tempo entre o instante em que ele
passam e me iludo em agarrar, reter o fugaz.” Essa não
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olha para o modelo e o instante depois, quando olha para
é necessariamente a linguagem de um artista obcecado o papel, ou a tela, ou o gesso, a fim de copiar o que aca-
pelo desejo de aprisionar os efêmeros efeitos atmosféri- ba de ver vale por uma eternidade. O modelo pode ficar
cos ou os movimentos dos corpos ou a pose de uma moça imóvel o tempo que quiser, mas a obra continuará sempre
sendo o produto do acúmulo de lembranças, e nenhuma
exatamente igual à outra, pois cada uma é afetada por
aquilo que veio antes, pela relação em contínua mudança
entre tudo que já foi executado e o novo olhar na direção
do modelo. E não é meramente por causa da necessidade

parte ii
de afastar a vista do modelo para olhar o papel, a tela ou
a argila que, tão logo tentamos copiar o que vemos, já foi
visto. É também por causa de nossa mente, que tem de tra-
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zer de fora a sensação, antes de podermos copiá-la; nossa


própria consciência da sensação impele-a para o passado,
parte i

pois não podemos pensar no nosso pensamento presen-


te; ele nos escapa quando tentamos apreendê-lo, pelo fato
mesmo de tentarmos apreendê-lo. O artista nunca conse-
gue chegar lá, tanto faz se trabalha a partir da natureza e
acumula uma série de lembranças que modificam e con-
tradizem uma à outra, ou se trabalha de memória e cons-
trói uma síntese daquilo que se lembra de ter visto. A obra
de Giacometti põe a nu o desespero conhecido por todos
os artistas que tentaram copiar o que veem. Ao mesmo
tempo, é uma afirmação de que, de tudo o que foi visto,
há uma essência que permanece, e isso pode ser estabili-
zado, pode ser salvo, pode ser representado como se fosse
indestrutível.
Armadilhas
6
as esculturas influenciadas pelo cubismo e pela arte Harmonia dos corpos, ou do corpo, entre si e harmonia dos
tribal materializaram-se quando Giacometti, depois de corpos, ou do corpo, na atmosfera. Objeto independente das
passar três anos no ateliê de Bourdelle, ansioso para tra- formas que existem na natureza, como os seres orgânicos.
balhar com modelo-vivo, saiu de lá em 1925 para ter seu Busca do conjunto de sensações, exclusivamente plástico,
próprio espaço onde pudesse fazer o que bem lhe aprou- para a coordenação – harmonia ou contrastes –, contrapeso,
vesse. A primeira obra significativa foi um Torso (Torse), equilíbrio. Modelar um objeto novo, vivo, existente, real em
visivelmente influenciado por Laurens. As formas são sua própria matéria... 35
um tronco sem braços e um par de coxas que formam
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um só bloco de modo a fazer da escultura uma massa A peça que é provavelmente a primeira baseada nessas
compacta. É uma obra que já anuncia a habilidade do ar- ideias, Composição cubista (Composition cubiste), empilha
parte ii

Armadilhas
tista para dar eloquência às inflexões sutis da superfície, blocos, como o Torso, mas aqui são tantos os blocos que, a
ao passo que na escultura de 1926, O casal (Le Couple) – despeito de não haver espaço entre um e outro, eles trans-
duas figuras frontais, um homem e uma mulher, lado a mitem uma esmagadora sensação de reunião de partes
lado –, as superfícies apresentam traços estilizados em e também de luta entre as partes agrupadas. Três outras
baixo-relevo. obras são construções feitas de componentes separados e
A figura feminina, aqui, é baseada numa estatueta fu- de forma bastante variada. Não são meros ensaios à ma-
nerária bacota, de propriedade do próprio Giacometti, e neira cubista: possuem um forte sentido de referência à
a colher Dan do Musée de l’Homme foi provavelmente o vida, especialmente Composição (Composition), também co-
que serviu de inspiração para a Mulher-colher, datada do nhecida como Homem e mulher (Homme et femme). Nessas
mesmo ano. Essa figura frontal, a primeira mulher de pé formas abstratas e metafóricas há sugestões de proximi-
feita por Giacometti, é construída por partes. Uma forma dade em relação aos corpos e proximidade entre os corpos.
cubista unindo a cabeça e o tórax está em cima da enor- Elas parecem transmitir um sentimento de descoberta e
me concha de uma colher que une os quadris e as coxas gratificação de alguém que, depois de ter vivido numa at-
e é convexa na parte correspondente à barriga. Tudo isso mosfera extremamente rarefeita, pisa na Terra. Mas junto
está sobre um pedestal afunilado que também faz o papel com isso há uma impressão de tensão igual à de corpos
das canelas e dos pés. em oposição. Há muito da sensação de ambivalência que
Seguiu-se uma série de obras em 1926-27 que parecem pode advir do entrelaçamento de um corpo com outro.
ter sido influenciadas pelo cubismo de Lipchitz. Também Essas obras iniciais mostram sinais claros de uma dua-
parecem ter algo a ver com algumas notas que Giacometti lidade que será um traço importante na obra produzida
deixou num caderno de notas por volta de 1925: nos anos subsequentes – dualidade entre a linguagem de
formas compactas, como se esculpidas de um bloco, e a Em casa, eu trabalhava forçando-me a reconstituir só de me-
linguagem que implica construção, real ou nocional, e mória aquilo que, no ateliê de Bourdelle, já havia percebido
resulta em formas transparentes ou agrupadas. Além do na presença do modelo, e a coisa se reduzia a muito pouco.
uso que Giacometti fazia das duas linguagens havia uma O que eu realmente sentia se reduzia a uma placa na qual,
tendência constante em suas esculturas circulares de que colocada de certa maneira no espaço, havia somente duas
fossem virtualmente relevos de dois lados. cavidades, que eram o que podia ser tido como os aspectos ho-
A Mulher-colher foi um exemplo clássico dessa tendên- rizontal e vertical que estão em qualquer figura. Para chegar
cia e também exemplo de inúmeras características que à placa, comecei tentando realizar de memória o máximo
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aparecerão nas figuras femininas eretas e frontais das do que tinha visto. Desse modo, simplesmente começava fa-
décadas de 1940 e 1950, a despeito de toda a sua finura e zendo uma figura analisada, com pernas, cabeça e braços, e
parte ii

Armadilhas
compactação. Ela possui sua insistente simetria, seus om- tudo me parecia falso, não acreditava no que estava fazendo...
bros peculiarmente curvos e o adelgaçamento no perfil. Para me aproximar daquilo que pretendia fui obrigado pou-
Mais do que isso, ela também compartilha sua criação de co a pouco a sacrificar, reduzir... extirpar a cabeça, os braços,
uma distância nocional em relação ao espectador: como tudo! Da figura, acabava restando só uma placa, o que nunca
já mencionei em alguma outra parte, as proporções dessa era nem intencional, nem satisfatório – muito pelo contrário.
Mulher-colher dão a impressão da presença de uma figura Era sempre decepcionante ver que tudo o que eu dominava
que está muito próxima. E há razão para supor que Giaco- como forma se reduzisse a tão pouco! 36
metti tenha pretendido obter esse efeito ou que, pelo me-
nos, estivesse consciente dele. A peça foi inspirada pela No entanto, ele estava convencido de que as placas “de
escultura africana, e Giacometti muitas vezes me disse certo modo, se assemelhavam a coisas e a mim mesmo”. 37
que as proporções das figuras africanas, com suas cabeças De fato, essas obras, apesar de suas características totê-
grandes e pernas curtas, eram em geral mal-compreen- micas, são, em essência, marcas de impressões. Mais ou
didas ao serem consideradas conceituais, quando, na ver- menos na época em que começou a realizá-las, também
dade, eram perceptuais, representando o que realmente fez diversas cabeças, retratos que tinham muito a ver com
vemos quando conversamos de frente a uma pessoa cuja elas – cabeças em que os traços extremamente particula-
cabeça nos parece aumentada e as pernas diminuídas rizados são incisões ou inflexões numa superfície achata-
pelo escorço. da. A peça principal é um retrato da mãe do artista num
A Mulher-colher representou também um passo adiante baixo-relevo autoportante que traz um lado do rosto para
no desenvolvimento de uma linha de pesquisa que Giaco- a frente de modo a alargar o plano frontal. Isso resulta
metti perseguirá firmemente a partir de 1927. numa forma não muito diferente daquela das placas que
representam cabeças, uma forma que lembra os torsos Como estudo para ela, Giacometti fez vários modelos em
das figuras cicladenses, e não por acaso, pois o achata- gesso nos primeiros meses de 1930, mas o definitivo só
mento sutilmente infletido dessas esculturas tem tudo a foi concluído em dezembro. A escultura ficou pronta no
ver com o amor de Giacometti pela arte das Cíclades. verão de 1932. É uma figura de pé talhada de forma sólida
As placas transmitem uma sensação de estarmos olhan- e tosca, uma masssa compacta, embora com uma postura
do para seres humanos, bem como para a misteriosa beleza disposta em ângulo e uma cabeça horizontalmente retan-
do jogo de luz que incide sobre as inflexões de suas super- gular. Do ponto de vista físico, é uma obra maciça e muito
fícies. A peça mais notável é a Cabeça que olha, de 1928, em mais arredondada do que as placas, a despeito de parecer
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que os traços estão reduzidos a duas depressões ovais, uma bastante com elas no esmero e no mistério de seu efeito.
vertical, outra horizontal, mas que parecem possuir um Pois, ao mesmo tempo que se agiganta por cima de nós
parte ii

Armadilhas
olhar irresistível. Anos depois, Giacometti costumava di- como uma rocha sólida, parece também etérea, espectral,
zer que ao representar uma cabeça o que importava não era desencarnada. O lugar que ela ocupa na obra de Giaco-
imitar os olhos, e sim reproduzir a sensação de seu olhar, metti não é nem um pouco marginal.
e é essa peça quase abstrata – não o baixo-relevo um tanto As placas eram formas vigorosamente compactas, mas,
naturalista da cabeça de sua mãe, em que os olhos estão em 1928, a tendência para uma construção transparente
representados – que gera um olhar. Este aqui é um olhar começou outra vez a se impor. Algumas produções, como
bastante particular, o olhar de alguém que está muito per- Apolo (Apollon) e Três personagens ao ar livre (Trois person-
to, a uma distância em que se é olhado apenas por um apai- nages dehors), são, por assim dizer, baixos-relevos com o
xonado ou durante a infância pela mãe, quando só uma fundo removido para deixar o ar passar. Outras – Mulher
parte do rosto da pessoa – um olho, uma face e um pedaço deitada sonhando (Femme couchée qui rêve), Mulher deitada,
do nariz – enche o campo de visão. O mistério da peça é homem que olha (Femme couchée, homme qui regarde) e Ho-
que essa vertiginosa sensação de parte de uma forma cujas mem e mulher (Homme et femme) – são como agrupamentos
bordas são invisíveis é recriada numa escultura que é uma de unidades independentes, à maneira das peças cubistas,
entidade livre no espaço, muito precisa e formal. mas com as unidades, agora, mais claramente definidas e
A série de pequenas placas – que, em minha opinião, mais separadas por espaços.
está entre as melhores coisas que Gicometti fez – teve A Mulher deitada sonhando talvez seja a primeira das
uma sequência admirável numa escultura de cerca de obras de Giacometti que tenha algo de uma atmosfera
2,40 metros de altura executada entre 1930 e 1932. A peça surrealista. O sonhar, aqui, está sugerido por um movi-
foi encomendada por Charles e Marie-Laure de Noailles mento que lembra o mar, e é notável a maneira como três
para ser instalada nos jardins de seu castelo em Hyères. ondulações bastam para dar a ideia de um movimento
que se faz ininterrupto. Homem e mulher é talvez a primei- se tratava mais de mostrar uma figura externamente se-
ra de suas esculturas que transmite uma ação e a única melhante, mas de viver minha vida e só fazer o que tinha
que mostra uma pessoa interagindo com outra (como me emocionado ou o que desejava”. 38 E o impacto dessas
se estivessem de frente, olhando uma para a outra). Ao construções nocionais de Picasso foi relevante especial-
mesmo tempo, o que ocorre, à parte a certeza de estar ha- mente para a primeira obra que ultrapassou esse limiar,
vendo uma espécie de investida, é curiosamente obscuro. uma peça algumas vezes conhecida como A hora dos traços
O fato de o espigão que mira a vulva poder ser tanto uma (L’Heure des traces) e por fim chamada Bola suspensa (Boule
adaga como um falo cria uma séria ambiguidade, pois suspendue). O que Giacometti, agora, estava acrescentando
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um falo, em última instância, deveria estar estimulando. à sua linguagem era uma maneira de posicionar a cons-
A postura da mulher é igualmente ambígua: não fica mui- trução dentro de uma moldura espacial feita de hastes de
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to claro se ela está recuando ou se é recatadamente recep- ferro e encorajar o espectador a mover um dos componen-
tiva. Também não está claro se a penetração está a ponto tes. No centro do espaço há uma bola suspensa por um fio
de acontecer, ou se a ação se acha momentaneamente sus- e repousando sobre uma meia-lua equilibrada, em posição
pensa, ou se a cena descreve uma ameaça que não será inclinada, sobre uma plataforma fixada dentro da mol-
cumprida. Outra ambiguidade relacionada com a natu- dura a dois terços do chão. No ponto em que toca a meia-
reza da ação – cumprida ou ameaçada – é criada pelo fato -lua, a bola tem uma fenda parecida com a abertura feita
de a vulva parecer mais uma boca (como a caricatura da numa fruta de que se retirou uma fatia; a meia-lua, esféri-
boca de Josephine Baker), e uma boca a meio caminho de ca em sua parte inferior e em forma de cunha na parte de
receber o espigão. Se, então, a ação está de fato em suspen- cima, poderia, por sua vez, ser o pedaço de uma enorme
são, seria devido menos ao medo que o homem tem de sua fruta. A possibilidade de que haverá um ponto em que a
própria agressão do que ao medo da castração. cunha se encaixará firmemente na fenda fornece um estí-
Embora essas peças apresentem traços fundamentais mulo para deslizar a bola para cima da meia-lua em busca
que Giacometti já havia incorporado à sua obra (a forma da dessa meta. Mas tal ponto não existe.
colher, o perfil esguio), elas dão impressão de terem sido al- A obra foi feita em 1930 em gesso com hastes de metal e,
tamente influenciadas – sobretudo Mulher deitada, homem depois, por um artesão, em madeira e metal, com a meia-
que olha – pelas pinturas e desenhos contemporâneos de -lua inclinando-se um pouco mais na vertical. A réplica
Picasso feitos como projetos para esculturas em que peda- foi mostrada ainda naquele mesmo ano na vitrine da Ga-
ços de corpos, ossos e pedras são combinados de variadas lerie Pierre, quando Giacometti ali expôs ao lado de Miró
maneiras, até mesmo equilibrando uns nos outros. Giaco- e Arp. Ela foi comprada por Breton, e Giacometti foi convi-
metti estava no limiar de uma nova fase em que “já não dado a se juntar aos surrealistas.
Uniu-se a eles num momento tardio e numa época de ção de objetos vistos somente em sonhos; depois, “ainda
crise para o surrealismo. No ano anterior, muitos dos ta- mais decisivas”, as contribuições de Giacometti, como um
lentosos adeptos de Breton tinham se voltado contra ele, e todo e, em particular, a Bola suspensa; por fim, o conceito
Giacometti tornara-se intimamente ligado a vários desses de Dalí de “objetos de funcionamento simbólico”.
dissidentes, entre os quais Masson, Leiris, Queneau e Des- A Bola suspensa, portanto, introduziu uma forma de
nos, e o novo mentor deles, Georges Bataille, eterno rival arte cinética dotada de alta carga de significação afeti-
de Breton. Portanto, a aceitação do convite de Breton foi va, pois seu funcionamento se tornou uma lei simbólica
até certo ponto surpreendente. Sem dúvida, um motivo das desconcertantes experiências e ansiedades sexuais:
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de orgulho para os surrealistas. Ele já tinha sido distin- ela era, de fato, um objeto de funcionamento simbólico,
guido por críticos do calibre de Zervos, Tériade, Cocteau e com um simbolismo manifestamente “freudiano”. Não
parte ii

Armadilhas
Carl Einstein, bem como Leiris; Einstein, figura máxima obstante, como não deixou de assinalar o artigo de Dalí,
entre os intérpretes do cubismo, o tinha posto em pé de esse objeto tinha, de seu ponto de vista – praticamente
igualdade com Laurens, Lipchitz e Brancusi. Sua entrada a diretriz partidária –, uma aparência retrógrada em seu
nas desgastadas fileiras dos surrealistas fiéis representou idioma formal e, a despeito de seu salto para o futuro, es-
um ganho para eles; iriam ter alguém para somar esfor- tava repleto de um redundante esteticismo.
ços com Dalí, a nova estrela do ano anterior.
Em dezembro de 1931, Dalí publicou o artigo pioneiro Os objetos de funcionamento simbólico eram aqueles visuali-
“Objetos surrealistas”, encabeçado por uma lista de seis
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zados na esteira do objeto silencioso e móvel, a Bola suspen-
tipos desses objetos e, em seguida, devotado especialmen- sa de Giacometti, que, embora já propusesse e unisse todos os
te a um deles, os “objetos de funcionamento simbólico”. princípios essenciais de nossa definição, ainda estava preso
Ali, ele descrevia e ilustrava cinco exemplos de diferen- aos meios próprios à escultura. Os objetos de funcionamen-
tes autorias: coube à Bola suspensa o lugar de honra e o to simbólico não deixam espaço para preocupações formais.
crédito de ter aberto o mundo para a criação de objetos Dependem unicamente da imaginação amorosa de cada um
dessa espécie. Georges Sadoul diria retrospectivamente e são extraestéticos. 42
que Giacometti “iniciou a moda dos objetos surrealistas
com tintura simbólica ou erótica, e passou a ser dever de O raciocínio de Dalí está reiterado e, por implicação, am-
todos os surrealistas que se dão ao respeito produzi-los”. 40
pliado na diagramação das ilustrações. Como sempre em
E Breton diria que os fatores que os engendraram foram,
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Le Surréalisme au Service de la Révolution, todas as imagens,
em primeiro lugar, o Por que não espirrar? de Duchamp; associadas ou não aos artigos em questão, encontram-se no
em seguida, sua proposta para manufatura e dissemina- fim do livro. Entre as que ilustram os “objetos de funciona-
mento simbólico”, a Bola suspensa vem em primeiro lugar, “Objeto móvel e silencioso.” Essa expressão usada por
reproduzida em página inteira, à direita; a página direita Dalí para se referir a Bola suspensa reaparece no plural,
seguinte reproduz os objetos de Gala Éluard e Breton, e a escrita de fora a fora no alto de uma página dupla que
página esquerda a seguir, os objetos de Valentine Hugo e se estende ao verso da folha. Ela é o título (“Objets mo-
do próprio Dalí. Voltando atrás, a página oposta à Bola sus- biles et muets”) da contribuição inicial de Giacometti
pensa mostra uma grande construção recente de Miró em para um periódico surrealista. Consiste numa série de
que se veem um guarda-chuva aberto e um pequeno ramo desenhos reproduzidos em sequência, acompanhados de
de folhas atados a um inegável personagem masculino um texto que foi o primeiro de seus escritos publicado.
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talhado em madeira e extremamente estilizado: como se Os sete desenhos, emoldurados e diagramados como
para deixar inequívoco que essa imagem está relacionada uma tira de história em quadrinhos, reproduzem obje-
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ao artigo de Dalí, nela, à diferença de todas as outras que tos escultóricos; o texto não tem relação direta com os
estão lengendadas somente com o nome dos artistas, lê-se desenhos, nem com sua iconografia nem com o espírito
“Joan Miró – escultura”. A página esquerda, entre o Giaco- das peças. Os desenhos estão repletos de ironia e o texto
metti e os outros objetos, está cedida a Dalí, na qual ele é um poema em prosa elegíaco que evoca uma sequên-
apresenta a fotografia de uma aldeia africana interpretada cia de vistas fugidias e sons que estão constantemente se
como um “rosto paranoico”. Tudo isso contribui para dia- perdendo. Seu começo e fim parecem sob controle, mas
gramações visualmente válidas, mas sua própria validade pouco depois da parte central ele assume a aparência de
deixa claro que a Bola suspensa está mais à vontade na com- uma escrita automática (o mesmo efeito produzido pelo
panhia da escultura do que na dos objetos de funciona- poema que começa com a imagem do cego, a despeito de
mento simbólico genuínos, como deixa claro também que ter sido composto muito depois da ruptura de Giacometti
Miró e Giacometti são precursores importantes (merece- com os surrealistas).
dores de páginas inteiras), embora a influência que, agora,
se impõe diretamente na criação dos objetos surrealistas Todas as coisas... perto, longe, todas as que passaram e as ou-
seja o método crítico-paranoico de Dalí. Até mesmo Miró, tras que ainda estão por vir, estão todas se movendo e minhas
de certo modo, cederia à pressão em suas obras posteriores. amantes – estão sempre mudando (se passamos perto, ficam
Os objetos de Giacometti, entretanto – talvez com exceção mais distantes), outras aproximam-se, erguem-se, caem, pa-
da Mão cativa (Main prise) –, persistiram no emprego dos tos na água, lá e lá, no espaço, erguem-se, caem – durmo
“meios peculiares à escultura”. Dalí estava, sem dúvida, cer- aqui, as flores do papel de parede, a água na torneira mal
to em relação a Giacometti. Nessas obras, são as caracterís- fechada, o estampado da cortina, minhas calças sobre uma
ticas formais e não as surrealistas as que mais importam. cadeira, há vozes no outro cômodo; duas ou três pessoas, de
que estação? As locomotivas apitando, não há estação por ve, a usar gesso para o sistema de roldanas na Mão cativa.
aqui, alguém atirava casca de laranja do alto da sacada, lá A maioria das esculturas foi posteriormente transferida
embaixo na rua estreita e profunda – de noite, as mulas zur- para materiais mais duráveis por artesãos. Diego fez o
ravam em desespero, perto do amanhecer eram abatidas – entalhe em pedra, coisa que já fizera anteriormente; ele
vou sair amanhã – ela aproxima sua cabeça da minha ore- me contou que havia um marceneiro que, pelo nome,
lha – sua perna, a grande – eles conversam, lá e lá, mas é Ipousteguy, devia ser basco e um metalúrgico italiano
tudo no passado. 43
chamado Bastianelli.
Na carta autobiográfica de Giacometti para Pierre Ma-
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Cinco dos desenhos dos “objetos móveis e silenciosos” tisse,44 ele conta retrospectivamente que havia feito ob-
mostram peças existentes – Bola suspensa, Gaiola (La jetos móveis naquela época porque o movimento era um
parte ii

Armadilhas
Cage), Projeto para uma praça (Projet pour une place), Objeto dos aspectos da realidade que ele queria inserir em sua
sem base (Objet sans base), Objeto desagradável (Objet désa- obra, mas que se achava incapaz de produzir esculturas
gréable). Os outros dois, informou-me Diego, são objetos que dessem essa ilusão, uma perna avançando, um braço
que nunca foram feitos e, na verdade, parecem nunca erguido, uma cabeça olhando para o lado. Essa dificulda-
ter tido a chance de ser executados, não tanto por serem de levou-o a introduzir o movimento realizando objetos
de estilo radicalmente diferente de qualquer escultura cuja capacidade de movimento real poderia ser obtida
que se conhece de Giacometti, mas porque têm um ar pelos deslocamentos do espectador em quem, por sua
de fantasia concebida sem nenhum propósito de rea- vez, ele também procurava provocar movimentos por
lização. Estão visivelmente ali com seus relevos pouco meio da criação de ambientes ou de modelos para peças
pronunciados e poderiam até ser paródias de objetos de ambientais com objetos sobre os quais se pudesse andar,
funcionamento simbólico feitos por outros autores. Os sentar, apoiar.
que foram executados estavam entre os primeiros exem- Em 1933, foi publicado um depoimento seu sobre os
plos de uma série produzida entre os anos de 1930 e 1933, objetos que vinha fazendo na época. 45 Ele dizia que já há
e eram pequenas esculturas que tanto poderiam ser ob- alguns anos só realizava esculturas que tinham surgi-
jetos de brincar, ou parecendo ser para brincar, quanto do em sua mente de maneira já acabada, que nada fizera
modelos para esculturas ambientais como aparatos de senão reproduzir aquelas imagens exatamente como as
parque de diversões ou de feiras ao ar livre. Giacometti tinha visualizado. Essa seria talvez uma frase de efeito
trabalhou-os em gesso, usando outros materiais somente que falseava os fatos e dava a entender que as imagens
quando eram necessários para as molduras espaciais, as lhe chegavam espontaneamente como se fossem visões,
armações e outros elementos de suporte; chegou, inclusi- quando, na realidade, essa “maneira já acabada” quase
sempre requeria muito tempo para evoluir em sua mente. fenda estava destinada a ser o que tão manifestamente é:
Aliás, a esse respeito, ele me contou que executar essas oral e ao mesmo tempo genital.
imagens visualizadas sem passar por qualquer modifica- Os objetos se dividem em três grupos. Primeiro, cons-
ção era para ele um desafio, pois, numa discussão com ou- truções que têm – ou que parecem ter – partes móveis e
tro escultor sobre essa possibilidade, disse que estava no aqui há dois subgrupos: aquelas em molduras espaciais
firme propósito de provar que sim. 46 (Como de costume, e aquelas na forma de tabuleiro de jogo. Segundo, obje-
trabalhava para se testar.) tos inteiramente móveis, ou seja, objetos portáteis que
Ele prosseguia o depoimento de 1933 contando que vi- podem ser dispostos de uma ou outra maneira. Terceiro,
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nha realizando esculturas “sem me perguntar o que elas modelos para peças ambientais no meio das quais os es-
poderiam significar”, mas que, pectadores pudessem circular. Esses objetos serão exa-
parte ii

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minados em ordem inversa. Os títulos, aqui, se limitarão
uma vez construído o objeto, tenho tendência a redescobrir àqueles em uso nos anos 1930.
nele, transformados e deslocados, imagens, impressões, fatos Entre os modelos para esculturas ambientais, o Projeto
que me comoveram profundamente (quase sempre sem ter para uma praça veio com certeza em primeiro lugar. É pro-
consciência disso), formas que me são muito próximas, ape- vável que tanto o gesso original como sua réplica em ma-
sar de, normalmente, não poder identificá-las, e isso as torna deira tenham sido feitos em 1931. As formas sobre a base
ainda mais perturbadoras. são uma espécie de menir, um cone enviesado, uma cobra
estilizada, uma espécie de bojo inclinado e um elemento
Entre outras coisas que essa declaração não nos revela é baixo horizontal; uma depressão rasa e circular está ca-
até que ponto – tendo reconhecido determinado elemento, vada na base perto de um de seus ângulos. Se a escultura
numa peça acabada, como um símbolo inconsciente que para jardim que Giacometti tinha em mente tivesse sido
sentia poder interpretar – ele tinha essa interpretação feita, ela seria de pedra. Ele chegou mesmo a esculpir as
em mente quando um elemento similar reaparecia numa formas em gesso na escala pretendida em 1932; elas per-
peça posterior. Mas, nesse caso, o simbolismo incons- maneceram em seu ateliê durante alguns anos até serem
ciente não reside todo num só estrato, e significados des- destruídas para abrir espaço.
cobertos possuem ainda outros significados ocultos: não O Projeto para um corredor (Projet pour un couloir) foi
fosse assim, o surrealismo teria sido um fiasco. Porém, executado somente como modelo de gesso, em 1931 ou
seria interessante saber se a Bola suspensa era uma das es- 1932, mais provavelmente nesse último ano. Ele pode ser
culturas que Giacometti realizara sem se indagar o que melhor descrito como se estivesse em escala ambiental.
queria dizer. Caso contrário, poderíamos perguntar se a Entra-se nele por uma longa e estreita passagem com
paredes altas e sem teto. Esta subitamente se abre numa também são possivelmente complementares, pois talvez
concha oval e alongada, ao longo de cujo eixo flutua um sejam lembranças, conscientes ou inconscientes, de duas
pilar alto: na extremidade mais próxima possui uma pro- visões complementares que Giacometti guardava de sua
tuberância, na outra, forma uma ponta; equilibrado so- infância e descreveu numa série de reminiscências da-
bre uma mola, é possível pressionar o pilar ou sentar-se queles anos, publicada em 1933 47 – um imenso monólito
nele para empurrá-lo para baixo. Prossegue-se por uma negro cuja lembrança pode ter inspirado a forma de me-
passagem que é muito estreita e coberta, com exceção nir e uma caverna com compartimentos de diferentes ta-
da abertura mais apertada ao longo de sua extensão. Ela manhos em diferentes níveis.
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conduz a uma cavidade circular que tem, em seu ponto Há outro objeto de 1932, executado em gesso, que parece
mais afastado, uma rampa em que se sobe para em segui- ter sido concebido também como modelo para uma escul-
parte ii

Armadilhas
da rastejar por um pequeno túnel. Emerge-se, então, num tura ambiental. Suas origens parecem não deixar margem
espaço ovoide em cujo centro se encontra uma árvore ar- para dúvidas e são primorosamente mescladas: por um
tificial. Na outra extremidade, sobe-se um lance de escada lado, o Projeto para uma praça e o Objeto sem base; por outro,
e ao olhar para baixo se vê um compartimento retangular o Rosto paranoico de Dalí, a fotografia de uma aldeia africa-
parcialmente cheio de água com o chão coberto de for- na interpretada como uma cabeça deitada. A base é oval
mas de concha. Nesse ponto, vira-se para deslizar dentro numa extremidade e quadrada na outra. Na extremidade
de um tubo estreito e sair. ovalada, acha-se uma grande projeção, como um nariz,
Esse túnel do amor, ou, antes, essa metáfora para o que desce gradualmente em três de seus lados, sendo o
aparelho reprodutor feminino, é em todos os sentidos a outro exageradamente anguloso e escalonado; imediata-
antítese do Projeto para uma praça – é mais como uma cor- mente em frente, quase atravessando a base de lado a lado,
rida de resistência do que um lugar para relaxar; contém há um profundo buraco retangular, como uma sepultura
um elemento que responde à pressão do visitante (assim, aberta. Os elementos na outra extremidade da base são
coincide, em seu tipo, com os objetos que possuem par- uma cavidade circular rasa e dois cones. O objeto traz a
tes móveis); é uma sequência de espaços confinados, por inscrição “a vida continua”, que também era seu título,
conseguinte, tem um começo e um fim, e entre eles um mas quando foi reproduzido em 1932 o nome mudou para
percurso no qual os visitantes têm poucas opções; ao pas- Queda de um corpo sobre um gráfico (Chute d’un corps sur un
so que a Praça não é apenas um conglomerado de formas graphique), e quando foi emprestado pelo artista para uma
situadas ao ar livre, mas também um espaço onde essas exposição nos Estados Unidos em 1936 passou a se chamar
formas estão relacionadas de modo a impedir qualquer Cabeça-paisagem (Tête-paysage), título que ele repetiu dez
indicação sobre o caminho a ser tomado. Esses ambientes anos depois, quando descreveu a peça para Pierre Matisse
como uma “espécie de paisagem-cabeça deitada”.* 48 Essa para essa parte, foi acrescentado um artifício que, de acor-
exposição foi Cubismo e Arte Abstrata, organizada por Barr, do com um artigo contemporâneo escrito na época em que
que mostra de maneira bastante significativa o quanto somente o gesso original existia, 49 Giacometti pretendia
Giacometti era capaz de transformar uma imagem pos- eliminar da versão em mármore, o que acabou não acon-
sivelmente devedora de Dalí num objeto que usa “meios tecendo – é esse artifício que, iconograficamente, parece
próprios à escultura”. dar uma pista sobre a peça, visto que nem o título original,
Esse projeto para um ambiente, se é que ele é isso, dife- Apesar das mãos, nem seu nome alternativo, Carícia, seriam
re dos outros na medida em que se apresenta numa forma inteligíveis sem ele: em cada lado da barriga grávida há
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compacta. Outra peça compacta esculpida nesse mesmo incisões marcando o contorno da mão de um homem, na
ano, primeiro em gesso, depois em mármore, está intima- verdade das mãos do artista. São versões em tamanho na-
parte ii

Armadilhas
mente relacionada com aquela e com toda uma classe de tural do contorno da mão que balança o Objeto desagradável
peças ambientais. Pois, se não parece ampliável em algo em no desenho da série “Objetos móveis e silenciosos” e, cer-
que as pessoas possam circular, é uma peça que, embora es- tamente, portadoras da mesma mensagem. Nesse objeto, a
tática em si mesma, é projetada para provocar movimento participação do espectador é solicitada por instruções dia-
no espectador: Apesar das mãos (Malgré les Mains) ou Carícia gramáticas que indicam onde devem ser colocadas as mãos.
(Caresse). Vista de perfil, uma das metades é uma generosa O Objeto desagradável embalado por essa mão é outra
forma convexa, suavemente curva, como uma barriga grá- escultura compacta que combina formas curvas e angu-
vida – é, de longe, o que há de mais parecido com Arp que losas, mas capaz de ser movida. Ele foi feito em gesso em
Giacometti fez em toda a sua vida. A outra metade é consti- 1931, uma réplica foi talhada em madeira e uma versão,
tuída por uma série de contornos retilíneos e abruptos que esculpida em mármore, que é mais uma variante do que
descem e seguem reto, sobem um pouco e seguem reto, des- uma réplica. É muito provável que sua forma derivou da
cem de novo, e assim por diante... Dá a impressão de serem figura de um pássaro da ilha de Páscoa, mas na verdade
uma ampliação do nariz da Cabeça-paisagem, e a extensão ela se parece mesmo é com algum equipamento compra-
longitudinal do efeito de degraus certamente parece visar do num sex shop. De fato, a figura nos remete à forma de
à semelhança dessa peça com uma cabeça deitada. No en- banana da Bola suspensa. Mesmo a ideia do movimento
tanto, não é essa imagem que chama a atenção, mas sim a de balanço poderia ter se inspirado na experiência com o
da copiosa barriga de uma mulher. Para atrair a atenção ângulo formado pela inclinação da meia-lua com a plata-
forma (se assim for, esse experimento pode ser percebido
* O gesso original dessa peça está catalogado com o título A vida continua
pela disparidade na inclinação entre a versão em gesso
(La Vie continue, 1932, gesso, 25,5 × 68 × 37,5 cm), no Musée National d’Art
Moderne, Centre Georges Pompidou, Paris. [n.r.t.] e a versão em madeira). E as pequenas pontas próximas
à extremidade do Objeto desagradável chamam a atenção sutileza no controle da luz. Já os cones são extremamen-
para a agressão fálica implícita na Bola suspensa: a ideia de te táteis, são formas que podem ferir e ao mesmo tempo
que, se a cunha não se encaixa na fenda, isso se deve em são confortáveis e agradáveis ao manuseio. Essa escultura
parte por se tratar de um objeto desagradável, um objeto é uma cabeça, mas é também um objeto, uma coisa que
ofensivo. Se uma aposição prazerosa não se consumar em se pega, que se passa de mão em mão e se repõe no lugar.
penetração, tanto poderá ser devido à ânsia de ferir como A contradição está totalmente resolvida. Aliás, podería-
de ser ferido. mos dizer que essa resolução é a raison d’être da peça.
*
O Objeto sem base, às vezes conhecido como Objeto de- Voltando-nos agora aos objetos com partes móveis, co-
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sagradável, foi produzido em gesso e também em madeira meçarei por aqueles na forma de tabuleiro de jogo. O mais
em 1931. Trata-se, basicamente, de outra placa com a for- antigo de todos talvez seja Circuito (Circuit), que foi pro-
parte ii

