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BARTHES, Roland. “A morte do Autor” in: _______. O rumor da língua.

Tradução: Mário
Laranjeira. 2º edição. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2004, p. 57-64.

Lição de anatomia: pressupostos teóricos em “A morte do Autor”1


Felipe Hélio da Silva Deziderio
fhsdez@gmail.com/felipedeziderio@hotmail.com

Escrito no simbólico ano de 1968, o breve ensaio “A morte do autor”, de Roland Barthes
parece encarnar plenamente o espírito iconoclasta de seu tempo. O contoverso manifesto de caráter
imanentista exige a imolação da figura parental do autor como um modo de apercepção do texto
literário. A exposição, assim, toma como premissa a novela Sarrasine, de Honoré de Balzac, em que
há uma descrição de um castrato sob o disfarce de mulher. A respeito desse momento narrativo,
Barthes interroga-se sobre quem seria a entidade responsável por lançar as informações para a
caracterização da personagem. Indaga-se, então, retoricamente se seriam elas provindas da figura
social chamada de Balzac, portadora de um senso comum acerca da ideia de mulher, ou ainda do
autor Balzac, responsável por um olhar estético e um discurso sobre o feminino em suas produções.
Essas conjecturas tornam-se irrelevantes para a visão barthesiana, uma vez que tais
questionamentos buscam respostas em fatores e em condicionantes exteriores ao texto. Conforme
a leitura empreendida, insistir nessas questões tornaria a obra passível à ingerência de discursos de
outra ordem que secundam o próprio objeto literário. Anunciada a falência da figura autoral, essa
vacância aberta induz a outra dúvida premente: quem confere, afinal, significação ao texto? As
respostas para essa questão encontram-se na condução analítica do ensaio de Barthes e pontuar seus
pressupostos teóricos será de interesse das linhas seguintes. Com o cadáver sobre a tábula, propõe-
se o início dessa incursão pelas ferramentas operacionais da causa mortis.
Em uma tentativa de proteger a análise do texto contra essas “invasões” conceituais, o
crítico francês opta em trabalhar com a noção de escritura, definida como “esse neutro, esse
composto, esse oblíquo pelo qual foge o nosso sujeito, o branco-e-preto em que vem se perder toda
identidade, a começar pelo corpo que escreve” (Barthes, 2004, p. 57). Pontuando essa conceituação
breve, nota-se um posicionamento crítico em despersonalizar, ou mesmo desapropriar, a autoridade
do indivíduo que escreve sobre o escrito, de modo que a obra literária, compreendida dessa forma
como escritura, já não pode mais apresentar indícios que testificam o caráter ou a personalidade de
um “corpo que escreve”. Deriva-se, assim, a irrelevância das questões retóricas que abrem o texto,
pois a origem daquela voz que afirma algo não pode mais ser resgatada com informações originadas

