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A IMPORTÂNCIA DA ERGONOMIA

TECNOLOGIA FORA DE CONTROLE*


*Traduzido e adaptado de Kim Vicente (ISBN 85-00-01689-2)

A importância da ergonomia pode ser percebida em muitos momentos de uma


pessoa comum, em seu ambiente de trabalho ou mesmo na sua própria casa.
Notamos a relevância e o conforto de um ambiente ou produto pensado
ergonomicamente quando tentamos abrir um vidro de palmitos comprado no
supermercado ou na dificuldade em compreender um diagrama elétrico ou
mesmo um mapa do metrô. Mas o texto e os casos expostos a seguir
exemplificam como a ergonomia, ou a falta dela, podem tornar um produto ou
sistema praticamente inútil, ou até mesmo levar a situações de extrema
periculosidade, em que milhares de vidas humanas são afetadas ou colocadas em
risco. Em casos extremos, deficiências ergonômicas podem gerar acidentes e
levar até mesmo ao óbito do trabalhador.

Uma ameaça à nossa qualidade de vida

Pouco antes de meia-noite, em 25 de abril de 1986, Leonid Toptunov estava


prestes a iniciar o turno noturno na sala de controle da Estação Nuclear Vladimir
llyich Lenin, localizada nas proximidades de Chernobyl, a apenas 130
quilômetros a nordeste de Kiev e a 600 quilômetros a sudoeste de Moscou.
Durante a semana, o tempo estivera quente demais para a época do ano, mas os
alegres festejos do 1º de maio estavam próximos. Enquanto trocava de roupa e
vestia seu macacão branco pela última vez, Toptunov não imaginava que menos
de duas horas depois se tornaria um ator involuntário de uma catástrofe de
proporções históricas.

Mais cedo naquele dia, os operadores de Chernobyl haviam iniciado um teste


experimental. Duas condições deviam ser satisfeitas: a energia produzida pelo
reator nuclear devia ser reduzida a cerca de 25% de sua capacidade plena, e o
principal sistema de segurança, concebido para proteger a usina durante uma
emergência, teria que ser desligado durante todo o período do teste. Era uma
hora da tarde quando os operadores começaram a reduzir a quantidade de
energia produzida pelo reator nuclear, monitorando de perto os instrumentos de
medição nos imensos painéis à sua frente. Uma hora depois, eles desligaram
deliberadamente o sistema de segurança, despojando a usina de uma de suas
principais defesas tudo conforme exigido para o teste. Seguiu-se um intervalo de
nove horas. O prosseguimento do teste devia aguardar o próximo turno.

Os reatores nucleares têm uma dinâmica muito complexa, e Chernobyl não era
uma exceção. Como resultado dessa complexidade, Toptunov - o engenheiro
sênior da sua equipe de controle do reator nuclear - teve dificuldade para reduzir
o nível de energia para 25% e acabou reduzindo-a a 7%. Mas o design do reator
soviético RBMK- 1000 é muito instável em potência baixa, o que torna muito
difícil para os operadores manterem o controle sobre a usina. Isto, combinado
com o fato de que um dos principais sistemas de segurança estava desligado,
tornava a situação extremamente perigosa, mas Toptunov e seus colegas nada
perceberam porque não estavam acostumados a operar o reator em nível de
potência tão baixa e também não compreendiam plenamente os complexos
princípios que governavam o comportamento do reator. Para piorar as coisas, os
milhares de indicadores dos painéis que ocupavam a parede inteira diante de
Toptunov apresentavam uma atordoante variedade de dados, mas com
informação insuficiente, e, desta forma, a gravidade da situação não era óbvia.
Além disso, fora dito ao jovem Toptunov que técnicos especialistas haviam
calculado a possibilidade de um acidente grave em uma em dez milhões -
praticamente impossível de ocorrer. Portanto, ele e seus colegas prosseguiram
com o teste.

Para isso, eles improvisaram - com a usina em um estado fora do comum e cada
vez mais perigoso -, despojando finalmente o reator dos últimos sistemas de
segurança. Por volta de 1:22h daquela madrugada fatídica, o reator nuclear
estava quase fora de controle. Contudo, a temperatura na sala de controle não
subiu de modo alarmante, nenhuma vibração crescente foi percebida nem
qualquer ruído mais forte - nada comparável ao que não tardaria a acontecer. A
única coisa que mudou foi o conjunto de indicações nos mostradores embutidos
nos atordoantes painéis. Apenas dois minutos se passaram quando, à 1:24h,
Toptunov finalmente percebeu que os dados à sua frente significavam que uma
coisa terrível estava prestes a acontecer: num derradeiro esforço para impedir o
desastre, ele tentou desligar o reator. Mas seu esforço bem- intencionado veio
tarde demais; a essa altura, o destino de Chernobyl estava selado. Uma reação
nuclear crítica - o tipo que pode ser provocado numa bomba atômica, mas que
não se espera que aconteça em uma usina nuclear - era inevitável. E imediata.

A primeira explosão violenta liberou um pico de energia cem vezes maior que
tudo o que o reator poderia produzir sob condições normais de operação. Ela
levantou a placa de cem toneladas de aço e concreto que cobria o reator, expondo
as 1.680 varetas de combustível nuclear do coração do reator e despejando
radioatividade mortal na atmosfera. A força da explosão foi tão poderosa que o
reator mandou partículas radioativas a um quilômetro de altura. Uma segunda e
furiosa explosão fez com que a grafite do núcleo do reator se incendiasse. O fogo
continuou a arder durante nove dias, soltando uma corrente constante e invisível
de partículas radioativas para o meio ambiente. O reator ficou totalmente
destruído.