Armadilhas
ma não muito diferente da Cabeça que olha e uma depres- vavelmente executado em gesso, em 1931, e depois em
são semelhante em sua superfície. Os cones que se proje- madeira, talvez no mesmo ano. O tabuleiro tem um sul-
tam da superfície são aparentados aos do Projeto para uma co sinuoso escavado em sua superfície e, num canto, uma
praça e do Objeto desagradável, porém em escala maior. Há forma de taça também escavada. A peça está equipada
dois deles num dos lados da peça e um no outro lado, e com uma bola que pode repousar na taça ou então ser im-
estão dispostos de tal maneira que são muitas as posições pelida ao redor do circuito. Se ela estiver na taça não have-
em que o objeto pode se sustentar e, em quase todas, em rá bola no sulco e vice-versa. A tendência é a de querermos
perfeita estabilidade. Na realidade, há quatro posições em sempre pôr a bola onde ela não está.
que a peça se apoia sobre duas pontas e uma quando ela Homem, mulher, criança (Homme, femme, enfant), prova-
se equilibra numa só. O objeto é, portanto, uma tentação velmente de 1931, foi executada em gesso e depois em ma-
quando se encontra sobre uma mesa; difícil não querer deira e metal, possivelmente no mesmo ano. Posicionado
pegá-lo, virá-lo para um lado e para outro, apoiá-lo na no interior de um círculo sulcado no centro do tabuleiro
mesa novamente, testando suas várias possibilidades. está o homem, que tem a forma de um triângulo recorta-
Em algumas dessas posições, ele se torna visivelmente do em folha de metal sobre um eixo que lhe permite girar
uma cabeça. Ora, o tratamento da cabeça em Cabeça que em todas as direções. (O triângulo é, na verdade, uma ca-
olha era uma solução profundamente visual, por ser uma beça muito bem formalizada que antecipa a cabeça del-
extrapolação da maneira de mirar um rosto humano e pela gada de um homem que aparecerá junto de uma figura
ou figuras femininas em esculturas produzidas em 1950.)
Logo do lado de fora do círculo, acha-se uma fenda em que
* Hoje catalogado como Objeto desagradável a ser descartado. Versão em
gesso: 1931, 23 × 21 × 28 cm. Coleção particular, Suíça. [n.e.] a mulher está fixada de maneira que possa ser movida de
um lado para outro. Sua forma linear está tão esquemati- deles revela um esqueleto de bronze e outro deixa ver um
zada que se torna difícil descrevê-la, mas ela aparenta ser espaço vazio. O terceiro se destampa na versão em már-
uma meia figura com braços abertos esticados. Atrás dela, more, mas no gesso original sua tampa não é removível.
numa fenda semelhante e próxima à borda do tabuleiro, O espectador tem liberdade para brincar com os túmulos,
está a criança representada por um minúsculo ovo que mas não com os vivos: o homem e a mulher, separados
também pode ser movido. Todas as três figuras, portanto, pelos mortos, erguem-se sobre o chão esburacado feito
estão sujeitas a movimentos dentro dos estritos limites um campo de batalha, a mulher talvez acenando com os
que as mantêm afastadas, enquanto suas posições relati- braços levantados; ambos estão inapelavelmente enraiza-
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vas e o espaço que a mulher tem para se mover tendem a dos. Descrito, esse objeto parece ser o mais literário, quase
garantir que – seja qual for o ponto do caminho em que alegórico, de toda a série; percebido sob o efeito da luz que
parte ii

Armadilhas
ela estiver, seja qual for o ponto do caminho em que a joga misteriosamente por sobre os côncavos e as partes
criança estiver e seja lá para que lado o nariz do homem planas da superfície, parece ser o mais elusivo, no que se
apontar – ela poderá virtualmente esconder a criança do refere ao sentido.
homem. Faz lembrar aqueles jogos de fliperama em que Ponta no olho (Pointe à l’œil) ou Relações desagregantes (Re-
figuras de jogadores de futebol ou de hóquei no gelo den- lations désagrégeantes) foi realizada em 1932 em gesso e
tro de caixas de vidro são manobradas por controle remo- também em madeira e metal. Ao longo de quase toda a ex-
to para chutar a gol e defender o gol. Aqui, o homem é o tensão de um tabuleiro retangular, demarcado lembran-
atacante, a mulher, a goleira, e a criança, a bola; só que do uma quadra de tênis, corre uma lâmina delgada e pon-
a goleira não está protegendo o gol do atacante, ela está tiaguda, trespassada e mantida suspensa por um enorme
protegendo a bola. alfinete. Sua ponta quase toca o olho de uma cabeça, tão
Acabou o jogo (On Ne Joue Plus) foi terminado em gesso no nua e impassiva quanto um crânio, montada sobre um
final de 1931 ou talvez no princípio de 1932; suas réplicas conjunto de ossos de costela. A lâmina parece pronta
em mármore, madeira e bronze foram todas feitas em 1932. para espetar a cabeça que ameaça. Na realidade, seu úni-
O tabuleiro está dividido em três áreas. As áreas em cada co movimento é circular; girando em torno de seu eixo,
extremidade possuem buracos redondos e ovais de vá- ela aponta inutilmente. A lâmina sugere uma vertigino-
rios tamanhos, num dos quais está uma pequena figura sa perspectiva em que a cabeça, como numa das figuras
de madeira, como uma peça de xadrez, feminina numa femininas de Giacometti, parece vista à distância. Mas
extremidade, masculina na outra. A área do meio tem ela é também como o espigão de Homem e mulher. E nessa
três cavidades retangulares que parecem túmulos. Cada obra o corpo da mulher é também um rosto. A Ponta no
túmulo possui uma tampa. Quando destampados, um olho torna-se, assim, uma transformação da peça Homem
e mulher, em que a ameaça de morte ou violação está for- 1931 e a réplica de madeira não deve ter sido executada
malizada, ritualizada e transformada em jogo. antes de 1934. Se alguém tiver vontade de achar uma par-
Flor em perigo (Fleur en danger), ou Fio esticado (Fil tendu), te móvel aqui, essa vontade talvez seja fulminada por um
foi feita em gesso, provavelmente no início de 1933, mas prenúncio do quanto tal movimento poderia ser dramá-
concebida no finalzinho de 1932, e em seguida em madei- tico, pois o elemento que tem mais probabilidade de ser
ra, metal e gesso. Numa das extremidades de uma base de móvel é a enorme forma no primeiro plano cujas cinco
madeira está uma flor ou figura alta e esguia, o caule ou lâminas curvas e paralelas lembram dentes predatórios
corpo é de arame dobrado e a cabeça, de gesso. Em frente, ou uma mão estranguladora e lacerante. Todo o complexo
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está uma catapulta com o fio esticado e ameaçador. Aqui, de formas dentro da moldura com suas pétalas e tubos
novamente, há um eco do espigão recurvo que aparece sugere ser, num percurso irracional e oblíquo – e, qua-
parte ii

Armadilhas
em Homem e mulher, mas, agora, não devido à ponta afila- se com certeza, não como uma metáfora consciente –, a
da, e sim à forma do arco – e isso me faz lembrar de uma contrapartida feminina do Objeto desagradável. Ele evoca
hipótese que Meyer Schapiro aventou acerca da possibili- A noiva de Duchamp, de 1912, mas uma noiva com uma
dade de Homem e mulher ter sido uma paródia do Arqueiro vagina dentata. No entanto, a Gaiola não foi feita para ter
de Bourdelle. Não existe ameaça real. A catapulta, afinal, movimento. Da mesma forma que a Bola suspensa cria a
não é um objeto móvel nem a flor está em sua linha de expectativa de que seu movimento alcance determinado
fogo. Entretanto, há qualquer coisa móvel. É a cabeça da fim, expectativa que é frustrada, também a Gaiola cria a
flor ou da moça que está amarrada de modo que penda expectativa – igualmente frustrada – de ser suscetível de
livremente como um pingente em um brinco. Além do movimento. Ambas são provocadoras. E a maneira como
mais, ela é feita de gesso; se a tocarmos ou sacudirmos, a Gaiola provoca também se encontra em alguns dos obje-
pode quebrar-se. No final das contas, ela está em perigo. tos com partes móveis. De fato, as frustrações criadas por
Embora o objeto de funcionamento simbólico origi- esses objetos incluem tanto as que derivam de uma parte
nal fosse uma composição numa gaiola – e tenha sido estática – quando esta promete ser móvel – quanto as que
também a primeira peça em que Giacometti usou uma provêm de um movimento que não realiza o que parece
moldura espacial, artifício que ele voltaria a aplicar em prometer. Um dispositivo usado mais de uma vez é fazer
seus objetos surrealistas e nas esculturas do pós-guerra –, com que uma parte seja móvel, quando não importa mui-
havia uma menor quantidade deles do que de objetos to se ela é ou não, enquanto outra parte que parece capaz
na forma de tabuleiro de jogo. À Bola suspensa seguiu-se de deslocamento mais momentoso não pode ser mexida.
outra obra daquelas que fazem parte da série “Objetos A obra que herdou o título original da Bola suspensa,
móveis e silenciosos”: Gaiola. Esta foi feita em gesso em A hora dos traços, foi executada em gesso pintado no final
de 1931 ou, mais provavelmente, em 1932. Ela se afasta da sobre a “sensação de uma luminosa esfera [...] como uma
Bola suspensa em direção exatamente oposta à da Gaiola. casca de ovo” 50 que lhe dava a visão da extremidade les-
Nesta, a ideia foi juntar formas simples e heterogêneas te no interior de Santa Maria delle Grazie (projetada por
dentro de uma moldura, mas a quantidade dessas formas Bramante), em Milão; essa sensação, que parece provir do
aumentou bastante e suas posições acabaram todas fixas. interior de uma casca de ovo, corresponde certamente à
Em A hora dos traços, a ideia foi opor apenas dois elemen- concha luminosa da qual pende o fio que mantém sus-
tos contrastantes, um pendente móvel e outro estático, penso o ovo de Piero.
mas aqui foram separados – o pendente deixado solto e so- Esse ovo, com efeito, poderia perfeitamente ter sido a
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zinho dentro da moldura e o elemento estático posto no inspiração para a própria Bola suspensa. Um fato que tal-
topo da moldura e elaborado como uma figura com uma vez reforce essa possibilidade aconteceu em 1965, quan-
parte ii

Armadilhas
complexa articulação. A Gaiola e A hora dos traços tam- do Giacometti modelava uma réplica em gesso dessa obra
bém tomaram direções opostas na escolha dos materiais para incluí-la em sua retrospectiva na Tate Gallery, pois
para suas réplicas: em vez da madeira e do metal da Bola nenhuma das versões originais estava disponível. Nessa
suspensa, a Gaiola foi executada somente com madeira e réplica, ele usou hastes mais estreitas do que as anterio-
A hora dos traços com madeira, metal e gesso. res já que, segundo me contou, achava aquelas da versão
A escolha do gesso para uma forma – a do pendente em original grossas demais. Pretendia, por outro lado, que as
feitio de coração – era significativa, pois a razão principal formas de dentro feitas a mão repetissem as que estão no
de uma réplica era o fato de ela ser menos frágil que os original. Foi, portanto, sem querer que a esfera ficou me-
originais em gesso. Visivelmente, o gesso teria sido usado nor e a meia-lua mais fina. Com isso, as formas tornaram-
para que essa forma tivesse uma leveza e uma luminosi- -se menos sensuais, mais etéreas, e a esfera, mais parecida
dade lunar que a fizessem parecer um compacto embru- com o ovo de Piero.
lho de luz pairando no espaço. A insistência nesses atri- A figura de madeira e metal que coroa a moldura de
butos tende a confirmar a suspeita de que esse pendente madeira em A hora dos traços, pontiaguda, forte e nervosa,
foi inspirado no ovo hipnoticamente dependurado de parecida com um inseto em sua linearidade e angulosi-
uma concha no interior da abóbada, pintado por Piero dade, está montada de modo a enfatizar sua construção
della Francesca. Trata-se de Nossa Senhora com o Menino e feita com componentes separados e também de modo a
santos e Federico da Montefeltro, da Pinacoteca di Brera, uma tornar as referências de sua postura e anatomia tão am-
imagem que Giacometti deve ter encontrado cedo em sua bíguas quanto é explícita sua estrutura formal. Contudo,
vida e talvez visto muitas vezes, pois ia com frequência a trata-se sem dúvida de uma figura humana masculina e
Milão, a cidade mais perto de Stampa. Certa vez, escreveu essa certeza é transmitida pela sua aparência geral apesar
do reconhecimento de seu único outro atributo inques- sem disfarces, à ilusão que a mão dá é de que poderia ser
tionável, o falo ereto. O que não se sabe ao certo é se as um objet trouvé comprado no mercado de pulgas, à incor-
pernas estão caminhando ou se estão separadas, se a peça poração de um mecanismo, esse é um objeto na série que
em cruz representa braços esticados ou define o contorno tende – ou pelo menos pretende – estar de acordo com as
dos ombros, se a cabeça inclinada para trás com a boca regras de Dalí para os objetos de funcionamento simbólico.
aberta está inspirando ou discursando, ou se está angus- De longe a mais complexa das construções em forma
tiada ou em êxtase. É uma figura que pode ser vista como de gaiola é O palácio às quatro horas da manhã, feito em
um mensageiro aflito, como um fantoche trágico, como gesso em 1932 e mais tarde em madeira e vidro. No artigo
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o espectro de uma alma atormentada. Ela nos traz à lem- sobre seus objetos, escrito no ano seguinte, Giacometti
brança o fantasma de Petruchka surgindo subitamente fala que essa obra tinha relação com o passado imediato,
parte ii

Armadilhas
no alto de sua tenda.
Uma moldura é usada de maneira mais puramente com um período de seis meses passado hora após hora na
utilitária em Courrounou U-animal ou Mão cativa; tanto o companhia de uma mulher que, concentrando nela toda
original em gesso como sua réplica em madeira e metal a vida, fez de cada momento uma coisa maravilhosa para
são datados de 1932. Uma armação de formato horizontal mim. Nós costumávamos construir um palácio fantástico
ligada à base está praticamente tomada por um antebraço de noite (dias e noites eram sempre da mesma cor, como se
e uma mão em tamanhos quase naturais. Estendendo-se tudo tivesse acontecido pouco antes do amanhecer; durante
para fora da moldura há um sistema de roldanas com uma todo esse tempo nunca vi o sol), um palácio muito frágil de
manivela, aparentemente destinado a castigar a mão que palitos de fósforo: com o mais leve movimento em falso toda
brincava com o perigoso falo e deixou suas impressões uma parte da minúscula construção viria abaixo, e sempre
onde acariciou uma barriga grávida. Supondo-se que o recomeçávamos. 51
mecanismo funcione, o mínimo que pode acontecer com
a mão é ela mover-se como uma espécie de pistão, ou seja, Ele prossegue dizendo que não sabe por que há um es-
praticar um ato vergonhoso em público. Quando a ma- queleto de pássaro e uma coluna vertebral dentro de uma
nivela é movida, todas as rodas giram de verdade, mas a gaiola, mas que cada uma dessas coisas representava a
mão não é afetada, pois o mecanismo não está ligado a ela. lembrança de um momento vital na relação com aquela
Aqui, o conhecido roteiro, o cenário de uma situação mulher. Descreve a principal parte da construção “como
ameaçadora que não é levada adiante, é apresentado da for- o andaime de uma torre que talvez estivesse inacabada,
ma mais concreta e menos ambígua de todas. Devido a essa ou que uma parte dela tivesse caído e quebrado”. Na figu-
narrativa direta, ao uso concomitante de uma figuração ra de uma mulher de pé,
descubro minha mãe, tal como ela surge em minhas lembran- Enquanto os poemas procuram acompanhar a fuga
ças mais antigas. Eu ficava incomodado com seu longo vesti- para o nada dos momentos maravilhosos e dos momen-
do preto que chegava até o chão; o vestido longo, que encosta- tos banais que acabaram parecendo maravilhosos por
va no chão, parecia fazer parte de seu corpo e isso me dava terem se evadido para o nada, as esculturas postulam
medo e me deixava confuso; tudo o mais se perdia, escapava um mundo tênue e precário em que as coisas não estão
à minha atenção. construídas para durar, embora a isso se contraponha
um desejo de manter o tempo aprisionado. A gravidade
Ele diz que é incapaz de interpretar o objeto preso no painel – e a densidade são negadas. Assim, a invenção de escul-
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uma forma parecida com a metade de uma vagem com uma turas com molduras espaciais parece ter sido motivada
única semente esférica –, mas que se identifica com ele. inicialmente por um desejo de alçar as coisas do chão (ou
parte ii

Armadilhas
O palácio às quatro horas da manhã é o paradigma da ma- de qualquer superfície sólida): depois de fazer uma escul-
neira como as esculturas do período lidam com a nostal- tura parecida com um cacto, denominada Mulher, cabeça,
gia que permeia seus poemas da época, como aquele usado árvore (Femme, tête, arbre) – que pode, no conjunto, ser lida
nos “Objetos móveis e silenciosos”. É um brinquedo. Suas como cada um desses elementos –, Giacometti continuou,
imagens se relacionam tanto com a vida afetiva do mo- na Gaiola, a montar uma estrutura semelhante dentro de
mento como com os medos e encantamentos da infância. uma moldura espacial de modo que ela não ficasse mais
Suas formas são leves, alçadas do chão e quebradiças como presa ao chão e sim suspensa; e a Bola suspensa produz
esqueletos – portanto, insubstanciais. Ao mesmo tempo, um tal efeito de leveza que se tem a ilusão de que o fio não
possuem um acabamento perfeitamente polido, como se está pendurando a bola tanto quanto erguendo-se dela
negassem a mudança, seja o progresso, seja a decadência. por meio de um ato de levitação. Por outro lado, as cons-
O palco está montado para a ação, mas a ação está suspen- truções frágeis são feitas para parecer fixas, imutáveis.
sa. O tempo está parado, só que o feitiço é frágil, transitório Nas réplicas que são suas formas definitivas, a superfí-
em si mesmo. A atmosfera do Palácio é aquele sentimento cie não reflete o tatear nervoso dos dedos do artista para
de estar separado do mundo quando se fica acordado a noi- ir ao encontro do fluxo irresistível e devorador no pas-
te inteira, aquele silêncio tangível durante a madrugada sado. “Eu não podia suportar que a superfície não fosse
quando a consciência está aguçada: os objetos se mostram perfeitamente polida e precisa”: 52 esses já foram objetos
destituídos de peso, separados, mantidos em suspenso; o “perfeitamente acabados”.
mundo está leve; a passagem do tempo parece em suspen- O palácio às quatro horas da manhã, o mais famoso dos
so; como se o presente se estendesse para trás e para a frente objetos surrealistas de Giacometti, talvez jamais seja tão
da gente. A mínima insinuação do dia irá fraturar tudo. carismático quanto na fotografia que Man Ray fez dele.
A verdadeira obra-prima da série é Mulher degolada (Fem- A ideia que perpassa os objetos surrealistas de Giaco-
me égorgée), feita em gesso em 1932 e, posteriormente, fun- metti é a de dar à escultura a forma de um jogo ou brin-
dida em bronze. Estruturalmente, ela está numa catego- quedo que de alguma maneira possa envolver o especta-
ria própria, embora relacionada às peças com tabuleiro dor numa participação ativa ou num desejo de participar.
de jogo por ser uma obra para ser vista de cima. Sua parte É um desafio e, mesmo se ele optar por não jogar, prefe-
móvel é o apêndice em forma de torpedo ligado a um bra- rir manter-se à distância e imaginar como poderia ser
ço, apêndice que podemos colocar de diversas maneiras: se jogasse, ainda assim estará fazendo um outro tipo de
Giacometti disse que a escultura se referia a um pesadelo jogada. Na prática, é claro, raramente o espectador tem
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recorrente em que sentia a mão de alguém como se fosse
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oportunidade de fazer uma escolha, já que as peças, agora
pesada demais para ser levantada. abrigadas nos museus, são vistas quase sempre atrás de
parte ii

Armadilhas
Formalmente, a peça parte do ponto em que Homem e vidros ou com o aviso para não serem tocadas, mas essa
mulher parou, e se encontra muito adiante, dominando o é uma característica dos jogos e as autoridades prudentes
espaço com sua energia elétrica. Iconograficamente, ela sempre tendem a proscrevê-los.
completa um ato inacabado em Homem e mulher ao consu- Quando o objeto consegue provocar a interação do ob-
mar plenamente a carnificina. Representa uma “mulher servador, este entra em seu mundo, em seu continuum espa-
degolada, com a carótida cortada”. No entanto, é difícil
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cial. Isso não se dá por ele tocar o objeto, pois o mero fato
haver aqui uma forma que não tenha vários sentidos. Des- de apalparmos uma estátua ou segurarmos uma estatueta
se modo, a que está do mesmo lado do corpo, como elemen- não nos faz sentir que a vida da obra seja menos indepen-
to móvel, é uma folha, uma mão e uma flor, e também uma dente da nossa do que quando nos pomos a contemplá-la:
parte da carapaça do crustáceo em que a mulher foi trans- ao contrário, uma vez que reconhecemos que ela existe
formada depois de morta, assim como foi transformada em num continuum espacial próprio, o contato físico tende tal-
réptil e num inseto, com o pescoço que lembra a cauda de vez até a aumentar a consciência da separação. O que nos
um escorpião. A ameaça, além do mais, reside não só em leva para dentro do mundo desses objetos é o reconheci-
seu ferrão mas também no quanto podem ser ameaçadores mento da necessidade que eles têm de nossa participação
os grandes espinhos em sua carapaça. A vítima do homem e do despertar do desejo de sermos envolvidos. O contato
incorpora partes de um homem, partes boas e más. O apên- físico é casual: mais exato seria dizer que entramos no
dice indefeso é um símbolo de passividade. Mas o pesco- mundo desses objetos não quando agimos sobre eles, mas
ço combina com o pequeno par de bolas dos peitos para quando desejamos fazer isso – quando nos imaginamos
formar um órgão atuante. Estendida morta, a figura está jogando com eles ou, no caso dos modelos para esculturas
explosivamente viva, como se ativada por sua imolação. ambientais, quando nos vemos no meio deles.
Durante quase toda a sua vida de escultor, Giacometti “cada um que o viu operando”. 56 Contudo, a experiência
preocupou-se com o problema de criar obras que envolves- do funcionamento do objeto seguramente nada mais é do
sem o espectador em seu continuum espacial, esculturas que uma entrada. Alguém, por exemplo, que mova a bola
que, em vez de perseguirem uma vida autossuficiente num ao longo da meia-lua tentando encaixá-la, vendo que isso
espaço nocional à parte, implicassem a presença do espec- não acontece, concluirá que o significado da peça é bem
tador como se ele fosse necessário para sua existência. maior; no entanto, o que renova e retém o interesse não é
É um problema para o qual a escultura barroca encontrou a manipulação repetida, mas a contemplação prolongada.
soluções e para o qual Giacometti também encontrou suas É quando se olha detidamente para essas formas e suas re-
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próprias saídas. A resposta, simples e jocosa, ele a encon- lações – formas esquematizadas, tão perturbadoramente
trou nos objetos que aparentam ser jogos. Mas a arte não sensoriais e sensuais – que sua interação contínua entre
parte ii

Armadilhas
é feita de respostas, é feita de formas, e as formas desses uma intimidade prazerosa e uma incompatibilidade final
objetos anteciparam ou influenciaram três importantes começa a fazer sentido. O jogo, aqui, é uma espécie de isca.
correntes artísticas subsequentes: a escultura que inclui Mas os lugares onde as iscas operam são os interiores
molduras espaciais, a que requer ser vista de cima e a arte de armadilhas. Giacometti arma uma situação em que
da instalação. nada está acontecendo, embora haja um potencial evi-
Levar o espectador a agir ou atiçar seu desejo para a dente para a ação, ficando a nosso cargo intervir antes
ação também parece corresponder à intenção da obra de que algo possa ocorrer. Se nos envolvermos, entraremos
Giacometti que, nesse caso, nada tinha de perene, mas, numa situação em que queremos ver acontecendo cer-
segundo testemunho dele mesmo, era vital para sua épo- tas coisas que parecem que deveriam ocorrer, mas que
ca: a preocupação com que sua obra fosse de interesse o artista tratou para que não ocorressem. Os tabuleiros
para outras pessoas. 55 O disfarce da arte como um jogo mudam, as peças mudam, as regras do jogo são sempre
é análogo a métodos educacionais que procuram envol- causa de frustração. Às vezes, há partes que parecem pe-
ver a criança num assunto que a induza a descobri-lo dir que sejam agrupadas em amorosa conjunção: invaria-
por conta própria. Se ao operar um objeto o espectador velmente, permanecem fora do alcance umas das outras.
chegar a sentir que está simbolicamente reproduzindo Às vezes, há partes posicionadas de modo ameaçador em
as fantasias e obsessões do artista, ele estará se identifi- relação às outras e parecem capazes, se ativadas, de cau-
cando com algo do significado do trabalho que, de outra sar dano: invariavelmente, a vítima permanece fora do
maneira, não ocorreria. Quando fala do impacto da Bola alcance. Essas são máquinas que se derrotam, tão inefica-
suspensa sobre os surrealistas, Nadeau descreve o efeito zes quanto a roda de bicicleta de Duchamp, que, montada
extremamente perturbador que esse objeto teve sobre sobre um banco, gira no ar; porém, não se mostram tão
declaradamente impotentes, e sim decepcionantes – por ambíguo. Quando chegamos ao meu hotel, eu saltei e Ca-
conseguinte, derrotas para nós também. Elas são piadas roline – como ele me contou, exultante, no dia seguinte –
de mau gosto sobre o mecanismo infernal inventado pe- dirigiu até a esquina da rua onde ele a estava esperando.
los deuses, que alegam não estar em seu poder controlar Durante os anos em que os objetos iam sendo feitos,
nossos desejos e ao mesmo tempo nos prescrevem os mo- prosseguia a modelagem da grande figura em Hyères, em-
delos que fatalmente escolheremos para nos mover. O bora a maior parte do trabalho fosse executada por Diego.
fato de sabermos que a obstinação dos deuses reflete sua Em 1932-33, entretanto, o próprio Alberto fez o trabalho
própria fraqueza não nos serve de consolo. É claro que todo de uma figura de gesso em tamanho natural, um
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os jogos de Giacometti, inconscientemente, simbolizam nu feminino caminhando, sem cabeça e sem braços, que
suas ansiedades e frustrações pessoais, que o modelo por recebeu duas versões ligeiramente diferentes. O estilo
parte ii

Armadilhas
ele prescrito é um modelo compulsivo do qual é vítima. parece influenciado pelas esculturas da quinta dinastia
Ao mesmo tempo, quando nos induz a fazer seu jogo, o egípcia. A versão mais antiga deveria ter, originalmente,
que ele quer é achar uma subvítima para diluir sua dor. apêndices opcionais em estilo conflitante e o gesso pin-
É de certo modo como o jogo que armou certa noite em tado em tom escuro – uma cabeça parecida com a voluta
1960, quando me levou com sua amiga Caroline a uma e as cravelhas de um violoncelo e os braços estendidos
boate. Lá, pediu-me para dançar com ela, o que ele não com um feixe de penas no lugar de uma das mãos. Foi
podia fazer por ser manco; divertindo-se em ver que eu exposta dessa forma em 1933 com o título de Manequim
e ela estávamos nos dando bem, insistiu para que conti- (Manequin). Quando os apêndices são removidos, há um
nuássemos dançando enquanto, sentado sozinho à mesa, certo quê sonhador que persiste na tendência das ima-
ele nos observava. Finalmente, quando voltamos para gens do torso feminino a evocar um rosto de olhar im-
perto dele, disse-nos que, como era óbvio que estávamos passível e provocador; e as figuras têm algo da atmosfera
gostando um do outro, seríamos dois estúpidos calhor- de uma pessoa que caminha dormindo. Sem a cabeça e
das (a palavra que usou foi “salauds”) se não dormíssemos os braços, ela é como uma estátua antiga hesitante em
juntos aquela noite. Na hora não consegui esconder meu ganhar vida.
embaraço e ele não deixou de reparar nisso, com evidente Giacometti via essas graciosas criações como obras
satisfação. Então, pagou a conta e saiu, mas antes dizen- despretensiosas, dizendo que um manequim era exata-
do a Caroline que ela e eu fôssemos no carro dela. Pouco mente o que tencionara fazer. Da mesma forma, dizia
depois, sentado no automóvel ao lado da moça, eu me per- que, na Mesa (La Table), de 1933, ele apenas visara à “rea-
guntava como poderia lidar com aquela situação sabendo lização de um objeto fantasioso de acordo com o gosto da
que quase sempre o comportamento de Giacometti era época”. 57 A Mesa nos remete às esculturas com várias for-
mas separadas dispostas livremente sobre um tabuleiro, ti não conseguira inventar e que acabou sendo modelada
contudo, nessa obra, a linguagem figurativa e a iconogra- após ter descoberto uma máscara de metal quando ca-
fia produzem uma paráfrase da convenção de uma natu- minhava pelo mercado das pulgas ao lado de Breton, que
reza-morta com um busto clássico e outros atributos da mais tarde escreveu detalhadamente sobre essa descober-
arte: as coisas sobre a mesa são um busto de mulher em ta e a que ele próprio fez, quase simultaneamente, de uma
tamanho natural com um xale drapeado sobre a cabeça estranha colher – os “dois achados que Giacometti e eu
cobrindo-lhe parcialmente o rosto; um pilão e almofariz, fizemos juntos” 58 – como uma manifestação do extraor-
um poliedro e uma mão. A mesa tem pernas despropor- dinário laço entre dois seres, vínculo a que ele atribuía
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cionalmente compridas, posicionadas de forma assimé- significação quase religiosa. Por volta do final desse ano,
trica e cada qual com um desenho particular. Giacometti horrorizaria Breton com sua súbita decisão
parte ii

Armadilhas
No ano seguinte, Giacometti fez outro nu feminino de modelar uma cabeça do natural, e Breton horrorizaria
em tamanho natural no estilo das duas figuras que ca- Giacometti ao protestar que todo mundo sabia o que era
minham, mas esta, agora, dotada de cabeça e braços. Na uma cabeça. 59
realidade, ela é a mais antiga de suas imagens numa lin- Antes disso, porém, Giacometti fez algumas cabeças
guagem representativa da figura humana de corpo intei- nas quais retomou o cubismo como ponto de partida –
ro. Com os joelhos parcialmente dobrados, está sentada uma Cabeça cubista (Tête cubiste) em versões em gesso e
numa espécie de trono, presa por um de seus lados, como em mármore, e uma de 1,20 metro de altura, chamada
se fosse segurar a cabeça de uma ave bicuda ou de um rép- O cubo (Le Cube), que lembra uma versão ampliada do
til que, segundo Giacometti, representa o princípio mas- poliedro de Mesa e parece uma pura abstração, embora
culino. As canelas da moça estão cobertas por uma placa Giacometti a visse como o equivalente de uma cabeça.
que parece estar ali para impedi-la, como num pelouri- Ambas são blocos facetados e constituem as peças mais
nho, de fazer qualquer gesto que não seja o que está fazen- sólidas e mais tridimensionais que ele já fez. A Cabeça
do com as mãos: estendidas à frente como se segurassem cubista parece uma caveira, compacta, introspectiva, re-
um objeto. Mas elas nada seguram. A obra tem dois títu- colhida em seu ser de objeto inerte, algo como uma pe-
los alternativos: O objeto invisível e Mãos segurando o vazio dra em que se tropeça; parece uma cabeça viva, talvez
(Mains tenant le vide); é a eterna situação de Giacometti – falante, animada pela angularidade das facetas, devido
nada há ali para ser tocado. E é como se esse vazio, se essa a suas arestas ameaçadoramente pontiagudas e devido
ausência de contato real fossem oferecidos ao espectador às depressões que formam seus olhos lastimosos, como a
quando ele se move dentro do campo do mortiço olhar da máscara trágica de um palhaço – “algo ao mesmo tempo
mulher. Esse olhar pertencia a uma cabeça que Giacomet- vivo e morto”. 60
Via novamente os corpos que me atraíam na realidade e as
formas abstratas que me pareciam verdadeiras como escul-
tura, mas eu queria fazer uma coisa sem perder a outra,
para dizer de maneira muito concisa.” 61

Na Cabeça cubista, ele estava fazendo um pouco das duas,


mas acabou demonstrando claramente que preferia uma
à outra. Em Maloja, em 1934 – um ano depois da morte 7
116

de seu pai –, pintou um retrato ao vivo de uma moça,


Maria, em que há um facetamento cubista de alguns pla-
parte ii

Com ligeiras variações


nos do rosto, aparentemente motivado pelo desejo de deixar
a estrutura à mostra. Também trabalhou numa cabeça de
gesso com formas facetadas (destruída, mas não antes
de ser fotografada), que foi um passo adiante da Cabeça
cubista em direção a um tratamento mais abrangente e
naturalista, menos preocupado em obter coisas “verda-
deiras como escultura”, e nessa tentativa de se aproximar
mais daquilo que o “atraía na realidade” fez um trabalho
que já não era mais apenas uma notável peça de escultura,
mas, antes, um estudo nitidamente provisório. Chegara
a hora de recomeçar, de retomar o trabalho com modelo-
-vivo, de voltar ao tormento.
Apesar de tudo o que disse mais tarde para comprome-
ter sua obra surrealista – que era uma masturbação e ou-
tras coisas no gênero 62 –, ao caminhar pela Tate durante
sua retrospectiva em 1965, olhando a sala com as peças
surrealistas, disse com um sorriso forçado: “Ninguém
gosta tanto de minha obra quanto eu”. 63
quando eu era criança (entre quatro e sete anos), as estreita e pontuda, com os lados quase verticais. Não tenho
únicas coisas que eu reparava no mundo exterior eram as palavras para expressar o desapontamento e a perturbação
que podiam me dar prazer. Principalmente pedras e árvo- que senti naquele momento. A pedra imediatamente atraiu
res, e raramente mais de um objeto de cada vez. Lembro-me minha atenção como se fosse um ser vivo, hostil, ameaçador.
de que, pelo menos durante dois verões, nada enxergava à Ela ameaçava tudo: nós, nossas brincadeiras e nossa caver-
minha volta senão uma enorme pedra que ficava a cerca de na. Sua existência era intolerável e logo percebi que – não
oitocentos metros do vilarejo – a pedra e os objetos que esta- sendo capaz de fazê-la desaparecer – melhor seria ignorá-
vam diretamente relacionados a ela. Era um monólito de um -la, esquecê-la, não falar dela para ninguém. Assim mesmo
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tom dourado cuja base dava entrada a uma caverna: toda a aproximei-me, mas com a sensação de estar me entregando
parte inferior havia sido escavada pela água. A entrada era a algo condenável, secreto, suspeito. Com repulsa e terror, o
parte ii

Com ligeiras variações


baixa e comprida, quase da altura que tínhamos na época. máximo que fiz foi tocá-la com a mão. Andei ao seu redor, tre-
Em alguns lugares, o interior estava mais escavado fazen- mendo de medo de descobrir uma entrada. Nenhum vestígio
do parecer que, atrás, havia uma segunda caverna menor. de caverna, o que tornava a pedra ainda mais intolerável
Foi meu pai quem, um dia, nos mostrou esse monólito. Um para mim, apesar de sentir certa satisfação: uma abertura
verdadeiro achado; logo de saída considerei essa pedra uma complicaria tudo e eu já até sentia a desolação de nossa ca-
amiga, um ser cheio das melhores intenções para com a gente, verna se tivéssemos de nos ocupar com outra ao mesmo tem-
que chamava por nós, que sorria para nós, como uma pessoa po. Fugi daquela pedra preta, não falei dela para as outras
já conhecida e amada que há muito tempo não víamos e re- crianças, ignorei-a e nunca mais voltei para vê-la.
descobríamos com infinita surpresa e alegria. 64