1. Recensão Crítica entregue como parte integrante das avaliações propostas na Disciplina Cânone e Teoria Literária do
Programa de Doutoramento em Literatura de Língua Portuguesa da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
de um empirismo apriorístico anterior e estrangeiro à obra, repudiando-se a atitude de perseguir no
texto um retrato humano do escritor.
A emancipação da obra de seu criador diz repeito ao caráter intransitivo do objeto artístico,
compreendido como uma produção com finalidade em si mesma e que não possui a intenção de
“agir diretamente sobre o real” (Barthes, 2004, p. 58). Essa perspectiva sobre o texto implica o
desligamento do escrito de qualquer motivação histórica e social, exceto aquelas voltadas para o
exercício do símbolo e das potencialidades de significação presentes na imanência do próprio texto.
A desobrigação de uma relação direta do texto literário com o mundo empírico induz a falência do
autor, na medida em já não há mais meios de estabelecer uma ligação transparente entre o interior
da obra com as possíveis motivações para sua escrita. O desligamento radical da escritura de seu
contexto de produção aponta para um diálogo direto com ao menos dois pressupostos fundamentais
para a Linguística e a crítica literária dos princípios do século XX, a saber: a arbitrariedade e o
conceito de literariedade.
Ao tratar sobre a natureza do signo linguístico, Ferdinand de Saussure (2006, p. 81)
discorre sobre o princípio da arbitrariedade, ou seja, a ausência de uma motivação natural entre
sequência fonética e a significação do signo. São esses conceitos metodológicos adotados por
Saussure em seu recorte analítico das estruturas formais e internas da langue. A proposta analítica
do autor do Curso de Linguística Geral não se centra nas funções e possíveis usos sociais do signo e
aponta a Semiologia como uma área do conhecimento, cuja preocupação seria o estudo da relação
do signo com sistemas de significação mais amplos (Saussure, 2004, p. 24). Barthes, assim, propõe
seu método analítico, a Semiocrítica, nessa abertura de apercepção da obra em uma rede extensa de
possibilidade de significação que independe das motivações do autor para ser lida, aproximando-se,
assim, da ideia de arbitrariedade. Nessa compreensão, escritura rejeita a possibilidade de o autor
determinar o significado do texto, posto que a significação da obra derivaria de uma relação
sistêmica entre significantes e significados organizados no ato de leitura e não por intermédio das
pretensas motivações do autor.
A ruptura da leitura da obra literária dos referentes exteriores exigida pelo ensaio implica
ainda uma aproximação com o conceito de literariedade, proposto também nas primeiras décadas do
XX pelo grupo de linguistas reconhecidos como Formalistas Russos, dos quais destaca-se as
orientações de Roman Jakobson sobre a função poética da linguagem literária e a noção de
literariedade. Ideia trabalhada mais demoradamente por Jakobson (2018, p. 1068), a literariedade
diz respeito aos aspectos, às funções e aos objetivos específicos da linguagem literária em oposição
à linguagem quotidiana. Compreende-se, assim, literariedade como uma organização estética da
linguagem voltada ao exercício da função poética diferente da mensagem de cunho denotativo e
diretivo das demais interações comunicativas. Nessa perspectiva, observa-se que a suposição da
especificidade do discurso literário focado em si próprio serve como ponto de apoio para o
argumento barthesiano da independência da escritura em relação às motivações de seu criador, por
extensão, de seu contexto de produção. Assim, para obra literária ser compreendida como uma
realização da escritura, torna-se fundamental afastar a objetividade de uma mensagem vinculada às
volições do autor. Esse aspecto da argumentação de Barthes contra a autoria, no entanto,
desconsidera o fato de que, apesar de indesejável ao ato de interpretação, a criação de uma obra
literária parte de uma manifestação da vontade se um sujeito que decide escrever. Observa-se,
nessas condições, que o libelo barthesiano volta-se contra o possível discurso de autoridade que
reduz a leitura da obra à busca de uma mensagem específica vinculada à imagem do escritor. Essa
atitude interpretativa, interessada nos condicionantes de produção, portanto, equacionaria a intenção
do autor como equivalente ao sentido da obra.
Para justificar a necessidade dessa morte, o ensaio localiza historicamente a persistência do
interesse na figura do autor como um lastro da permanência do pensamento romântico e positivista
por parte da crítica, ou, de modo panorâmico, a partir do momento em que a sociedade moderna
tende a conferir prestígio à individualidade e a mecanizar os modos de produção. A atenção