Até aquele instante em que a primeira explosão rasgou o reator, a tecnologia


nuclear havia funcionado com precisão, conforme esperado. Os projetistas
tinham feito tudo o que se esperava do ponto de vista técnico: tanto o hardware
quanto o software trabalhavam sem falhas. E Toptunov e seus colegas
executavam o teste exatamente como fora planejado, mas os projetistas da usina

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não deram atenção suficiente ao fator humano - os operadores haviam sido
treinados, mas a complexidade do reator e dos painéis de controle estava além do
que eles podiam ver naquele momento.' Toptunov só compreendeu exatamente
os efeitos que suas ações teriam quando já era tarde demais - com devastadoras
conseqüências. Quando o centro de grafite do reator explodiu em chamas, o
impacto devastador que uma usina de energia nuclear pode ter sobre a
humanidade ou o meio ambiente tomou forma concreta.'

As seiscentas pessoas que tiveram a falta de sorte de estar trabalhando na usina


naquela noite receberam doses muito altas de radiação e muitas sofreram de
doenças crônicas ou fatais. As 116 mil pessoas que foram evacuadas das fazendas
e aldeias vizinhas receberam doses mais baixas, mas muito significativas de
radiação. Os 600 mil trabalhadores civis e militares que heroicamente ajudaram
a extinguir o fogo, retirar os habitantes e limpar a área atingida também se
expuseram a altos níveis de radiação. Cerca de 140 deles sofreram ferimentos de
diversos graus, além de convulsões causadas pela radioatividade e queimaduras
com comprometimento total da pele. Chegou a 31 o número de pessoas mortas
em conseqüência do acidente, entre elas Toptunov, que na época tinha 26 anos.

Um dos horrores provocados por uma catástrofe nuclear é seu impacto, que se
estende a uma longa distância em termos de espaço e tempo. O número de casos
de câncer de tiróide entre as crianças na área de Chernobyl aumentou, com 1.800
diagnósticos confirmados entre 1990 e 1998. Mais difícil de medir, mas
igualmente real, é o impacto psicológico causado por um desastre assim: um dos
mais significativos efeitos do acidente de Chernobyl sobre a saúde das pessoas foi
a angústia mental e o trauma experimentado pela população local. Os habitantes
continuam aterrorizados com os efeitos desconhecidos da radiação; eles não
confiam no governo nem nos cientistas, e seu modo de viver foi gravemente
prejudicado. Esses efeitos danosos para a saúde persistirão por gerações.

Mas a contaminação ambiental é igualmente duradoura, porque não existe o


comando "desfazer" para um acidente nuclear. Até hoje, grandes áreas de terra
não são mais cultiváveis e os alimentos provenientes de uma área ainda maior
continuam a ser monitorados para garantir que estão isentos de radioatividade.
O impacto de um acidente nuclear nessa escala ultrapassa as fronteiras
geográficas. Chernobyl liberou material radioativo por todo o hemisfério norte,
embora a Europa tenha recebido a maior parte dele. O grau de contaminação fora
da União Soviética foi relativamente baixo, mas o decaimento radioativo foi
detectado e medido na Inglaterra, Escandinávia, Europa Meridional, Canadá,
Estados Unidos e em lugares distantes, como o Japão. A quantidade varia com o
clima se chove em determinada área quando a nuvem radioativa está passando, a
quantidade de radioatividade recebida é maior. A lição ficou bem clara com
Chernobyl: uma catástrofe nuclear em qualquer lugar pode ser uma catástrofe
nuclear em todos os lugares.

Voltemos por um momento ao ano de 1936. Nos últimos dias dos filmes mudos
em preto e branco, Charlie Chaplin criou uma sátira magistral à industrialização,

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Tempos Modernos, que atraiu a atenção para os custos humanos e sociais da
tecnologia. Em uma seqüência memorável, Chaplin aparece trabalhando numa
linha de montagem. Sua função é realizar alguns movimentos repetitivos; ele usa
duas chaves inglesas, uma em cada mão, para apertar dois parafusos em cada um
dos componentes que deslizam por uma esteira. A velocidade da esteira aumenta;
Chaplin tenta desesperadamente acompanhá-la, mas finalmente é levado pela
esteira e cai em uma rampa. Na cena seguinte, vemos várias rodas mecânicas
gigantescas com engrenagens entrelaçadas, que torcem o Pequeno Vagabundo
num trajeto em forma de S, primeiro para frente, depois para trás, e novamente
para frente. Ele foi forçado a se adaptar à tecnologia literalmente: tornou-se um
verdadeiro dente na engrenagem.

Chaplin, entretanto, teve que se adaptar apenas a uma engrenagem mecânica que
se movia em velocidade terrestre. Nós, que habitamos os tempos modernos do
século XXI, temos que nos adaptar à tecnologia digital que se move à velocidade
da luz. Mais e mais tecnologia está sendo impingida sobre nós a passos cada vez
mais rápidos. Caminhamos com guias eletrônicos - pagers, telefones celulares,
assistentes pessoais digitais e computadores de bolso - que nos ligam ao nosso
trabalho. Em casa, temos os últimos produtos de consumo eletrônico - cada um
com seu controle remoto e um volumoso manual de instruções. Todas essas
engenhocas destinam-se, supostamente, a tornar a vida mais fácil, mas
freqüentemente a fazem ficar mais complicada. E antes de aprendermos a usar a
mais recente "conveniência" tecnológica, surge outra mais nova no mercado, com
recursos mais "avançados" Não importa quantos manuais consigamos ler,
simplesmente não conseguimos dar conta disso.

