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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

As Novas “Novas” Masculinidades: Identidades e Crises do Masculino


na Plataforma Instagram

REINALDO RAMOS DA SILVA

Niterói
2023
REINALDO RAMOS DA SILVA

As Novas “Novas” Masculinidades: As Identidades e as Crises do


Gênero Masculino na Plataforma Instagram

Dissertação de Mestrado apresentada


ao Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Federal
Fluminense como requisito parcial
para a obtenção do título de Mestre
em Educação.

Linha de pesquisa: Intelectuais,


Juventudes e Educação Democrática
(IJED).

Orientador: Prof. Dr. Paulo César


Rodrigues Carrano.

Niterói
2023
Ficha catalográfica automática - SDC/BCG
Gerada com informações fornecidas pelo autor

D111n Da Silva, Reinaldo Ramos


As Novas Novas Masculinidades : Identidades e Crises do
Masculino na Plataforma Instagram / Reinaldo Ramos Da Silva. -
2023.
129 f.

Orientador: Paulo César Rodrigues Carrano.


Dissertação (mestrado)-Universidade Federal Fluminense,
Faculdade de Educação, Niterói, 2023.

1. Masculinidades. 2. Relações de Gênero. 3.


Influenciadores Digitais. 4. Produção intelectual. I.
Carrano, Paulo César Rodrigues, orientador. II. Universidade
Federal Fluminense. Faculdade de Educação. III. Título.

CDD - XXX

Bibliotecário responsável: Debora do Nascimento - CRB7/6368


REINALDO RAMOS DA SILVA

As Novas “Novas” Masculinidades: As Identidades e as Crises do Gênero


Masculino na Plataforma Instagram

Dissertação de Mestrado apresentada


ao Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Federal
Fluminense como requisito parcial
para a obtenção do título de Mestre
em Educação.

Aprovada em: 31/01/2023

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________________________________________
(Prof. Dr. Paulo César Rodrigues Carrano - Orientador)

_____________________________________________________________________
(Prof. Dr. José Antonio Miranda Sepúlveda – Membro Interno)

_____________________________________________________________________
(Prof. Dr. José Ronaldo Trindade – Membro Externo)
AGRADECIMENTOS

A palavra ―gratidão‖ no em seu étimo latino significa acolher com favor, reconhecer.
Portanto, tornar mais humano, espelhar. Não há humanidade sem gratidão e fora dela,
habitamos o reino das trocas mediadas por interesses, juros, acumulação. Agradecer é
reconhecer e engrandecer a humanidade de quem nos humanizou. A distância entre o
agradecimento e a retratação é que a primeira doa reconhecimento, a segunda, solicita.
Desculpar-se é notar ter ferido no outro o que dói em si mesmo. Agradecer é notar em si uma
alegria que tem no outro parcial causa eficiente. E mesmo se ausente, fazer este outro presente
na forma da honra pela lembrança pública de seu nome.

Essas duas práticas, desculpar-se e agradecer, perfazem uma ética mínima e com ela,
se não nos vendemos à tentação de mercantilizar e promiscuir seu uso fazendo do
agradecimento uma tentativa de agrado, oxalá alcancemos uma existência mais modesta,
menos famélica de reconhecimento, por fazer desse não uma moeda - mas uma dádiva. Fora
da graça, da gratidão nada há nada senão pobreza. Portanto, é com modéstia que registro os
nomes das pessoas que me fizeram menos ―homem‖ e mais humano, contribuindo direta ou
indiretamente para a realização deste trabalho:

Ao grupo Guerreiros do Coração e ao seu facilitador, Roniel Lopes; a Luiz Otávio


Reis, pai, irmão e filho; à David Dinamarco, amigo melhor; meu pai, Nelson Cosme, ao meu
irmão Luiz Felipe; a todos os outros homens que encarnaram o Laio em minha tragédia e
foram as paredes reais e imaginárias dos meus complexos; às mulheres que amei e odiei na
busca de meus objetos para sempre perdidos; às mulheres que me amaram e me odiaram na
busca de seus objetos também para sempre perdidos; à Diovana Neves pela valiosa assessoria
técnica; à Amanda Gaburo, pelas chaves, pelas miragens e pelos insustentáveis mas
belíssimos delírios; à Andreza Freitas, pelas trocas e acessos tão privilegiados em tantas e tão
intensas conversas; à Patricia Guimarães, que me permitiu a paternidade e seus imperfeitos
milagres; e à Alan Teixeira, por me fazer me escutar.