conferida ao sujeito contamina a crítica literária e pode ser reconhecida na profusa difusão de
manuais de história literária, biografias e entrevistas, objetos esses centrados em mitificar e a tornar
o autor e suas afiliações elementos fundamentais para a leitura da obra. Contra essa forma de
exploração, Barthes (2004, p. 58) afirma que a “explicação da obra é sempre buscada do lado de
quem a produziu, como se, através da alegoria mais ou menos transparente da ficção, fosse sempre
afinal a voz de uma só e mesma pessoa, o autor, revelar a sua ‘confidência’”. Vê-se, assim, que a
proposta barthesiana considera a explicação da obra pelas vias da autoria como um modelo estanque
de interpretação, posto que isola as possibilidades de significação do texto ao eco uníssono da voz
do criador.
Em outra medida, a crítica proposta à mitificação do autor aproxima seu posicionamento às
premissas imanentistas da Nova Crítica norte-americana, sucessora do Formalismo Russo por
afinidades metodológicas. Salienta-se especificamente o princípio de leitura compreendido por
falácia da intenção, desenvolvido por William K. Winsatt em parceria com Monroe Beardsley, na
obra The verbal icon: studies in the meaning of poetry, de 1954. Essa postura interpretativa
considera a busca pela possível intenção do autor na determinação do sentido do texto uma falácia,
pois, como um esboço ou um plano na mente do autor, revela-se um critério analítico indisponível
para a exegese do texto e, por extensão, indesejável como ferramenta operacional (Wimsatt, 1954,
p. 03). Ao eliminar a intenção do rol analítico para o julgamento das qualidades da obra, os acólitos
da Nova Crítica rasuram de seu campo de interesse os dados biográficos e a inspiração como
informações relevantes para o exercício crítico especializado. Nesse ponto, vê-se um contato entre
as proposições da Nova Crítica e as considerações de Barthes contra a intenção do autor, na medida
em que as duas posturas teóricas compreendem como nocivas à atividade de exegese a
determinação de sentido do autor sobre o conteúdo produzido. Nesse aspecto, vê-se que os ataques
de Barthes contra a figura do autor organizam-se no sentido de libertar o texto de uma leitura
restritiva por determinações da autoria ou pelas condições históricas de sua produção.
Por seu turno, a escritura torna-se um espaço de leitura múltiplas e inesgotáveis, uma vez
que se compreende o texto como uma constelação de discursos e símbolos em constante rearranjo e
em contínua formação. Barthes (2004, p. 63) encara essa disposição de leitura como
contrateológica, ou seja, um ato de recusa à lei, à lógica determinista e, sobretudo, a uma figura que
reclame poder parental sobre a criação. Nessa perspectiva, a escritura coloca em causa a própria
linguagem como via de inserção à potencialidade de significação da obra. Compreende-se, assim, os
significados do texto como um compósito de signos linguísticos inter-relacionados que independem
do desejo de direcionamento do autor. Escrever, portanto, representaria uma impessoalidade prévia,
diferente do olhar céptico e objetivista dos realistas, na medida em que a escritura convoca a própria
linguagem para performar a si mesma e não uma ideia vaga e problemática de uma entidade
inacessível que se proclama como um “eu” exterior à obra.
Para justificar o apagamento da entidade do eu autoral, Barthes recorre às considerações de
Émile Benveniste sobre os sujeitos da enunciação para demonstrar que o “eu” possui uma validade
enquanto elemento associado aos outros constituintes internos do texto. Em Problemas de
linguística geral, a função pessoal dos pronomes nos textos é apresentada como uma instância
operacional que não se corresponde a um referente nominal e objetivo, mas cumpre, sobretudo, uma
função discursiva e de elocução para a organização e economia textual (Benveniste, 1976, p. 278).
O eu enunciado em um texto, assim, possui função enquanto elemento próprio à atividade
discursiva e não pode ser precisado fora dessa rede. Barthes (2004, p. 60), dessa forma, endossa
essa determinação operacional discursiva para reiterar a noção do eu autoral como um vazio em sua
essência, cuja função seria a de sustentar um sistema de comunicação, sem necessitar, entretanto, de
uma existência social e histórica para tal.
Essa delimitação à imanência do texto, por sua vez, implica na relação temporal que
envolve autor e obra. O argumento apresentado no ensaio chama atenção para o fato de que, na
configuração tradicional da realização de um texto, o autor localiza-se temporalmente anterior à
obra, numa relação de filiação semelhante à de um pai para o filho. Na proposta barthesiana, no
entanto, há uma ruptura dessa relação, posto que o autor existe em concomitância com o texto