Os desafios que enfrentamos nunca foram tão desanimadores, a despeito do fato


de que nosso conhecimento do mundo físico e de que as possibilidades
tecnológicas que possuímos são muito maiores e mais sofisticados do que eram
há 50 anos. Na história da civilização humana, nunca houve uma quantidade tão
expressiva de conhecimento de ciência, matemática e engenharia, nem
testemunhamos tantos progressos em tecnologia com tal velocidade. O número, a
diversidade e a sofisticação das opções disponíveis nos permitem conceber e
construir produtos e sistemas cada vez mais intrincados. Diante desse
conhecimento abundante, tanto do mundo físico quanto das possibilidades
tecnológicas, era de se esperar que nossos problemas tecnológicos diminuíssem,
não que aumentassem. É certo que muitas inovações técnicas sem dúvida
melhoraram nossa qualidade de vida. Um exemplo bem conhecido é o assistente
pessoal digital PalmPilot. Esse aparelho eletrônico portátil é um sucesso no
mercado porque muitos o acham ao mesmo tempo útil e fácil de usar. Nos
capítulos finais, descreverei como o PalmPilot e vários outros produtos de uso
cotidiano bem-sucedidos foram projetados. Mas aparelhos fáceis de usar e que
atendem a uma necessidade humana ou social significativa são a exceção. Como
resultado, há uma constatação crescente de que nem tudo está bem no mundo da
tecnologia.

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Eis um exemplo rotineiro. Há alguns anos, a Mercedes-Benz passou a oferecer
em seu modelo E320 um dispositivo que permite ao motorista verificar o óleo
eletronicamente, sem sair do seu próprio assento.' Parece um uso engenhoso da
tecnologia. Você não tem que deixar o conforto do ar condicionado do seu carro.
Muito inteligente. Não tem mais que abrir o capô, procurar um pano para limpar
a vareta do óleo, ou descobrir qual das várias coisas que parecem ser uma vareta
sob o capô é de fato a vareta. E não tem que cumprir o tedioso e sujo processo
manual de levantar a vareta, limpá-la, reinseri-la, fazer uma avaliação e reinseri-
la novamente - enfim, exatamente o tipo de inovação que você esperaria da
famosa engenharia alemã.

Esse dispositivo de verificação de óleo não poderia ter sido projetado há algumas
décadas sem que o transistor fosse inventado. Naquela época, nosso
conhecimento de eletrônica e as opções tecnológicas à nossa disposição eram
muito pobres para permitir que se pensasse em uma peça potencialmente tão
útil. Digo "potencialmente" porque ainda não descrevi o que você de fato tem que
fazer para checar o óleo sem sair da poltrona do carro. São apenas cinco passos.
Passo número 1: desligue o carro. Passo número 2: espere o óleo se estabilizar.
Muito justo. Não tem sentido checar o óleo com a máquina ligada. Você tem que
esperar as coisas se acalmarem para fazer uma leitura correta do nível do óleo.
Passo número 3: vire a ignição duas vezes para a direita. Hummm. Isso parece
menos óbvio. É fácil de fazer, mas não há uma relação intuitiva entre a ação e o
efeito da ação. Passo número 4: espere cinco segundos. O quê? Esperar cinco
segundos? Você já esperou o óleo se estabilizar. Por que tem que esperar mais
cinco segundos? Mas você ainda não terminou. Há mais um passo ainda. Passo
número 5: em um segundo, pressione o botão "reset" duas vezes. Esse passo não
faz qualquer sentido, parece totalmente arbitrário. O que o botão “reset” tem a
ver com a checagem do óleo? Pelo que posso dizer, não há uma resposta lógica
para essa pergunta - e eu tenho um doutorado em engenharia mecânica. O
motorista mediano ficará perplexo, ainda que os componentes eletrônicos
tenham sido cuidadosamente planejados, de acordo com a mais sofisticada
compreensão das leis da eletricidade. No final, a maioria das pessoas vai preferir
sair do carro e checar o óleo pelo método antigo, porque não conseguirá
memorizar os passos e não quer se aborrecer mais repetindo a leitura de
instruções tão contra -intuitivas. E ficamos nisso, com a famosa engenharia
alemã.

O padrão revelado por um exemplo pequeno e rotineiro do mecanismo de


checagem do óleo se reproduz em todos os aspectos das nossas vidas. Cada vez
mais somos solicitados a conviver com tecnologia que é tecnicamente confiável,
porque foi criada para se adequar ao nosso conhecimento do mundo físico, mas
que é tão complexa ou tão contra -intuitiva, que de fato não é usável pela maioria
dos seres humanos. Mesmo no contexto relativamente benigno das nossas tarefas
cotidianas, esse padrão já está criando efeitos disfuncionais. Ele conduz à falha
humana, à raiva e à frustração; todos nós sentimos a pressão sangüínea subir
quando estamos perdidos no labirinto de opções oferecidas pelos sistemas de

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mensagens telefônicas automáticas, ou quando tentamos adivinhar qual dos
botões corresponde ao conjunto de luzes que queremos desligar.