No inverno, logo que a neve começava a ficar um pouco


Daí em diante, ele e seus amigos passavam o tempo todo mais densa sobre o chão, com um saco e uma estaca pon-
lá. Tiveram o cuidado de delimitar a entrada na largura tuda, ele costumava ir a uma campina perto do vilarejo.
suficiente apenas para deixá-los passar. Quando desco- Lá, tentava cavar um buraco de tamanho suficiente para
briu que podia ficar agachado na caverna menor, “todos entrar. A abertura era para ser quase invisível; o saco ser-
os meus sonhos se tornaram realidade”. via para revestir o fundo do buraco, o que deixaria o lu-
Certa ocasião, andando sozinho a esmo, viu-se num gar bem quente e escuro. Enquanto esperava a neve, ele
pedaço de terreno alto. punha-se a pensar nos mais ínfimos detalhes de como
pretendia fazer o buraco; sua vontade era passar todo o
À minha frente, um pouco abaixo, no meio do mato, erigia- inverno ali sozinho e lamentava imaginar ter de voltar
-se uma enorme pedra preta na forma de uma pirâmide para casa para comer e dormir. “Devo dizer que, apesar de
todos os meus esforços e, provavelmente, também devido que é sobre acontecimentos recentes na época embora
a condições externas desfavoráveis, meu sonho jamais se relacionados ao passado, foi escrita para o Labyrinthe, em
realizou.” 1946, mais de dez anos depois de sua ruptura com o mo-
Quando entrou para a escola, ouviu falar da Sibéria e vimento, mas é francamente surrealista no que toca a so-
não parava de pensar em estar lá, numa imensa planície nhos, alucinações e coincidências.
coberta de neve cinzenta que fazia fronteira num dos la- Uma enorme aranha marrom e peluda está suspensa
dos com uma floresta de pinheiros monótona e escura. por cima de sua cama e ele, aterrorizado, grita chaman-
Por meses a fio só conseguia dormir depois de ima- do alguém para matá-la. Acorda, mas dentro do sonho, e
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ginar que, à luz do crepúsculo, havia atravessado uma mesmo depois de se dizer que tudo não tinha passado de
densa floresta e encontrado o caminho para um remoto um sonho, vê
parte ii

Com ligeiras variações


castelo cinzento.
uma aranha amarela, amarelo-marfim, muito mais mons-
Lá, eu matava dois homens que não opunham resistência: truosa que a primeira, mas lisa, como se coberta por lisas
um, que tinha uns dezessete anos, sempre aparecia pálido e escamas amarelas, e com compridas patas finas e lisas que
com medo, e o outro vestia uma armadura com algo no lado parecem tão duras quanto ossos. 65
esquerdo que brilhava como ouro. Então, violentava duas
mulheres, depois de arrancar seus vestidos; uma de 32 anos, Sua amiga avança e toca nas escamas da aranha, sem
toda de preto e que tinha um rosto de alabastro, e depois a medo ou surpresa, mas ele pede que a matem, e uma
filha, que estava coberta de véus brancos. A floresta inteira pessoa desconhecida a esmaga e bate nela com um pau
ressoava com seus gritos e gemidos. Eu as matava, mas mui- até matá-la. Ao examinar os restos da aranha, ele perce-
to lentamente (àquela altura já era de noite), quase sempre be que foi responsável pela morte de um espécime raro
junto de uma poça de água verde estagnada, na frente do pertencente aos amigos que o hospedavam. Isso é con-
castelo. Cada vez com ligeiras variações. Em seguida, punha firmado momentos depois pelos lamentos de uma velha
fogo no castelo e, feliz, adormecia. governanta que entra à procura da aranha perdida. Pri-
meiro, ele pensa em contar a verdade, mas, prevendo o
Essa foi a primeira das duas histórias publicadas por Giaco- desgosto de seu anfitrião, resolve nada dizer, finge que
metti que tinham a ver com as fantasias que o obcecaram nada sabe e esconde os restos. Sai para o jardim e os en-
por algum tempo. “Ontem, areias movediças” (“Hier, sa- terra em segredo, dizendo para si que as escamas terão
bles mouvants”) foi escrita em 1933 para Le Surréalisme au apodrecido antes de serem descobertas. Enquanto faz
Service de la Révolution. “O sonho, o Sphinx e a morte de T.”, isso, o dono da casa e sua filha surgem montados a cava-
lo; sem se deterem, eles lhe dizem qualquer coisa que o pé junto da cama, eu olhava para aquela cabeça que se torna-
surpreende e, nesse instante, acorda. ra um objeto, uma pequena caixa, mensurável, insignificante.
Pouco antes de ir dormir naquela noite, prossegue o Naquele momento, uma mosca aproximou-se do buraco negro
texto, ele e sua amiga, deitados na cama, haviam desco- de sua boca e vagarosamente desapareceu dentro dela.
berto, para diversão dela, vestígios de pus numa colora-
ção amarelo-marfim, o que confirmou a suspeita de ele Ele ajudou a vestir T. como se fosse para uma grande oca-
ter dias antes pegado uma doença venérea no bordel Le sião. Na noite seguinte, na escuridão do corredor do lado
Sphinx. Ele tinha ido até lá ao ouvir a notícia de seu fe- de fora da porta do morto,
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chamento (isso foi na ocasião em que os bordéis da Fran-
ça foram interditados). “Corri para lá sem suportar a ideia não acreditando naquilo, tive a vaga impressão de que T. es-
parte ii

Com ligeiras variações


de nunca mais ver aquela sala.” Estava um pouco bêba- tava por toda parte, por toda parte menos no infeliz cadáver
do, depois de um longo almoço com o editor da revista sobre a cama, aquele cadáver que parecera tão inexistente;
em que o texto saiu publicado, que foi quem o lembrou T. não tinha mais limites e, apavorado por sentir uma mão
de uma história que ele lhe contara, tempos atrás, sobre a gelada tocar meu braço, atravessei o corredor com um imen-
morte de um amigo, T., e, agora lhe pedia que a escrevesse so esforço, voltei a me deitar e, com os olhos abertos, conversei
para sua revista. Giacometti prometeu fazê-lo, mas sem com A. até a aurora.
saber realmente por onde começar. No entanto, no rastro De maneira inversa, eu acabava de experimentar o que
do sonho e da doença conectada com o almoço, a morte de havia sentido meses antes diante dos seres vivos. Naquela
T. estava, outra vez, tornando-se uma realidade para ele. ocasião, eu estava começando a ver as cabeças no vazio, no
espaço em torno delas. A primeira vez que me conscientizei
Quando caminhava, revi T. nos dias que antecederam à sua de que, olhando uma cabeça, ela ficava fixada, imobilizada
morte, no quarto junto ao meu, na casinha no fundo de um jar- para sempre naquele único instante, tremi de medo como
dim meio dilapidado, onde estávamos morando. Vi-o no fundo nunca antes em toda a minha vida, um suor frio correu-me
de sua cama, imóvel, a pele amarelo-marfim, recolhido em si pelas costas. Já não se tratava mais de uma cabeça viva, mas
mesmo e já estranhamente distante, e pouco depois, às três de um objeto para o qual eu estava olhando da mesma ma-
da manhã, morto, os membros finos como os de um esqueleto, neira como poderia olhar para qualquer objeto... Não, não
projetados, esparramados, abandonados, uma imensa barri- bem assim, não como se fosse qualquer outro objeto, mas
ga inchada, a cabeça jogada para trás, a boca aberta. Nunca como algo ao mesmo tempo vivo e morto. Dei um grito de
um cadáver me parecera tão inexistente, um lixo sórdido para pavor como se acabasse de atravessar uma fronteira, como se
ser atirado na sarjeta como o cadáver de um gato. Parado de estivesse entrando num mundo desconhecido. Todos os vivos
estavam mortos, e essa visão repetiu-se muitas vezes, no me- lembranças permitindo que ecos e ligações permaneçam
trô, na rua, nos restaurantes, com os amigos. [...] Mas, assim implícitos. Dessa vez, o método é mais proustiano. Está
como os homens, os objetos sofriam uma transformação [...]. tentando definir conexões entre os acontecimentos, cone-
Ao acordar naquela manhã, vi minha toalha pela primei- xões que ele percebe com mais ou menos clareza, sempre
ra vez, uma toalha sem peso, numa imobilidade que eu nun- com dificuldade, mas também com a satisfação de resolver
ca tinha percebido antes, como se ela estivesse em suspensão alguma coisa; a lembrança de um objeto visto em determi-
em meio a um pavoroso silêncio. Ela deixara de ter qualquer nada ocasião, em geral, dissolve-se na de um outro em ou-
relação com a cadeira sem assento ou com a mesa cujos pés já tra ocasião; o texto é, em parte, a narração de experiências
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não se apoiavam no chão, mal chegando a tocá-lo; não havia passadas e, em parte, uma reflexão sobre a experiência
mais nenhuma relação entre os objetos separados, agora, por presente de narrá-las. O problema está em mostrar cada
parte ii

Com ligeiras variações


incomensuráveis abismos de vazio. Olhava para meu quarto acontecimento de maneira viva e, ao mesmo tempo, trazer
apavorado e um suor frio correu-me pelas costas. à tona as conexões entre eles, incluindo tudo e colocando
cada coisa em seu lugar. Parecia um problema particular-
Alguns dias depois de ter escrito o texto, até então de um mente crucial, é claro, pois a maior parte de sua produção
fôlego só, continua Giacometti, ele estava sentado num como escritor havia consistido em pequenas histórias,
café tentando reconstruir a história e trabalhar nela. deixando-o, sem nenhuma experiência, com o tormento
Uma sensação de enfado e hostilidade o fez parar de relê- por que passam todos os escritores quando tentam pôr ele-
-la e, involuntariamente, começou a descrever o sonho de mentos intrincados na melhor ordem possível.
outro modo. Procurava contá-lo de maneira mais precisa
e surpreendente, com mais impacto emocional, sem pro- Procurava achar uma solução possível. Primeiramente, ten-
curar conexões entre os elementos. Desanimado, parou tei nomear cada fato por duas palavras colocadas numa colu-
depois de poucas linhas. na vertical: isso não levava a nada. Então, desenhei pequenos
compartimentos, também na vertical, que eu preencheria
Havia contradição entre a maneira afetiva de transmitir o pouco a pouco, procurando assim situar todos os fatos simul-
que tinha sido alucinatório e a sequência dos fatos que eu taneamente na página.
queria contar. Via-me às voltas com uma massa confusa de
épocas, acontecimentos, lugares e sensações.

A história vai se tornando, cada vez mais, a escrita da


história. No relato sobre sua infância, ele separa suas
Ele estava contando seu sonho a R. M. quando, chegan-
do ao momento do enterro dos restos, viu-se em outro lu-
gar, numa campina na orla de uma floresta, afastando a
neve com os pés, cavando o chão duro e enterrando um
pedaço de pão: “roubo do pão em minha infância”, acres-
centa entre parênteses. Viu-se correndo por Veneza se-
gurando um pedaço de pão de que queria se livrar para,
finalmente, atirá-lo num canal desconhecido. Descreveu
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uma viagem ao Tirol, quando ficou sentado num quarto
de hotel, durante horas, sozinho com um homem mori-
parte ii

Com ligeiras variações


bundo, Van M., observando e por fim tentando desenhar-
-lhe a cabeça enquanto a vida se esvaía dela. Prosseguiu
falando de viagens a Roma e a Pesto, no verão anterior,
comparando as dimensões do templo em Pesto com as de
São Pedro e, em seguida, fala

da dimensão das cabeças, da dimensão dos objetos, das afini-


dades e diferenças entre objetos e seres vivos, e por meio disso
eu chegava ao que me ocupava acima de tudo, ao próprio
momento em que contei esta história no sábado ao meio-dia.
Sentado no café do bulevar Barbès-Rochechouart, eu pensei
nessas coisas todas e procurei uma maneira de contá-las.
Subitamente, tive a sensação de todos esses acontecimentos
Mas o problema da cronologia continuava atrapalhando. existirem simultaneamente em torno de mim. O tempo esta-
Ele não conseguia achar um modo de transmitir a se- va tornando-se horizontal e circular, era simultaneamente
quência real dos fatos, com suas idas e vindas no tempo, espaço, e tentei desenhar isso. Pouco depois saí do café.
de acordo com a época em que se deram. E, particular-
mente, não conseguira encontrar um lugar no desenho
original para descrever o almoço com um amigo, R. M.,
no dia em que escreveu sobre esse acontecimento.
Mas eu fazia questão da horizontalidade, não queria perdê-
-la e vi o disco tornar-se objeto.
Um disco com cerca de dois metros de raio, dividido em seções
por linhas. Em cada seção estavam escritos o nome, a data
e o lugar do acontecimento que lhe correspondia e, na beira-
da do círculo, em frente de cada seção, achava-se um painel.
Os painéis tinham diferentes larguras e eram separados por
espaços vazios.
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parte ii

Com ligeiras variações


Esse disco horizontal me enchia de prazer e, enquanto cami-
nhava, eu o vi quase que concomitantemente sob dois dife-
rentes aspectos. Vi-o desenhado verticalmente numa página.
A história correspondente a cada seção estava impressa no
painel. Eu sentia um raro prazer em me ver caminhando
nesse disco tempo-espaço e lendo a história escrita no painel
à minha frente, com a liberdade de começar por onde quisesse,
por exemplo, partindo do sonho de outubro de 1946 e depois,
fazendo toda a volta, eu terminaria alguns meses antes na
frente dos objetos, na frente de minha toalha. Era para mim
muito importante a orientação de cada fato no disco.
Mas os painéis ainda estão vazios. Não sei muito bem qual o
valor das palavras ou de suas relações para poder preenchê-los.
Uma nota anexada ao texto acrescenta que a viagem ao reflexão sobre a reflexão sobre a ocorrência; também lida
Tirol aconteceu em 1921. (Não há nenhuma indicação so- com os níveis da autoconsciência nos sonhos e em relação
bre a data de sua ida a Veneza: a primeira vez que esteve aos sonhos. Ela trata das dificuldades que surgem do fato
lá, em 1920, foi junto com seu pai e essa foi sua primeira de que a mente, ao tentar fixar as experiências passadas
viagem ao exterior.) Ele prossegue dizendo que a morte de e suas possíveis conexões, está fazendo isso não de uma
Van M. foi uma espécie de linha divisória em sua vida, que posição fixa – já que a experiência presente modifica con-
essa morte, durante um ano, havia mudado tudo e o deixa- tinuamente a percepção do passado –, tampouco em rela-
va constantemente obcecado, que ele não parava de falar ção a um campo estável – já que a cada instante o passado
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nela, que muitas vezes quisera escrever sobre o assunto, se torna um instante mais longo. Ela trata, sobretudo, do
mas até então não tinha sido capaz por causa do sonho e problema de que a forma de uma narrativa contínua, que
parte ii

Com ligeiras variações


do pão no canal. Alguns meses depois de escrever a histó- se desdobra no tempo, não corresponde à forma no tempo
ria, Giacometti modelou duas versões da Cabeça sobre uma do conjunto de ocorrências a ser representado. Indica as
haste (Tête sur tige), pretendendo reviver a sensação que lhe falhas nas convenções que são comuns ao representar a
deu a visão da cabeça de um homem agonizante. realidade numa dada linguagem, e parte do pressuposto
Uma das formas de investigação que compõem a tra- de que uma noção de responsabilidade para com a repre-
ma da história é praticamente psicanalítica. O fato de sentação da realidade gera um estado de dúvida sobre a
contar um sonho traz à mente várias outras experiências; validade dos meios de comunicação.
conexões emergem entre a história recente e a passada; Dois anos antes, Giacometti havia se deparado com o
acontecimentos presentes liberam da necessidade de re- problema de dar forma verbal a seus sentimentos sobre
viver dolorosos acontecimentos passados; a lembrança e uma obra escultórica que ele admirava enormemente, a
a descrição de um comportamento passado influenciam de Laurens. Ele descobrira que, ao procurar por palavras e
um comportamento futuro. A conversa com R. M., em uma estrutura para estas, se desencadeara em sua mente
particular, se assemelha muito a uma sessão analítica: o uma série de imagens que pareciam ter uma pertinência
relato do sonho é interrompido quando uma das imagens oblíqua em relação a suas impressões da escultura. Havia
desencadeia uma série de associações; no ponto crucial, uma em particular que se sobrepunha a todas as outras –
uma digressão teórica dá ensejo para que não se tenha de aquela, conforme observou, que não tinha nenhuma co-
enfrentar o problema afetivo. nexão direta com a realidade:
A outra investigação no interior da história é semân-
tica. Ela lida com as relações entre uma dada ocorrência Eu me via numa estranha clareira, um espaço vagamente cir-
e a reflexão desta e entre a reflexão sobre a ocorrência e a cular em que predominavam os tons das folhas de outono; suas
bordas muito próximas perdiam-se numa atmosfera a um só como se sujeito às restrições que eram impostas a artis-
tempo densa e leve, e muito agradável. Ao meu redor, erguen- tas de civilizações como as do Egito e de Bizâncio – aten-
do-se em intervalos irregulares, a uma altura de aproximada- dendo não somente à demanda pela fidelidade a estereó-
mente trinta centímetros do chão, surgiam colinas, pequeninas tipos, como também se comprometendo com uma pose
e curiosas, que se alternavam com construções esbranquiçadas sempre formal, compacta, impassível, frontal. Não por-
e pouco definidas, semelhantes a diminutos castelos vistos atra- que estivesse visando à criação de um tipo de arte impes-
vés de uma cortina de fumaça. Mas essas colinas e construções soal: as superfícies revoltas e nervosas de suas esculturas
eram complexas, cercadas por vibrações, e eu sentia que elas e pinturas são marcas dos gestos que as produziram. Não
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eram gestos, sons de vozes, movimentos, manchas, sensações porque estivesse tentando criar formas ideais; o ideal de-
que, uma vez, existiram muito distantes umas das outras no veria ser independente: “Se um quadro for verdadeiro, ele
parte ii

Com ligeiras variações


tempo, no correr de vários anos. E, agora, essas sensações ti- será bom como quadro, e até sua pintura será necessa-
nham se tornado objetos, existiam simultaneamente ao meu riamente bonita”. 67 Quanto aos estereótipos rígidos, isso
redor e me deixavam totalmente encantado. 66 se deveria exclusivamente ao fato de ele, aqui, sentir-se
outra vez mais livre para agir quando operasse, ritua-
Quando Giacometti, mais tarde, sentiu que estava perto listicamente, dentro de uma estrutura firme, constante,
de descobrir uma forma para a “massa confusa de épo- repetitiva. Suas figuras apresentam-se como os painéis
cas, acontecimentos, lugares e sensações” na ocasião da eretos de diferentes larguras, separados por espaços va-
morte de T., essa forma foi a de uma construção circular zios em que ele pensou gravar sua história.
em torno dele, geométrica, regular e bem definida. “Eu “Mas os painéis ainda estão vazios. Não sei muito bem
sentia um raro prazer em me ver caminhando nesse dis- qual o valor das palavras ou de suas relações para poder
co tempo-espaço [...] com a liberdade de começar por onde preenchê-los.” Quando se tratava de uma peça preenchi-
quisesse.” Sensação de liberdade que foi descoberta numa da, era ainda com a ressalva, incansavelmente repetida,
estrutura rígida. de que os resultados eram provisórios, inacabados, que
Durante seus últimos trinta anos de vida, as obras de não eram o que ele pretendera. “Sei que é totalmente im-
escultura de Giacometti restringiram-se praticamen- possível para mim modelar, pintar ou desenhar uma ca-
te a três temas: o busto de um homem, um homem ca- beça, por exemplo, tal como a vejo, apesar de ser a única
minhando e uma mulher de pé, todos com figuras que coisa que tento fazer.” 68 Em vez de “apesar”, melhor talvez
olham diretamente para a frente. Dispondo de toda a fosse dizer “devido a impossibilidade”. Uma inabilidade
liberdade do artista moderno para fazer o que bem lhe confessada tão ostensivamente pode ser sintoma de am-
aprouvesse, Giacometti preferiu, no entanto, trabalhar bição desmedida, e ele sabia disso.
Tentar simplesmente desenhar um copo como você o vê pare- monstruosidade, pois proporciona uma ilusão tão per-
ce ainda uma tarefa bem modesta. Mas, então, constatando feita que “qualquer um perceberá que ela não é capaz de
que isso é praticamente impossível, já não sabe mais se se tra- se movimentar”. 73
ta de modéstia ou orgulho. 69
Se eu não soubesse que seu crânio tem uma certa profundida-
“Não sei se trabalho para fazer alguma coisa ou para saber de, eu não seria capaz de imaginar isso. Assim, se fizesse seu
por que não consigo fazer o que quero.” As dificuldades
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retrato de acordo com a percepção exata que tenho de você,
para contar sua história eram o reconhecimento de como poderia produzir uma escultura algo achatada, apenas le-
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as palavras são insuficientes para recriar a experiência. vemente modelada, que estaria muito mais próxima de uma
Além do mais, os problemas do uso de uma linguagem escultura cicladense, com sua aparência estilizada, do que
parte ii

Com ligeiras variações


tornaram-se parte do tema de suas esculturas e pinturas. de uma escultura de Rodin ou Houdon, com sua aparência
Os problemas que ele enfrentava para contar uma histó- realista. 74
ria resultavam do fato de as relações entre os aconteci-
mentos numa narrativa e os acontecimentos na realidade Quando se modela, pinta ou desenha ao vivo,
dificilmente se corresponderem, e os problemas que ele
enfrentava como artista resultavam do fato de ele preten- a única coisa que se copia é a visão que resta dele a cada
der que a aparência de uma imagem esculpida ou pintada instante, a imagem que se torna consciente... Você não copia
pudesse ser capaz de corresponder muito de perto à da nunca o copo sobre a mesa, você copia o resíduo de uma visão.
realidade. [...] A gente o vê como se ele desaparecesse... ressurgisse... de-
Se a escultura de uma mulher em bronze for executada saparecesse... ressurgisse... isto é, ele se encontra realmente
da mesma altura e largura de uma mulher real e necessi- entre o ser e o não ser. E é isso que se quer copiar. 75
tar “de quatro homens com máquinas para locomovê-la,
isso já não basta para dizer que ela falseia a realidade?”. 71 E a incerteza tinha de ser copiada com certeza. Copiar a
Se uma escultura externamente semelhante a uma cabe- incerteza era algo que advinha, por meio da junção de ob-
ça for de bronze, ela é oca por dentro, se for de pedra, ela é servações contraditórias e precisas, da cópia com certeza.
uma pedra sólida; seja de um ou de outro modo, ela nada Copiar não era uma questão de trabalhar a partir da dúvi-
tem de uma cabeça real, “pois não existe um só milíme- da para a clareza; era uma questão de ser conduzido pela
tro dentro de uma cabeça que não seja orgânico”. Se na 72
clareza para se chegar à dúvida.
busca por semelhança uma escultura for pintada com Os problemas e paradoxos semânticos presentes na
cores naturalistas, ela facilmente poderá tornar-se uma arte de Giacometti não parecem ter sido especificamen-
te buscados, como aconteceu com os cubistas. De certo
modo, foi a busca da semelhança que o fez incorrer nas
contradições e absurdos que, se estão visíveis em sua
obra é porque ele conscientemente se recusou a evitá-los.
O que ele se propôs foi menos a mostrá-los que a deixar
que se mostrassem sem disfarçá-los.

8
136
parte ii

Perder e achar
a necessidade de repetição era insaciável e abrangente. de observação – as duas coisas deveriam entrelaçar-se com
Ela se aplicava tanto ao método quanto ao tema: sua ma- perfeição. 77
neira habitual de executar uma obra era a de incessante-
mente construir e apagar, construir e apagar. Aplicava-se De certo modo, uma ajudou a outra. Certo dia no verão de
também tanto ao modelo quanto à sua pose: das milhares 1960, ele comentou que o progresso conseguido no dia ante-
de horas gastas em seus últimos trinta anos de vida traba- rior num retrato que estava pintando com modelo-vivo ha-
lhando com modelo, todas, com exceção de uma mínima via sido vital para o progresso decisivo naquela noite com
porcentagem, foram gastas com nove modelos – oito a uma figurinha em que estava trabalhando de memória.
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mais do que teria usado, se tivesse podido escolher, con- Esse era o retrato para o qual eu estava posando. As
forme ele algumas vezes dava a entender. sessões costumavam começar entre três e quatro horas
parte ii

Perder e achar
A maioria das pinturas e desenhos durante esses trinta e prosseguir até as sete e meia, quando a luz desaparecia
anos foi feita com modelo-vivo, e nos últimos dez anos so- e ele passava a trabalhar sob luz elétrica (vinda de uma
mente muito poucas pinturas foram executadas de memó- única lâmpada de tungstênio) com Isaku Yanaihara, que
ria. Houve um período – de 1935 a 1939 – em que algumas estava posando para um retrato e um busto de gesso qua-
poucas esculturas foram feitas de memória, e outro – de se em tamanho natural. (Os vários retratos de Yanaiha-
1939 a 1953 – em que poucas foram feitas de observação, ra tinham sido feitos enquanto ele trabalhava em Paris;
mas, a partir daí, houve praticamente a mesma quantida- daquela vez, ele havia vindo do Japão expressamente
de de trabalhos de memória e de observação. Uma vez que para posar. Giacometti estava tendo de trabalhar além
uma das práticas lidava com tudo que estava diante dele do horário normal e estava preocupado por ter trazido
em toda a sua complexidade e a outra com o que ficou na por engano esses dois modelos a Paris ao mesmo tempo,
cabeça, o resultado forçosamente tinha de ser diferente: e não queria desapontá-los. Estava, é claro, pagando nos-
sas despesas, e mais de uma vez me disse rindo que o
A verdade está entre as duas práticas – a verdade relativa da preço da passagem aérea de Yanaihara havia feito dele
percepção, pelo menos [...]. Mas nenhuma delas está realmen- o modelo mais caro da história da arte.) Normalmente,
te certa, o que leva a continuar sempre tentando. 76
ele parava de trabalhar perto da meia-noite e, então, saía
para comer numa brasserie e depois beber num bar ou
Ele esperava unir os dois pontos de vista. num cabaré. Quase sempre me convidava para ir junto
e às vezes chamava Caroline. Quando eu disse que ele já
Em última análise, minha ideia seria trabalhar exatamen- devia estar farto de me ver dia e noite sem parar, respon-
te da mesma maneira, não importa se de memória ou se deu que quem trabalha junto janta junto. (Yanaihara não
ia conosco porque estava se encontrando com Annette.) de jogadas alternativas. Nesses momentos, normalmente,
Chegando em casa por volta das quatro ou cinco da ma- punha-se a tagarelar, e se contasse histórias de si mesmo
nhã, ia trabalhar de memória durante uma ou duas ho- não se ridicularizava com o rigor que lhe era habitual. Ha-
ras, ou até mais, na figurinha. via três momentos durante a sessão em que deixava claro
Eu já tinha posado vinte sessões daquelas de três ou que queria silêncio. Era quando começava a murmurar
quatro horas para meu retrato e provavelmente teria ha- sozinho, soltando frequentemente um palavrão ou uma
vido muitas outras se eu não tivesse de deixar Paris. Na exclamação de lamento: que ele não sabia pintar, que lhe
primeira sessão, ele começou duas pinturas – uma enor- faltava ousadia, por que estaria eu perdendo meu tempo a
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me tela para um retrato em tamanho petite nature (três posar para ele, que até colocar o pincel na tela era difícil.
quartos do natural) em close-up; médio e outra pequena Eu nunca o ouvia falar assim quando estava trabalhando
parte ii

Perder e achar
para um busto em close-up, que foi posta de lado já no de memória, mas era frequente vê-lo agir dessa maneira a
segundo dia. Pintava sentado, aplicando rapidamente respeito de uma escultura quando acontecia de eu estar no
tinta rala, quase sempre com pincéis de pelo de marta. ateliê, simplesmente porque uma visita não era razão para
Seu olhar movia-se entre a tela e o modelo com ligeireza, interromper o trabalho. Além do mais, segundo alguns
quase continuamente; raras vezes hesitava antes de dar relatos, também Cézanne e Matisse soltavam os mesmos
uma pincelada. Jamais se levantava para olhar o quadro palavrões e lamentos quando estavam pintando de obser-
à distância. Esperava até a próxima pausa para ter uma vação um modelo ou um motivo: não há dúvida de que
visão mais afastada – mas, no caso dessa pintura, grande o trabalho na presença do tema tende a gerar desespero.
demais para seus padrões usuais e para o tamanho exí- Se as coisas estivessem indo mais ou menos bem, durante
guo de seu ateliê, ele às vezes a carregava para o lado de certo tempo as palavras mágicas recorrentes paravam e
fora. Em geral, havia três paradas durante uma sessão: ele passaria a conter sua tensão. Isso geralmente acontecia
duas para eu esticar minhas pernas e outra maior para meia hora antes de acabar a sessão, quando o trabalho esta-
tomarmos café num bar próximo. va progredindo melhor, talvez porque a luz fraca ajudasse,
Durante dois terços do tempo, ele costumava trabalhar talvez porque já estivesse mesmo chegando a hora de parar.
relaxado, conversando muito à vontade e ouvindo com Ao cabo de vinte sessões ainda apareciam pedaços de
atenção. Sua conversa era mais solta e não tão polêmica tela crua como na pintura alla prima, e desde a primeira
quanto de costume. Em geral, tendia a se tornar veemen- sessão a camisa e as calças mal haviam sido tocadas. Todo
temente analítica como se fosse um jogo de xadrez em o trabalho concentrava-se na cabeça. Todas as vezes que
que, depois de pegar numa peça, ele voltava a arrumar o eu posava, ela era desfeita e refeita. Giacometti apagava
tabuleiro na posição anterior e experimentava uma série pintando cuidadosamente por cima. Raramente raspava
a pintura. Nunca – durante todo o tempo em que posei va a uma coisa que havia visto, mais consciente ficava no
e essa sem dúvida era também uma de suas característi- dia seguinte de serem justamente aquelas coisas no mo-
cas – ele destruía impensadamente uma área. A demoli- delo que contradiziam o que estava na tela – como se isso,
ção se fazia gradual e deliberada; de fato, ela parecia levar por estar na tela, agora fosse subtraído de sua percepção
mais tempo do que a pretensa reconstrução, pois, eviden- do modelo. Cada dia de trabalho parecia uma tentativa de
temente, já era o começo da reconstrução (essa talvez a conciliar as contradições entre o que fora conseguido até o
razão por que evitasse raspar). Perder e achar era um pro- momento e o que emergia enquanto estava olhando.
cesso contínuo. A perda diária daquilo que estava ali antes não tinha
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143
Às vezes, no final do dia, tínhamos uma cabeça suave- a menor importância para ele, mesmo que, na noite ante-
mente figurada, atmosférica; outras, uma cabeça rígida, rior, lhe tivesse parecido satisfatório: o valor da obra feita
parte ii

Perder e achar
dura. Uma pequena área, o meio da testa, permaneceu até aquele momento estava no que ele aprendera enquan-
relativamente inalterada como se esse plano central ver- to a realizava. Ele pareceu realmente gratificado com o
tical servisse de point d’appui. Em certo estágio, depois de resultado obtido no fim de certos dias, quando já estava
alguns dias, a cabeça havia ganhado uma coloração lu- próximo o término das sessões; mais, talvez, do que com o
minosa, predominantemente terracota; um ou dois dias estado final – e, de fato, a comparação das fotografias (tira-
depois, no entanto, estava cinzenta e escura; posterior- das por Herbert Matter) 78 dos sucessivos estágios mostra
mente, a cor forte voltou e tornou a desaparecer. A inten- que pelo menos o penúltimo estava visivelmente melhor
ção subjacente parecia ser, segundo ele dizia muitas vezes, do que o último; o mesmo aplica-se a outro retrato, o de
conseguir que o nariz desse a impressão de se projetar do James Lord, 79 que teve também seus estágios registrados.
rosto como na arte bizantina e dar à cabeça a presença de Já que eu estava disponível para continuar indo às sessões,
uma estátua de Gudeia – diversas vezes ele falou, aludin- ele não via razão para não continuar com a pintura. Uma
do à minha ancestralidade, da antiga relação entre judeus abordagem impiedosamente dialética bloqueava a ideia
e caldeus. de chegar a uma conclusão. Como disse ele a Lord: “É isto
A pintura desenvolvia-se da mesma maneira que a con- o terrível: quanto mais se trabalha numa pintura, mais
versa de Giacometti normalmente se desenvolvia: uma li- é impossível terminá-la”. 80 As circunstâncias decidiriam
nha de argumentação era levada ao extremo, depois, uma quanto tempo ele levaria num quadro e quando iria parar.
linha oposta começava a predominar e era levada ao extre- Ou então, como muitas vezes acontecia, continuaria até
mo; qualquer afirmação tinha de ser equilibrada em rela- haver uma quantidade tal de camadas de tinta que tecni-
ção à sua antítese; a realidade não era “ou uma ou outra”, camente lhe impossibilitavam de prosseguir. Esse era o
mas “tanto uma como a outra”. Quanto mais ele se agarra- ponto em que às vezes raspava.
Quando modelava, ele não conhecia barreiras técni- na. Sem dúvida era ditado pelo desejo de trazer quase que
cas que o impedissem de continuar indefinidamente. No instantaneamente uma presença humana saída do nada.
início de 1964, começou a modelar ao vivo um busto de
Eli Lotar; após quatrocentas sessões, tinha completado Mesmo quando se trabalha com modelo-vivo, deve-se tentar
essa obra e uma outra, além de ter uma terceira em an- realizar toda a coisa numa sessão relativamente curta. Mas
damento quando, no fim de 1965, sua doença terminal não é isso o que tenho feito. 81
veio interromper-lhe as atividades. Quando trabalhava
com modelo-vivo, as idas e vindas da forma eram um No entanto, trabalhar de memória
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processo gradual e contínuo: ele eliminava uma parte,
reconstruía-a, dava-lhe mais nitidez, suavizava-a, cons- não se trata de fazer uma coisa precisa ou de tentar entender
parte ii

Perder e achar
tantemente modificando aqui e ali, às vezes, concentra- o que se vê, é mais a realização de um efeito, que deveria ser
do, demorando-se horas num detalhe, às vezes, com um razoavelmente simples e não fazer mais do que aquilo que
safanão, demolindo-a, apesar de jamais se afastar do de- pode ser visto de relance. 82
lineamento geral da massa. Por outro lado, as esculturas
de memória oscilavam violentamente entre o ser e o não Aqui, não existiam retoques, as mudanças eram feitas de
ser. Ele tanto poderia extirpar continuamente o gesso até dentro para fora, a imagem tinha de ser indivisível ou en-
chegar à armação como comprimir a argila ou plastilina tão nada.
até voltar a uma massa informe que lhe permitisse, do O método de Giacometti, por conseguinte, consistia
ponto de partida, construir tudo de novo com extrema em aliar uma rapidez de execução quase sempre extrema
rapidez. Uma cabeça ou uma figura pequena poderia ser a uma extrema perseverança no trabalho. Mas, de vez em
inteiramente demolida e refeita várias vezes sempre que quando, podia acontecer que uma escultura de memória
fosse trabalhar nela e até mesmo uma figura de tamanho fosse deixada como apareceu de primeira, isto é, execu-
natural poderia, em poucas horas, ser construída a partir tada em poucas horas de uma só vez: em 1947, a Cabeça
da armação; poucas horas lhe bastariam para demolir e sobre uma haste (Tête surtige), o Nariz (Le Nez) e a Mão (La
reconstruir meia dúzia de diferentes estatuetas. O proce- Main) (obras que foram executadas em dois ou três dias,
dimento era repetido várias e várias vezes durante sema- em duas versões ligeiramente diferenciadas); em 1950,
nas ou meses a fio. O homem que cai (L’Homme qui chavire) e Figurinha numa
Talvez o método fosse ditado pelo mesmo tipo de com- caixa entre duas casas (Figurine dans une boîte entre deux
pulsão que leva um escritor a recomeçar do zero numa fo- maisons); em 1951, Cachorro (Le Chien) e Gato (Le Chat);
lha limpa de papel todas as vezes que vai rever uma pági- em 1958, a Perna (La Jambe). A maioria das esculturas
alla prima possui temas que não estão entre os três te- cristalização da imagem precede sua execução e a obra
mas recorrentes e quase todas com esses temas são obras cuja imagem se cristaliza a partir da execução.
alla prima. Quando perdia o interesse em continuar trabalhan-
A maneira alla prima de trabalhar operava quando ele do numa peça ou já estava farto dela, ele tanto poderia
já tinha na cabeça uma ideia clara e definida de uma es- fundi-la em bronze como destruí-la, como também pô-la
cultura antes de começar a executá-la. Uma vez visualiza- de lado e resolver tempos depois (às vezes cinco ou seis
da previamente, a realização da obra, conforme dizia ele, anos mais tarde) se a deixaria ou não sair do ateliê. Mas
não apresentava nenhuma dificuldade. ele poderia igualmente deixar que uma peça fosse embo-
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ra por ter prometido alguma obra para uma exposição
Sua execução chega a ser quase entediante. Você quer vê-la. e não querer ficar em falta com ninguém. No outono de
parte ii