produzido. O tempo que os une é o da enunciação, o que torna o texto uma entidade vincada em seu
presente e em seu uso, ou seja, no ato da leitura (Barthes, 2004, p. 61). Em uma visão radical,
portanto, não há um passado na escritura, uma vez que as informações possíveis de apercepção no
texto são uma matéria em construção perpétua no presente. A escritura, assim, toma o texto como
uma instância de caráter multidimensional, espaço em que outros textos são convocados para
aproximação ou contestação, em uma rede de contatos intermitentes, sem uma origem específica.
Forma-se, portanto, uma rede de citações, retomadas e variações que testificam o caráter
multifacetado da escritura. Esse ponto de argumentação sinaliza uma referência indireta ao conceito
polifonia discursiva de Mikahail Bakhtin, bem como à noção de intertextualidade desenvolvida por
Júlia Kristeva.
O contraste gerado pelo encontro entre vozes e perspectivas culturais distintas apresentadas
no interior das obras forma o fenômeno da polifonia na compreensão bakhtiniana, ou seja,
conjunções de discursos que atravessam de modo transversal os enunciados das personagens e
posicionamentos ideológicos dos agentes da trama (BAKHTIN, 2016, p. 113-114). Posteriormente,
Kristeva (2012, p. 148) retoma os pressupostos da teoria discursiva bakhtiniana para desenvolver
sua proposta de intertextualidade. Para a teórica, a natureza da literatura é intertextual, pois as obras
literárias de diferentes épocas e estilos travam diálogos ambivalentes, de recuperação ou de ruptura,
num movimento contínuo de reconfigurações de expressões literárias. Nessa compreensão, o ato de
produção do escritor nunca pode ser original, pois sua mão é precedida por outras tantas. A
atividade de escrita, assim, encontra-se em conseguir mesclar outras escrituras e expandir o diálogo
de sua produção com outros textos. A multiplicidade de retomadas, de paródias e de interconexões
realizadas pelo exercício de composição desdobra-se, por fim, na escritura.
Essa constelação de signos encontra, afinal, na figura do leitor um norte para a libertação
das possibilidades latentes de significação. É, portanto, o leitor que concatena o emaranhado de
referências que alimenta a escritura, conferindo em seu ato de leitura uma espécie de sentido, que
não pode ser considerado como absoluto, mas parte de um dos infinitos sentidos possíveis. Investir,
portanto, no argumento de autoridade do criador significaria a morte do texto enquanto
potencialidade para significação. Nessa configuração, a morte do autor torna-se um ato necessário
para a emancipação do texto e para a liberdade de atribuição de sentidos conferidos pelo leitor.
Talvez como uma forma de compensar a necessidade de imolação, o desfecho da exposição
assume um tom esperançoso, observado na famosa frase, como laivos de aforismo, que encerra o
ensaio: “O nascimento do leitor deve pagar-se com a morte do autor” (Barthes, 2004, p. 64). Vale,
no entanto, uma última ressalva sobre a suposta liberdade que o ensaísta busca aferir à figura do
leitor, posto Barthes abster-se de especificar as condições desse elemento promulgador de sentido.
Certamente a cartilha barthesiana repreenderia o leitor que se aproximasse de uma obra em busca de
alguma correspondência entre o conteúdo e a realidade empírica. Aparentemente essa morte não
implica um espaço vazio para os direcionamentos de leitura, de modo que a ausência do autor logo
é preenchida por outro discurso de autoridade. Por mais libertária que a ideia aparente neste ensaio,
Roland Barthes também está propondo um modo de leitura específico, com seus princípios
metodológicos e diretrizes epistemológicas, ou seja, com suas próprias exigências. Cabe ao leitor
responsabilizar-se por sua orfandade e pelos caminhos que deseja trilhar, sem garantias de que
encontrará na escritura a liberdade de leitura prometida.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. Trad. Paulo Bezerra. Editora 34, 2016.
BENVENISTE, Émile. Problemas de Linguística Geral. Trad. Maria da Glória Novak e Luiza Neri.
São Paulo: Edusp, 1976.
JAKOBSON, Roman. “From Linguistics and Poetics” in: LEITCH, Vincent B. et al. The Norton
Anthology of Theory and Criticism. 3º ed. New York/London: W. W. Norton & Company, 2018, p.
1067-1074.

KRISTEVA, Julia. Introdução à Semanálise. 3ª ed. Trad. Lúcio Helena França Ferraz. São Paulo:
Editora Perspectiva, 2012.

SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. 34º edição. Trad. José Paulo Paes. São
Paulo: Cultrix, 2006.
WIMSATT, William K. & BEARDSLEY, Monroe C. "The Intentional Fallacy." in: The Verbal
Icon: Studies in the Meaning of Poetry, USA: U of Kentucky P, 1954, p. 3-18.

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