No final, essas ineficiências, erros e situações complexas enlouquecedoras dão


lugar à alienação e, em longo prazo, levam a um duplo corte ainda mais grave: o
fracasso em explorar o potencial das pessoas e o potencial da tecnologia ao
mesmo tempo. Os seres humanos são capazes de fazer algumas coisas realmente
notáveis, mas, se nos tornamos alienados da tecnologia, nossas capacidades não
se realizarão plenamente. Grandes inovações tecnológicas ficarão subutilizadas e
imensos investimentos empresariais em desenvolvimento tecnológico, assim
como disponibilidade de novas tecnologias, se desvanecerão como fumaça.

E, quando somamos todos os efeitos negativos, podemos ver que nossas


dificuldades rotineiras com a tecnologia não nos criam problemas apenas
individualmente; elas também causam para a sociedade um acúmulo de
problemas - dificuldades psicológicas, perda de produtividade, inquietações
econômicas e mais - que não podemos suportar. O impacto sobre nossa
qualidade de vida é inquietante.

Infelizmente, esse padrão - tecnologia bem modelada para o mundo físico mas
excessivamente complexa para ser manejada por seres humanos - não se
restringe a engenhocas da vida cotidiana, como dispositivos eletrônicos para
verificar o óleo do carro; ele também é encontrado em setores tecnológicos
maiores, de segurança crítica. E então, as falhas de funcionalidade podem ser
letais.

É óbvio que a segurança pode ser ameaçada não só quando os componentes


físicos de um sistema são complexos demais para serem compreendidos pelas
pessoas, como no caso de Chernobyl, mas também quando fatores não-físicos -
por exemplo, os horários de trabalho - afetam o desempenho dos que trabalham
nesse sistema. A implicação é simples: quando queremos desenhar sistemas
tecnológicos complexos, deveríamos considerar os aspectos físicos e não-físicos
do sistema. Pode parecer estranho pensar em "desenhar" uma tecnologia não-
física, como um horário de trabalho (ou mesmo uma estrutura organizacional ou
uma peça de legislação). Mas assim como os designers escolhem entre vários
materiais possíveis quando se trata de construir uma ponte, também devem
escolher entre todos os horários de trabalho possíveis quando se trata de
construir um sistema de saúde. Em ambos os casos, a escolha errada pode se
tornar uma ameaça à segurança. De fato, os aspectos não-físicos das
organizações e das indústrias desempenham um papel ainda maior do que os
aspectos físicos, como espero mostrar aqui. E o alargamento da nossa visão de
tecnologia com a inclusão dos aspectos físicos e não-físicos do desenho do
sistema tem um grande valor pragmático, porque também revela como podemos
planejar nossos ambientes de trabalho para incorporar o fator humano.

Não importa para onde olhemos, seja para situações rotineiras ou para sistemas
complexos, vemos tecnologias; que ultrapassam a nossa capacidade de controle.

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Nos casos mais banais, como o dispositivo para checagem eletrônica do óleo do
carro, os resultados que experimentamos diariamente são bastante negativos -
ineficiência, frustração, alienação e fracasso em realizar nosso potencial humano
e tecnológico. Mas quando nos voltamos para setores de segurança crítica -
energia nuclear, saúde, aviação, segurança nos aeroportos e meio ambiente -, as
conseqüências da loucura tecnológica são muito mais preocupantes. Falhas
nesses sistemas complexos podem levar a dispendiosos acidentes industriais,
como desastres com aviões, cujo prejuízo chega a milhões ou bilhões de dólares,
sem mencionar o custo inestimável em vidas humanas. Sistemas tecnológicos
complexos fora de controle podem também levar a litígios dispendiosos, porque
indivíduos e organizações freqüentemente são processados quando as coisas não
dão certo. Em alguns casos, erros nesses sistemas podem acarretar desastres
ecológicos que ameaçam o meio ambiente, tais como a contaminação causada
não só por Chernobyl, mas também pelo enorme vazamento de óleo do Exxon
Valdez na costa do Alasca. Esses custos são uma carga enorme para a sociedade.
E em nosso mundo conectado, sistemas complexos mal desenhados põem em
risco todas as nações, não apenas os países desenvolvidos. Ainda que uma grande
proporção da população mundial nunca tenha visto um videocassete ou qualquer
outro dispositivo eletrônico semelhante, não pode escapar aos efeitos da
tecnologia, como Chernobyl deixou bem claro. O mundo industrial está
exportando cada vez mais suas tecnologias para países não-industrializados, às
vezes sem pensar muito no impacto que essas tecnologias terão sobre outras
culturas - testemunha disso foi o desastre na usina química de Bhopal, na Índia.
E, por ironia, medidas para neutralizar o temor crescente do terrorismo global
simplesmente aumentam a confusão. Se mais de 98 mil americanos morrem
anualmente por erro médico evitável quando os Estados Unidos não estão sendo
sitiados por ameaças terroristas, imagine o potencial de ameaças não previstas à
segurança criadas pelo pesadelo logístico de ter de inocular rapidamente uma
nação inteira de 300 milhões de pessoas contra o sarampo - a mais explosiva
arma biológica na face da terra.

Poucas pessoas têm consciência da imensa magnitude e amplitude da ameaça


colocada pelos sistemas tecnológicos complexos porque não aprenderam a ver o
padrão que liga a nossa frustração diante de engenhocas eletrônicas
excessivamente complexas às ameaças letais colocadas pelos erros médicos e
acidentes nucleares. Mas é a isto que venho prestando muita atenção - como
também muitos dos meus colegas e alunos. A tecnologia - com todas as suas
promessas e seu potencial - ficou tão fora do controle humano que está
ameaçando o futuro da humanidade.