Só eu sei o que eu sinto. E por consentir o que sinto, dou graças à vida.
Para Benoá Xavier e Jill Aragão.
“Todos somos responsáveis de tudo, perante todos”.
Fiodor Dostoievski
RESUMO
Este trabalho consiste em um estudo exploratório qualitativo com amostragem dirigida
e método de análise netnográfico tendo por objeto a questão das representações de
masculinidade em nossa cultura. Seu corpus empírico foi recortado da plataforma Instagram,
qual seja, a análise fina de três diferentes perfis de destacada influência na referida rede
social, cada qual representando um padrão particular de tendência ético-estético-política. O
direcionamento da amostragem obedeceu ao critério de volume de engajamento e
especificidade de conteúdo. Desta forma, os perfis diferem entre si por representarem, cada
um deles, variações interpretativas sobre o papel do masculino e das (novas) masculinidades
no atual teatro social das relações de gênero. O cotejamento dos dados é feito a partir da
especificidade do discurso sobre masculinidade que cada perfil apresenta, sendo o primeiro
deles de característica masculinista; o segundo orientado pelas demandas do feminismo em
sua expressão mais corrente nas redes sociais e com viés de gênero marcadamente
essencialista e o terceiro de caráter mitopoiético e buscando encontrar saídas para os impasses
da masculinidade a partir do discurso de crise aberto em grande parte pelo avanço das
demandas das mulheres. A passagem do particular para o geral aduziu à conformação de
categorizações que perfazem o que se pretende constituir na contribuição mais relevante deste
empreendimento de pesquisa. Ao cabo, no nível teórico, consideramos o objetivo deste
trabalho, assumindo os homens como grupo detentor de uma forma histórica de hegemonia
social, indagar sobre a possibilidade de revisão do estatuto ontológico da masculinidade a
partir de uma percepção autorreferenciada do esgotamento dessa forma tradicional de
hegemonia.
Palavras-chave: Masculinidades, Relações de Gênero, Influenciadores digitais.
ABSTRACT
This work consists of a qualitative exploratory study with directed sampling and a
netnographic analysis method, having as object the issue of representations of masculinity in
our culture. Its empirical corpus was cut from the Instagram platform, that is, the fine analysis
of three different profiles of outstanding influence on the aforementioned social network, each
representing a particular pattern of ethical-aesthetic-political tendency. The sampling
direction obeyed the criterion of engagement volume and content specificity. In this way, the
profiles differ from each other because each one of them represents interpretative variations
on the role of the masculine and of (new) masculinities in the current social theater of gender
relations. The collation of data is carried out based on the specificity of the discourse on
masculinity that each profile presents, the first of which has a traditionalist characteristic; the
second guided by the demands of feminism in its most common expression in social networks
and with a markedly essentialist gender bias and the third of a mythopoietic character and
seeking to find ways out of the impasses of masculinity based on the crisis discourse opened
in large part by the advancement of masculinity. women's demands. The passage from the
particular to the general led to the conformation of categorizations that make up what is
intended to constitute the most relevant contribution of this research enterprise. In the end, at
the theoretical level, we consider the objective of this work, assuming men as the group that
holds a historical form of social hegemony, to inquire about the possibility of revising the
ontological status of masculinity based on a self-referenced perception of the exhaustion of
this traditional form of hegemony.
Keywords: Masculinities, Gender Relations, Digital Influencers.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 19