Perder e achar
Ela está na sua imaginação. Você precisa vê-la executada, 1950, posto contra a parede por causa do prazo final para
mas a realização propriamente é irritante. Se você pudesse uma exposição na Galeria Pierre Matisse, teve de refazer
ter a obra feita por outra pessoa, ficaria contentíssimo!  83 totalmente um bom número de obras importantes no
decorrer de uma noite. Ele gostava tanto de se vangloriar
Mas já que era ele mesmo quem tinha de fazer, o negócio desse feito que chegava a contar que havia refeito a ex-
era acabar o mais rápido possível. A velocidade e a cer- posição inteira numa só noite, embora omitisse o fato de
teza da execução punham em ação uma extrema facili- todas as peças já terem sido feitas muitas e muitas vezes.
dade e uma confiança desmedida nessa facilidade. Mas Em outras ocasiões, promessas eram quebradas e exposi-
fazer a coisa era “quase entediante”, as poucas horas gas- ções canceladas. Mas quando permitia que uma cabeça
tas poderiam ser mais bem aproveitadas para modelar ou uma figura de pé saísse do ateliê, era porque estava cer-
uma cabeça ou uma figura ereta ou para se sentar, pela to de que, imediatamente, começaria a trabalhar numa
milésima vez, em frente de um de seus modelos tentan- outra. Uma escultura não era menos provisória no mo-
do pintar um nariz que se projetasse do rosto. Somente mento em que havia sido abandonada para ser fundida do
a atividade repetitiva contava, o resto era marginal. As que fora incontáveis outras vezes quando ficava no ateliê
esculturas com temas que ele abordava uma só vez e pu- até ser demolida.
nha de lado eram em sua maioria feitas de um só fôlego Algumas vezes, de fato, ele mandava fundir em bronze
e abandonadas em seguida; já as que exploram os temas vários estágios de uma obra em andamento. Preparando
persistentes eram persistentemente refeitas. A diferença sua exposição para a Bienal de Veneza de 1956, ele tra-
entre sua obra de memória e sua obra com modelo-vivo balhou de memória durante talvez três semanas numa
importa menos que a diferença entre a obra em que a única figura de pé, usando sempre a mesma armação e
praticamente a mesma argila. De vez em quando, fazia sair bem uma segunda vez. Na segunda vez nunca fica tão
um modelo de gesso da figura. Apresentou seis destes boa, a peça começa a degringolar. 84
na Bienal, em seguida fundiu-os em bronze. De novo, no
início dos anos 1960, fundiu em bronze nove estágios de É provável que quando se via saturado de fazer mais de
um busto de Annette feito de observação. Nessas séries, o uma vez obras como a Perna ele estivesse sendo cautelo-
último dos estágios não parecia mais definitivo do que os so. Mas não havia cautela quando se tratava de fazer uma
anteriores. Todos eram provisórios. E, segundo seu pon- figura de pé ou uma cabeça. “Quando sinto que não es-
to de vista, cada cabeça ou figura de pé era um estágio, tou querendo largar a obra, volto para ela. E quando paro,
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quase nem parecendo ser uma etapa para o seguinte. Ele não é por achá-la mais completa ou melhor; é porque essa
não hesitava em repreender pedantemente alguém que se obra, naquele momento, deixou de ser necessária para
parte ii

Perder e achar
referisse a alguma de suas obras em termos de “acabada”: mim.” 85 Na época em que refez várias peças numa noite,
ficava difícil e cômico achar palavras capazes de expressar ele percebeu que as esculturas não estavam tão boas no
totalmente a distinção pragmática entre as coisas em que final quanto haviam estado no dia anterior; no entanto,
ele ainda continuava trabalhando e peças que já há mui- nem por isso deixou de enviá-las.
to tempo estavam consagradas nos museus do mundo. Mas sentiu que podia melhorar as figuras das Quatro
O desfazer e refazer de Giacometti era a antítese do figurinhas sobre uma base (Quatre figurines sur socle) e, por
modo do perfeccionista que objetiva concluir uma obra- isso, autorizou que somente uma da edição de bronzes
-prima única e esplêndida antes de morrer. Suas demoli- fosse fundida. Continuou a trabalhar nas estatuetas,
ções não passavam de uma limpeza do terreno para que montadas em cima da base de bronze e expôs a obra
pudesse prosseguir. Mas até onde a repetição infindável ainda por acabar em Paris em 1951 – esse, um exemplo
do processo seria determinada por suas intenções estéti- típico de seu hábito de expor gessos inacabados junto de
cas, até onde seria somente uma questão de ritual? Quan- bronzes –, em seguida, durante certo tempo, prosseguiu
do perguntado se achava que uma escultura tinha mais trabalhando nelas de maneira descontínua, sem chegar
possibilidade de ser melhor depois de refazê-la cinquenta a concluí-las. Durante anos, o bronze encimado por qua-
vezes do que depois de 25 vezes, respondeu: tro armações nuas ficou esquecido em seu depósito. Em
1965, quando fui selecionar peças para sua retrospectiva
Claro que não. Talvez nem melhor do que na primeira vez. em Londres, disse-lhe que gostaria de incluir principal-
O que acontece é que, ao fazer uma coisa muito rapidamente mente essa obra e ele se dispôs a fazer novas figurinhas
e ela ficar boa, eu acabo desconfiando da própria velocidade. para ela. Começou a trabalhar e trouxe-as para Londres
Quer dizer, vou querer começar de novo para ver se vou me dentro de uma pasta de documentos: elas eram de gesso
pintado e ligeiramente mais baixas e roliças que suas pre-
decessoras. Enquanto a exposição estava sendo instalada
na Tate, ele ia fazendo esculturas no porão e, entre outras,
uma nova versão das quatro figurinhas, agora mais del-
gadas do que as do conjunto que trouxera, e as quais ele
preferia. Mas usara um gesso comprado em Londres que
não tinha a qualidade com que estava acostumado e as
figurinhas, enquanto eram trabalhadas, iam se inclinan- 9
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do até desmoronar. Quebrou-as, pretendendo refazê-las


com as mesmas proporções num gesso de melhor quali-
parte ii

Uma coisa totalmente desconhecida


dade, só que quando o gesso chegou de Paris ele já estava
envolvido com outras coisas e nunca mais voltou a pegar
nas estatuetas. Algumas semanas depois, concordou em
fornecer à Tate um bronze das Quatro figurinhas sobre uma
base. Se ele não tivesse morrido pouco tempo depois, es-
tou certo de que teria feito as estatuetas novamente antes
de fundi-las em bronze.
Ele sempre teve tendência a permitir que as circuns-
tâncias decidissem o destino de sua obra mais do que a
insistir em controlá-lo. Seu interesse não era produzir os
melhores resultados de que fosse capaz e sim pôr à prova
constantemente sua capacidade.

Eu vejo alguma coisa, acho-a maravilhosa, quero tentar fazê-


-la. Se não der certo ou se no fim acabar dando certo, isso é
secundário; de um ou outro modo terei progredido. Se avanço
errando ou se avanço ganhando um pouco, eu, pessoalmente,
sempre terei ganhado. Se não houver quadro, será uma pena.
Contanto que eu aprenda alguma coisa sobre o porquê... 86
giacometti veio de um lugar muito particular, um vale tina vindos do Piemonte e, mais recentemente, do sul (ele
elevado e estreito onde o sol é invisível durante três me- achava que foi um siciliano que fez os ofícios fúnebres
ses do ano. O Val Bregaglia, onde nasceu e cresceu e para no enterro de sua mãe, e um napolitano no de Alberto);
onde constantemente voltava, vai de Maloja, pelo lago eram muito mais bem pagos do que párocos católicos,
Sils, numa extensão de vinte quilômetros na direção oes- eles possuíam Alfas Romeos e moravam nas melhores
te até Chiavenna, perto do lago Como, cruzando a frontei- casas. Embora nos últimos tempos alguns bregaglianos
ra entre a Suíça e a Itália em Castasegna. Nos dois lados tivessem passado para o lado de Roma, os irmãos Giaco-
do vale, as montanhas alcançam mais de três mil metros metti vinham de famílias protestantes pelos dois lados,
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de altitude: ao norte, elas são verdejantes com florestas de e a mãe era uma devota fervorosa. Eles, claro, não eram
faias, castanheiras e pinheiros; ao sul, são cristalinas e es- devotos, mas talvez valha a pena ver Alberto como um
parte ii

Uma coisa totalmente desconhecida


carpadas. O vilarejo de Giacometti, Stampa, fica a poucos protestante italiano.
quilômetros da fronteira, sendo, por isso, normal descer Nascido em 1901, ele era o mais velho e Diego, o segun-
até a Itália para um passeio vespertino – não que a fron- do dos quatro filhos de Giovanni Giacometti e Annetta
teira importasse muito naquela época. A casa da família Stampa – os outros dois eram Ottilia e Bruno. Giovanni
ficava no lado oposto da estrada, vindo da margem do rio Giacometti foi um pintor pós-impressionista que estava
Mera, regato caudaloso no verão e uma placa de gelo no entre os principais artistas suíços de sua época, embora
inverno; para além do Mera, ao norte, avultavam as en- bem menos eminente que seu primo Augusto, também
costas arborizadas do Piz Duan com seu pico a dois mil de Stampa, e que seus amigos Segantini, Cuno Amiet, pa-
metros de altura. A casa de verão em Maloja – uma enor- drinho de Alberto, e Hodler, padrinho de Bruno. A vida
me residência de três andares, usada principalmente para em Stampa e Maloja era tão ordenada quanto rarefeita,
o conforto das crianças – era um lugar, apesar de muito regida pelo caráter controlador de Annetta – que fez tudo,
mais selvagem do que hoje, essencialmente benigno, pois menos sobreviver a Alberto –, permeada pela solidarieda-
nas montanhas que o cercam não havia nada da ameaça de familiar e talvez por uma harmonia opressiva: Giaco-
e da grandiosidade severa das encostas íngremes e rocho- metti me contou que, quando criança, nunca ouviu seus
sas que dominam Stampa ao sul. pais brigando, e imagino que isso talvez tenha sido por
Giacometti pertencia a um lugar à parte e a uma raça à seu pai invariavelmente ceder.
parte. Os bregaglianos, cerca de dois mil na época em que As coisas mostraram-se fáceis para ele se tornar artis-
nasceu, são italianos, mas protestantes desde 1529 (e não ta. Tinha um rosto bonito, fala inteligente, era brilhante
existem outros na Suíça italiana). Seus pastores, segundo na escola e bem depressa demonstrou incrível facilidade
me disse Diego, eram em geral padres que largaram a ba- para pintar e esculpir. Seu pai era um artista de sucesso
suficiente para ajudá-lo mas não tão bem-sucedido a pon- lidar com a indiferença do mundo em geral; ao passo que,
to de desmoralizá-lo. Proporcionou-lhe todo o incentivo já antes dos trinta anos, Giacometti era reconhecido por
de que precisava, enviou-o a Genebra, à Itália e a Paris críticos, marchands, colecionadores e colegas de profissão
para estudar, e continuou a mantê-lo quando já não era como um excelente artista. Mas a grande diferença é de
mais estudante. Alberto estabeleceu-se em Paris, claro, caráter interno. O ponto de partida de Cézanne foi qual-
mas ia a Stampa e Maloja praticamente todos os anos; quer coisa menos a facilidade e elegância italianizadas de
por sinal, quase as únicas viagens que fez durante toda que Giacometti se valeu como apoio inicial. Sem dúvida,
a sua vida. ele pintou obras-primas antes dos trinta, mas somente en-
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Paris era tão aberta quanto Stampa era fechada, tão contrando uma técnica paliativa que lhe permitisse ma-
fluida quanto Stampa era constante. Mas tanto em Paris terializar sua visão. Sua luta foi desesperada para obter a
parte ii

Uma coisa totalmente desconhecida


como em Bregaglia Giacometti criou raízes e encontrou o destreza que apresentou na maturidade e, mesmo então,
mesmo pouso estável. Em 1927, dois anos depois de ele e podia ainda desembocar em revisões forçadas e canhes-
Diego terem se instalado no primeiro ateliê, mudaram-se tras. Giacometti dava a impressão de passar a maior parte
para outro, um pequeno aposento que permaneceu seu de sua vida tentando negar a destreza com que havia co-
ateliê para o resto da vida. Contudo, ele jamais levou ali meçado. Cézanne só podia achar a arte difícil; Giacometti
algum tipo de vida doméstica: as refeições e as bebidas poderia tê-la achado fácil se não tivesse percebido como
eram feitas e tomadas em cafés e restaurantes. Seu enrai- ela é transformável em algo difícil.
zamento na rua Hippolyte Maindron tinha limites. Seu No princípio, não existia crise de confiança.
lar era Stampa.
O incentivo moral que lhe dava a família foi um fator Eu era de uma pretensão aos dez anos... Eu me admirava,
fundamental para a enorme diferença que separa a his- achava que podia fazer qualquer coisa com essa arma ma-
tória de Giacometti da de outro mestre com quem ele é ravilhosa: o desenho; que podia desenhar o que quisesse, que
constantemente comparado pelo fato de ambos haverem podia ver com mais clareza que qualquer um. Comecei a fa-
lutado dura e heroicamente para representar a realidade zer escultura por volta dos quatorze anos, um pequeno busto.
à sua própria maneira. Cézanne teve não somente de li- E aí também dava certo! Tinha a impressão de não existir a
dar com a forte oposição dos pais, que não queriam vê-lo menor barreira entre minha visão e a possibilidade de fazer.
transformado em artista, como também de lidar com o Eu dominava minha visão, era um paraíso e isso durou até
escárnio do famoso escritor que havia sido seu melhor mais ou menos os meus dezoito ou dezenove anos, quando
amigo na juventude. Fora isso, e a despeito da grande ad- comecei a perceber que não podia fazer mais coisa nenhuma!
miração que conquistara de outros artistas, teve ainda de Gradualmente, as coisas foram se deteriorando... A realidade
me escapava. Antes, achava que via as coisas com clareza, como o pai tinha feito e ele mesmo fizera junto de seu pai.
que tinha uma espécie de intimidade com tudo, com o uni- E continuando, por assim dizer, a obra do pai, seu modelo
verso... Então, subitamente ele se tornou um estranho. Você é mais constante foi o irmão que havia posado para o busto
você e há o universo fora, literalmente obscuro... 87
que fora sua primeira escultura; também sua mãe serviu-
-lhe de modelo, como quando ele ainda era menino. E
As dificuldades surgiram quando começou a trabalhar durante os primeiros dois ou três anos desse trabalho, as
com modelo. Durante sua estada na Itália “a cabeça do esculturas – não as pinturas – de um artista reconhecido
modelo diante de mim parecia uma nuvem, uma coisa como um dos principais escultores de sua época torna-
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vaga, ilimitada”. Em Paris, de 1922 a 1925, quando ten-
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ram-se obras de um estudante.
tou trabalhar com modelo-vivo no ateliê de Bourdelle, Na ocasião em que embarcou nessa problemática via-
parte ii

Uma coisa totalmente desconhecida


“a distância entre uma narina e outra é como o Saara, não gem, ele não estava nem um pouco consciente daquilo
tem limites, nada é fixo, tudo foge”. Depois de três anos
89
com que estava se envolvendo. Havia “o desejo”, escreveu
de frustrações, alugou um ateliê, decidido, “em desespe- retrospectivamente,
ro de causa”, 90 a trabalhar sozinho e de memória.
Durante os dez anos seguintes praticamente todas as de realizar composições com figuras. Para isso, eu precisa-
suas esculturas saíram de sua cabeça, embora tenha feito va fazer (rapidamente, supunha, en passant) um ou dois
desenhos de observação e algumas pinturas, geralmente estudos de observação, o suficiente apenas para entender
em sua casa durante o verão. Ele terminou cerca de cin- a construção de uma cabeça, de uma figura inteira, e, em
quenta esculturas nessa ocasião. 1935, contratei um modelo. Esse estudo (pensei) me tomaria
duas semanas e, depois desse tempo, eu queria executar mi-
Foi uma época bastante feliz. Eu passeava, trabalhava e o nhas composições. 92
trabalho em si não apresentava dificuldades. Fazia o que
queria. Mas sabia que, qualquer coisa que fizesse ou que qui- Essas composições, segundo me disse, eram para ser obras
sesse, um dia eu iria ter de sentar num banco diante de um do gênero de O objeto invisível, e, sem dúvida, parte das di-
modelo e tentar copiar o que vejo – mesmo sem esperança de ficuldades que tivera para executar a cabeça dessa peça é
consegui-lo. 91
que fez com que sentisse a necessidade de “entender a cons-
trução de uma cabeça”. Mas isso não levou duas semanas.
O retorno a um trabalho sistemático com modelo-vivo
aconteceu um ano mais ou menos depois da morte de seu Trabalhei com modelo-vivo todos os dias de 1935 a 1940.
pai, em junho de 1933. Ao fazer isso, estava trabalhando Nada era como eu tinha imaginado. Uma cabeça (logo deixei
de lado as figuras, era coisa demais) tornou-se um objeto to- – quando foi atropelado por um automóvel em 1938 –, as
talmente desconhecido, sem dimensões. “Quanto mais eu
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cabeças começaram a aparecer numa escala muito menor
olhava para o modelo mais espessa ficava a cortina entre a e bem mais finas e comprimidas.
realidade dele e mim. Você começa vendo a pessoa que posa, Se, por um lado, a maior parte das esculturas desses
mas pouco a pouco todas as esculturas possíveis se inter- anos não tem muita semelhança com as da maturidade
põem... entre o modelo e você. Quanto mais sua visão real de Giacometti, por outro há um pequeno grupo de pin-
desaparece, mais desconhecida se torna a cabeça. 94
turas do período em que o estilo de pintar de sua matu-
ridade já está praticamente formulado, sobretudo num
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Durante aqueles cinco anos Diego posou para ele na parte retrato de sua mãe e numa natureza-morta – uma única
da manhã e, na parte da tarde, Rita, um modelo profissio- maçã sobre um aparador – pintados em Stampa em 1937.
parte ii

Uma coisa totalmente desconhecida


nal. Algumas vezes também trabalhou com uma inglesa Eles refletem a influência de Cézanne e talvez também a
que amava, à distância, até 1940. Chamava-se Isabel – nas- de Derain, com quem Giacometti se encontrava constan-
cida Isabel Nicholas, depois Isabel Epstein, conhecida em temente na época, e ambos têm alguma afinidade com a
geral como Isabel Delmer e, mais tarde, Isabel Lambert e obra de seu amigo íntimo Francis Gruber: não que tives-
Isabel Rawsthorne. Periodicamente, as obras em que esta- sem qualquer coisa do expressionismo de Gruber, mas
va trabalhando eram moldadas em gesso – algumas destas têm algo a ver com sua maneira nervosa e agressiva de
foram mais tarde fundidas em bronze e de outras se tem o desenhar com tinta.
registro fotográfico. Duas fotos tiradas no inverno de 1935- Nesse meio-tempo, o trecho de uma carta escrita para
36 mostram uma cabeça de Diego modelada grosseira- Isabel em 1938 fornece o prenúncio de uma visão do es-
mente, com transições bastante abruptas entre os planos, paço que dentro de poucos anos se tornaria explícita em
compacta, forte, parruda. Uma cabeça de Isabel ainda exis- seus desenhos e pinturas e implícita nas esculturas.
tente, provavelmente datada do inverno seguinte, mostra
uma figura com acabamento liso e estilizada à maneira Sinto-me totalmente incapaz de descrever para você a coisa
egípcia. As versões ou os diferentes estágios das cabeças maravilhosa que vi em meu quarto antes de ontem. Deitado
de todas essas peças, datadas de 1937-38, apresentam uma ao entardecer, caí no sono e quando acordei, por volta das
modelagem mais branda e têm as feições mais particula- seis horas, olhei para o teto branco e reparei em duas grandes
rizadas, a visão um tanto indeterminável, como se fossem manchas que nunca havia visto antes; então, olhei para o res-
estudos de modelo-vivo feitos numa escola de arte, com to do teto e de repente vi bem à minha frente um fio como se
exceção de uma bela cabeça de Isabel visivelmente imi- fosse uma teia de aranha, só que era um fio de poeira, um fio
tada de Rodin. Depois de ter interrompido os trabalhos muito, muito fino que pendia do teto muito alto, tão fino que
eu não saberia dizer exatamente de onde pendia, de que pon- ainda não tinha visto nenhuma dessas figuras, ele descre-
to na superfície branca, mas um pouco abaixo, ficava mais ve: “A figura é você quando, muito tempo atrás, a vi de re-
grosso, depois voltava a ficar fino e, na parte mais baixa, ha- lance, de pé e imóvel, no bulevar Saint-Michel, num final
via uma bolha. O fio agitava-se mesmo com a janela fecha- de tarde [...]”. 96 Em entrevista dada em 1963, ele disse ter
da, fazendo um movimento contínuo e descrevendo grandes visto a figura – recorrente em sua obra – como um retrato,
curvas, elevando-se, abaixando-se e impelindo sua cabeça o retrato de uma inglesa.
ou mantendo-a quase parada enquanto seu corpo fazia os
mais variados e inesperados movimentos; ele era como um Porque a escultura que eu queria fazer dessa mulher era a
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animal em sua movimentação alucinante, uma cobra, mas da visão muito precisa que tive dela no momento em que a vi
jamais algum animal fez movimentos tão lindos, sou total- de relance na rua, a certa distância. Por isso, minha intenção
parte ii

Uma coisa totalmente desconhecida


mente incapaz de descrevê-los, leves, circulares e sempre dife- foi fazê-la do tamanho que ela tinha a essa distância. [...] isso
rentes. Naturalmente, eu tinha impressão de estar lá no alto, aconteceu no bulevar Saint-Michel, à meia-noite. Eu podia
olhando para baixo. Deve parecer absurdo escrever isso ou ver a vasta escuridão por cima dela e algumas casas; assim,
eu deveria saber como escrevê-lo, mas tenho certeza de que o mais certo para reproduzir essa impressão teria sido fazer
você teria achado que vale a pena observar, ele era também uma pintura e não uma escultura. Ou então uma enorme
como uma bailarina com uma graça e sensibilidade infinitas. base de modo que o conjunto correspondesse à visão. 97
Havia ainda movimentos que começavam no alto e se encres-
pavam como ondas até a ponta de baixo, que visivelmente se Isso era o que estava por trás da famosa descrição, na car-
mexia. Por fim, levantei-me e fiquei em cima da cama para ta a Pierre Matisse, do que lhe havia acontecido em 1939
vê-lo mais de perto: era encantador, incompreensível (parecia (ele escreveu em 1940), quando parou de modelar cabeças
uma série de pequenas bolhas), e não sei como era capaz de do natural e começou a trabalhar de memória, como ex-
resistir a todos aqueles movimentos. Desde então, não tenho plica ele,
olhado muito para ele, mas sei que está lá, até um pouquinho
mais comprido (e sua sombra também). 95 principalmente para ver o que tinha restado depois de todo
esse esforço. [...] Mas ao querer fazer de memória o que eu
Quando começou a trabalhar de memória em 1939, ele fez tinha visto, para meu horror, as esculturas iam ficando cada
figuras e cabeças, mas principalmente figuras – minúscu- vez menores. Só quando pequenas é que guardavam seme-
las figuras que foram os protótipos de todas as posteriores lhança; no entanto, essas dimensões me revoltavam; eu con-
figuras femininas de pé. Numa carta escrita de Genebra tinuava sempre recomeçando para, depois de alguns meses,
em 30 de julho de 1945 para Isabel, que, devido à guerra, acabar no mesmo ponto. 98
Diego me contou que ele costumava recomeçar várias e peça feita em Maloja em 1943 – uma figura feminina de pé,
várias vezes uma figura de gesso de uns 25 a trinta cen- com cerca de 1,20 metro de altura, montada sobre uma base
tímetros de altura e várias e várias vezes terminava com toscamente cúbica que tinha em cada canto rodinhas que
uma figura com pouco mais de dois centímetros em cima giravam: O carro (Le Chariot). Mas, fora essa única exceção,
de uma base cujo tamanho seria normal para a primeira as figuras continuaram minúsculas. Para não passar vergo-
das figuras que começara a fazer; no princípio, essas bases nha, ficou na Suíça e continuou tentando fazê-las maiores,
eram simplesmente o resíduo do que havia acontecido en- trabalhando no quarto de um pequeno hotel em Genebra.
quanto trabalhava. 99
Numa carta datada de 14 de março de 1945 para Isabel –
162

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A Segunda Guerra Mundial chegou e passou; o ritual, a primeira que, por causa da guerra, ela recebia dele em
não afetado, sobreviveu a ela. Dois acontecimentos graves cinco anos – escreveu:
parte ii

Uma coisa totalmente desconhecida


ocorreram na época da capitulação da França, em junho
de 1940. Na véspera do dia em que Isabel partiria de Paris Estou paralisado aqui desde que cheguei, em 1942 (infinita-
para a Inglaterra, ele foi vê-la, fez alguns desenhos dela mente arrependido de ter deixado Paris, ainda que por pouco
nua deitada e, contou-me ele, pela primeira vez foi com tempo), com a firme intenção de voltar no mais tardar depois
ela para a cama, mas ficou impotente. Alguns dias depois, de cinco meses, mas levando uma escultura do jeito que eu
ele, Diego e Nelly, sua companheira, partiram de bicicleta queria; depois de todo esse tempo, vi-me com uma escultura
para Bordeaux. 100
Ao cabo de nove dias estavam de volta a que estava completamente errada, sentindo-me, por isso, inca-
Paris, depois de terem presenciado os horrores da guerra paz de me mexer; venho adiando todos os dias minha partida
ao longo das estradas e ficarem eles próprios sob o fogo e tenho trabalhado tanto quanto posso. Várias e várias vezes
dos bombardeios aéreos. recomecei uma mesma coisa sem nunca conseguir fazê-la di-
A atmosfera da Ocupação era estranhamente estimulan- reito. Minha figura sempre acabava ficando tão minúscula e
te, tão forte era o sentimento de certeza da derrota da Ale- o trabalho tornava-se tão imponderável, a despeito de ela es-
manha. 101
O trabalho prosseguia; ele se encontrava bastan- tar próxima daquilo que pretendia, só que eu tinha em mente
te com Picasso e Dora Maar. Já perto do fim de 1941, decidiu um certo tamanho e foi somente no ano passado que consegui
que devia voltar à Suíça e ficar lá por algum tempo, pois dominá-lo, mas não a ponto de fazer o tamanho, isso mesmo,
havia dois anos que nem ele nem Diego viam a mãe. Partiu o tamanho que quero, apesar de saber que não vou aban-
no último dia do ano, pretendendo passar uma temporada donar essa peça em que venho trabalhando desde setembro e
de três meses, mas cometeu o erro de prometer a Diego e que, custe o que custar, vou terminá-la, a não ser que eu esteja
Francis Gruber que voltaria com algumas esculturas de ta- totalmente enganado, o que acho difícil acreditar pois a cada
manho menos absurdo. 102 De fato, conseguiu concluir uma dia que passa faço um pequeno progresso [...] 103
Depois, na carta de 30 de julho em que lhe conta que essa Quase imediatamente, Isabel passou a morar com ele,
minúscula figura era ela parada de pé num final de tarde mas no fim do ano os dois se separaram. No verão seguin-
no bulevar Saint-Michel, ele diz: te, uma moça com quem ele estivera se encontrando em
Genebra, Annette Arm, chegou a Paris, instalou-se em sua
Em breve a encontrarei, não é a falta de visto que está im- casa e ficou. No início, estava entendido que ela deveria
pedindo minha volta, posso regressar quando quiser, sim, é arranjar um trabalho de meio expediente como secretá-
minha escultura que me impediu de voltar nesses três últimos ria. Os irmãos estavam vivendo quase que só de emprés-
anos, que tem me mantido aqui em Genebra, estagnando mi- timos. Alberto, com seu tipo de trabalho, não tinha escul-
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nha vida separada de tudo, e estou fazendo o que posso para tura para expor nem como envolver Diego na usual cola-
escapar disso o mais rápido possível de modo a poder partir. boração como artesão. Durante os anos 1930, eles haviam
parte ii

Uma coisa totalmente desconhecida


Terei de passar quinze dias em Maloja por várias razões e de- se mantido com desenho e produção de objetos utilitários
pois voltarei. Trago todas as minhas esculturas, Isabelle? Se – luminárias, vasos etc. – para o decorador Jean-Michel
ao menos conseguisse trazer uma eu já me daria por muito Frank, mas, durante a guerra, Frank, que era judeu, suici-
feliz. Há algumas muito pequenas, quatro ou cinco, mas não dou-se em Nova York. Agora, os dois viviam de migalhas
estão boas, e há uma em que estou trabalhando no momen- obtidas com as esporádicas vendas de alguns desenhos
to para fazer um molde, sempre a mesma, destruída vinte ou esculturas minúsculas, com a encomenda ocasional
vezes desde que estou aqui – vinte esculturas totalmente des- de um busto, com textos que escreviam para Skira e do
truídas –, não vou mais destruí-la e sim levá-la adiante até dinheiro que tomavam emprestado. Zervos, com seu re-
onde eu puder e não começá-la de novo, mas se conseguir um conhecido faro editorial, devotou dezesseis páginas do
mínimo que seja para ter um modelo correto, isso me satisfaz, número dos Cahiers d’Arts, de 1945-46, à reprodução dos
já me dará um trabalhão continuar sem começar a coisa toda desenhos recentes e das esculturas minúsculas. O que es-
de novo. Mas pode ser que eu tenha tomado o caminho erra- tava acontecendo no ateliê, evidentemente, era uma arte
do e, assim, terei perdido um bocado de tempo, não, acho que das mais estupendas já produzidas no mundo e que, ins-
não, o tempo não foi perdido, essa obra, antes de mais nada, tantaneamente, se tornou lendária.
tinha de ser feita independentemente do resultado, mas de Em algum momento durante esse período de reacomo-
qualquer jeito haverá um resultado... 104
dação e crise, Giacometti viveu o que sentiu ser uma mu-
dança crucial na maneira como via o mundo.
Em 17 de setembro, ele tomou o trem noturno para Paris,
trazendo consigo o resíduo de três anos de trabalho em Antes, havia uma realidade conhecida, banal ou, digamos,
seis caixinhas de fósforo. 105 estável. Isso cessou completamente em 1945. Por exemplo,
percebi não haver interrupção entre o momento em que eu Uma pessoa falando não era mais um movimento, eram imo-
entrava no cinema e o momento em que saía: costumava ir bilidades que se sucediam umas às outras, completamente
ao cinema, via o que acontecia na tela, saía e nada me espan- separadas umas das outras; momentos de imobilidade que,
tava na rua ou num café... [...] minha visão do mundo era afinal, poderiam prosseguir por toda uma eternidade, inter-
fotográfica, como acho que é a de quase todos. [...] rompidos e seguidos por outra imobilidade. 106
E então, de repente, houve um corte. Foi no noticiário antes
do filme num cinema em Montparnasse. Para começar, eu já Isso foi o que ele contou anos mais tarde – em 1961 – a
não sabia mais o que estava vendo na tela: em vez de figuras, Pierre Schneider. No outono de 1946, em “O sonho, o
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apareciam manchas brancas e pretas, ou seja, as figuras es- Sphinx e a morte de T.”, ele escreveu que “estava come-
tavam perdendo todo sentido, e eu, em vez de olhar para a çando a ver as cabeças no vazio, no espaço em torno de-
parte ii

Uma coisa totalmente desconhecida


tela, olhava para os vizinhos que estavam se tornando um las” 107 e que, “olhando uma cabeça, ela ficava fixada [...]
espetáculo totalmente desconhecido. A realidade em torno de como algo ao mesmo tempo vivo e morto”, e que sua toa-
mim é que era o desconhecido, não o que estava acontecen- lha e a cadeira sobre o chão estavam “separadas por inco-
do na tela. Ao sair, no bulevar, tive a sensação de estar me mensuráveis abismos de vazio”. Quando descreveu essa
defrontando com alguma coisa que nunca tinha visto, uma experiência a Jean Genet em 1954-55, assim se expressou:
mudança completa da realidade... Sim, com algo nunca visto,
o desconhecido total, o maravilhoso. O bulevar Montparnas- A toalha estava só, tão só que eu tive a sensação de poder
se assumia a beleza das Mil e uma noites, fantástico, to- retirar a cadeira sem que a toalha se movesse. Ela possuía
talmente desconhecido... e, ao mesmo tempo, o silêncio, uma seu próprio lugar, seu próprio peso, e até seu próprio silêncio.
espécie de silêncio inacreditável. E, então, a coisa cresceu. To- O mundo era leve, leve.... 108
das as manhãs, quando acordava no meu quarto, havia a ca-
deira com uma toalha em cima dela, e isso me impressionava, A relação que a localização no tempo dessa marcante ex-
fazendo-me sentir um frio na espinha, pois tudo tinha um ar periência tem com a da produção das últimas figuras mi-
de absoluta imobilidade. Uma espécie de inércia, de perda de núsculas é incerta. Giacometti, como a maioria das pes-
peso: a toalha em cima da cadeira não tinha peso, não tinha soas, não era totalmente preciso sobre as datas dos acon-
nenhuma relação com a cadeira, a cadeira sobre o chão e não tecimentos importantes de sua vida: sem dúvida, estava
pesava sobre ele, ela tinha qualquer coisa de inerte, e isso me enganado ao contar a Pierre Matisse e a entrevistadores
dava uma sensação de silêncio... Era um começo. Depois, a de épocas posteriores que havia retomado as esculturas
aparência de tudo parecia transformada... como se o movi- de memória em 1940 e não a partir de 1939, e é possível
mento não fosse mais que uma série de pontos de imobilidade. que estivesse enganado ao contar a Pierre Schneider e
outros que a experiência no cinema havia acontecido em que é o mais perfeito dos retratos de Isabel; uma figura de
1945; poderia ter sido no início de 1946 – uma vez que foi pé com mais de 1,80 metro de altura, que é o seu primeiro
“alguns meses” antes da morte de T., que ocorreu em 25 Homem caminhando (L’Homme qui marche) em tamanho na-
de julho. 109
E também não é seguro quando exatamen- tural; o Homem apontando, em tamanho natural; a Cabeça;
te teria deixado de fazer figuras minúsculas sobre bases o Nariz e a Cabeça sobre uma haste. O estilo de sua obra da
grandes; o certo é que continuou a fazê-las depois de sua maturidade estava cristalizado, estilo derivado principal-
volta de Genebra e menos certo é se teria continuado em mente da iconografia egípcia – por exemplo, nos ombros
1946 e, se for esse o caso, até quando em 1946. Mas parece arqueados das mulheres (reminiscência sobretudo dos
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muito provável que alguns dos exemplares fotografados marfins pré-dinásticos) e na maneira como o homem an-
e vendidos no ateliê entre 1946 e 1947 digam respeito, e dando avança uma perna como se estivesse descobrindo
parte ii