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PORQUE A TECNOLOGIA ESTÁ TÃO FORA DE CONTROLE?
Duas culturas antiquadas para os tempos modernos: as visões de
mundo mecanicista e humanística

Por que a tecnologia está girando como um pião fora de controle? Há uma
explicação que podemos dispensar de imediato. Os designers não constroem
deliberadamente sistemas tecnológicos incontroláveis. Nunca falei com os
inventores do dispositivo eletrônico de checagem de óleo que mencionei antes,
mas estou certo de que eles tinham a melhor das intenções. Eles não ficam ali
sentados, sorrindo maliciosamente e comentando entre si: "Otimo, os motoristas
já podem checar o óleo, sentados dentro do carro. Agora vamos planejar uma
série de procedimentos realmente difíceis de lembrar. E vamos fazer com que o
último passo seja pressionar o botão “reset” duas vezes em um segundo - com
isso eles vão ficar malucos!"

Não, as coisas não são tão simples. Os verdadeiros motivos para nosso
sofrimento com a tecnologia vêm de muito antes. Na verdade, para compreender
realmente o que está acontecendo, temos que examinar alguns dos princípios que
fundamentam a nossa abordagem do mundo em que vivemos - a organização do
conheci~ mento humano. Ao longo dos últimos séculos, temos adotado uma
abordagem reducionista para a solução de problemas: dividindo-os em partes
menores e então estudando essas partes relativamente isoladas. No século XVIII,
o matemático francês Simon de Laplace levou essa filosofia até o extremo,
acreditando que, se pudéssemos fracionar o universo inteiro em suas partículas
elementares e explicar o movimento de cada uma dessas partículas individuais,
seríamos capazes de entender, digamos, tudo. Esta idéia pode parecer um pouco
maluca hoje (será que os quarks podem explicar por que as pessoas se
apaixonam?), mas naquela época a concepção de Laplace era incrivelmente
poderosa e acabou tendo um impacto enorme sobre a história das idéias.

Essa abordagem geral também deu origem a outro hábito intelectual, um hábito
que se relaciona mais diretamente às preocupações deste livro: tendemos dividir
o que sabemos em categorias (ou “silos”), definidos por fronteiras disciplinares
rígidas, como física, biologia, química, psicologia, religião e arte. Essas categorias
tradicionais de conhecimento nos permitem lidar com questões que, de outro
modo, seriam inabordáveis. Em vez de tentar compreender o mundo como um
todo, com cada um de seus espantosos detalhes, desenvolvemos uma abordagem
como "divida e reine" - você estuda os elétrons enquanto eu estudo os neurônios,
e, depois de estudarmos bastante, juntamos as nossas peças do quebra-cabeça
para termos o quadro completo. Pelo menos, esta é a nossa esperança. E é um
modo de pensar que tem se mostrado extremamente eficaz. No século XVII, o
filósofo francês Renê Descartes estabeleceu a diferença entre a mente e o corpo,
que ainda molda a maneira de muitas pessoas encararem as suas disciplinas. Elas
dão muita atenção aos seus próprios propósitos e decidem que tudo que estiver
fora deles pode ser tranqüilamente ignorado. Essa abordagem foi útil durante
muito tempo: ela propiciou ao pensamento humano um progresso bem

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significativo, desde a descoberta do átomo até o mapeamento do genoma
humano.

Mas, como o romancista e cientista C. P. Snow assinalou em seu clássico ensaio


As duas culturas, de 1959, a especialização pagou um preço alto. Sua preocupação
era que "a vida intelectual da sociedade ocidental está cada vez mais dividida em
dois pólos" - a ciência e a arte. O abismo entre o pensamento técnico/analítico,
de um lado, e o pensamento criativo/humanístico, do outro, já era tão profundo
que “os que estão em uma das culturas não conseguem falar com os que estão na
outra”. Snow não se referia apenas aos silêncios desconfortáveis nos coquetéis. A
divisão que identificou teve sérias conseqüências: “Quando esses dois sentidos se
desenvolvem separadamente, a sociedade não é capaz de pensar com sabedoria...
Essa polarização é uma grave perda para todos nós. Para nós como pessoas e
para as nossas sociedades”.

Snow não poderia imaginar como as suas palavras ainda repercutiriam no século
XXI. Desde a sua época, as coisas só pioraram. A estratégia reducionista que deu
origem ao problema das duas culturas também influenciou diretamente em
nossos problemas com a tecnologia. Neste caso, não estou me referindo à divisão
de Snow entre cientistas de aventais brancos e poetas errantes em trajes pretos,
mas sim a uma brecha no interior da própria ciência: nós temos um
conhecimento científico acentuadamente dividido em dois grandes grupos: as
ciências humanas e as ciências tecnológicas. O primeiro grupo adotou uma visão
humanística; quando olham para o mundo, essas ciências focalizam
principalmente as pessoas. Por exemplo, a psicologia cognitiva estuda como a
mente humana funciona, mas é raro que considere a atividade mental das
pessoas comuns ao usarem ferramentas como calculadoras, carros,
computadores ou aparelhos para realizar tarefas cotidianas; falta a compreensão
da tecnologia nos seus aspectos mais simples.' Em contrapartida, as ciências
técnicas - engenharia, computação e matemática aplicada - adotaram uma visão
mecanicista; quando elas olham para o mundo, focalizam principalmente o
hardware ou o software; a compreensão das necessidades e das aptidões
humanas não faz parte da equação. Quando os engenheiros de computadores
desenham minúsculos dispositivos que podem processar uma enorme
quantidade de informação com grande velocidade, não pensam nas
características nem nas necessidades das pessoas que usarão tais engenhocas.
Até recentemente, essa separação nítida no trabalho científico parecia ser uma
maneira razoável de dar sentido ao nosso mundo.