Uma coisa totalmente desconhecida


não menos que as figuras maiores que se seguiram, a seu o ato de andar.
embate com o “totalmente desconhecido”. No princípio de 1948, ele fez a primeira de suas mos-
Em 1946, ele começou a trabalhar em figuras eretas de tras na Galeria Pierre Matisse em Nova York, sua primei-
tamanhos diversos que chegavam a um metro e pouco ra exposição individual em mais de treze anos, isso “so-
de altura: a primeira das figuras do homem caminhando, bretudo porque”, conforme disse ele, “não desejo ser tido
Noite (Nuit); cabeças e bustos, alguns a partir de modelo- como estéril e incapaz de concluir o que quer que seja,
-vivo; e também pintou e desenhou de observação e algu- quase como um galho seco”. 112 A exposição jogou com a
mas vezes de memória. Ele dizia que o desenho do natural prudência: uma dúzia das mais de trinta esculturas eram
era um fator importante para conseguir fazer esculturas trabalhos de 1925 a 1934, vários deles no gesso original;
maiores. Aqui, novamente, a redução volta a assumir o quanto às peças novas, a maior parte foi mostrada em
comando: “para minha surpresa, somente quando com- bronze, mas havia várias em gesso.
pridas e delgadas é que elas guardavam semelhança”. 110 E, agora, o adelgaçamento havia se tornado ainda mais
“E como lutei [contra isso]; procurei fazê-las mais largas. extremo. As figurinhas de 1948 a 1950 dos homens andan-
Quanto mais tentava alargá-las mais estreitas ficavam.” 111
do têm tronco e membros parecidos com galhos. Uma fi-
Em 1947, ele terminou diversas figuras em tamanho na- gura feminina ereta de 1948, com a altura em tamanho na-
tural ou quase, tanto no que diz respeito à altura quanto tural, tem uma cintura que pode ser rodeada pela mão, e
muitas vezes à largura, até que começou a reduzi-las dei- essas proporções serão repetidas em várias das estatuetas
xando montes de lascas de gesso pelo chão do ateliê. Entre femininas dos quatro ou cinco anos seguintes. Diz-se com
estas contam-se uma figura de pé com cerca de um metro frequência que essas proporções derivaram das esculturas
e meio de altura denominada Mulher Leoni (Femme Leoni), etruscas mas, se certas obras como O carro de 1950 devem
ter se baseado em imagens etruscas, seu famoso adelga- como uma prostituta). As figuras estão cuidadosamente
çamento provavelmente não sofreu influência estilística: alinhadas numa das versões de modo a formar uma cruz,
aquelas possuem formas demasiadamente relaxadas para mas a direção para a qual cada figura está voltada dá a
atrair um artista cujo olho fora educado pelos egípcios, entender que nenhum dos quatro caminhantes está se
sumérios e cicladenses. Giacometti costumava dizer que movendo ao longo dos eixos: desse modo o desenho, ao
sua dívida estilística para com os cicladenses estava no propor um relacionamento entre as figuras, torna seu des-
fato de que em suas figuras mais delgadas o afinamento mentido dramaticamente significante.
lateral era mais marcado do que o frontal: a visão de perfil, O segundo tipo de composição é bastante formal, tea-
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com efeito, apresenta uma linha fina que liga a cabeça aos tralizado, com grupos de figuras até certo ponto artifi-
enormes e proeminentes pés; a visão frontal do tronco dá ciais, montadas numa espécie de plataforma usualmente
parte ii

Uma coisa totalmente desconhecida


impressão tanto de achatamento quanto de estreiteza. bastante elaborada. Ocorre em duas composições com
O adelgaçamento extremo estava intimamente liga- quatro figuras femininas nuas enfileiradas como numa
do – não se pode dizer que se tratasse necessariamente tropa – realizações esquemáticas da maneira como moças
de causa ou efeito – ao desaparecimento das figuras em seminuas em dois bordéis foram vistas – e três homens
grande escala. Depois daquela figura feminina de 1948 caminhando – agrupados mais como numa dança do que
com altura em tamanho natural, foi somente em 1960 numa rua, especialmente na versão em que, quando o
que Giacometti terminou e preservou outra figura, femi- grupo é observado de um ângulo em que as três cabeças
nina ou masculina, de altura natural. Durante esse inter- se sobrepõem, estas se tornam o vértice de um triângulo
valo de tempo, não houve nenhuma escultura de figura isósceles que encerra um padrão regular de triângulos.
com mais de sessenta centímetros de altura. No início, a O terceiro grupo implica a justaposição de elementos
maioria das figuras nessa escala, ou até menor, apareceu em escalas desiguais – num caso, nove figuras femininas
em composições de três tipos distintos. eretas de várias alturas; em outro, sete figuras variadas
O primeiro tipo apresenta cenas que lembram a vida combinadas com um busto masculino que aflora do chão;
real, como as duas versões de Praça, terminadas em 1948 em um terceiro, três figuras diferentes e um busto; e num
e 1949. Existe, aqui, uma hábil interação entre artificiali- quarto, uma figura isolada com um busto colocado numa
dade e aspecto de realidade cotidiana tanto na temática moldura espacial que significa um aposento.
quanto no desenho. São cinco figuras como quaisquer ou- Giacometti não fez mais composições após 1950, em-
tras focalizadas arbitrariamente numa rua, só que, nesse bora tenha feito duas tentativas abortadas com figuras em
caso, as quatro figuras andando são de homens e a única tamanho natural e maior. Ao fazer o Homem apontando,
figura de pé é a de uma mulher (esperando num dos lados em 1947, ele pensara em lhe dar um companheiro, uma
figura masculina de pé, daí a posição do braço esquerdo uma espécie de efeito anamórfico e, nesse caso, a distorção
do homem que aponta, erguido e encurvado como se para lembra o crânio anamórfico nos Embaixadores de Holbein.
cingir os ombros do outro. Em 1951, ele executou a segun- O elemento aerodinâmico dessas cabeças foi desenvol-
da figura e a expôs em gesso pintado junto com um bron- vido em 1954-55 na série das cabeças “fatiadas”, que parece
ze pintado da figura apontando. Depois da exposição, des- quase sistematizar a tendência dos bustos de Giacomet-
truiu o gesso e abandonou a ideia. Em 1959-60, atendendo ti a serem um baixo-relevo da visão frontal dos ombros
ao pedido de um arquiteto que desejava um grupo em encimado em ângulo reto pelo baixo-relevo do perfil da
grande escala para uma praça no Chase Manhattan Bank cabeça. A visão frontal somente é percebida se o especta-
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em Nova York, tentou realizar uma composição que jun- dor se colocar no lugar em que o nariz da figura estiver
tava, pela primeira vez, uma mulher de pé, um homem ca- apontando para o nariz dele. Caso a pessoa se mova um
parte ii

Uma coisa totalmente desconhecida


minhando e uma cabeça. Abandonou a empreitada, mas ou dois centímetros à direita ou à esquerda, apenas um
conservou a cabeça de quase um metro de altura, duas fi- de seus olhos verá a beirada da lâmina; o outro registrará
guras masculinas com pouco mais de 1,80 metro de altura um perfil. Um ou dois centímetros mais, e a visão fron-
e quatro figuras femininas com cerca de 2,40 a 2,70 metros tal estará totalmente perdida e a lâmina torna-se apenas
de altura, embora se sentisse em dúvida, na época e poste- um perfil. Não há praticamente nenhuma transição entre
riormente, sobre a qualidade das peças, sobretudo a das fi- a visão frontal e a lateral. A eliminação da visão de três
guras femininas. 113
Quando parou de trabalhar nelas não quartos talvez tenha sido sugerida pelas figuras das Novas
foi porque sentisse que as tinha resolvido, foi só porque Hébridas, que eram o tipo de arte tribal preferido por Gia-
não tinha mais interesse em perder tempo com as figuras. cometti. Foi a resposta para o problema que o incomodava
É significativo que, enquanto quase todas as figuras fei- sempre que observava cabeças na realidade – a total dis-
tas por volta de 1950 se destinassem a composições, hou- crepância entre uma vista frontal e uma vista de perfil era
vesse tantas cabeças isoladas e bustos, pois dali em diante, tal que nenhuma das duas poderia ser inferida a partir da
considerando os trabalhos que deixaram o ateliê, Giaco- outra: um olho, por exemplo, eram “duas coisas completa-
metti produziu muito mais bustos do que figuras. Os bus- mente contraditórias”, 114 redondo de frente e pontiagudo
tos que ele estava fazendo por volta de 1950 eram extre- de lado. Uma maneira de afirmar que uma cabeça eram
mamente estreitos em suas proporções e estranhamente duas coisas contraditórias seria realizá-la como sendo so-
dispostos em ângulo no espaço, de modo que desviam o mente essas duas sem enfraquecer a força da contradição
olhar de quem tenta fitá-los: é quase como se fizessem a ao admitir vistas em que ela fosse um pouco de ambas.
linha da visão passar inadvertidamente por eles. Aqui, ou- Muitos bronzes de bustos e figuras a partir de 1950 fo-
tra vez – como nas mulheres de pé –, parece estar em jogo ram pintados em cores bastante naturalistas. Giacometti
havia colorido pela primeira vez algumas de suas peças um subproduto da obsessão cada vez maior de querer tra-
quando, no ateliê de Bourdelle, impaciente com a escultu- balhar do natural. Giacometti nunca parou de pintar ou
ra monocromática, resolveu dar uma tintura aguada por desenhar com modelo-vivo. Ele retomou a escultura do
cima de alguns gessos de 1925-30. Da metade da década de natural em 1953, quando começou com o hábito, depois
1940 em diante, os gessos em seu ateliê foram frequente- das sessões de pose de Diego para pinturas, de trabalhar
mente decorados com um desenho linear livre em preto de memória durante certo tempo num busto dele, ao qual
e cor de ferrugem, alguns sugestivos de feições ou traços, logo estaria dedicando sessões inteiras. Depois de ter feito
sobretudo de olhos, e a maioria feita a esmo. O propósito isso por alguns anos, os bustos de memória nunca foram
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dessa caligrafia, presumivelmente, seria quebrar a bran- de novo tão extremamente delgados. Em 1953, ele tam-
cura do gesso. Mas por volta de 1950 Giacometti começou bém teve Annette como modelo para uma estatueta. No
parte ii

Uma coisa totalmente desconhecida


a pintar algumas peças de bronze por completo, sobretu- ano seguinte, suas proporções generosas e formas roliças
do nessa época e depois quando as pintou no próprio local ecoaram, quase caricatas, numa série de memória de pe-
na Bienal de Veneza em 1962 e, novamente, para a abertu- queninas mulheres bem nutridas – bem nutridas mas
ra da Fundação Maeght em Saint Paul de Vence, em 1964. não complacentemente roliças, pois os seios projetam-se
Ele sem dúvida acreditava que, de maneira geral, sua es- para a frente tão alongados quanto os compridos troncos
cultura deveria ser colorida. Mas, para começar, supunha de suas antecessoras se projetavam para o alto. Essas for-
que, como as cores claras dão a impressão de que os volu- mas rechonchudas nunca foram repetidas, mas as subse-
mes se expandem, as proporções que estavam corretas no quentes figuras de pé feitas de memória – como as Mulhe-
bronze iriam desfazer-se depois que a peça fosse pintada. res de Veneza (Femmes de Venise), de 1956, e aquelas para o
Mais tarde, sentiu outra vez que o grau de ilusão dado projeto do Chase Manhattan –, apesar de delgadas, nunca
pela escultura pintada de modo naturalista era altamente mais foram tão delgadas quanto antes.
duvidoso, que uma escultura assim “com toda a probabi- Em 1935, quando Giacometti começou a modelar cabe-
lidade seria abominável” 115
por estar de alguma maneira ças e figuras do natural, logo deixou “as figuras de lado,
tão próxima da realidade que o observador só poderia se elas eram excessivas”. 117 O mesmo aconteceu vinte anos
tornar demasiadamente consciente do fato de ela ser um depois. Resolveu (a despeito do que parece ter sido o enor-
objeto morto. Por último, havia a ressalva inevitável: já me sucesso dessa estatueta de Annette feita de observa-
que a forma era, de qualquer modo, inadequada, de nada ção) que a tentativa de modelar nus a partir de modelo-
adiantava adornar “uma coisa em que não se acredita”. 116
-vivo deveria ser adiada para se concentrar unicamente
Esse tipo de sentimento de achar descabido pintar seus em cabeças. Nunca conseguiu tentar de novo. Pouco antes
bronzes ou agregar figuras para fazer composições era de sua morte, disse que, uma vez que tivesse chegado a al-
gum lugar com a cabeça, o resto viria facilmente. A ideia cabeças de memória constituídas por um nariz e queixo
de começar a partir da cabeça e depois vir descendo já es- projetados e olhos projetados de dentro de órbitas proje-
tava, com efeito, manifesta na tendência de seus últimos tadas para trás, e qualquer outra coisa mais que esteja ali
bustos que passaram a mostrar um pouco mais da figura: é somente o necessário para manter unidas essas feições
os primeiros bustos trazem a cabeça e os ombros, os últi- que se projetam separadamente. Quando modelava do
mos, muitas vezes, descem até a cintura ou os quadris e natural no final da década de 1950, fazia cabeças em di-
alguns incluem as mãos. mensões bastante convencionais, mas na década de 1960 –
A ideia de obter primeiro uma parte correta para de- como na série de estágios da cabeça de Annette – estava
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pois prosseguir teve extensas ramificações em sua prática expandindo o volume e os detalhes diante de si, alargan-
e pensamento posteriores. Embora sempre tivesse acre- do o rosto e compensando-o pelo achatamento da cabeça
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Uma coisa totalmente desconhecida


ditado ser necessário apreender a coisa como um todo, já por trás das orelhas de modo que restava no fim algo que
no final da vida costumava dizer que, se num trabalho era mais uma máscara do que um busto.
de observação pudesse fazer ao menos um detalhe – um Era como se ele estivesse olhando o rosto tão de perto
olho – de forma correta, todo o resto se seguiria. Mais ou que a sensação da cabeça como esfera no espaço desapare-
menos depois de 1958, quando modelava ou pintava do cia e ele ficava com as feições proeminentes que se projeta-
natural, ele parecia trabalhar de dentro para fora, a partir vam ou se avantajavam diante de seu olhar. Na pintura do
de um ponto proeminente – um olho, a ponta do nariz, natural nesses últimos anos, nunca posicionava o modelo
o centro da testa. E quando trabalhava de memória, al- a uma distância em que ele pudesse ver a figura inteira no
gumas vezes fixava de forma muito contundente certas ambiente. Punha-se a poucos centímetros da pessoa, con-
partes e simplesmente deixava outras de fora. Enquanto centrando-se intensamente na cabeça. Nessas derradeiras
nas “cabeças fatiadas” dos meados dos anos 1950 toda a pinturas, a ilusão do espaço em torno e por trás da figura,
cabeça está desbastada e achatada, mas conservando tudo atrás da tela, desaparece. O novo tratamento do espaço re-
nela, afinado e comprimido, no final dessa mesma década flete o desejo que volta e meia ele manifestava de imitar
ele fez várias cabeças em que a parte central do rosto – o os mosaicos bizantinos criando a ilusão de um nariz que
queixo, a boca, o nariz, os olhos, o plano frontal da tes- se projeta de uma superfície. A atmosfera poética do es-
ta – está quase sem adelgaçamento e o resto foi removido. paço no ateliê está substituída pelo confronto direto com
Nessa época, também executou figurinhas de mulheres uma presença que domina o espaço na frente da tela. Ao
de pé cujo adelgaçamento se mostra menos acentuado do mesmo tempo, nos últimos retratos de Caroline há quase
que nas anteriores, mas é como se partes delas tivessem sempre um imediatismo que chega a ser grosseiro, e que
sido arrancadas. Nos últimos dois anos de sua vida, fez poderia ser atribuído a um esforço consciente para negar
seu instinto de criar formas elegantes e estáveis. Esses re- uma obra medieval, cuja principal preocupação estava
tratos reúnem aquele realismo quase brutal com uma si- longe de ser apenas o simples registro de uma aparência.
metria e geometria ideais para atingir algo da conciliação Novamente, na última vez em que fomos juntos à Coleção
entre o direto e o hierático que distingue os mosaicos de Courtauld, em 1965, ele mal prestou atenção nas pinturas
San Vitale em Ravena. de Cézanne; em compensação, deteve-se diante de um par
O amor cada vez maior por uma formalidade e sime- de painéis do fim da Idade Média.
tria hieráticas não era dirigido unicamente aos bizan- Se suas últimas pinturas refletem, por um lado, essa li-
tinos; estava também dirigido à pintura medieval em gação cada vez mais exclusiva com as formas da arte que,
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oposição àquelas que se seguiram. Nada de novo nessa em geral, não são tidas como especialmente relevantes
predileção: quando pela primeira vez viajou à Itália para para a busca da aparência, por outro refletem o fato de Gia-
parte ii

Uma coisa totalmente desconhecida


ver arte aos dezoito anos de idade, começou por Veneza e, cometti se tornar cada vez mais obcecado pela ideia de que
conforme dois textos publicados com depoimentos seus, tudo o que estava tentando fazer era copiar as próprias
imediatamente caiu de amores por Tintoretto, 118 só para sensações – “copiar simplesmente, para se dar um pouco
descobrir em seguida, ao chegar a Pádua, que este fora conta do que se vê”. 119 “Copiar” é uma palavra que pou-
destronado por Giotto o qual, meses depois, ao visitar quíssimas vezes apareceu em seu vocabulário antes da
Assis, seria por sua vez suplantado por Cimabue. (Não segunda metade da década de 1950. Foi numa entrevista
obstante, o amor por Tintoretto perdurou, e seu estilo de a Georges Charbonnier, gravada em 1951, quando, expon-
desenho está visivelmente presente na arte de Giacomet- do pela primeira vez suas ideias sobre a representação
ti.) Já perto do final da vida, no entanto, essa atração pela da realidade, pronunciou a palavra “copiar”, usada uma
Idade Média tornou-se ainda mais forte. Quando o acom- única vez durante a conversa; no entanto, essa palavra
panhei em 1955 em sua primeira visita à National Gallery, aparecerá dita por ele várias vezes em outra gravação
a pintura de que mais gostou foi um retábulo do século xv, com o mesmo entrevistador, em 1957. No final da déca-
A Trindade com Cristo crucificado, de um artista austríaco da de 1940 e princípio da de 1950, ele constantemente
desconhecido. Nove anos depois, ao voltar lá pela segunda aludia à sua busca de “semelhança”, mas a palavra que,
vez, sem dar mostra de nesse meio-tempo ter pensado so- então, usava para designar sua atividade era “realizar” –
bre o assunto, escolheu exatamente a mesma obra como palavra que se refere à execução da obra de arte como enti-
sua favorita. Numa entrevista que gravamos pouco tem- dade viável tanto quanto à ideia de representar. Em 1954-
po depois, ele falou de sua admiração pelo retrato de Van 55, enquanto fazia o retrato de Jean Genet, ele disse que “é
Eyck de um homem com turbante vermelho. Na presença preciso fazer exatamente o que está diante de nós” e acres-
dos próprios quadros, ele se sentira mais à vontade com centou “e, além disso, é preciso também fazer um qua-
dro”; 120 e, em 1960, quando estava me pintando disse que achava menos interessantes que as de Bacon: imagino que
“se um quadro for verdadeiro, ele será bom como quadro, e esse interesse tenha sido despertado por Isabel, que era
até sua pintura será necessariamente bonita”. A partir daí, amiga dos dois.
a palavra “copiar” se tornou corrente em seu vocabulário Eles tiveram vários encontros nos anos 1960 – embora,
e assim permaneceu. Voltando a 1950, quando conversá- creio eu, só uma vez tête à tête – que refletiam um forte
vamos sobre o panorama das artes, perguntei-lhe quem apreço mútuo e uma afeição cada vez maior. (Giacometti,
eram os artistas contemporâneos, se é que havia algum, claro, continuava a manter certas reservas acerca da obra
com os quais teria afinidade. Respondeu-me: “os tachistas, de Bacon; já este, que era até mais difícil de gostar das coi-
180

181
apesar de tudo”. 121
Pela mesma linha de raciocínio, me sas, considerava Giacometti o maior desenhista de sua
disse nessa época não haver diferença entre a concepção época e também apreciava algumas de suas pinturas do
parte ii

Uma coisa totalmente desconhecida


subjacente à obra que estava fazendo naquele momento final da década de 1940; no entanto, detestava a maioria
e a subjacente à sua obra surrealista; apenas os meios de das esculturas que ele tachava de “pretensiosas”.) Certa
expressão haviam mudado. 122 Não creio que tivesse dito noite, no verão de 1964, depois de termos jantado todos
o mesmo dez anos depois: na ocasião, era um digno repre- juntos no Soho, eu levava Giacometti de volta a seu hotel
sentante da “cópia” totalmente empenhado em sua luta. e me queixava dos miseráveis sofismas de que Bacon era
Esse compromisso, entretanto, não parecia fazê-lo sen- capaz. Subitamente ele perguntou: “Quem você acha que
tir-se alinhado com um só dos artistas de sua época que é o artista mais ambicioso, Bacon ou eu?”. Minha respos-
também estariam trabalhando com modelo e provavel- ta saiu condicionada por uma coisa que Giacometti volta
mente também preocupados em copiar o que viam. Certa e meia dizia de si mesmo – que, enquanto os irmãos Le
vez, nos anos 1960, perguntei-lhe o que achava da obra Nain eram capazes de lidar com a aparência e ainda por
de Balthus, um velho amigo a quem ainda era devotado. cima conseguiam transmitir uma gama de sentimentos
Prudentemente, respondeu que gostava de alguns dos de- humanos, ele, Giacometti, via-se tão consumido pelo pro-
senhos. O artista com quem sentia maior afinidade nesse blema de lidar com a aparência que era incapaz de fazer
período era possivelmente Francis Bacon. Em sua primei- qualquer coisa mais. Pensando nisso e levando em con-
ra ida à Inglaterra, em 1955, fiz questão de levá-lo para ver ta o poder trágico presente na obra de Bacon, respondi:
os Bacons que estavam no acervo da Galeria Hanover, e “Sem dúvida, você, como artista, é o maior, isso é fora de
fiquei desapontado, mas não surpreso, por ele achar Ba- questão, mas acho Bacon o mais ambicioso”. Ele, claro,
con “expressionista demais” para seu gosto. Em 1960, replicou: “Você está enganado”. Sua justificativa esta-
entretanto, quando lhe mostrei algumas reproduções de va implícita em algo que mais tarde ele me disse numa
pinturas figurativas de De Kooning, ele me disse que as entrevista:
[...] tentar simplesmente desenhar um copo como você o vê obras de arte? – obras de arte efêmeras e frágeis que existem
parece ainda uma tarefa bem modesta. Mas, então, consta- aqui ou ali nos continentes, obras de arte que se desfazem,
tando que isso é praticamente impossível, já não sabe mais se que murcham, que se deterioram dia após dia, muitas das
se trata de modéstia ou orgulho. 123
quais, inclusive algumas das que prefiro, já soterradas pela
areia, pela terra, pelas rochas e todas seguindo o mesmo ca-
O último estágio de seus pensamentos acerca do que sig- minho. E todas aquelas que, um dia, me emocionaram e que,
nifica copiar e acerca da arte em geral foi posto no papel hoje, me deixam quase indiferente e se tornaram pálidas e
durante seus últimos três meses de vida. “Notas sobre as vazias em minha memória. A maioria não passa de coisas
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183
cópias” são três textos separados escritos para prefaciar precárias, fracas, pretensiosas que, bem ou mal, posso dis-
um livro que reproduz milhares de seus desenhos copia- pensar; mas ao mesmo tempo surgem todas as obras emocio-
parte ii

Uma coisa totalmente desconhecida


dos de obras de arte. No último dos textos, datado de 30 nantes e maravilhosas que existem, inumeráveis. E estas são
de novembro de 1965, ele diz que o motivo que o leva a quase sempre meras testemunhas das mais duras, negras e
copiar obras de arte é o mesmo que o leva a copiar a reali- intoleráveis civilizações pelas quais tenho mais horror.
dade – para ajudá-lo a perceber o que vê –, mas que, atual- Na realidade, já não sei mais o que pensar sobre o que
mente, era raro fazer cópias de obras de arte. quer que seja e, então, cada palavra que escrevo é apenas a
expressão de minha vaidade, minha pretensão, minha hipo-
A distância que separa uma obra de arte da realidade ime- crisia, sim, de meu prazer de brilhar e surpreender, “quali-
diata de qualquer coisa que seja tornou-se demasiado grande dades” essas que eu ostentava aos doze anos de idade. Feliz-
e, de fato, a única coisa que me interessa agora é a realidade, mente, houve depois um período muito longo de calmaria, na
e sei que poderia passar o resto de minha vida copiando uma verdade até quase os últimos anos, mas agora sou aquele que
cadeira. 124 eu era aos doze anos, não, não totalmente; tenho feito enorme
progresso, agora só avanço dando as costas ao alvo, só faço
Num outro texto escrito a bordo de um navio que o levava desfazendo.
de Nova York ao Havre, escreveu: Não sei se sou um ator, um trapaceiro, um idiota ou um
menino muito escrupuloso. Sei que é preciso tentar copiar um
Impossível concentrar-me em qualquer coisa que seja, o mar nariz de observação. 125
invade tudo; para mim, ele não tem nome apesar de hoje ser
chamado de Atlântico. Durante milhares de anos ele não teve Dessa forma, o mar, sem nome e indomável, tornou toda
nome e, um dia, voltará a não ter nome, sem limites, cego, in- a arte pequena e sua vaidade ridícula, mas o imperativo
domável como hoje é para mim. Como falar aqui de cópias de “tentar copiar um nariz de observação” era tão incontestá-
vel quanto o oceano. Coisas do dia a dia, próximas, fami- nas encostas; as rochas de granito nos prados ou entre as
liares lhe despertavam um anseio como aquele com que o árvores; o leito esbranquiçado e pedregoso do Mera; a sen-
romantismo buscava o indefinível, o incontido, que exis- sação difusa de um espaço rarefeito; e, sobretudo, os picos
te derradeiramente além das coisas. Também essas coisas e cristas abruptos das montanhas, sobretudo estes. As es-
ofereciam um confronto com o desconhecido: “a distân- culturas estão continuamente ecoando certas formações
cia entre uma narina e outra é como o Saara, não tem li- rochosas, únicas e surpreendentes, que estranhamente
mites”; 126
“uma cabeça [...] tornou-se um objeto totalmen- não aparecem em nenhum outro lugar no vale, mas que
te desconhecido, sem dimensões”. 127
A busca romântica são visíveis em três adjacentes picos de granito ao sul de
184

185
pelo derradeiro em longínquos e exóticos lugares fora Stampa, os picos que dominam a vista do lado de trás da
transferida para o objeto que se achasse mais próximo e à casa dos Giacometti. Trabalhando em Paris e escrutinan-
parte ii

Uma coisa totalmente desconhecida


mão (muitas vezes enquanto estava conversando; objeto do ou trazendo à lembrança a cabeça ou o corpo de al-
de um tipo que ele, na verdade, raramente copiava, mas guém por perto, ele estava reencontrando uma paisagem
que costumava estar por perto enquanto ele discorria): distante e conhecida – tal como quando interrompia seus
passos numa rua e se punha a olhar por alguns minutos
Se o copo aqui na minha frente me surpreende mais que os para uma árvore –, o paraíso de sua infância, de seu tor-
todos os copos que vi pintados, e se eu achar que até mesmo a rão natal.
maior maravilha arquitetônica do mundo não me afeta mais
do que este copo, é porque não vale mesmo a pena ir às Índias
para ver tal ou qual templo quando tenho tanto e mais do que
isso bem aqui à minha frente. 128

O que estava à frente dele era maravilhoso porque era


inconhecível e também por ser algo mais do que aquilo
que estava à sua frente. A imagem de uma pessoa ou um
objeto no ateliê de Paris era revestida de lembranças de
espaços sublimes. As esculturas feitas ali são um exemplo
clássico do fenômeno comum de um artista que, incons-
cientemente, descobre equivalentes para o corpo huma-
no nas formas dos ambientes de sua infância. Cabeças e
figuras incorporam Stampa: a verticalidade das coníferas
Uma presença separada
10
as mulheres são figuras que estão de pé e imóveis, os de Diego. E não porque fosse uma questão de traço de fa-
homens são figuras em ação ou cabeças, estas também ati- mília. Os retratos de Diego feitos de observação, a despei-
vas. O nariz projeta-se do plano do rosto, espichando-se to de diversificarem nas proporções, invariavelmente têm
para a frente, ou então uma cabeça inteira tem a forma de rosto alongado, olhos arredondados, maxilares quadrados,
uma cunha que corta o espaço. São cabeças que parecem crânio abobadado, o que se repete em suas cabeças feitas
ver antes de serem vistas. Podem ter algo do olhar atento e de memória. Mas há outras cujas fisionomias totalmen-
penetrante do cego, o olhar que nos faz sentir que eles nos te diferentes são específicas de Alberto: rosto pontudo,
veem enquanto somos nós que não os vemos. olhos amendoados, maxilares descarnados e a parte de
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189
“Um cego tateia seu caminho na noite” 129
é o primeiro trás da cabeça peculiarmente achatada. Todas são escul-
verso de um poema que Giacometti compôs quando lhe turas em que o volume está muito reduzido, a substância
parte ii

Uma presença separada


pediram para escrever alguma coisa sobre si mesmo. (Con- física é indefinível e sua presença, marcada pela agude-
ta-se que foi o próprio Michelangelo quem teria pedido za do olhar. As cabeças que se assemelham às dele são as
para ser retratado como o cego com um cachorro que está que parecem ganhar vida por meio de um olhar enérgico.
no verso de um medalhão criado por Leone Leoni.) A pri- A confrontação entre artista e modelo se comprime numa
meira das figuras de Giacometti do homem caminhando imagem em que artista e modelo são coincidentes.
foi intitulada Noite, outra foi interpretada por ele como “eu Na Gaiola de 1950 são postos juntos um busto desse tipo
correndo na rua sob a chuva”. 130
Os outros homens andan- e uma figura de mulher, formando um ângulo reto entre
do poderiam, talvez inconscientemente, ser ele próprio. si. Inicialmente, a mulher estava com os braços erguidos,
É curioso que nunca tenha feito um modelo posar numa até que Giacometti achou isso “insuportável”; 131 as mu-
atitude de alguém que caminha: isso indica que suas fi- lheres têm de estar de pé e aprumadas, como se estives-
guras caminhando foram concebidas por empatia e não sem lá expressamente para serem olhadas. Elas não são
por seu visual, que elas estão relacionadas a sensações surpreendidas em alguma ação, tampouco se pede que
motoras do caminhar – às vezes, quem sabe, de quando façam gestos expressivos. Enquanto as figuras masculi-
caminhava antes de sofrer o acidente que o deixou manco. nas estão condenadas a serem ativas, as femininas têm de
E algumas das cabeças de memória tornaram-se, invo- se postar imóveis, com os braços que parecem atados e as
luntariamente, autorretratos. Um Busto de Diego “fatiado” pernas retesadas como se para refrear-lhes o desejo de se
de 1955 acabou ficando com um perfil que é exatamente o movimentarem. Estão lá como se estivessem oferecendo-
de Alberto; a cabeça incompleta da Estela ii de 1958 possui -se. Desejadas, refletem a forma e a intumescência do de-
uma semelhança detalhada de seus próprios olhos e boca, sejo; desejadas, ficam ali fora de alcance. Quando vistas de
embora, expressamente, se propusesse a ser uma cabeça perto, permanecem invioladas em seus espaços separados.
A relação é o que é: o domínio exercido por mulhe- como se um excesso de matéria houvesse sido fastidiosa-
res imóveis e imobilizadas, que não emocionam e não mente desbastado. Por isso, essas esculturas modeladas
se emocionam, a ansiedade por assim permanecerem. mais parecem entalhadas, pela aparência de terem emer-
É também o paradigma de toda confrontação humana, gido depois de aparadas e pela semelhança com rochedos
do encontro entre dois seres cuja semelhança de um para montanhosos, atributos que afirmam uma autossuficiên-
com o outro é a semelhança da separação entre um e ou- cia que resiste à dominância do artista.
tro. A distância é intransponível. Mas a relação do artis- A imposição do próprio Giacometti e a alteridade ro-
ta com a própria escultura é totalmente diversa. Que ele chosa da imagem resultante são igualmente afirmadas e
190

191
a teve em suas mãos é evidente. Macetou-a, espremeu-a, postas em oposição. Em seu modo de representação, essa
esticou-a, mutilou-a, lacerou-a, destruiu-a e a viu, mui- escultura é tão visual quanto jamais qualquer outra fora;
parte ii

Uma presença separada


tas e muitas vezes, crescer e sair de suas mãos, adiando o no entanto, suas propriedades como objeto são tais que
momento de ela partir com as marcas e cicatrizes de seus ela poderia ter sido modelada por um cego: ver e tocar
gestos, gestos feitos com um tipo de raiva como se a frus- são, como disse ele, duas coisas dissociadas. 132 Nenhu-
tração por ele não ter sido capaz de dominar e possuir o ma síntese é oferecida, nenhuma solução confortadora.
modelo – além de mantê-lo lá interminavelmente – fosse Assim como numa conversa em que todo argumento
descarregada em sua efígie. tinha de ser inconclusivo, também nessa obra tudo era
Na construção da efígie ele podia exercer sua onipotên- inacabável e, nessa condição, ela mantém seu processo
cia, modelando o barro ou o gesso informe na imagem dialético. Atributos opostos são igualmente respeitados,
do outro fugidio e na de seus próprios gestos. No entanto, cada um deles é levado a um extremo – como quando
as esculturas têm qualquer coisa do caráter de entalhes uma cabeça é definida como a soma de duas visões con-
(como seus desenhos têm o caráter de entalhes, a lumino- traditórias –, e a tensão entre eles é levada ao extremo.
sidade do mármore, por exemplo). A necessidade de Gia- A figura feminina passiva e inatingível é a arma do desejo
cometti de trabalhar por tentativa e erro impossibilitou masculino. Uma forma hieraticamente rígida é uma arma-
o entalhe como técnica. Mas ele não tinha a orientação dilha para sensações cambiantes e fugidias. Os traços de
característica do modelador, isto é, a tendência para de- uma atividade nervosa e inquieta modelam a imagem
senvolver a partir de um centro: movia-se na direção da de uma presença separada.
compactação, como fazem os entalhadores instintivos
(dos cicladenses a Michelangelo e a Brancusi). A pouca
espessura não é como se uma pequena quantidade de
matéria houvesse, por tentativas, sido adicionada ali, mas
Uma espécie de silêncio
11
a visão do granito altaneiro, hirto, tingido de uma lumi- cialmente pitorescas e também anônimas. E não menos
nosidade acinzentada, de algum modo sem peso, pairan- importante é para as minúsculas figuras de Giacometti
do em cumes irregulares e dentados, aparece em imagens serem mostradas individualmente, pois exprimem a ma-
de frágeis cabeças e figuras que também dão forma à vi- neira como uma figura isolada no espaço tende a domi-
são de uma realidade urbana subitamente preenchida por nar e prender a atenção do observador. Foram, inclusive,
“uma espécie de silêncio inacreditável”, 133 onde qualquer inspiradas pela visão de uma pessoa que estava sozinha,
cabeça era “como algo ao mesmo tempo vivo e morto”, 134
parada de pé numa rua; aliás, uma pessoa adorada pelo
onde cada objeto “possuía seu próprio lugar, seu próprio artista. Essas figuras isoladas e aquelas em escalas maio-
194

195
peso, e até seu próprio silêncio” 135
e era separado dos ou- res que se seguiram eram um novo exemplo da eterna tra-
tros objetos por “incomensuráveis abismos de vazio”. 136
dição de confrontar o observador com uma figura frontal,
parte ii