Infelizmente, essa abordagem tradicional criou duas raças de ciclopes - o


Humanista caolho que consegue focalizar as pessoas mas não a tecnologia, e o
Mecanicista caolho que conhece tecnologia mas não conhece as pessoas. Estamos
caminhando em círculo, meio às cegas. Para tornar as coisas ainda piores, as
visões de mundo humanista e mecanicista raramente se encontram, e qualquer
pessoa que já pos os pés num campus universitário sabe disso. Há humanistas
sensíveis e há tecnólogos com o estereótipo de frieza, e, em geral, as pessoas são
educadas para se tornarem uma coisa ou outra.

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Estamos tão habituados a definir as pessoas deste modo que é fácil esquecer que
as tradicionais visões de mundo humanista e mecanicista são - ambas -
abstrações ditadas pela conveniência; não existe tecnologia sem pessoas, ou
pessoas sem tecnologia. No mundo real, pessoas e tecnologia coexistem. De fato,
a capacidade de construir ou de usar ferramentas é parte do que define um ser
humano. Nossas divisões disciplinares não representam o mundo como ele é
concretamente, com pessoas e tecnologia, lado a lado, interagindo.

Vale enfatizar: nossos modos tradicionais de pensar ignoraram - e praticamente


tornaram invisível - a relação entre as pessoas e a tecnologia.

Mas se pensarmos que é possível escolher entre essas duas visões de mundo, faz
sentido colocar pessoas treinadas na visão de mundo ciclópica mecanicista -
vamos chamá-las de Magos - no planejamento da tecnologia. Afinal de contas,
eles é que podem desenhar aviões, usinas elétricas, telefones celulares e outras
maravilhas tecnológicas. Pessoas treinadas na perspectiva ciclópica humanista
em geral não têm o domínio técnico - o conhecimento profundo em matemática,
física e computadores - para desenhar e construir tecnologia confiável. Portanto,
geralmente cabe aos Magos o encargo exclusivo do desenvolvimento tecnológico,
porque nós não acreditamos que os humanistas, desafiados pela técnica, tenham
alguma contribuição a dar. 0 resultado óbvio é que os sistemas tecnológicos são
confiáveis apenas sob uma estreita perspectiva técnica - porque seus designers
tinham a perícia requerida para desenvolver produtos ou sistemas que têm
afinidade apenas com os aspectos relevantes do mundo físico.

Qualquer tentativa de explicar por que a tecnologia está girando fora de controle
deve levar em conta mais três outras observações. A primeira é que a coisa
técnica freqüentemente é complexa demais para ser manipulada pelas pessoas, o
que, na melhor das hipóteses, cria confusão e, na pior, tem conseqüências
potencialmente devastadoras. A segunda observação é que os aspectos "mais
soft" dos sistemas tecnológicos (horários de trabalho, coordenação de equipes e
outros) também podem tornar mais difícil do que é preciso a vida das pessoas, o
que contribui para o caos. E a terceira, para coroar, é que nossos problemas com
tecnologia, em vez de melhorar, só pioram. Como foi que esse padrão tríplice se
instalou?

A tecnologia por si mesma: as armadilhas no caminho dos Magos

Por ironia, a força dos Magos - os designers, em geral brilhantes, dos sistemas e
produtos de alta tecnologia do mundo atual - é, em parte, também responsável
por sua perda: por terem tanta proficiência em ciência e engenharia, os Magos
tendem a pensar que todo mundo conhece tecnologia como eles. As pessoas que
desenham e planejam coisas gostam de brincar com engenhocas e inventar
coisas. Para elas, isso é um jogo que, quanto mais jogam, mais fácil fica. Algumas

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até gostam de ler os manuais feitos para os usuários. E as que possuem
habilidades técnicas mais sofisticadas são excepcionalmente aptas para
descobrirem como funcionam os dispositivos mais complexos, e é por isso, aliás,
que acabam sendo contratadas como designers.

Mas não somos todos assim. Não queremos descobrir o que fazem todos aqueles
botões, ou por que eles foram colocados de um certo do modo. Queremos apenas
tocar a nossa vida e o nosso trabalho. Quando fazemos uso de tecnologia,
queremos nos focalizar no nosso objetivo, não na decifração da tecnologia. 0
design devia estar no segundo plano da nossa atenção. Quando ligamos um
videocassete, simplesmente queremos gravar um filme. Não queremos nos tornar
programadores de computador para fazer isso. O mesmo acontece com sistemas
complexos e potencialmente mais perigosos, como o sistema de saúde. As
enfermeiras escolhem sua carreira porque gostam de cuidar de pessoas, não
porque gostam de programar complexos dispositivos médicos computadorizados
ou porque têm doutorado em ciência da computação.