Uma espécie de silêncio


E nós, confrontados com a corporificação dessas sensa- compacta e isolada; vale dizer, com um ídolo feminino.
ções amalgamadas, sentimo-nos surpresos por reconhe- Elas são uma variação sobre aquele tema que apresenta
cermos a nós mesmos e por nossa mútua separação. uma extrema condensação da figura e, ao mesmo tempo,
Isso é levado a termo em vinte ou trinta esculturas de a ilusão de um espaço perturbadoramente real em torno
Giacometti. Citaria, além de algumas das minúsculas fi- dela que cria uma sensação de imobilidade tensa e miste-
guras executadas por volta de 1945, Cabeça sobre uma has- riosa, como aquela vivida no momento em que uma gran-
te, Mulher Leoni, Figura alta (Grande Figure) e Homem cami- de bailarina se põe imóvel e parece conter o volume de
nhando em tamanho natural, de 1947; Mulher de pé (Femme seu corpo em alguma parte dentro de seu contorno real,
debout) de 1948, com cerca de 1,67 metro de altura e dezes- ou – em outras palavras –, que parece conduzir seu corpo
seis centímetros de largura; Composição com três figuras e e o ar ambiente para dentro de um centro estático. Em
uma cabeça (Composition avec trois figures e une tête) de 1950; composições com várias figuras, esse lado encantador da
duas ou três figurinhas femininas feitas por volta de 1952; mulher de pé é mais facilmente observado quando a com-
e vários bustos bastante delgados de 1950-55. posição é visivelmente artificial, como aquela com um
Segundo uma monografia recente, 137
as minúsculas fi- busto e três figuras em diferentes escalas. Nas composi-
guras que foram o começo de tudo isso, longe de deverem ções em que uma mulher de pé está colocada com quatro
às pequenas figuras de De Chirico em vastos e indefini- homens que caminham numa espécie de relação natura-
dos espaços, são sua antítese. É de suma importância para lista, a imagem resvala um pouco no anedótico.
as diminutas figuras de De Chirico aparecerem em pares, Talvez essa comparação com De Chirico tenha sido in-
como aqueles arqueólogos divagadores em quadros de centivada pelo fato de algo da atmosfera do surrealismo
ruínas do século xviii, em que eles são figuras essen- ter sobrevivido nas esculturas de 1945 a 1947, como acon-
tece no texto “O sonho, o Sphinx e a morte de T.”, escrito e restaurações). É uma peça suficientemente pequena em
nessa época. A Cabeça sobre uma haste faz lembrar a Mu- escala e lisa o bastante na superfície para ser praticável
lher degolada. Os homens caminhando – tanto a figura em em gesso, ao contrário da maioria das esculturas termi-
tamanho natural como a denominada Noite – habitam nadas em 1947, cuja sobrevivência seria impossível caso
aquela silenciosa atmosfera sonambúlica que impregna, não fossem fundidas em bronze. Mas é certo – como pro-
por exemplo, O sentido da noite, de Magritte, em que a figu- vam fotografias e gessos ainda existentes, embora qua-
ra de um homem comum sai do mar e se encaminha em se todos quebrados – que elas nunca foram tão bonitas
nossa direção enquanto seu duplo se afasta de nós na di- no bronze quanto na ocasião em que Giacometti as exe-
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197
reção do mar. Mas as figuras de Giacometti são mais que cutou em gesso. E há boa razão para supor que quando
imagens de mistério. Giacometti rompeu com os surrealis- as viu em bronze tenha ficado decepcionado. Ele as tinha
parte ii

Uma espécie de silêncio


tas por eles não conseguirem entender que havia um mis- feito e refeito no gesso branco que é cheio de luz. Nessa
tério maior a ser investigado, o da aparência real de um ocasião, no início de sua carreira, ainda não estava muito
homem: suas figuras são investigações indagadoras do acostumado a ver sua obra traduzida em bronze e agora
que acontece fisicamente quando um homem caminha se via confrontado com peças de sua autoria que haviam
como se enfeitiçado. Um dos atributos que se mostram perdido sua luz fosca e se tornado escuras, pesadas, lus-
sempre convincentes em Giacometti na maneira como trosas e sombrias. É, portanto, possível imaginarmos que
suas esculturas recriam uma aparência é o modo como ele tenha se decepcionado, tanto assim que, em poucos
os corpos desaparecem em suas beiradas – uma espécie anos, começou a pintar seus bronzes com cores pálidas e
de sfumato tridimensional. E, em peças como Homem ca- naturalistas para disfarçar o material. O bronze, depois
minhando e Cabeça sobre uma haste, o enevoado do sfumato de Rodin, transformou-se num material por demais ubí-
liga esse aspecto da obra à atmosfera de sonho. quo. E a razão pela qual as peças de 1948 passaram a ser
Essa mesma junção de uma atmosfera onírica com uma muito mais delgadas que as de 1947 deve ter sido porque,
precisa recriação de um aspecto da aparência já esteve pre- tendo visto suas esculturas fundidas em bronze, Giaco-
sente num momento de apogeu da carreira de Giacometti, metti quisesse se livrar de um pouco desse bronze.
quando ele fez as placas no final dos anos 1920, sobretudo Em certas obras feitas entre 1948 e 1953 com formas
a que se intitula Cabeça que olha. Executada e moldada em extremamente delgadas, Giacometti encontrou uma so-
gesso, copiada em mármore e, décadas mais tarde, fun- lução para a dualidade surgida nos anos 1920 entre seu
dida em bronze, somente suas versões de gesso têm, de sentimento de que as figuras tinham de ser algum tipo de
fato, o tipo de luminosidade que expõe toda a sua magia construção leve antes que pudessem corresponder a sua
inerente (magia que tem conseguido sobreviver a quebras visão da realidade e a criação de superfícies que dessem
alguma oportunidade para modular o jogo de luz so- com a linha de visão – como na Cabeça que olha – ou em
bre elas. Seguiu-se, então, uma série de obras nas quais continuidade com ela. Nos bustos com cabeças “fatiadas”
o adelgaçamento foi explorado quase sistematicamente, os ombros apresentam, grosseiramente falando, duas su-
os bustos das “cabeças fatiadas” de 1954-55 que, pode-se perfícies achatadas de costas uma para a outra, fazendo
dizer, sintetizam a contribuição de Giacometti à arte da um ângulo reto com a linha de visão, enquanto a cabeça
escultura. Essas figuras, ao contrário das mulheres de pé apresenta a mesma coisa, embora dando continuidade à
e dos homens caminhando, não são devedoras dos protó- linha de visão. E nas melhores dessas obras em que Gia-
tipos egípcios, sua arquitetura é totalmente original, ela cometti não se concede nada parecido com o volume de
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199
é encontrada na natureza, pois suas formas – como no uma cabeça para manejar, ele, de certa maneira, modela
caso da Cabeça sobre uma haste – encontram-se em certas seus perfis, que fisicamente não passam de uma cunha,
parte ii

Uma espécie de silêncio


formações rochosas características das montanhas que se de modo tal que essa cunha implique todo o volume de
erguem ao sul de Stampa. Além do mais, constituem – so- uma cabeça e toda a presença de uma visão frontal.
bretudo aquela que tem a cabeça que mais se parece com Acho que Giacometti nunca mais voltou a fazer uma
a do artista, o Busto de Diego de 1955, com 56,5 centímetros escultura que alcançasse o nível dessas peças porque
de altura, uma intensa imagem com seu perfil semelhan- nunca mais voltou a atingir o mesmo equilíbrio perfeito
te à ponta de uma flecha, embora especialmente suave entre a semelhança e a coerência estrutural. Essa perda
em sua modelagem – o exemplo máximo do excepcional crucial não foi suficientemente compensada por um ga-
domínio do artista sobre a forma. Quando Giacometti nho de maior compreensão da aparência, nem mesmo
tentou fazer uma escultura da vista frontal de uma ca- na modelagem extremamente sensível do rosto de Lotar.
beça, e com uma largura normal, parece que teve grande Além do mais, há uma diminuição de energia: talvez uma
dificuldade para executar seu volume total, que tendia das razões pelas quais esses bustos são obras pungentes
sempre a ficar como uma máscara. Era uma dificuldade – é o fato de eles parecerem peças visivelmente cansadas.
já apresentada numa de suas antigas obras, incrivelmente As fotografias de Giacometti tiradas quando ele estava
precoce, a cabeça de sua mãe feita no princípio dos anos com cinquenta anos mostram um homem com aparência
1920 – que não fora superada, quarenta anos mais tarde, de quarenta, e as tiradas quando estava com sessenta são
na série dos sucessivos estágios de cabeças de Annette, as de um homem de setenta. Esse envelhecimento segu-
datada do início da década de 1960, e nos bustos de Eli ramente está relacionado ao câncer que o matou aos 64
Lotar feitos em meados da mesma década. A genialidade anos de idade. Se, por um lado, uma doença fatal pode em-
de Giacometti estava voltada para o baixo-relevo, para prestar à obra do artista um tom mais arguto, e me parece
inflectir uma superfície plana, estivesse ela em ângulo que em algumas das esculturas de seus últimos anos – os
bustos de Lotar – havia um ar de fatalismo pesaroso, de peça fascinante, sensivelmente modelada e impressionan-
resignação, por outro lado, em outras – os bustos de Chia- te, mas não nos atinge o sistema nervoso como acontece
venna – há uma insistência excessivamente compensató- com a Cabeça sobre uma haste. Já os dois homens que cami-
ria no dinamismo da forma através do espaço que lhes dá nham em tamanho natural, apesar de peças esplêndidas –
a fastidiosa pugnacidade de um Polichinelo. são peças complementares, de caráter leve, mais para ma-
Já perto do fim do poema escrito e publicado em 1952, há níaco, e tão deprimido quanto um sobrevivente das pági-
uma recapitulação dos dois temas de seus versos iniciais: nas de Beckett –, perderam a grandeza trágica e o mistério
da figura de 1947. Ao contrário dessas obras, as quatro mu-
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Um cego tateia seu caminho no vazio (no escuro? na noite?) lheres inauguram uma nova etapa com seus cerca de três
Os dias passam e me iludo em agarrar, reter o fugaz. metros de altura e por isso são radicalmente diferentes
parte ii

Uma espécie de silêncio


corro, corro sem sair do lugar, sem parar [...] 138
como conceito de todas as mulheres anteriores, mas sem
a força da presença daquelas. Entretanto, quando vi as
Esse é um belo texto e seu tom pungente tende a apagar quatro amontoadas numa sala apertada e alta da Galeria
o fato de que um artista, cujos avanços se parecem com Beyeler na Basileia em 1989, subitamente elas pareceram –
os de Alice e a Rainha Vermelha, se encontra numa má aqui, um exemplo clássico do quanto a forma de apresen-
situação. E os versos, segundo me parece, eram proféti- tação pode ajudar ou prejudicar as esculturas de Giaco-
cos; com efeito, pouco tempo depois, a obra nem mais no metti – muito mais reais e convincentes do que tinham
mesmo lugar se mantinha. (Em arte, quando a coisa não sido quando colocadas no espaço generoso, digamos, do
melhora, em geral, piora.) pátio da Fundação Maeght. Vistas de perto, tinham se
Hoje em dia, tenho a impressão de que as figuras e bus- transformado, de repente, em peças interessantes. Talvez
tos feitos depois de 1955 já não têm mais aquela “violência valha repetir aqui o que disse Giacometti sobre a execu-
contida”, 139 que era o que Giacometti mais prezava numa ção dessas figuras.
escultura. A série de mulheres de pé, feita de memória em
1956 para a Bienal de Veneza, não apresenta muito dessa No princípio, você acha que precisa de pouco espaço para fa-
“energia contida” 140
nem da densidade e da imobilidade zer uma coisa pequena e muito mais para fazer uma grande,
vibrantes das mulheres de pé de 1945-53. Entre as mulhe- mas acontece o oposto. Uma escultura muito grande pode ser
res de pé, os homens andando e as cabeças masculinas feita num espaço bem pequeno [...].141
feitos de memória em 1960 por encomenda do Chase Man-
hattan e que são talvez as obras mais famosas do artista, Antes, Giacometti usara sempre uma combinação de não
a cabeça em tamanho acima do natural de Diego é uma mais que dois de seus eternos temas. Aqui, ele tentou
combinar todos os três, com um exemplo de cada um, e de memória era muito menos empolgante do que traba-
suponho que tenha sido mais sua consciência das difi- lhar com modelo-vivo. E foi com modelo – e estou dizendo
culdades do que a escala usada no projeto que o levou a modelo e não simplesmente do natural – que trabalhou
abandonar sua maneira habitual de trabalhar e a fazer na maior parte de suas esculturas dos últimos dez anos e
maquetes para figuras. O que desde então me fez sentir em praticamente todas as pinturas; já naturezas-mortas e
que as dificuldades eram insuperáveis foi algo que per- paisagens, como as de fases anteriores, foram bem poucas;
cebi em 1981, na ocasião da montagem de uma exposi- agora, somente fazia desenhos de seus temas. O interesse
ção numa galeria pequena e bonita situada num parque. e afinco que punha no trabalho com modelo-vivo – inclu-
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A mostra, inicialmente, incluiria três das peças do Chase sive com sacrifício do distanciamento mental da realida-
Manhattan – a cabeça e dois homens caminhando. Era de que propicia a liberdade criadora – provavelmente se
parte ii

Uma espécie de silêncio


uma formação ainda não experimentada de dois temas ligava ao fato de ser essa uma maneira de interagir com
e eu resolvi dar às três peças uma sala quadrada de bom alguém. Giacometti era um homem extremamente auto-
tamanho para ver o que aconteceria. Em dez minutos, centrado, mas não um solitário. Gostava de falar e ouvir,
elas haviam encontrado seus lugares e a sala iluminou-se. sobretudo quando se tratava de uma situação a dois, e seus
Mas enquanto a exposição ainda estava em cartaz uma modelos eram pessoas que ele amava ou com quem gosta-
das mulheres de pé ficou disponível. Repetidas vezes ten- va de estar, de modo que trabalhar com modelo-vivo era
tei dispô-la em combinação com a cabeça e uma ou outra um bom pretexto para se alongar nas conversas. E quando
das duas figuras masculinas, mas elas pareciam resistir a era preciso interromper-se para que o trabalho assumisse
se agrupar como trio. E ele próprio disse que “não tinha o comando, nesses momentos a interação se fazia ainda
praticamente nenhuma opinião sobre como elas pode- maior. Giacometti não era desses artistas que queriam
riam ser agrupadas”. 142 do modelo que ficasse como uma maçã; ele exigia aquela
Na verdade, não era um projeto que significasse mui- “presença atenta” de que Annette me falou. E essa confron-
to para ele. Abordou-o quase que com indiferença. Tinha tação podia satisfazer uma necessidade que governou toda
se deixado levar por uma “espécie de nostalgia da grande a sua existência: Giacometti não queria ficar sozinho, mas
escultura ao ar livre. Mas de qualquer modo eu sempre queria se manter à parte. O modelo-vivo fornecia alguém
quis saber qual era o maior tamanho de peça que podia que lhe permitia pôr-se à parte, alguém para se situar na
fazer”. 143
Ele também poderia ter se sentido atraído pela obra a uma certa distância, alguém que de frente para ele
peça porque era uma tarefa completamente oposta à di- estabelecia uma existência separada da sua. Ao mesmo
reção que vinha tomando nessa época. A partir de 1955, tempo, ter essa pessoa como modelo proporcionava uma
aproximadamente, havia começado a achar que trabalhar gratificante sensação de fracasso, pois todo artista que

trabalha do natural tem a consciência permanentemente A partir da metade dos anos 1950, as pinturas e as escul-
acusando-o de não estar fazendo a obra diante dele casar turas tornaram-se, creio eu, cada vez mais expressivas das
com a realidade que está diante dele. dificuldades de realizá-las, cada vez mais indiferentes à ne-
A pintura, na minha opinião, não progrediu nesses úl- cessidade de serem uma entidade convincente bem como
timos dez anos mais do que a escultura. Nas muitas vezes uma representação convincente, cada vez mais indiferen-
em que fui à retrospectiva da Tate em 1965, achava que tes à criação de um estilo, assim como Cézanne, que trans-
as pinturas com as quais passei mais tempo, hipnotizado formava a incerteza em beleza. A impressão que tenho ago-
pelo olhar vindo delas, eram os grandes retratos de Caro- ra é que Giacometti sacrificou sua arte na busca de uma
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line sentada, pintados nos anos 1960 – obras em que o tra- obsessão. E quando digo sua arte, não estou falando me-
balho foi se concentrando cada vez mais no rosto e em sua ramente de atributos estéticos, mas daquilo que ele mais
parte ii

Uma espécie de silêncio


aura, e o resto, deixado quase intocado, resultado daquela valorizava, a semelhança: nessas últimas pinturas, com
obstinação em querer copiar o nariz de modo a projetar- efeito, a sensação de uma luta para vencer as dificuldades
-se do rosto como nas figuras bizantinas. Voltando a vê- aniquila a sensação de uma presença humana. Recordando
-las em grandes retrospectivas em 1972 e 1992, percebi que sua corajosa afirmação segundo a qual a qualidade da obra
eram visivelmente inferiores às pinturas do final dos anos estava na razão da obsessão do artista pelo tema, parece
1940, maravilhosas em sua sutil, mas nunca convencional, que, aqui, a obsessão é menos pelo tema do que pelo méto-
harmonização de tudo quanto está sobre a tela e na reali- do. 144 (Certos pintores do século xv também se viam obce-
zação de uma visão alucinatória de figuras no espaço, que cados pelo método da perspectiva.) Especialmente porque
transformam os espaços fechados de uma sala em longas a semelhança pela qual Giacometti estava obcecado era de
e vertiginosas perspectivas: penso particularmente num um tipo muito obsessivo: a semelhança frontal.
retrato de Diego, de 1949, sentado com as pernas cruzadas Quando Tériade, amigo de longa data de Giacometti e
no primeiro plano do ateliê de Paris; no retrato de 1949 um insuperável árbitro de pintura, me disse em 1975 que
de Annette em Stampa, pertencente à coleção Neumann, considerava o meu retrato o melhor que Giacometti ha-
de Chicago; e no retrato da mãe do artista em Stampa, de via pintado, com certeza estava, em parte, me fazendo um
*
1950, que está no Museu de Arte Moderna de Nova York. cumprimento por eu ter posado para Giacometti, mas não
resta dúvida de que essa obra está entre as melhores pinta-
* Trata-se, respectivamente, das seguintes pinturas: Diego sentado no ate-
das nos últimos anos do artista. O curioso é que ela não é
liê (Diego assis dans l’atelier, 1949, óleo sobre tela, 81 × 64,5 cm, Galerie Be-
yeler, Basileia); Annette em Stampa (Annette à Stampa, 1949, óleo sobre tela, perfeitamente frontal: o modelo está ligeiramente virado
90 × 61 cm, coleção família Morton G. Neumann, Chicago); e A mãe do artista
para a direita. Essa pose incomum não passou desperce-
(La Mère de l’artiste, 1950, óleo sobre tela, 89,9 × 61 cm, Museum of Modern
Art, Nova York). [n.r.t.] bida aos críticos de arte que naturalmente concluíram
que Giacometti, aqui, havia optado por sair de sua prática fera está viva, como a do quarto de Giacometti quando
habitual. Na realidade, não foi uma escolha. Por causa de ele, deitado em sua cama, observava a dança de um fio de
um pequeno problema na vista, se eu olhar alguém direta- partículas de poeira. Corpos sólidos de uma misteriosa
mente no rosto, enxergo em dobro, o que é um incômodo; luz estão fechados num espaço carregado de uma energia
assim, para posar e fitar o artista conforme ele exigia, tive sobrenatural, embriagadora, flutuante e inflado pela luz.
de obter sua permissão para virar um pouquinho para um
dos lados. Pelo menos por uma vez, ele não pôde controlar
a pose e isso o livrou da prisão de sua obsessão e lhe per-
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mitiu prestar atenção em outras coisas.
A obsessão pela frontalidade também não foi capaz de
parte ii

Uma espécie de silêncio


desviá-lo quando fez os desenhos dos variados temas que
se lhe apresentaram. Nesse caso, seu limitado controle do
tema deu-lhe uma liberdade que pode ter sido importante
para a maneira como o desenho se desenvolveu no decor-
rer das duas décadas entre seu retorno a Paris e sua morte.
Aqui, seu olho prodigioso jamais foi diminuído pelo in-
cansável esforço para aprisionar a aparência. A intensi-
dade radiosa com que ele executava uma única figura de
pé isolada no espaço não só se manteve como foi cada vez
mais refinada em complexos cenários de interior e exte-
rior, em que um espaço luminoso inunda a imagem como
se os vazios fossem o positivo e os sólidos, o negativo.
A fluidez da visão harmoniza-se com uma cristalina
clareza de estrutura. Um experimentalismo preciso no
registro de fatos é aquecido por um inebriante bafo do su-
blime. A crença de Michelangelo segundo a qual o escul-
tor traz à luz uma forma enterrada no mármore que ele
esculpe torna-se metáfora para o ato de desenhar, até mes-
mo para os contrastes entre partes inteiramente polidas
e aquelas que ainda estão por emergir do bloco. A atmos-
Entrevista
DAVID SYLVESTER Você disse que tudo o que quer fazer jamais me ocorreria levantar e caminhar em torno de você.
é copiar o que vê, que o que lhe importa é a semelhança Se eu não soubesse que seu crânio tem certa profundidade,
e que esse é o seu propósito quando faz uma escultura, não poderia adivinhá-lo. Assim, se eu fizesse uma escultu-
pintura ou desenho. No entanto, as formas em suas es- ra sua exatamente de acordo com a percepção que tenho de
culturas são em geral mais finas do que nas pinturas e você, faria uma escultura achatada, muito pouco modulada,
nos desenhos. que estaria muito mais próxima de uma escultura cicladen-
ALBERTO GIACOMETTI É verdade. Mas quando você se, que tem uma aparência estilizada, do que de uma de Ro-
faz uma pintura, você está criando uma total ilusão da din ou Houdon, que têm aparência realista. Acho que, por
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realidade, da aparência de uma pessoa em dada posição termos aceitado durante tanto tempo a ideia do aspecto que
e em dado ambiente, e você não pode separar a pessoa uma escultura de cabeça deveria ser, nós nos tornamos to-
Entrevista

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do ambiente. E quando você olha alguém de frente, não talmente incapazes de ver uma cabeça como ela realmente é.
está pensando no que está atrás de seu rosto; não está Por isso é que ficou para mim quase impossível fazer
pensando conceitualmente, está pensando visualmen- uma cabeça de observação. Nem sei como alguém conse-
te. A ilusão conta muito mais do que quando você está gue fazer uma cabeça em escala natural – seja em pintura,
trabalhando com um volume real, como na escultura. seja em escultura. Quando vejo uma cabeça em tamanho
Antes de mais nada, sou escravo de uma tradição, porque natural num quadro de Cézanne, ou uma cabeça de Ro-
para mim, como para todo mundo, a escultura realista, din ou Courbet ou Ticiano, ou de qualquer outro, não
aquela que se assemelha a uma cabeça, significa uma cabeça consigo nem imaginar como eles conseguiram fazê-la.
grega ou romana, por isso, ela é vista como volume, como Sob esse aspecto, a escala dos primitivos está muito mais
esfera, como o equivalente da própria realidade. Até Rodin próxima de mim. Como Van Eyck, o pequeno Van Eyck
tirava medidas quando trabalhava em seus bustos. Ele não com turbante vermelho da National Gallery: esse parece
modelava uma cabeça como realmente a via a certa distân- mais próximo da maneira como vejo uma cabeça do que
cia no espaço, como eu enxergo você agora nessa distância todos os retratos em tamanho natural que já foram feitos.
entre nós. Ele queria fazer um paralelo em argila, o equiva-
lente exato desse volume no espaço. Por isso, no fundo, não se E as cabeças maiores do que o natural?
tratava de uma visão, mas de um conceito. Ele já sabia que ela Se for maior do que o tamanho natural, ela estará fora
era redonda mesmo antes de começar, ou seja, ele partia da de nosso domínio. Ela se torna uma coisa monumental e,
ideia convencional de uma cabeça que prevaleceu em toda nesse caso, é feita para um lugar em particular, geralmen-
a escultura europeia desde os gregos e fazia um volume no te para algum edifício. Você olha para ela de longe e a essa
espaço diferente de tudo o que realmente via. Normalmente, distância ela se torna outra vez pequena. Se os egípcios
colocam esculturas de cinco metros de altura na frente depois, as peras estavam exatamente do mesmo tamanho
de um templo, você só as verá como esculturas quando milimétrico que as primeiras.
estiver a quarenta metros de distância, porque elas se tor- Até a guerra, quando eu desenhava sempre fazia as coi-
nam outra vez pequenas, como uma pequena escultura sas menores do que acreditava estar vendo: em outras pa-
em cima de uma mesa. A escultura grande nada mais é do lavras, quando desenhava, eu ficava espantado por tudo
que a ampliação da pequena. As principais esculturas de tornar-se tão pequeno. Mas quando não estava desenhan-
quaisquer civilizações antigas são quase todas em escala do eu sentia que via as cabeças em suas dimensões reais.
pequena. Sejam elas egípcias, sumérias, chinesas ou pré- Em seguida, pouco a pouco, sobretudo depois da guerra,
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-históricas, quase sempre têm mais ou menos o mesmo essa tendência passou a fazer de tal maneira parte de mi-
tamanho, e acho que esse foi realmente o tamanho que nha natureza e estava tão arraigada em mim que a visão
Entrevista

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instintivamente pareceu correto, o tamanho em que as que tenho quando trabalho é a mesma de quando não es-
coisas são realmente vistas. E no decorrer da história a pe- tou trabalhando. Não consigo mais reproduzir uma figu-
cepção foi mentalmente transformada em conceito. Posso ra em tamanho natural. Às vezes, num café, observando
fazer sua cabeça em tamanho natural porque sei que ela as pessoas que passam na calçada oposta, vejo-as muito
é em tamanho natural. Eu não o vejo mais diretamente, pequenas, como minúsculas estatuetas, o que acho mara-
vejo-o através de meu conhecimento. Na realidade, esse vilhoso. Mas para mim é impossível imaginá-las em tama-
sempre foi o caso, mas em maior ou menor grau. nho natural, pois àquela distância elas simplesmente se
Por exemplo, meu pai, que fazia retratos de observação, tornam aparências. Se chegarem mais perto, se tornam
fazia em tamanho natural quase que instintivamente, uma pessoa diferente. E se chegarem muito perto, a uns
mesmo se eu estivesse posando a três metros de distância. dois metros de distância, simplesmente não consigo mais
Se ele fazia maçãs sobre uma mesa, as fazia em tamanho vê-las. Já não guardam mais o tamanho natural, invadi-
natural. Certa vez, quando eu tinha dezoito ou dezenove ram todo o meu campo visual e vejo-as como um borrão.
anos, eu me achava em seu ateliê desenhando algumas E se chegam mais perto ainda, não se consegue enxergar
peras que estavam em cima de uma mesa, à distância mais nada. Você passou de um domínio para outro. Se
normal para uma natureza-morta. E as peras iam ficando eu olhar uma mulher na calçada oposta e a vir muito pe-
cada vez menores. Eu recomeçava e elas sempre ficavam quena, fico maravilhado com a figurinha que caminha
exatamente do mesmo tamanho. Meu pai, irritado, disse: no espaço, e, depois, vendo-a ainda menor, meu campo
“Mas faça como elas são, como você as vê!”. E as corrigiu. visual torna-se muito mais vasto. Vejo, então, um espaço
Tentei fazê-las como ele queria, mas o tempo todo usando enorme em cima e ao redor da figura, quase ilimitado. Se
a borracha para apagar. Sem parar de apagar, meia hora entro num café, o meu campo visual abrange quase o café
inteiro; ele se torna imenso. Fico maravilhado todas as ve- tura em que estou trabalhando se torna quase tão ilusó-
zes que vejo esse espaço porque já não posso mais acredi- ria quanto uma pintura sobre uma tela. Mas de qualquer
tar na realidade... – como poderia pôr isso em palavras? – modo a gente sempre enxerga em cor, não é? Se faço uma
material, absoluta. Afinal, tudo é só aparência, não é? E se escultura num gesso cinzento ou fundida em bronze, a
a pessoa chegar mais perto, eu deixo de olhá-la, mas, por impressão de finura será ainda maior; se eu a pintar, ela
outro lado, ela também deixa quase de existir. Ou então poderá parecer muito mais verdadeira do que sem pin-
torna-se um envolvimento emocional: será que eu não tura. Essa é a razão por que estou sempre achando que
estaria querendo tocá-la? A visão perdeu todo o interesse. quero fazer esculturas pintadas.
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Quando você está fazendo uma escultura, ela está ao al- Mas você tem feito!
Entrevista

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cance de seus dedos. Mas se a realizar de acordo com o Sempre tentei, mas a forma nunca ficava suficientemente
que vê, de acordo com o modelo em seu ateliê ou que já realizada e não vale a pena pintar sobre uma coisa que
esteve em seu ateliê ou com alguém que você viu na rua – não existe. Mas tenho a firme intenção de achar uma ma-
irá fazê-la como se tivesse visto essa pessoa à distância. neira de produzir cabeças pintadas.
Só que você não está longe da escultura que está fazendo,
está longe é da pessoa representada pela escultura, e as di- Você gostaria de fazer sempre esculturas pintadas?
mensões e proporções que você dá à escultura correspon- Sempre. Porque também a escultura subitamente se tor-
dem àquilo que você viu a certa distância. No entanto, o nou uma ilusão. Ela já não é mais um objeto de bronze
observador que vê sua escultura depois de pronta não a vê ou pedra, um belo material em que dá vontade de tocar;
necessariamente na mesma distância em que você a viu. transformou-se num objeto muito equivocado ou ques-
E mesmo assim ela funciona: as proporções e dimensões tionável, realmente, porque se for pintada com as cores
estão corretas, ou parecem corretas. Pode explicar isso? que se escolher, aquelas que mais se aproximam do que
Elas podem parecer corretas, podem parecer corretas, a gente vê, digamos, o material perderá interesse e nem
mas na realidade não estão! A coisa ficou ainda mais será mais um fator a levar em conta. Desse modo, você
complicada de um mês ou dois para cá. Quando estou não conseguirá mais tocá-la. Ela própria se transforma
fazendo uma escultura não posso andar em volta do numa espécie de aparência. Mas eu, errando e tentando,
modelo. Por isso, somente posso fazê-la, digamos, fron- continuo ainda trabalhando nisso; fica muito difícil falar
talmente. Mas quando faço a escultura frontal é quase da coisa porque não tenho ideia de aonde tudo isso vai me
impossível ver em profundidade, ver o ângulo do nariz levar. Quero fazer cabeças do natural, levá-las até o limite,
em relação à testa, em relação aos olhos. Mesmo a escul- e elas certamente ficarão mais finas do que têm sido até
agora. E se fossem pintadas, muito provavelmente, fica- escultura como real porque o que interessa é sua energia
riam pavorosas. Se eu conseguisse um jeito de fazer o que contida. Ou sua tensão. A tensão, portanto, substitui o
eu tinha em vista, seria uma coisa quase insuportável de movimento; é como se ela fosse o movimento. E aí a coisa
se olhar. Apesar disso, não tenho certeza... se torna suportável.