Contudo, os Magos, criadores de sistemas tecnológicos complexos, são com


freqüência programadores de computação e às vezes têm doutorado em ciências
ou engenharia, e é muito fácil para eles esquecerem como pensa o resto do
mundo. O que se observa com freqüência é que os sistemas tecnológicos
tecnicamente bons e fáceis para outros designers são um enigma de
complexidade para as pessoas comuns.

Tomemos o Infinia 7220, por exemplo. Esse dispositivo foi introduzido pela
Toshiba, com grande alarde, em 1998.' É o equivalente eletrônico do canivete
suíço: tem uma televisão, um computador, um telefone, um pager, um fax, um
videocassete digital e um exibidor de filmes com som surround e dispositivo de
jogos digitais - tudo isso em um. Provavelmente uma equipe inteira de gênios em
engenharia foi necessária para concebê-lo. Mas se muitas pessoas pensam que
operar um videocassete é difícil você pode imaginar o que seria operar esse polvo
tecnológico? A complexidade ultrapassaria o alcance da vasta maioria das
pessoas. Não é de surpreender que a Toshiba o tenha batizado de Infinia -
provavelmente o tempo necessário para aprender a usá-lo seria infinito.

Infelizmente, essa tendência mecanicista ciclópica para a complexidade


perturbadora se intensifica. Tomemos o exemplo lunático da série 7 do BMW de
2003, cujo sistema de painel eletrônico chamado iDrive oferece algo em torno de
sete ou oito centenas de recursos.

Mesmo os executivos da empresa não sabem o número exato, segundo uma


reportagem do USA-Today. Sem dúvida, muito conhecimento científico e
tecnológico foi necessário para que ele funcionasse. Mas o BMW 7 não é um carro
nem uma nave espacial. Será o resultado final de algo que as pessoas podem usar
facilmente? A revista Car and Driver chamou-o de "uma tentativa lunática de
substituir os controles intuitivos. Um dos nossos editores-chefes precisou de dez
minutos só para aprender a ligá-lo". Um editor de Road-&-Track concordou:

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"Isso me faz lembrar dos designers de software que se habituaram tanto com o
funcionamento dos seus produtos que se esqueceram dos fregueses reais que em
algum momento terão que aprender a usá-los... Em suma, esse sistema força o
usuário a pensar demais. Um bom sistema deveria fazer exatamente o oposto".
Como resultado, Road & Track acabou dando a seu artigo o título "iDrive? Não,
você dirige, enquanto eu brinco com os controles".

O que será que os Magos estavam pensando quando desenharam essa


engenhoca? Simples: eles estavam pensando na engenhoca, não no usuário.

E depois há o exemplo do serviço de ambulâncias de Londres mais significativo


ainda porque, lamentavelmente, a tendência mecanicista de focalizar seu único
olho nas parafernálias vai além das tecnologias cotidianas e chega aos sistemas
de segurança crítica de grande escala. Na madrugada de 26 de outubro de 1992,
um novo sistema de informação computadorizada foi introduzido em Londres
para ajudar os despachantes a distribuir as equipes das ambulâncias. O serviço
de ambulâncias é encarregado de responder a chamadas de emergência por
telefone vindas de 6,8 milhões de pessoas dentro e fora da cidade, num raio de
1.500 quilômetros quadrados - uma enorme responsabilidade de saúde pública. 0
novo sistema era muito ambicioso. Segundo o último relatório do inquérito
público, "a idéia por trás do design do sistema era criar, tanto quanto possível,
um sistema totalmente automatizado através do qual a maioria das chamadas
(...) resultaria na disponibilização automática da ambulância mais conveniente.
Nunca um sistema tentara levar tão alto a automação por computador do envio
de ambulâncias.

Naquela primeira manhã, o número de chamadas foi baixo e não houve


problemas dignos de nota. Tudo parecia estar saindo de acordo com o plano. Mas
à medida que o volume de chamadas aumentou, as tensões apareceram; o
algoritmo do computador não estava fazendo um bom trabalho de distribuição de
ambulâncias de acordo com as chamadas. Dentro de um curto espaço de tempo,
ficou claro que a confusão se instalara: vários veículos dirigiam-se ao mesmo
local, veículos eram enviados a lugares distantes quando havia outros veículos
mais perto, as demoras tornaram-se longas e as pessoas voltavam a telefonar
para as centrais telefônicas, o que congestionou o número de chamadas que o
computador tinha que atender. Os despachantes entraram em pânico, mas as
telas de seus computadores estavam congestionadas com mensagens, mostrando
quantas chamadas aguardavam para serem atendidas. Eles ficaram incapazes de
responder a cada uma das mensagens porque eram demasiadas, e logo chegou
um fluxo de novas mensagens dizendo aos despachantes o que eles
dolorosamente já sabiam - que não estavam acompanhando o ritmo dos
acontecimentos.

Não podemos pôr a culpa nos despachantes. O sistema de informação havia sido
desenhado com base na perspectiva caolha mecanicista para minimizar a
participação humana, mas teve o efeito oposto. Os Magos não haviam pensado
em dotá-lo de um meio de identificar mensagens duplicadas - nunca lhes ocorreu

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que isso seria necessário. As mensagens novas começaram a rolar para fora das
telas dos despachantes enquanto o número de chamadas aumentava
insistentemente. O sistema do computador ficou sobrecarregado e lento. O envio
de ambulâncias se atrasou. No auge da confusão, o tempo de resposta chegou a
mais de três horas (o máximo admissível devia ser de 17 minutos). Os Magos não
tinham previsto isso. Como o relatório do inquérito informou depois, "... o
próprio sistema do computador não falhou num sentido técnico ele fez aquilo
para que foi projetado".