Por que quase insuportável? Você sempre está dizendo que você mesmo acha essas pro-
Porque, por um lado, iria parecer real demais, ou dar de- porções estreitas demais, mas que, gostando ou não, é a
mais impressão de real, e então tudo o que o observador maneira como elas sempre acabam saindo.
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acharia é que ela é incapaz de se movimentar. Em outras Houve uma época em que quis me agarrar ao volume, mas
palavras, ela não passaria de um objeto morto, não é? Se elas ficaram tão minúsculas que desapareciam. Depois dis-
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você lhe desse olhos, iria pintá-los? Ficaria muito estra- so, quis me agarrar a determinada altura, e elas se torna-
nho, não? E se os pintasse como se estivesse olhando para ram estreitas. Mas isso foi contra minha vontade, mesmo
eles e depois eles não se movessem, a cabeça poderia ficar que eu lutasse para evitar. E como lutei; procurei fazê-las
um objeto extremamente desagradável. Mas você estava mais largas. Quanto mais tentava alargá-las, mais estreitas
falando de uma coisa que eu já disse a respeito das escul- ficavam. Mas a razão real disso é algo que não sei, que ainda
turas das Novas Hébridas, sobre o fato de elas terem um não sei. Só vou saber pela obra que eu fizer no futuro. Mas,
olhar sem terem olhos... bom, ninguém vai ficar chateado até hoje, não há dúvida de que uma cabeça cujas propor-
por isso. Mas se eu realmente modelar um olho e colocar ções não parecem verdadeiras parece mais viva do que uma
uma pupila preta para tentar imitar um brilho, como fa- cabeça cujas proporções parecem mais verdadeiras – coisa,
ziam os egípcios incrustando pedras, isso continuará sen- aliás, que está me preocupando muito neste momento.
do uma ilusão em que não se acredita muito. Mesmo com
o Escriba,* por melhor que seja, os olhos ainda vão conti- Ouvi você dizer, por exemplo, enquanto trabalhava numa
nuar com um estranho efeito, que você suporta apenas figura de pé, que quanto mais você a desbasta maior ela
porque ele não é tão real quanto você havia imaginado fica. Você não sabe mesmo por que isso acontece?
antes. É muito complicado. Você continua enxergando a O que sei é que, mais do que nunca, quanto mais desbasto
maior a peça fica. Mas por que isso acontece, ainda não sei.
Veja, no busto que estou fazendo agora, não paro de des-
* Há várias esculturas do antigo Egito retratando um escriba, geralmente
sentado, com um rolo de papiro apoiado nas pernas. Aqui provavelmente bastar; no entanto, ele é tão grande que tenho a impressão
Giacometti se refere à peça conhecida como o Escriba sentado, do Museu do
de que sempre volta a ficar duas vezes mais espesso do
Louvre (2600-2350 a.C.), feita de calcário pintado e com uma pedra polida
no lugar das pupilas. [n.r.t.] que na realidade é. Por isso, eu tenho de continuar des-
bastando, desbastando. E depois, bom, simplesmente não uma cabeça de Houdon, por exemplo, é na verdade como
sei. É nesse ponto em que realmente me perco. É como se uma coberta, porque sua superfície parece uma cabeça,
o material real estivesse se tornando ilusório. Você tem mas você tem a impressão de que por dentro está vazia, se
certa quantidade de argila e no início tem a impressão de ela for de terracota. E se for de pedra, que é um bloco de
estar fazendo mais ou menos o volume certo. Mas depois pedra. Mas o fato de ela ser vazia ou um bloco de pedra já
você começa a desbastar para que ele fique mais parecido. a torna falsa, porque ela não tem semelhança, já que não
Você nada faz senão desbastar e o volume continua au- existe um só milímetro dentro de nossa cabeça que não
mentando. Mas aí, então, é como se você pudesse esticar a seja orgânico. Portanto, em certo sentido, as cabeças es-
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matéria real até o infinito, não é? Se você trabalhar num treitas têm apenas a quantidade de argila suficiente para
pedacinho de argila intacta, ela parece ficar maior. Quan- manter sua coesão: a parte de dentro é absolutamente ne-
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to mais você trabalha nela, maior ela fica, não é? cessária. Ela é necessariamente mais parecida com uma
cabeça viva do que se fosse uma cópia do exterior. E, na
Isso é verdade. verdade, essa é a razão pela qual se, por um lado, eu acho
É verdade! Por isso, qualquer particulazinha de argila possível fazer uma pintura que é como uma cabeça, por
precisa ser trabalhada, ela não pode permanecer morta e, outro não tenho tanta certeza de que isso seja possível
então, fica óbvio que uma quantidade mínima de argila é em escultura. Hoje mesmo de tarde no British Museum,
suficiente para fazer uma cabeça de tamanho próximo do enquanto estava olhando as esculturas gregas, senti que
natural. Mas, nesse caso, tudo parece ficar absurdo. elas eram enormes blocos de pedra, mas blocos mortos.
Quando vejo alguém olhando para elas, essa pessoa não
Deve haver uma explicação: é possível que quando a coisa tem espessura e dá a impressão de ser uma aparição qua-
é mais estreita, portanto mais densa, ela contenha mais se transparente – e leve. O próprio peso da massa é falso.
energia. E se essa energia, essa violência contida, conti- O que faz um ser parecer vivo é o fato de ele, mesmo sen-
nuar a aumentar, você terá a impressão de que a escultura do muito gordo, poder ficar levemente na ponta de um pé;
domina mais espaço. E quanto mais espaço ela domina, ele até pode dançar num pé só, não pode? Uma das razões
maior ela parecerá. Poderia ser isso? por que fiz figuras em tamanho natural que se tornaram
Provavelmente, e há outra coisa: na verdade, se eu copiar extremamente finas deve ser que, para serem reais, elas
exatamente a superfície de uma cabeça numa escultura, tinham de ser leves o suficiente para eu erguê-las, car-
o que é que tem dentro dela? Uma grande massa de argila regá-las com uma mão só e colocá-las num táxi junto de
morta! Numa cabeça viva, o interior é tão orgânico quan- mim. Enquanto uma escultura de Maillol – não digo isso
to a superfície, não é? Assim, uma cabeça que parece real, em tom de crítica – em tamanho natural necessita de qua-
tro homens com máquinas para locomovê-la; isso já não olhar para a frente de um rosto sob uma boa luz para fa-
basta para dizer que ela falseia a realidade? O problema é zer a curva de um olho, para modelá-lo tal qual você o vê.
encontrar o real por meio das aparências externas. No entanto, isso me parece a coisa mais impossível do
mundo. Impossível não só para mim, mas para todos em
E o problema torna-se ainda mais complicado quando as es- qualquer tempo que seja. Na minha opinião, os únicos
culturas são pintadas em cores naturalistas, pois nestas há olhos que guardam semelhança são aqueles das escultu-
o bronze embaixo e, na superfície, uma ilusão bastante pre- ras que as pessoas consideram as mais estilizadas – sobre-
cisa. Nesse sentido, portanto, a escultura ainda é mais falsa! tudo as egípcias e, até certo ponto, também as bizantinas.
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É e não é. Por exemplo, uma escultura que tenha uma Em comparação a estas, os olhos de quase todas as escul-
aparência estreita quando ainda não está pintada dará turas de pedras já feitas se mostram bem menos reais.
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a impressão de ficar mais parecida com a maneira como
vemos as coisas assim que for pintada. Mas se eu a fizer Na verdade, você tem pintado suas esculturas com bas-
mais larga e depois a pintar, ainda não sei o que poderia tante frequência, mas de maneira intermitente, não?
acontecer. Para ser pintada ela talvez vá precisar de um Não muito depois de eu ter começado a fazer escultura
volume mais reduzido do que aquele que normalmente pintei algumas, mas dei um fim a todas elas. De vez em
se imagina para ela. Porque uma cor suave dilata, dilata quando repetia isso. Em 1950, pintei uma série inteira.
um volume (você pode ver isso numa tela, não?). Assim, a Mas ao pintá-las você vai vendo o que há de errado na for-
escultura provavelmente tem de ser mais estreita do que ma. E não há razão para pintar uma coisa em que você não
se pensa no início para que, uma vez pintada, ela possa acredita. Tentei outra vez apenas um mês atrás. A pintu-
produzir efeito. Mas essas são coisas que eu não sei. O que ra revela a deficiência na forma. Não posso perder tempo,
sei é que, até hoje, não consegui fazer um olho como o nem me iludir achando que consegui alguma coisa por
vejo. Em escultura, eu nunca consegui – nem em pintura, pintar uma escultura que nada tem por baixo. Por isso,
mas menos em escultura –, porque se você olhar para ele tenho de sacrificar a pintura para tentar fazer a forma.
de frente, ele não parece muito convexo, aparenta mais É a mesma coisa quando tenho de sacrificar toda a figura
uma forma oval alongada. Mas, se olhar de lado, ele pare- para tentar fazer a cabeça. Ou toda a paisagem para tentar
ce cortar o ar, não é? Portanto, duas coisas completamen- fazer uma folha. Ou também sacrificar todos os objetos
te contraditórias: na realidade, ele é redondo e pontiagu- para fazer um copo. Você somente consegue fazer uma
do ao mesmo tempo. Assim, como pode você fazer uma coisa se ficar restrito a um campo extremamente peque-
coisa que seja redonda e pontiaguda ao mesmo tempo? no. Até um ano atrás eu acreditava que era muito mais
Você poderia pensar que basta ter um pouco de argila e fácil desenhar uma toalha de mesa do que uma cabeça.
E ainda penso assim, em teoria. Mas há alguns meses pas- Se o copo aqui na minha frente me surpreende mais que
sei três ou quatro dias tentando simplesmente desenhar todos os copos que vi pintados, e eu se achar que até mesmo
uma toalha em cima de uma mesa redonda e me pareceu a maior maravilha arquitetônica do mundo não me afeta
totalmente impossível desenhá-la tal como eu a via. Eu mais do que esse copo, é porque não vale mesmo a pena ir
não devia ter desistido da toalha enquanto não tivesse às Índias para ver tal ou qual templo quando tenho tanto
certeza se iria ou não conseguir reproduzi-la. Mas, nesse e mais do que isso bem aqui à minha frente. Mas, então, se
caso, teria de sacrificar a pintura, a escultura, as cabeças esse copo se tornar a maior maravilha do mundo, todos os
e tudo o mais para me trancafiar num quarto e reduzir copos da Terra também se tornarão a maior maravilha do
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toda a minha atividade a ficar sentado na frente da mes- mundo. E assim acontece com qualquer outro objeto. Ao se
ma mesa, mesma toalha e mesma cadeira. É fácil prever limitar, portanto, a um único copo, você tem muito mais no-
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que quanto mais eu tentasse, mais difícil ficaria. Eu esta- ção de todos os outros objetos do que se quisesse fazer tudo.
ria reduzindo minha vida a praticamente nada. Isso é um Quando você tem meio centímetro de alguma coisa, tem
tanto inquietante, afinal ninguém quer sacrificar tudo! mais chance de vislumbrar o universo do que se preten-
Mas é a única coisa que se deveria fazer. Talvez. Não sei. desse abarcar o céu inteiro. Por outro lado, tentar simples-
Bem, em todo caso, desde que fiquei muito mais sensível mente desenhar um copo como você o vê parece ainda
à distância entre uma mesa e uma cadeira – cinquenta cen- uma tarefa bem modesta. Mas, então, constatando que isso
tímetros –, um aposento, qualquer um, passou a ser infini- é praticamente impossível, já não sabe mais se se trata de
tamente maior do que antes. De certa maneira, passou a ser modéstia ou orgulho. E você volta ao ponto de partida.
tão vasto quanto o mundo. E para morar é o que me basta. Para mim, tanto faz se uma obra é bem-sucedida ou não.
Com isso, fui gradualmente interrompendo minhas saídas Sucesso e fracasso numa pintura, sucesso e fracasso num
e passeios. Esse é o motivo pelo qual não saio mais para desenho, isso não quer dizer nada. Um fracasso me interes-
caminhar. Quando saio é para ir ao café, porque é neces- sa tanto quanto um sucesso. E devíamos expor as obras que
sário, mas prefiro ir de carro em vez de ir a pé, pois já não não são boas em vez das melhores. Pois se as não tão boas
existe mais o prazer de passear. O prazer de um passeio na aguentarem, as melhores certamente aguentarão. Por ou-
floresta também desapareceu completamente, porque uma tro lado, se você escolher as que parecem melhores, estará
árvore numa calçada de Paris já é suficiente. Uma árvore já se iludindo. Porque se houver outras escondidas que não
me basta, a ideia de duas me dá medo. Houve uma época são tão boas e que não se sustentam, mesmo que você não
em que eu ainda gostava de viajar; hoje, tanto faz. Estou as mostre, elas continuarão existindo. E se alguém exami-
menos interessado em ver coisas porque um copo sobre nar com cuidado poderá encontrar fraquezas mesmo nas
uma mesa me surpreende muito mais do que antes. melhores. Por isso, deveríamos começar com as mais fracas.
Você sabe se a necessidade dessas constantes repetições
é de ordem pessoal ou artística? E se, quando você refaz
Para você qual a principal diferença entre trabalhar do uma peça cinquenta vezes, na quinquagésima vez ela pa-
natural e trabalhar de memória? rece melhor do que na vigésima?
A memória é curta, muito curta. Quando você olha para Claro que não. Talvez nem melhor do que na primeira vez.
a realidade, ela é muito mais complexa, e quando você O que acontece é que, ao fazer uma coisa muito rapida-
tenta repetir de memória o que viu, se dá conta de que só mente e ela ficar boa, eu acabo desconfiando da própria
se lembra de muito pouco. A obra torna-se mais simples velocidade. Quer dizer, vou querer começar de novo para
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porque ela é menos abrangente, mas, por outro lado, você ver se vou me sair bem uma segunda vez. Na segunda vez
deixou de realizar muita coisa. Ela é menos interessante. nunca fica tão bom, a peça começa a degringolar. Assim,
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Mas aqui, outra vez, não sei onde estou. a original é a melhor. Quando sinto que não estou que-
rendo largar a obra, volto para ela. E quando paro, não é
Quando você está trabalhando de memória nas mulheres por achá-la mais completa ou melhor; é porque, naquele
de pé, por exemplo, todas as vezes que as refaz, é de ma- momento, essa obra deixou de ser necessária para mim.
neira muito rápida, não é? Isso quer dizer que eu sempre paro exatamente no dia em
É. Porque o objetivo de fato é muito limitado. No geral, o que o trabalho estaria apenas começando.
que interessa é fazer certas proporções corretas. Não se
trata de fazer uma coisa precisa ou de tentar entender o Você parece levar mais a sério sua obra feita de observa-
que se vê, é mais a realização de um efeito, que deveria ser ção do que a de memória.
razoavelmente simples e não fazer mais do que aquilo que Não é que leve mais a sério, não é essa a palavra; é apenas
pode ser visto de relance. Portanto, é óbvio que aqui você que a obra do natural me atrai mais. Para começar, ela é
anda muito depressa e dificilmente pode pensar duas ve- mais difícil. Se eu falhar, isso realmente vai me ajudar.
zes. Você teria de destruir a escultura inteira e refazê-la Vou ficar sabendo mais sobre aquilo que estou olhando.
como ela havia sido.
Mas, mesmo assim, você ainda precisa trabalhar de me-
Assim, quando vemos, vamos dizer, uma mulher de pé, mória, não é?
essa escultura fundida em bronze, que possivelmente foi Mais ou menos. Hoje em dia, faço muito pouco.
executada em poucas horas, já teria sido feita umas cin-
quenta ou cem vezes. Mas trabalhar de memória para guardar uma ideia do
Sim, com certeza. que viu não o ajuda no trabalho de observação?
Claro que sim. Inclusive isso é absolutamente necessário. começa a aparecer, esperando que esta não seja tão grande.
É por essa razão que sempre ou quase sempre que faço Mas ainda não estou totalmente seguro disso. A mesma
uma cabeça paralelamente trabalho numa versão dela do coisa acontece com as cabeças feitas de observação: elas
natural e outra de memória. Isso sempre ajuda. Mesmo têm três ou quatro vezes mais matéria. As de memória
se não for o mesmo modelo, se forem duas cabeças de di- são mais corretas em certo sentido. Mas nenhuma delas
ferentes pessoas, uma de memória e outra de observação, está realmente certa, o que leva a continuar sempre ten-
a busca é exatamente igual; eu tenho de tentar entender tando. Para mim, trabalhar de memória é simplesmente
a mesma coisa. E se faço progressos com a de memória, uma questão de, quando estou sozinho, tentar refazer coi-
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terei mais possibilidades quando for trabalhar do natural. sas que vi. Porque no trabalho do natural, você sempre vê
Isso é certo. muito mais do que pode dar conta, com isso você se perde
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no meio de uma série de complicações. No de memória,
Até agora, as esculturas que você tem feito de memória você tenta reter o que o impressionou mais vivamente. Ao
em geral têm sido mais estreitas do que as de observação. mesmo tempo, ele o ajuda a prosseguir com o trabalho do
Em geral sim. Porque elas se estreitam à minha revelia. natural. Por fim, minha ideia seria trabalhar exatamente
Mas nas esculturas feitas de observação, isso acontece da mesma maneira, não importa se de memória ou se do
menos. Na realidade, no trabalho do natural nunca fui natural – as duas deverão sobrepor-se perfeitamente.
longe o bastante. E isso é o que vou tentar fazer agora. De
qualquer modo, sei que fiz muito poucas esculturas de A grande cabeça de Diego de 1960 foi feita de memória?
corpo inteiro do natural; há quase dez anos que não faço Foi feita de memória e não está correta, pois não corres-
um nu do natural. Por isso, estou ansioso para recomeçar. ponde de forma alguma àquilo que eu vi. Ela é quase
Mas hoje percebo que aqueles que fiz dez anos atrás têm como se eu estivesse me remetendo a peças da escultu-
no mínimo três vezes mais matéria; vejo isso com toda a ra romana, provavelmente a uma cabeça que vi em 1920
clareza. Os que fiz de memória provavelmente têm muito numa praça em Roma, que me impressionou muitíssimo.
pouca. Mas a verdade está entre as duas práticas – a verda- É uma espécie de nostalgia de um tipo de escultura que
de relativa da percepção, pelo menos. E essa é a razão por era feita mas que eu não posso fazer mais. No entanto,
que agora estou tentando trabalhar do natural, da melhor para ter certeza de que você não pode fazer mais, é preciso
maneira que conseguir, numa figura não muito grande, continuar tentando, por isso procurei realizá-la naquela
e vou levá-la o mais longe possível de memória, farei um escala. Na realidade, ela é totalmente ambígua, não cor-
modelo de gesso sem destruí-la, depois continuarei tra- responde nem um pouco àquilo que vi. E essa é a razão
balhando nela com modelo-vivo e verei onde a diferença por que gostaria de refazê-la algum dia.
E o que você diz das quatro figuras altas de mulher, com Sua intenção era fazer uma composição para uma praça
quase três metros de altura? com esculturas de grandes dimensões, e você fez uma
Elas foram feitas da mesma maneira que a cabeça, numa mulher de pé, um homem que caminha e uma cabeça,
espécie de nostalgia da grande escultura ao ar livre. De mas chegou alguma vez a reunir as três peças?
qualquer modo, eu sempre quis saber qual seria o maior Fiz quatro mulheres, dois homens caminhando e duas ca-
tamanho de peça que conseguiria fazer. Assim, quando beças. Mas, então, como nenhuma das peças saiu direito,
um arquiteto sugeriu que eu fizesse algumas esculturas a ideia inicial de composição passou para segundo plano.
para uma praça, aceitei, pois era uma boa maneira de E eu praticamente não tinha qualquer noção de como
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acabar com essa dúvida. Sou totalmente contra a prá- agrupá-las. Os dois homens caminhando são os únicos
tica comum de fazer escultura pequena e aumentá-la que sobraram de pelo menos quarenta outros que não
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mecanicamente. Ou consigo fazê-la tão grande quan- eram piores nem melhores. Eram peças muito diferentes
to eu quero, ou então não consigo. Poderia facilmente umas das outras. As quatro mulheres também são as úni-
concordar em aumentá-la mecanicamente se fosse so- cas remanescentes de dez outras, todas destruídas. Mas
mente uma questão de imprimir velocidade ao traba- não resolvi o problema e desisti da ideia quando percebi
lho, mas eu devo também ser capaz de fazer sem ajuda que se fosse executar essas esculturas teria de devotar anos
mecânica, não é? Além do mais, eu estava interessado de minha vida a elas. Não valia a pena. Mais progresso
em descobrir a altura máxima que conseguiria fazer eu teria feito se simplesmente tentasse fazer uma cabeça
com as mãos. Bem, altura máxima é exatamente o que do natural do que se tentasse fazer uma grande escultura
as mulheres altas são. Elas estão já quase que além de que impressionaria pelo tamanho. Realmente, o tamanho
qualquer possibilidade, e nesse caso estamos falando de tem um papel importante, embora você possa achar que
algo completamente imaginário. Mas, então, mais uma seja um papel infeliz. Nós ficamos impressionados por al-
vez iria ficar fácil! Em outras palavras, se eu quisesse guma coisa muito grande mesmo se ela não for tão boa. Se
que uma escultura de vinte metros de altura se tornasse a mesma escultura fosse menor e de igual qualidade não
algo como uma figura, sei de antemão que deveria fazer repararíamos muito nela. Além do mais, se eu fizesse aque-
alguma coisa comprida e bastante fina, quase lisa, qua- la escultura grande, o que aconteceria com a cabeça lá no
se uma prancha, inclinando-se um pouco para a frente, alto? Não há como saber, não é? Porque você não pode mo-
com uma pequena protuberância no alto e olhando para delá-la como se modela uma cabeça do natural. Mas o pro-
baixo. Mas isso é outra coisa, é praticamente escultura blema não me interessa muito porque, em primeiro lugar,
decorativa. Talvez não de todo decorativa, mas totalmen- ele é mais fácil e, depois, porque tem muito mais a ver com
te outra coisa. a arquitetura. Ou seja, quando você percebe a altura em
relação a determinado espaço, a questão de considerá-lo é que quando você está trabalhando numa escultura pe-
um pouco melhor ou não torna-se secundária. É a relação quena, mesmo sem se afastar dela, você continua com as
que importa e esta, basicamente, se refere à qualidade das mãos no gesso e pode ver o todo. Mas quando você fez as
proporções, que não é estritamente uma coisa escultural, peças grandes e estava suficientemente perto para traba-
mas também, de certa maneira, arquitetônica. lhar nelas, você não podia ver o todo, podia?
Não faz muita diferença; muito menos do que você ima-
Normalmente quando você faz uma figura, você pode ver gina; aliás, quase não faz diferença nenhuma. Eu tinha
a figura inteira que está fazendo, mas quando você esta- ideia do todo mesmo quando me afastava somente um
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va trabalhando na mulher alta, não estava perto demais pouquinho. Porque o próprio fato de elas serem muito
para vê-la por inteiro? maiores do que o tamanho natural transforma o todo
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Não, isso é totalmente falso! No sentido de que a pessoa num conceito; não é uma percepção do mundo exterior, é
precisa de muito menos espaço para fazer uma figura já alguma coisa que eu imaginei. Posso ver seu tamanho
grande do que uma pequena. Se eu fizer uma escultura e as proporções em minha cabeça. Assim, quase tudo que
com cinquenta centímetros de altura, vou precisar recuar tenho de fazer é executar o que já está ali.
uns quatro ou cinco metros para vê-la, não é? Se eu fizer
uma escultura com três metros de altura, como essas que Como, por exemplo, quando você fez a Perna ou o Gato?
fiz, vou fazê-la no mesmo ateliê – e você sabe como ele é É, mas a Perna, bem ou mal, está resolvida. Para melhor
pequeno –, quase sem me afastar dela. ou para pior, ela é o que é. Também o Gato. Por outro lado,
as mulheres altas poderiam ser ligeiramente diferentes
Tudo bem, mas você não pode vê-la por inteiro! daquilo que são; em suma, elas não estão resolvidas. Para
Não é necessário. Você a vê do mesmo jeito. No princípio, tal elas teriam de ser mais trabalhadas, e, por enquanto,
você acha que precisa menos espaço para fazer uma coisa acho que isso seria perda de tempo. Talvez algum dia eu
pequena e muito mais para uma grande, mas acontece o volte a elas... Já fazer uma cabeça do natural seria impos-
oposto. Uma escultura muito grande pode ser feita num sível sem todo um trabalho preparatório, mesmo que ela
espaço bem pequeno e, da mesma forma, você poderá pre- tivesse de ser totalmente recomeçada a cada sessão e mes-
cisar de um espaço relativamente grande para fazer uma mo que tudo o que restasse dela no fim fosse feito de um
pequena. só fôlego. Veja, você nunca apaga. Mesmo que você pense
que apagou o que fez nos dias anteriores, isso não é ver-
Não, não é isso. Eu não estava necessariamente falando da dade, você não o desfez. Qualquer pouquinho que tenha
possibilidade de recuar. O que eu estava querendo dizer dado certo permanecerá. E essa é a razão pela qual isso
é muito mais fascinante para mim do que fazer figuras às pessoas a sensação de serem mais poderosas do que na
grandes que impressionam as pessoas. Foi realmente por realidade são. Exaltação de si próprio, ou de si próprio e
isso que parei e não quero levá-las adiante. A maior es- de outros, por motivos, vamos dizer, que nada têm a ver
cultura que atualmente quero fazer seria um pouco me- com considerações formais, o que no entanto se justifica.
nor do que o tamanho natural, como alguém visto a três Mas é bastante primário, é como o desejo da criança de
metros de distância. Ainda não sei o que pode resultar conquistar o mundo: quanto mais você tem, mais feliz é.
disso, mas maior do que isso não me interessa mais nem Mas, aqui, nós estamos sendo infantis – o que, de certo
um pouco. Eu sei como se faz, sei que amanhã poderia modo, somos durante a maior parte do tempo.
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fazer facilmente uma grande figura em poucas horas que
sem dúvida seria melhor do que aquelas de 1960. Mas isso
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seria apenas criar um efeito, realmente, e não vale a pena
desperdiçar meu tempo tentando. Assim, esse é o fim da Quando você começou a trabalhar de memória em 1925,
história. Afinal, parei um dia de trabalhar nas figuras não foi porque você começava a perder a esperança em re-
grandes porque, quando vi que estava perdendo tempo, lação ao trabalho de observação?
resolvi fundi-las; mais tarde, pensei em destruí-las, mas Eu não estava realmente desesperado, só achava que era
nesse intervalo deixei-as na fundição. Na realidade, por uma total impossibilidade. Não, eu não estava desespe-
dois anos. Quando as peguei de volta, resolvi não destruí- rado. Se você quiser dar um salto tão alto quanto a Lua e
-las; pensei comigo: “São estudos feitos em certa ocasião for tolo o bastante para achar que pode, um belo dia vai
e foram úteis para mim, por isso vou conservá-las”. De perceber que não consegue e se esquece. É completamente
qualquer modo, mesmo que sejam grandes, pelo menos idiota desesperar-se. Para mim era simplesmente impossí-
nada existe de monumental e maciço nelas. Mas nunca vel, por isso nem mesmo triste fiquei. Era só impossível, é
pensei que tenham dado certo; foram um fracasso. Por- isso. Não me interessava mais. Mas ao mesmo tempo esta-
tanto, se alguém quiser, hoje, dar alguma importância a va me interessando menos por outra pintura: perdi quase
elas será completamente exagerado em relação ao resto de todo o interesse pela pintura surrealista. Na ocasião, eu
minha obra; sei que é apenas porque são grandes, e isso é fazia objetos escultóricos fosse como uma vaga lembrança
um raciocínio totalmente idiota, primário. É uma mera daquilo que eu tinha feito do natural, fosse para expressar
forma de megalomania. Você faz objetos grandes porque sensações ou ideias, mas isso, afinal, não passava de um
imagina que, fazendo-os, você próprio se tornará maior. exercício que eu sabia de antemão que não ia durar muito
Sejam eles esculturas, prédios, igrejas, grandes afrescos – o que o invalidava –, mas eu sabia que logo chegaria a
ou qualquer outra coisa, seu propósito deve ser o de dar hora em que eu não seria capaz de fazer mais nada ou que
teria de me sentar de novo diante de um modelo e copiar pessoas, e estava muito consciente da possibilidade ou
do natural. Quando consegui fazer uma escultura inteira- não de alcançá-las. Por outra parte, não ligo muito para o
mente abstrata, a aventura estava terminada. Só poderia que as pessoas acham. Ninguém pode ter pior opinião de
prosseguir repetindo a mim mesmo. Tinha de recomeçar minhas obras do que eu; assim, não posso esperar que os
a trabalhar de observação e, já que outras soluções não outros gostem de alguma coisa que eu próprio acho pou-
existiam – pelo menos para mim –, nada restava a fazer co trabalhado ou muito medíocre.
senão tentar trabalhar, mesmo sem nenhuma garantia.
Dá no mesmo para mim se isso produz ou não resultado, Existe alguma de suas obras surrealistas de que você
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uma vez que eu só tenho a ganhar. Tenho a ganhar com ainda goste?
o trabalho, pois tenho a sensação, ou pelo menos a ilusão, Oh, de todas elas... de certo modo.
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de que todos os dias a realidade parece um pouco diferente
para mim, e sempre um pouco mais fascinante. E isso me De que modo?
ajuda a pensar, a ver obras do passado de maneira diferen- Na época, elas foram necessárias. Todas as que fiz foram
te. Por exemplo, quando eu estava olhando há pouco os necessárias para minha obra, portanto eu não as repudio
bustos de Rodin na Tate Gallery, eu os vi de maneira dife- porque é justamente por meio delas que consegui reco-
rente do que antes pelo simples fato de eu ter feito um bom meçar meu trabalho sob nova ótica. E em seguida, passei
trabalho com bustos nos últimos quinze dias. Assim, vi o a fazê-las de memória, por isso elas têm uma coisa em
que funcionava e não funcionava nos bustos de Rodin. De comum com todas as outras peças que tenho feito, desde
modo que, no meu caso, pessoalmente, esse é um estudo a primeira delas até as de hoje. Mesmo com aquelas que
que vale a pena. Já no caso de outras pessoas, de fato não parecem mais diferentes umas das outras. Afinal, nossa
me importa se isso interessa ou não a elas. maneira de ver... e, aqui, volto ao fato de que nossa ma-
neira de ver não muda tanto – ou, melhor dizendo, nossa
Você se preocupava se suas obras surrealistas interessa- sensibilidade. Nossas limitações são realmente muito es-
riam a outras pessoas? treitas. De qualquer maneira, sendo eu o que sou, só posso
Na época, sim. Queria que os trabalhos fossem interes- fazer isso e nada mais. Sempre é extremamente limita-
santes. Era como escrever um artigo quando você está do. Como o fato de você somente poder sobreviver a uma
tentando comunicar alguma coisa a alguém. Assim, eu temperatura de – digamos – entre 36 e 39 graus e isso já é
os produzia, mas não só para mim. Antes de mais nada, muito, muito ruim. Assim, você somente pode realmente
era para que os objetos existissem, mas também para que viver numa temperatura entre 36,8 e 37,8. E tudo o mais
outras pessoas os vissem. Eu tinha necessidade de outras é assim.
O lado fantasioso de sua obra surrealista foi influenciado Em 1933, você escreveu um artigo em que disse ter feito,
pelo movimento surrealista, por sua iconografia e por, diga- durante anos, somente esculturas que já existiam pron-
mos, seus sentimentos? Até que ponto você foi influenciado? tas em sua mente, e que você queria realizá-las no espaço.
Pelo surrealismo? Não, de forma alguma, eu diria. Não Não seria essa uma forma de arte um tanto visionária?
pelo surrealismo. Mas, por outro lado, fui sem dúvida ex- Não, era diferente. Era um exercício. Eu queria saber se
tremamente influenciado pela arte moderna em geral e uma coisa poderia ser imaginada de modo tão preciso
por aquelas formas de arte, arcaicas ou exóticas, que me que pudesse ser executada exatamente como imaginada.
interessavam na época, ainda que inconscientemente. E isso é um exercício muito longo, porque você pode es-
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Mas não especialmente por obras surrealistas, que, na tar enganado. Você começa por estar inteiramente enga-
verdade, não me agradam muito. Só fiquei com o grupo nado, acha que vê a coisa com clareza, mas, quando quer
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uns três ou quatro anos e estive também trabalhando fazê-la, a coisa toda desapareceu. Sei que falei com outro
com os pintores abstratos, Hélion entre outros. Nunca escultor sobre essa tentativa de realizar exatamente o
me considerei alguém que estivesse realmente fazendo que eu vi em minha mente. Ele disse que era impossí-
obras surrealistas, como no caso de outros que permane- vel; disse que se você realmente começa a realizá-la, sua
ceram ligados ao movimento. Para eles, esse era o objeti- maneira de ver modifica-se. E você descobre que a visão
vo genuíno, mas para mim era mais como um exercício que achava que tinha era muito, muito vaga, que ela tem
de transição. E eu sempre me senti um tanto distanciado de ser transformada para ser realizada. Pessoalmente, eu
deles, realmente. Além do mais, não havia quase nenhum estava convencido do oposto. Chegava quase a ser um
outro escultor surrealista: Arp, é verdade, mas eu não ti- exercício de estilo. Algo como um número de circo. Mas
nha muito em comum com ele. Um pouco. Por outra par- dessa vez eu realmente havia conseguido fazer o que
te, havia claramente uma atmosfera surrealista que me queria.
tinha influenciado. Por exemplo, O palácio às quatro horas
da manhã ou O objeto invisível tinham uma atmosfera que Conseguiu mesmo?
certamente era surrealista. Se eu não tivesse sentido uma Sem dúvida alguma.
coisa ou outra em comum não haveria razão para eu me
aproximar deles. Eles poderiam ter sido completamente Conseguiu fazer o que você...?
indiferentes a mim e eu poderia até ter me recusado a Com todos os detalhes. Por exemplo, O palácio às quatro
aceitá-los. O fato de eu ter estado interessado neles signi- da manhã é bastante complexo. Eu sabia com precisão mi-
fica que nós tínhamos alguma coisa em comum. E talvez limétrica como ele deveria ser. Não retoquei nada. Fiz a
isso ainda esteja por aí, em algum lugar... peça inteira de uma só vez, tal como ela é.
E quanto a essas visões que você tinha em sua mente? ateliê e as pegou tais como elas estavam para usá-las nas
Elas surgiam de repente, ou ficavam evoluindo durante composições, você não estaria, então, trabalhando com o
algum tempo? acaso como faziam os surrealistas?
Elas ficavam evoluindo durante certo tempo, e eram sem- Não. Nisso, você está enganado. Durante meu período
pre muito complexas. Havia provavelmente várias im- surrealista, nunca aceitei o fator acaso. Em primeiro lu-
pressões, cada uma completamente independente das ou- gar, nunca acreditei no acaso, nem naquela época nem
tras, que, por fim, se cristalizavam na visão de um objeto. hoje. Nem sei o que essa palavra significa. E nas constru-
Por exemplo, havia a conexão com aquilo que eu tinha ções que fiz não havia acaso – ou pelo menos não o aceitei.
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acabado de fazer; se tivesse feito algo muito liso como Mais tarde, quando fiz uma composição com as figuras
a superfície de uma face, iria querer fazer totalmente o que haviam sido deixadas no chão, supostamente ao aca-
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oposto, o esqueleto de alguma coisa. Para alternar, pode- so... – mas será que alguém põe alguma coisa no chão ao
-se dizer. Havia coisas que eu via e me impressionavam. acaso? Pessoalmente, não acredito nisso. Você coloca-as
Havia sempre diversos motivos juntos que, por fim, ad- numa certa ordem, ainda que a sua revelia. Quando eu
quiriam forma. Além desses, outros que eram e sempre ponho um copo de água em cima de uma mesa, simples-
serão inconscientes, porque mesmo que eu faça o que mente porque preciso apoiá-lo em algum lugar, a minha
quero, esse desejo é bastante mecânico. Na verdade, não tendência é colocá-lo num lugar e não em outro. Nunca
acredito muito em escolha nem em vontade própria; ou o coloco na beirada, eu detestaria vê-lo na beirada ou no
melhor, se a pessoa faz por sua própria vontade, é a des- meio. Vou colocá-lo sempre instintivamente – como pos-
peito dela mesma. É algo entre obsessão e vontade; pelo so dizer? – de uma maneira quase necessária. Ou mesmo
menos no que diz respeito à escultura, não existe dife- de acordo com certa configuração.
rença. Ou quase não existe. Eu não posso não fazer o que
faço. Por isso, não tenho escolha. Mas por quê? Deve ser Mas você faz isso sem pensar?
devido às deficiências, mesmo físicas, à necessidade que Claro. Porque se eu pensasse...
a pessoa tem de se completar realizando uma coisa que é
exterior a ela. Mas o automatismo é exatamente isso. Você dá com uma
configuração sem pensar.
Há um aspecto do surrealismo que permaneceu com É. Mas, pensando bem, três quartos daquilo que você faz
você. Por volta de 1950, quando fez aquelas composições o dia inteiro, não, noventa e nove por cento, é automático.
com várias figuras – A clareira (La Clairière) e A floresta (La Na verdade, são tantas as coisas atribuídas ao surrealis-
Forêt) –, em que havia diversas figurinhas no chão de seu mo que eu já nem sei o que isso significa – a não ser uma
atmosfera especial em determinada época, uma coisa da obra deles tem sido o que eles fizeram mais tarde e não
muito vaga que era comum naquele tempo e que, além o que fizeram durante a juventude no grupo surrealista.
de artística, era política e mental. Nada de muito preciso.
Quando eles quiseram embarcar no automatismo, bom, Por que você acha que o grupo surrealista foi formado?
não fizeram grande coisa. Ninguém trabalha de forma Em primeiro lugar, eu me juntei a eles muito tarde, já qua-
tão pouco automática quanto Breton. E todos os outros... se no final. O grupo começou muito provavelmente com
E os artistas – de modo geral, eles estavam tão longe de a juventude do pós-guerra, por influência de Apollinaire,
serem automáticos quanto qualquer outra pessoa. Quan- certamente, e da arte moderna em geral.
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do dizem que Dalí é surrealista, e Arp, Max Ernst e Miró,
realmente é muito difícil ver o que eles têm em comum. E, Havia uma coisa que eles queriam enfatizar – a importân-
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quando têm alguma coisa em comum, também a compar- cia do tema. Do ponto de vista da iconografia, o tema não
tilham com muitos outros que não são surrealistas, com era muito importante para os cubistas. Eles pintavam
todos os pintores abstratos, ou cubistas, construtivistas uma natureza-morta com uma guitarra no mesmo espíri-
ou seja lá o que for. Excetuando algumas ideias e princí- to com que pintavam uma mulher tocando uma guitarra.
pios comuns, realmente não sei o que poderíamos apon- Mas com os surrealistas era diferente.
tar. Por exemplo, a política representou um papel mui- Certamente, e essa foi a razão por que me juntei a eles.
to importante na época, assim como o ateísmo e o não Pessoalmente, eu ainda insisto na importância do tema.
conformismo. Mas um mundo de outras pessoas que não
estavam diretamente ligadas ao grupo surrealista tinha Naquele mesmo sentido?
isso em comum com eles. Além do mais, o surrealismo Não exatamente no mesmo sentido, mas eu insistia na
durou bastante tempo, mas o que aconteceu depois com importância do tema antes, durante e depois. E agora
eles? Se você pegar os principais, como Éluard, Breton, mais do que nunca.
Aragon, Queneau, Leiris, quando eles se encontraram
cada um já vinha com sua própria bagagem. Eles tiveram Mas uma coisa que surgiu com a insistência dos surrea-
alguma coisa em comum durante certo tempo e depois se listas no tema foi a importância dos títulos e seu caráter
separaram outra vez. Aragon, hoje, está totalmente afas- poético e evocativo. Isso é verdade para você, imagino,
tado do trabalho que Breton ou Queneau andam fazendo. com títulos como O jogo acabou (On Ne Joue Plus) e O palá-
Leiris está completamente voltado para si mesmo. Éluard cio às quatro horas da manhã.
encontrou seu nicho como poeta numa certa tradição da Sim, mas não era poesia gratuita. O palácio às quatro ho-
poesia francesa. De qualquer maneira, a principal parte ras da manhã foi chamado assim porque representava um
palácio e porque eu o fiz às quatro horas da manhã, ou Figurinha numa caixa entre duas casas, com a mulher que
seja, realmente foi concebido e visualizado às quatro da caminha entre duas casas – eu teria provavelmente ten-
manhã. Quando fiz O jogo acabou, havia uma pequena tado achar um título mais poético durante o período sur-
sepultura no meio, com um esqueleto dentro e duas figu- realista. Mas não tenho certeza. Nem posso dizer, porque
rinhas separadas uma da outra numa cavidade em que não teria sido capaz de fazer essa obra durante o período
elas podiam se movimentar. Portanto, tratava-se simples surrealista.
e literalmente do título, a indicação daquilo que a obra
deveria ser. Se ele se tornou poético ou poeticamente evo- Será que esses títulos não eram, antes de qualquer coisa,
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cativo foi quase que à minha revelia. poéticos, cheios de atmosfera, uma maneira, digamos, de
completar, de dar mais sentido a alguma coisa que lhe ti-
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E o que você tem a dizer sobre A hora dos traços? vesse escapado?
Ah, sim. Esse sem dúvida foi totalmente influenciado Talvez eles tivessem sido simplesmente para completar...
pelo espírito surrealista da época. Além do mais, não te- Aqui, outra vez, o que me fez me aproximar dos surrealis-
nho muita certeza se fui eu quem pensou no título. tas foi alguma coisa que eu tinha em comum com eles –
nada mais que uma espécie de revolta contra o passado
Os títulos, normalmente, vieram depois das obras? recente. Como a juventude de hoje e de todos os tempos.
Sim, porque a necessidade deles só apareceu no momento E isso se dava em todos os níveis. O que me interessava
de expor. Eu, pessoalmente, não precisava de títulos. Ou, neles era muito mais a atitude política e moral do que a
pelo menos, muito pouco. artística. E eu estava também interessado em conhecê-
-los. Sei que uma das razões que me levaram a querer
É verdade que para Max Ernst e Dalí o título é essencial? conhecer Aragon ou Sadou foi o fato de eles terem aca-
É. Mas para mim nunca foi. A escultura para a qual o tí- bado de voltar da Rússia, assim eu poderia descobrir o
tulo foi essencial foi O jogo acabou. Ou então Ponta no olho, que eles pensavam a respeito. Mas, por outro lado, foi a
que é uma espécie de ponta que quase encosta num pe- questão política que acabou me afastando deles, porque
queno crânio. Mas, nesse caso, não era mais poético nem para muitos havia nisso uma espécie de jogo intelecutal,
inventado do que um copo sobre uma mesa. A Bola sus- de política marginal.
pensa nada mais é que uma bola pendurada numa corda.
Poderia parecer poético, mas somente porque é menos
comum do que um copo sobre uma mesa. Essa é a única
diferença. Para as coisas que fiz mais tarde – por exemplo,
Lembro-me de que certa vez lhe perguntei quais, de todas tura feita partir do Renascimento. Incluindo Rembrandt.
as pinturas que viu, você considerava as mais próximas A construção de um olho é mais semelhante na pintura
da realidade. Você respondeu que eram as pinturas egíp- bizantina, pelo menos para mim, do que em todas as pin-
cias com árvores. Antes de copiá-las, elas lhe pareceram turas feitas depois, as quais eu não entendo muito. Quan-
um pouco esquemáticas em vez de terem semelhança. do vi pela primeira vez uma pintura de Cimabue que, no
Mas depois, ou enquanto as copiava, você percebeu o limite, ainda é bizantina em relação aos outros pintores
quanto elas eram próximas da realidade. do Renascimento, imediatamente gostei mais dela do que
É verdade. E ainda acho que, na pintura, o braço que mais de todas as pinturas que já vi, feitas desde então.
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parece um braço real é um braço egípcio – ou seja, numa
arte que, à primeira vista, parece a mais estilizada. Mas, Você a prefere porque ela é mais próxima da realidade?
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nesse ponto, eu ainda não sei por quê. Houve alguns mo- Exatamente. Essa é a única razão. E se gosto muito de Cé-
mentos em que praticamente tudo o que foi feito no pas- zanne é porque ele parece mais com as coisas feitas antes
sado me interessava. Vinha até mim, interessava-me e de- do Renascimento do que depois, e é praticamente o único
pois ia embora outra vez; em todo caso, com coisas que se desde Giotto que tem essa qualidade.
eternizaram como a pintura egípcia ou a bizantina, que
ainda me fascinam, ou os retratos do Faium ou a pintu- E Velázquez, Rembrandt, Chardin...?
ra romana de Pompeia. De qualquer modo, a pintura que, Muito menos.
para mim, é a mais remota e parece menos fiel à realidade
é a pintura usualmente considerada a mais realista de to- Você sabe por quê?
das, aquela feita a partir do Renascimento. Sei por que os grandes nus, por exemplo, as composições
de grandes nus me parecem mais próximas dos tímpa-
Inclusive a dos impressionistas? nos românicos das catedrais francesas do que os nus do
Não, até a chegada dos impressionistas. Neles, apesar de Renascimento; é porque eu os acho simplesmente mais
tudo, há algo que me toca mais, ainda que... próximos da realidade.

Você sabe por que a pintura antiga ou a bizantina guarda Sim, mas sabe explicar por quê?
mais semelhança do que a do Renascimento? Pegue o Homem com colete vermelho; a proporção entre a ca-
Claro. Isso vem do próprio trabalho. A maneira como o beça e o braço, que parece comprido demais para algumas
nariz está cravado numa cabeça bizantina é mais pareci- pessoas, está mais próxima das proporções bizantinas do
da com a maneira como eu o vejo do que em qualquer pin- que em todas as pinturas a partir do Renascimento. Basta
olhar. Ele é estranho, você pensa que ele está alongado em minha consciência. Isso é direto, portanto totalmente
tal como pensa que as pinturas bizantinas são alongadas. subjetivo. Quando você olha uma arte feita por outra pes-
Mas na minha cabeça essa pintura é mais real do que soa, você a vê segundo suas necessidades. Você busca nela
qualquer outra. aquilo que ela contém – ou o que é mais últil ou o que está
mais perto de você, a despeito de você mesmo. Se da pri-
A razão pela qual você acha as obras renascentistas e dos meira vez que vi um Cimabue fiquei entusiasmado foi
séculos seguintes menos semelhantes... seria talvez por- porque eu o achei mais fiel à realidade, não é? Mas a razão
que eles queriam obter a semelhança por meio de uma profunda por que eu o achei mais fiel é quase inexplicável.
246

247
soma de detalhes?
Não necessariamente. Admitindo-se que haja certas coisas em arte em que nos-
Entrevista

Entrevista
sos julgamentos são necessariamente subjetivos, mesmo
Fazer um olho com semelhança, e depois um nariz com assim acreditamos que a semelhança é algo bastante uni-
semelhança, e depois uma boca com semelhança – pode versal, não é? Para certa época...
ser isso? Não. O gosto pelas coisas do passado evolui, não é verda-
Não necessariamente. Não. É uma maneira de ver que é es- de? O que foi uma obra-prima há cem anos hoje já não é.
tranha para mim, somente isso. Por que é estranha para Se as pessoas hoje se extasiam com as figuras cicladenses,
mim? Isso é muito difícil de dizer. Talvez porque pareça su- cem anos atrás todos teriam rido. E daqui a cem anos irão
perficial e deliberada. De qualquer maneira, quando olho rir outra vez.
para você, você parece mais com uma cabeça bizantina ou
de Cézanne do que com uma cabeça de Ticiano... no meu Mas as pessoas se extasiam porque acham a obra mais fiel
modo de ver. Mas como é que posso explicar? Eu não posso à realidade ou por outras razões?
explicar por que meu nariz tem uma forma e o seu, outra. Porque acham mais fiel. Penso que o fato da semelhan-
ça é inconscientemente muito mais profundo do que se
Isso significa que a ideia da semelhança se torna comple- pode imaginar. Eu sei que para minha obra... eu tento fa-
tamente subjetiva. zer bustos do natural, e quando todos se interessam ou
Claro que é subjetiva. Para todo mundo, e sempre foi assim. os compram é porque acham que eles são totalmente in-
Ou seja, ela só se torna objetiva quando várias pessoas ventados. Mas eu, pessoalmente, acho que, involuntária
acham que a mesma coisa tem semelhança. Mas para a e inconscientemente, e sem se darem conta, as pessoas
pessoa que a fez é única e estritamente subjetiva. Quando veem alguma coisa neles ou sentem alguma coisa neles
estou copiando a natureza, copio apenas o que resta dela parecida com a realidade.
Nota biográfica
giovanni alberto giacometti nasceu em 10 de outubro rua Froidevaux, 37, junto com seu irmão Diego, que come-
de 1901, filho mais velho de Giovanni Giacometti, pintor çou a lhe prestar assistência técnica. Em 1927 mudaram-se
(1868-1933), e de Annetta Stampa (1872-1964), e irmão de para a rua Hyppolyte Maindron, 46, uma travessa da rua
Diego (1902-1985), Ottilia (1904-1937) e Bruno (nascido d’Alésia, onde permaneceram até o fim de suas vidas.
em 1907). Ambos os lados da família eram nativos do Val Em 1929 assinou um contrato com Pierre Loeb, da Ga-
Bregaglia, no cantão suíço de Grisões, o que significa que leria Loeb. Depois de lá expor com Miró e Arp no ano
eram italianos por raça e protestantes por religião. Alberto seguinte, foi convidado a se tornar membro do grupo
nasceu no vilarejo de sua mãe, Borgonovo, cresceu no de surrealista e acabou unindo-se a eles. Também começou
250

251
seu pai, Stampa, logo adiante na estrada, e numa casa de ve- a trabalhar, em colaboração com Diego, para o decorador
raneio em Maloja, na cabeceira do desfiladeiro. de interiores Jean-Michel Frank, desenhando luminárias,
Nota biográfica

Nota biográfica
Em 1910 fez seus primeiros desenhos de observação, vasos e outros bens domésticos.
em 1913 começou a pintar a óleo e em 1914 fez sua primei- Em 1931 a revista Le Surréalisme au Service de la Révolu-
ra escultura. De 1915 a 1919 frequentou a escola secun- tion reproduziu um texto seu, o primeiro a ser publicado.
dária na capital cantonal, Chur, onde aprendeu francês Quando Aragon rompeu com os surrealistas, em 1932, com
e alemão. a alegação de que eram contrarrevolucionários, Giaco-
No outono de 1919 mudou-se para Genebra, onde es- metti partiu com ele e contribuiu com desenhos políticos
tudou escultura na École de Beaux-Arts e na École des para um periódico fundado por Aragon. Depois de cerca
Arts et Métiers. Na primavera de 1920 acompanhou o pai de seis meses Giacometti voltou a se reunir ao grupo.
numa viagem a Veneza e Pádua. Depois de alguns meses Em 1932 fez sua primeira exposição individual, na Ga-
em Genebra voltou à Itália sozinho e lá passou nove me- leria Pierre Colle, em Paris. A primeira exposição no ex-
ses, principalmente em Florença e Roma, enchendo nu- terior foi em 1934, na Galeria Julien Levy, em Nova York.
merosos cadernos com cópias de obras de arte. Em 1934 começou a trabalhar com modelo-vivo nova-
Em 9 de janeiro de 1922 chegou a Paris para continuar mente, o que provocou sua expulsão, em dezembro, do
os estudos. Lá permaneceu pelo resto da vida, mas pas- grupo surrealista. Até 1939 fez escultura quase exclusiva-
sava parte de quase todos os anos em Stampa e Maloja, e mente com modelo, principalmente Diego e uma modelo
conservou a cidadania suíça. profissional chamado Rita, mas também, a partir de 1937,
De 1922 a 1925 trabalhou com modelo-vivo na classe de Isabel Delmer. Quando retomou o trabalho de figuras e
Bourdelle na Académie de la Grande Chaumière, fazendo cabeças de memória, eles apareciam quase invariavel-
escultura pela manhã e desenho à tarde. Em 1925 decidiu mente numa escala minúscula, e essa situação continuou
parar de trabalhar do natural e instalou-se num ateliê na por cerca de sete anos.
Em 1938 foi atropelado por um automóvel. Foi hospi- hara, um professor de filosofia japonês que continuou a
talizado por um breve tempo e ficou manco para sempre. posar para ele intermitentemente até 1960.
Em consequência, quando estourou a guerra, em setem- Em 1955 cruzou pela primeira vez o canal da Mancha.
bro de 1939, foi isento do recrutamento no exército suíço. Em 1959-60 fez várias grandes esculturas numa tenta-
Continuou seu trabalho em Paris – exceto por uma tenta- tiva frustrada de produzir uma obra para a nova sede do
tiva abortada de partir quando da chegada dos alemães – Chase Manhattan Bank em Nova York.
até o último dia de 1941, quando viajou de volta à Suíça Em 1960 conheceu uma prostituta conhecida como Ca-
com a intenção de fazer uma breve visita à sua mãe. Aca- roline, que se tornou seu principal modelo para pinturas
252

253
bou permanecendo até setembro de 1945, trabalhando a pelo resto da vida.
maior parte do tempo num pequeno quarto de hotel em Em 1963 fez operação para um câncer no estômago.
Nota biográfica

Nota biográfica
Genebra. Em 1964 começou a fazer esculturas de Eli Lotar, fotó-
Enquanto lá estava, encontrava-se com Annette Arm. grafo, que posava para ele quase todos os dias.
Na volta a Paris morou brevemente com Isabel – à época No outono de 1965 cruzou o Atlântico pela primeira vez.
Isabel Lambert. Em 1946 Annette Arm veio a Paris e pas- Em 5 de dezembro de 1965 foi hospitalizado em Chur.
sou a morar com ele. Casaram-se em 1949. Morreu em 11 de janeiro de 1966 e foi enterrado no adro
Embora trabalhasse com escultura principalmente de de Borgonovo.
memória, pintava e desenhava de observação; seus mode-
los costumavam ser Diego ou Annette, em Paris, e Annet-
te ou sua mãe, em Stampa.
Em janeiro de 1948 fez sua primeira exposição indivi-
dual em catorze anos, na Galeria Pierre Matisse em Nova
York, com a qual efetivou um acordo contratual. Lá apre-
sentou uma segunda exposição em 1950. Em 1951 fez a
primeira de suas mostras com seu novo marchand de Paris,
a Galeria Maeght.
Em 1953 recomeçou a fazer esculturas de observação,
principalmente de Diego mas também de Annette. Am-
bos foram modelos contínuos para pinturas; durante
1954-55 essa função também foi desempenhada por Jean
Genet. Em 1956 começou a trabalhar com Isaku Yanai-
Referências
écrits é abreviação para Alberto Giacometti: Écrits. Org. 1. Perpetuando o transitório
Michel Leiris e Jacques Dupin. Paris: Hermann, 1990. Re- 1. Herman Melville. Moby Dick, cap. 26. [Ed. bras.: São
ferências a essa publicação são dadas tanto para textos Paulo: Cosac Naify, 2008, p. 132.]
nela publicados originalmente quanto para todas as re- 2. Alberto Giacometti. Poema sem título, incluído em sua
publicações de material publicado alhures. contribuição para “Temoignages”. xxe siècle, n. 2, Paris, jan.
As referências de página para citações da entrevista de 1952, p. 72 (Écrits, p. 64).
David Sylvester referem-se à sua tradução neste livro. 3. Alberto Giacometti. Entrevista relatada por Giovanni
di San Lazzaro, 1951, em ibid., p. 71. A citação provém de
256

257
 uma frase que inclui um erro: “L’important était de re-
créer un objet qui put donner la sensation la plus proche
Referências

Referências
de celle ressentie à la vue du sujtet”. Giacometti confir-
mou-me que ele realmente disse “créer un objet” [criar
um objeto] e não “recréer un objet” [recriar um objeto].

2. Um cego na escuridão
4. Alberto Giacometti, “À propos de Jacques Callot”. Laby-
rinthe, n. 6, Genebra, 15 abr. 1945, p. 3 (Écrits, p. 26).
5. Ludwig Wittgenstein Tractatus logico-philosophicus, trad.
José Arthur Giannotti. São Paulo: Companhia Editora Na-
cional, 1968, p. 54.
6. Alberto Giacometti. Entrevista a Georges Charbonnier,
gravada em 3 de março de 1951. Em Georges Charbonnier. Le
Monologue du peintre. Paris: Julliard, 1959, p. 163 (Écrits, p. 244).
7. Id., ibid., pp. 162-63 (Écrits, p. 244).
8. Ludwig Wittgenstein. Philosophical Investigations. Nova
York: Macmillan, 1953, p. xi. [Investigações filosóficas, trad.
Marcos G. Montagnoli, rev. Manoel Carneiro Leão. Petró-
polis: Vozes, 1996, p. 12.]
9. Alberto Giacometti. Resposta em 17 de maio de 1959 a
um questionário. Em Peter Selz. New Images of Man. Nova
York: Museum of Modern Art, 1959, p. 68 (traduzido para res, paintings, drawings. Nova York: Pierre Matisse Gallery,
o inglês, o original foi pela primeira vez publicado em jan.-fev. 1948, p. 45 (Écrits, p. 44).
Écrits, p. 84, e, aqui, traduzido do francês). 18. Id., ibid., p. 45 (Écrits, p. 44).
19. Id., ibid., p. 45 (Écrits, p. 44).
3. Um disco tempo-espaço 20. Em conversa com David Sylvester, ago. 1960.
10. Alberto Giacometti, “Le rêve, le Sphinx et la mort de 21. Giacometti. “Henri Laurens. Un sculpteur vu par un
T.”. Labyrinthe, n. 22, Genebra, 23 dez. 1946, pp. 12-13 (Écrits, sculpteur”. Labyrinthe, n. 4, Genebra, 15 jan. 1945, p. 3
pp. 27-35). [Ed. bras.: “O sonho, o Sphinx e a morte de T.”, (Écrits, p. 23).
258

259
in V. Wiesinger, Giacometti. São Paulo: Cosac Naify, 2012.] 22. Foi em 1960 que, de fato, tomei consciência de Giaco-
11. Id., ibid., p. 13 (Écrits, p. 35). metti haver dito isso em relação a determinada estatueta
Referências

Referências
12. Alberto Giacometti. Resposta a um questionário. Em que ele estava fazendo de memória.
Minotaure, n. 3-4, Paris, 12 dez. 1933, p. 109 (Écrits, p. 17). 23. Alberto Giacometti. Entrevista a David Sylvester, 1964,
13. Alberto Giacometti. Trecho de carta sem data escrita pp. 212-14 (Écrits, p. 289).
no outono de 1950 a Pierre Matisse. Em Alberto Giacometti. 24. Id., ibid., p. 212 (Écrits, p. 288).
Nova York: Pierre Matisse Gallery, nov. 1950, p. 20 (Écrits, 25. Carta a Matisse, 1950, op. cit., p. 16 (Écrits, p. 57).
p. 59, em que dois trechos que se intercalam – aqui, entre 26. Id., ibid., p. 14 (Écrits, p. 56).
parênteses – não são reproduzidos). 27. Entrevista a David Sylvester, p. 228.
28. Alberto Giacometti. “Pourquoi je suis sculpteur”. En-
4. A pertinência dos opostos trevista a André Parinaud. Arts, n. 873, Paris, 13-19 jun.
14. Poema sem título, 1952, op. cit., p. 72 (Écrits, p. 64). 1962, p. 5 (Écrits, p. 271). [“Por que sou escultor”, trad. Célia
15. Alberto Giacometti. “Objets mobiles et muets”. Le Surréalisme Euvaldo. Novos Estudos Cebrap, n. 34, nov. 1992, p. 73.]
au Service de la Révolution, n. 3, Paris, dez. 1931, p. 18 (Écrits, p. 2). 29. Annette Giacometti. Em conversa com David Sylves-
16. Alberto Giacometti. Citado em Jean Genet. L’ Atelier ter, 1960.
d’Albert Giacometti. Paris: Marc Barbezat, 1953, [p. 8]. [O ate- 30. Entrevista a Charbonnier, 1951, op. cit., pp. 165-66
liê de Giacometti, trad. Célia Euvaldo. São Paulo: Cosac Naify, (Écrits, 246).
2000, pp. 18-19.] 31. Maurice Merleau-Ponty. “Le Doute de Cézanne”. Sens et
non-sens. Paris: Nagel, 1948, p. 33. [“A dúvida de Cézanne”,
5. O resíduo de uma visão in O olho e o espírito, trad. Paulo Neves e Maria Ermantina
17. Alberto Giacometti. Carta sem data a Pierre Matisse Galvão Gomes. São Paulo: Cosac Naify, 2004, p. 135.]
escrita em 1947. Em Alberto Giacometti. Exhibition of sculptu- 32. Poema sem título, 1952, op. cit., p. 72 (Écrits, p. 64).
33. Paul Cézanne. Relatado por Joachin Gasquet. Cézanne. 50. Henri Laurens, op. cit., p. 3 (Écrits, p. 23).
Paris: Bernheim-Jeune, 1926, p. 130. 51. Resposta a um questionário. Em Minotaure, op. cit., p. 46
34. Entrevista a Parinaud, op. cit., p. 5 (Écrits, pp. 273-4). (Écrits, pp. 17-18).
[“Por que sou escultor”, op. cit., p. 75.] 52. Em conversa com David Sylvester, 1964.
53. Em conversa com David Sylvester, s.d.
6. Armadilhas 54. Carta a Matisse, 1947, op. cit., p. 41 (Écrits, p. 42).
35. Alberto Giacometti. Apontamento em agenda, c. 1925, 55. Ver entrevista a David Sylvester, p. 234.
publicado postumamente em Écrits, p. 115. 56. Maurice Nadeau. Histoire du Surréalisme. Paris: Seuil,
260

261
36. Entrevista a Charbonnier, 1951, op. cit., pp. 162-63 1945, parte iv, cap. 2.
(Écrits, pp. 243-44). 57. Em conversa com David Sylvester, 1965.
Referências

Referências
37. Id., ibid., p. 163 (Écrits, p. 244). 58. André Breton. L’Amour fou. Paris: Gallimard, 1937, p. 37.
38. Carta a Matisse, 1947, op. cit., p. 39 (Écrits, p. 41). 59. Relatado por Simone de Beauvoir. Em La Force de l’âge.
39. Salvador Dalí. “Objets surréalistes”. Le Surréalisme au Paris: Gallimard, 1963.
Service de la Révolution, n. 3, Paris, dez. 1931, pp. 16-17. 60. “Le Rêve, Le Sphinx et la mort de T.”, op. cit., p. 12 (Écrits, p. 30).
40. Georges Sadoul. “Giaco”. Les Lettres françaises, n. 1, 115, 61. Carta a Matisse, 1947, op. cit., p. 43 (Écrits, p. 43).
Paris, 20 jan. 1966, p. 18. 62. Relatado, por exemplo, em Marcel Jean. Histoire de la pein-
41. Ver André Breton com André Parinaud et al. Entretiens ture surréaliste. Paris: Seuil, 1959, cap. viii.
1913-1952. Paris: Gallimard, 1952, cap. xii. 63. Em conversa com David Sylvester, 1965.
42. Salvador Dalí, op. cit., p. 16.
43. Alberto Giacometti. “Objets mobiles et muets”, op. cit., 7. Com ligeiras variações
pp. 18-19 (Écrits, pp. 2-3). 64. “Hier, sables mouvants”. Le Surréalisme au Service de la
44. Carta a Matisse, 1947, op. cit., p. 37 (Écrits, p. 40). Révolution, n. 5, Paris, 15 mai. 1933, pp. 44-45 (Écrits, pp. 7-9).
45. Declaração sem título em Minotaure, op. cit., p. 46 65. “Le Revê, le Sphinx et la mort de T”, op. cit. (Écrits, pp. 27-35).
(Écrits, p. 17). 66. “Henri Laurens”, op. cit., p. 3 (Écrits, p. 21).
46. Ver entrevista a David Sylvester, p. 237 67. Em conversa com David Sylvester, ago. 1960.
47. “Hier, sables mouvants”. Le Surréalisme au Service de la 68. Resposta a Peter Selz, op. cit., p. 68 (Écrits, p. 84).
Révolution, n. 5. Paris, 15 mai. 1933, pp. 44-45 (Écrits, pp. 7-9). 69. Entrevista a David Sylvester, p. 223 (Écrits, p. 291).
48. Carta a Matisse, 1947, op. cit., p. 41 (Écrits p. 42). 70. Resposta a Peter Selz, op. cit., p. 68 (Écrits, p. 84).
49. Christian Zervos. “Quelques notes sur les sculptures 71. Entrevista a David Sylvester, p. 219.
de Giacometti”. Cahiers d’Art, ano 7, Paris, 1932, pp. 337-42. 72. Id., ibid., p. 219.
73. Id., ibid., p. 214. 90. Id., ibid., p. 35 (Écrits, p. 39).
74. Id., ibid., p. 211 (Écrits, p. 288). 91. Entrevista a Schneider, op. cit., p. 49 (Écrits, p. 264).
75. Entrevista a Parinaud, op. cit., p. 5 (Écrits, pp. 273-74). 92. Carta a Matisse, 1947, op. cit., p. 43 (Écrits, p. 43).
[“Por que sou escultor”, op. cit., p. 75.] 93. Id., ibid., p. 43 (Écrits, p. 43).
94. Entrevista a Parinaud, op. cit., p. 5 (Écrits, pp. 272-73).
8. Perder e achar [“Por que sou escultor”, op. cit., p. 74.]
76. Entrevista a David Sylvester, p. 227. 95. Alberto Giacometti. Carta inédita a Isabel Delmer [1938].
77. Id., ibid., p. 227. 96. Alberto Giacometti. Carta inédita a Isabel Delmer, 30
262

263
78. Diversos estágios, além desses aqui reproduzidos, es- jul. 1945.
tão ilustrados em Alberto Giacometti, fotografados por 97. Alberto Giacometti. Entrevista a Pierre Dumayet. “Le
Referências

Referências
Herbert Matter, texto de Mercedes Matter. Nova York: drame d’un reducteur de tête”. Le Nouveuau Candide, n.
Abrams, 1987, pp. 48-51. 110, Paris, 6-13 jun. 1963 (Écrits, p. 281).
79. Reproduzido em James Lord. A Giacometti Portrait. 98. Carta a Matisse, 1947, op. cit., p. 43 (Écrits, pp. 43-44).
Nova York: Museum of Modern Art, 1965, pp. 32-33. [Um 99. Diego Giacometti. Em conversa com David Sylvester,
retrato de Giacometti, trad. Célia Euvaldo. São Paulo: Ilumi- 1966.
nuras, 1998, pp. 48-49.] 100. Ver James Lord. Giacometti: a biography. Nova York:
80. Citado em ibid., p. 10. [Um retrato de Giacometti, op. cit., p. 24.] Farrar Straus Giroux, 1985, pp. 213-15.
81. Em conversa com David Sylvester, 1964. 101. Giacometti. Em conversa com David Sylvester, 1960.
82. Entrevista a David Sylvester, p. 224. 102. Id., ibid
83. Entrevista a Charbonnier, 1951, op. cit., p. 160-61 103. Alberto Giacometti. Carta inédita a Isabel Delmer, 14
(Écrits, p. 242). mai. 1947.
84. Entrevista a David Sylvester, p. 225. 104. Carta inédita a Isabel Delmer, 30 jul. 1945.
85. Id., ibid., p. 225. 105. Diego Giacometti. Em conversa com David Sylvester,
86. Entrevista a Charbonnier, 1957, op. cit., p. 182. 1966.
106. Entrevista a Schneider, op. cit., pp. 49-50 (Écrits, pp.
9. Uma coisa totalmente desconhecida 264-65).
87. Entrevista a Pierre Schneider. “Ma longue marche”. 107. “Le Rêve, le Sphinx et la mort de T.”, op. cit., p. 12
L’Express, n. 521, 8 jun. 1961, p. 48 (Écrits, p. 263). (Écrits, p. 30)
88. Carta a Matisse, 1947, op. cit., p. 33 (Écrits, p. 38). 108. Citado em Jean Genet, op. cit., [p. 23]. [O ateliê de Gia-
89. Id., ibid., p. 35 (Écrits, p. 39). cometti, op. cit., p. 45.]
109. Ver Lord. Giacometti: a biography, op. cit., p. 268. 10. Uma presença separada
110. Carta a Matisse, 1947, op. cit., p. 45 (Écrits, p. 44). 129. Poema sem título, 1952, op. cit., p. 72 (Écrits, p. 64).
111. Entrevista a David Sylvester, p. 217. 130. Carta a Matisse, 1950, op. cit., p. 8 (Écrits, p. 61).
112. Citado em Jean-Paul Sartre. “La Recherche de l’absolu”. 131. Id., ibid., p. 10 (Écrits, p. 54).
Les Temps Modernes, ver 3, n. 28, Paris, jan. 1948. 132. Ver entrevista a David Sylvester, p. 215.
113. Ver entrevista a David Sylvester, p. 229.
114. Id., ibid., p. 217. 11. Uma espécie de silêncio
115. Id., ibid., p. 214. 133. Entrevista a Schneider, op. cit., p. 49 (Écrits, p. 265).
264

265
116. Id., ibid., p. 218. 134. “Le Rêve, le Sphinx et la mort de T”., op. cit., p. 12
117. Carta a Matisse, 1947, op. cit., p. 43 (Écrits, p. 43). (Écrits, p. 30).
Referências

Referências
118. Id., ibid., p. 31 (Écrits, p. 37) e “Mai 1920”. Verve, v. iii, n. 135. Citado em Jean Genet, op. cit., [p. 23]. [O ateliê de Giaco-
27-28, Paris, dez. 1952, pp. 33-34 (Écrits, pp. 71-73). metti, op. cit., p.45.]
119. Entrevista a Parinaud, op. cit., p. 5 (Écrits, p. 275). [“Por 136. “Le Rêve, le Sphinx et la mort de T”., op. cit., p. 12
que sou escultor”, op. cit., p. 76.] (Écrits, p. 31).
120. Citado em Jean Genet, op. cit., [31]. [O ateliê de Giaco- 137. Yves Bonnefoy. Alberto Giacometti. Paris: Flammarion,
metti, op. cit., p. 65.] 1991, p. 282.
121. Em conversa com David Sylvester, 1950: “Les Tachis- 138. Um cego... Poema sem título, 1952, op. cit., p. 72 (Écrits,
tes, quand même”. p. 64).
122. Id., ibid: “La conception reste toujours la même; c’est 139. Em conversa com David Sylvester, passim.
seulement les moyens d’expression qui ont changé”. 140. Entrevista a David Sylvester, p. 216.
123. Entrevista a David Sylvester, p. 223 (Écrits, p. 291). 141. Id., ibid., p. 230.
124. Alberto Giacometti. “Notes sur les copies”, passagem 142. Id., ibid., p. 229.
datada de 30 de novembro 1965. Em Le copie dal passato. 143. Id., ibid., p. 228.
Turim: Botero, 1967 (Écrits, p. 98). 144. “À propos de Jacques Callot”, p. 3 (Écrits, p. 26)
125. Id., ibid., passagem datada de 18 de outubro de 1965
(Écrits, pp. 96-97).
126. Carta a Matisse, 1947, op. cit., p. 35 (Écrits, p. 39).
127. Id., ibid., p. 43 (Écrits, p. 43).
128. Entrevista a David Sylvester, p. 223 (Écrits, p. 291).
Agradecimentos
infelizmente, na ausência do artista, tenho de ex- vista por Giacometti e foi o nosso comum amigo Jacques
pressar minha gratidão a seu irmão Diego, a sua mulher, Dupin que generosamente se incumbiu da edição do texto
Annette, e a Michel Leiris e Pierre Matisse por nossas para a publicação. Também lhe sou grato pelas conversas
muitas e relevantes conversas; a Isabel Rawsthorne pelas que manteve comigo sobre Giacometti, bem como a Louis
fotocópias das cartas de Giacometti endereçadas a ela, Clayeux, Michael Brenson e Bruno, irmão do artista.
graciosamente concedidas, bem como por sua permissão Nos anos 1960, contei com a valiosa assistência editorial
de citar, aqui, algumas passagens; a Herbert Matter por de Anne Seymour e Michael Raeburn. Nos anos 1990, Fran-
fotografar, no final de cada sessão, meu retrato feito por cis Wyndham desempenhou papel fundamental na evolu-
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Giacometti; a Patricia Matisse por fornecer fotografias de ção do formato final do livro, Nikos Stangos forneceu-me
esculturas – algumas tiradas para a Galeria Pierre Matis- sugestões de grande valia, Janet de Botton fotografou o
Agradecimenntos

Agradecimenntos
se e outras, expressamente para este livro. *
vilarejo de Giacometti, Jonathan Burnham, meu colabo-
Quanto a todos aqueles que realmente me acompanha- rador e editor, foi responsável pelas muitas e bem-vindas
ram na leitura deste volume, sinto-me profundamente melhorias no texto e Peter Campbell também fez preciosos
grato a Andrew Forge, com quem mantive intermináveis comentários sobre os escritos, bem como concretizou mi-
conversas sobre Giacometti durante os anos 1950 e 1960, nhas expectativas em relação ao design do livro.
e que viu e revisou praticamente todos os rascunhos que Três secretárias, em diferentes épocas, muito me ajuda-
escrevi sobre ele nessa época, e a Pamela Sylvester, que, ram tanto com seu apoio moral como com seus conselhos
a partir de 1950, compartilhou muitos dos encontros práticos: Johanna Bywater em 1959-60, Jennifer Barnes
que tive com Giacometti, ajudando-me nas pesquisas e, em 1965-66 e Eileen Smith em 1992-94.
sobretudo, rascunhando traduções de passagens de seus Por fim, vejo-me profundamente em dívida com pes-
escritos e entrevistas, incluindo toda a minha entrevista soas e instituições que de uma ou outra maneira contri-
com ele. buíram para a publicação deste livro. Primeiramente, a
A entrevista jamais teria sido gravada não fossem os re- lorde Weidenfeld, Michael Dover e Sam Sylvester. Em
cursos disponibilizados pela bbc Third Programme, que, seguida, por sua ajuda nos custos da publicação, à Asso-
com sua boa vontade e o incentivo desse bravo produtor, ciation Alberto et Annette Giacometti, que renunciaram
Leonie Cohn, tornaram possível a radiodifusão de um lon- aos direitos autorais provenientes das ilustrações, à Pierre
go diálogo em língua estrangeira. A transcrição nunca foi Matisse Foundation, que fez o mesmo no que se refere às
fotografias de Patricia Matisse, a sir Robert Sainsbury, que
fez generosa doação para cobrir custos, e à Henry Moore
* Não incluídas nesta edição. Ver a edição americana da Henry Holt and
Company, 1997. [n. e.] Foundation, que deu contribuição similar.
© Cosac Naify, 2012 veja também, no catálogo da cosac naify
© 1994 by David Sylvester
Giacometti, Véronique Wiesinger
Imagem da p. 5: David Sylvester, 1960, pintura em
O ateliê de Alberto Giacometti, Jean Genet
andamento, fotografada depois da décima nona
e penúltima sessão. Alberto Giacometti Entrevistas com Francis Bacon, David Sylvester
© adag p/faag, Paris (2012).
Sobre arte moderna, David Sylvester
Coordenação editorial charles cosac
Tradução maria thereza rezende costa
Projeto gráfico elaine ramos e ana sabino
Revisão da tradução e preparação célia euvaldo
Revisão isabel jorge cury e thiago lins
Produção gráfica lilia góes

Nesta edição, respeitou-se o novo


Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)


(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Sylvester, David [1924-2001]


Um olhar sobre Giacometti / David Sylvester
título original: Looking at Giacometti
tradução: Maria Thereza Rezende Costa
São Paulo: Cosac Naify, 2012
272 pp.

isbn 978-85-405-0140-9

1. Arte 2. Crítica de arte 3. Giacometti, Alberto,


1901-1966 – Crítica e interpretação I. Título.

12-00048 cdd-730.92

Índices para catálogo sistemático:


1. Artistas plásticos: Apreciação crítica 730.92

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atendimento ao professor [55 11] 3218 1473 Tiragem 2 500

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