Uma certa aparência de ordem foi finalmente restaurada quando as pessoas


deixaram de lado o computador, mas não antes que um alto preço tivesse sido
pago. De acordo com os relatos dos jornais, vinte a trinta pessoas possivelmente
morreram como resultado dos problemas criados pela introdução do novo
sistema de informação.

Embora saibam muito sobre tecnologia em beneficio próprio, os Magos também


costumam saber muito pouco sobre as tarefas que outras pessoas desempenham
com uso de tecnologia. Digamos que eles estejam desenvolvendo uma guitarra
eletrônica. A menos que sejam, eles próprios, guitarristas, não vão saber o que de
fato é necessário. O que é difícil? 0 que é fácil? O que é irrelevante? O que é
essencial? Eles não sabem. Apenas podem ter um palpite, mas possivelmente
estarão errados.

Para transmitir essa lição numa aula introdutória ao design de engenharia, uso
uma situação deliberadamente constrangedora, pedindo aos que não sabem tocar
guitarra para desenharem juntos uma guitarra elétrica. 0 resultado inevitável
desse exercício em classe é uma guitarra inimiga do usuário. Como pouco sabem
a respeito do assunto, os alunos encarregados do design não têm outra escolha
senão a de tomar suas decisões numa base ad-hoc. Certa ocasião, a turma passou
longo tempo discutindo quantos potenciômetros deviam ser colocados numa
guitarra elétrica. "Dois", disse um. "Não, três", foi o palpite de um outro. "De jeito
nenhum. Uma guitarra elétrica deve ter pelo menos quatro potenciômetros",
disse um terceiro. A discussão continuou. Finalmente, um deles perguntou: "Mas
para que servem esses potenciômetros?" Em classe, sou deliberadamente
simplista para tornar clara a questão. Mas a comparação faz sentido: se a maioria
dos alunos de engenharia quebra tanto a cabeça para prever as necessidades do
usuário de um produto relativamente simples como uma guitarra, imagine a
dificuldade do trabalho dos Magos ao desenhar um sistema complexo de
segurança crítica.

Hard x Soft

Mas como podemos explicar a segunda observação da nossa lista que os aspectos
soft, não-físicos, dos sistemas tecnológicos podem também tornar a vida das
pessoas mais difícil do que necessário. Em parte, esta é mais uma conseqüência

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natural da colocação dos Magos no comando do processo de design. Eles são
treinados para focalizar o hardware e o software, portanto os aspectos "mais soft"
da tecnologia, tais como os horários de trabalho ou a coordenação de equipes,
simplesmente ficam fora de seu foco de atenção, quando não de sua própria
perícia.

A abordagem oposta também pode sair pela culatra. Os humanistas também


podem levar as coisas a extremos. Em vez de esperar muito da tecnologia, eles
esperam muito dos seres humanos. Se os sistemas são inadequados, eles esperam
que o esforço e a engenhosidade humana preencham as lacunas. Essa atitude
prevalece no setor de saúde, como provam as horas de trabalho absurdamente
longas nos hospitais: imagina-se que os médicos tenham resistência fisica e
mental suficiente para não cometer erros mesmo quando estão trabalhando há
mais de trinta horas em um turno, e 120 horas por semana. Isto é levar a visão de
mundo ciclópica-humanística ao extremo - vamos chamar essa atitude de super-
humanística, uma vez que ela espera que as pessoas sejam super-humanas. Essa
superestimação idealizada das capacidades humanas faz com que os aspectos
"mais soft" dos sistemas tecnológicos não recebam a atenção merecida durante o
processo de design.

Quando a tecnologia era relativamente primitiva, os produtos dos sistemas


criados pelos designers mecanicistas podem ter desafiado as capacidades
humanas, mas raramente as ultrapassavam. Mas agora, quando os Magos têm à
sua disposição tecnologias; muito mais variadas e sofisticadas, sua bagagem
profissional é muito maior - naturalmente, se um designer se vê diante de várias
opções, e tentado a usar muitas delas, principalmente quando o departamento de
marketing quer lançar mão de novas características para aumentar as vendas,
como em geral acontece. E o ritmo da mudança tecnológica também tem relação
com a viabilidade da velha abordagem mecanicista. Quando a tecnologia mudava
de maneira relativamente lenta, as pessoas tinham tempo para se adaptar aos
produtos e sistemas que não eram desenhados com os seres humanos em mente.
Por exemplo, a disposição das teclas das máquinas de escrever mecânicas foi
desenhada com a intenção de reduzir a velocidade dos datilógrafos, porque as
letras ficariam embaralhadas se fossem datilografadas em seqüência muito
rápida - o teclado foi um embaraço proposital para o ajustamento entre as
pessoas e a tecnologia. E o fato de que esse layout foi mantido através dos anos (e
ainda não mudou muito), proporcionou às pessoas tempo para se adaptar ao
design e lidar com ele. Mas agora que estamos cercados pela tecnologia do
computador que muda a cada dois anos, não podemos manter o passo. A maioria
de nós sente que está indo muito devagar. Num certo sentido, estamos
emperrados numa camisa-de-força intelectual imposta por estruturas sociais
antiquadas que um dia foram úteis, mas que agora se tornam inadequadas diante
de sistemas tecnológicos cada vez mais complexos e dinâmicos que dominam
nosso mundo moderno.

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