CAPÍTULO 1: PERCURSOS E CONTEXTOS 24

1.1 Justicativa e Motivação 24

1.2 Objetivos e pergunta 29

1.3 Contribuições esperadas 29

1.4 Proposta Metodológica 30

1.5 A constituição do campo das masculinidades com área de estudos 31

1.5.1 Masculinidades Queer 40

1.6 Mapeamento da produção acadêmica sobre o tema ―masculinidades‖ 44

1.7 O Método Netnográfico 46

1.8 A Plataforma Instagram 48

CAPÍTULO 2: APORTES ANALÍTICOS 54

2.1 Sistemas de classificação (categorias de análise): 54

2.2 Tabulação por categorias de análise, publicações e seguidores: 59

2.3 Categorização por correlação necessária 62

CAPÍTULO 3: PERSONAGENS E DISCUSSÃO 66

3.1 Fúria e Tradição 66

3.1.2 Discussão do perfil 71

3.2 João Luiz Marques 81

3.2.1 Discussão do perfil 85

3.3 Masculinidade Saudável 94

3.3.1 Discussão do perfil 99

CONSIDERAÇÕES FINAIS 106

REFERÊNCIAS 110

ANEXO I 117
19

INTRODUÇÃO
Ao analisar o que emerge no debate público no campo de gênero e sexualidade com
ênfase em masculinidades, estamos também contemplando um movimento que reverbera no
cotidiano estudantil, porque dimensão indissociável e subordinada ao campo da cultura,
especialmente em tempos onde observamos um crescente ativismo de extrema direita que visa
disputar a produção de sentidos e saberes no espaço escolar. A questão de gênero configura,
portanto, uma trincheira na qual a extrema direita cerra fileiras com especial ardor, pois
representa uma fronteira essencial para a perpetuação das hierarquias que dão unidade à
cadeia de privilégios que assegura a conservação da divisão do trabalho e da ordem social, ao
preço do silenciamento das subjetividades dissidentes às concepções hegemônicas previstas
na rigidez de suas prescrições. Um exemplo clássico diz respeito às aulas de educação física
com atividades mistas, nas quais as meninas são claramente mais favoráveis às atividades
mistas que os meninos, que geralmente preferem praticar entre si. Ainda são representações
estereotipadas dos papéis de gênero que observamos quando as meninas se descreviam como
mais sociais e cooperativas e, portanto, como contribuindo para a coesão do grupo e que, ao
contrário, os meninos se percebem e são percebidos como mais competitivos e em busca da
afirmação da própria virilidade (BADINTER 1993, COSTA 1987; FALKENBACH 2002;
FENSTERSEIFER 2001; FREIRE 1989).

Tal movimentação conservadora aponta na função crítica do pensamento a falsa


atribuição de propagadora de uma suposta ―ideologia de gênero‖, apenas por cumprir sua
função de denunciar o caráter contingente de todos os construtos sociohistóricos,
considerando mais especificamente as representações tradicionais de ―homem‖ e ―mulher‖. E
a denúncia desta contingência haverá de sublinhar que o mesmo fluxo sociohistórico
sobredeterminará irremediavelmente a derivação destes conceitos para novas formas de
existência e subjetivação da vida. Confundindo ―crítica‖ e análise sociohistórica com
ideologia, ao defender a naturalização da cultura e a impossível tentativa de sobrestar o
mundo da vida1, a militância de extrema direita é a única a incorrer efetivamente, por ironia,
na prática de um ativismo ideológico no campo do gênero. A inscrição desse projeto na linha
de pesquisa ―Intelectuais, Juventudes e Educação Democrática (IJED)‖ justifica-se, portanto

1
Conceito Habermasiano inspirado na fenomenologia de Husserl. A esfera do mundo da vida é Ela é
pré-cognitiva e pré-categorial, isto é, vem antes de qualquer tipo de conhecimento objetivo. Ela pode ser
caracterizada como um mundo, ou melhor, como um ―fundo olvidado capaz de proporcionar sentido às
ciências‖. Ou ainda como um conjunto de sentido inquestionável portador ―das evidências mais evidentes‖
(HUSSERL, 2012, p. 112).
20

pela inevitável ressonância no espaço escolar das mesmas tensões envolvendo aspectos de
gênero na forma da reprodução das conformações típicas apresentadas nas relações sociais em
suas marcantes assimetrias e jogos de poder. Ainda que o espaço escolar não seja o campo
eleito prioritariamente para a extração do substrato empírico deste projeto de pesquisa,
consideramos que, ao compreender o processo educacional em um sentido ampliado, inscrito
no campo da cultura, chega-se à conclusão de que o espaço da escola é também afetado pelo
debate político que se instaura no espaço público, sobretudo em se tratando de aspectos que
dialogam diretamente com a dinâmica familiar, com o período de iniciação e descoberta da
sexualidade e com o notável deslocamento dos marcadores de gênero observados nos últimos
tempos - deslocamento este decorrente principalmente em razão do exponencial alargamento
da influência das redes sociais no cotidiano desses jovens.

Ao assumir a existências de diversas masculinidades, Connell (2003) reforma o


conceito de masculinidade hegemônica, que representa a forma pela qual uma determinada
masculinidade, conforme a situação específica de tempo-espaço, se afirma em relação a
outras. Na definição de masculinidade hegemônica, a autora se utiliza do termo ―hegemonia‖,
originado na análise de Gramsci sobre as relações sociais de classe, conferindo-lhe um caráter
passível de transformação, posto que se apresenta como um modelo passível de ser disputado
entre diferentes segmentos masculinos. ―A sobreposição entre masculinidades também pode
ser vista em termos dos agentes sociais construindo masculinidades‖. (CONNELL, 2003, p.
253). Para o sociólogo Francis Dupuis-Déri (2010), não é novidade que as mulheres são
acusadas de "reivindicar demais", que lhes dizem que já têm direitos suficientes, que a
igualdade de fato é alcançada e que a luta feminista é de fato um pretexto para alcançar a
supremacia das mulheres. Também não é novidade que tentamos reafirmar a identidade
feminina de acordo com tipos de comportamentos e princípios de valores como gentileza,
tolerância, dedicação, compaixão e, acima de tudo, dependência em relação aos homens.

Quando mulheres ou grupos de mulheres se recusam a obedecer aos padrões de vida


impostos, também ouvimos a reação dos homens que dizem estar "sofrendo" em relação à sua
identidade como homens e, de fato, sua razão de ser. Isso é chamado de "crise da
masculinidade", ou melhor, "discurso de crise‖. Para este autor, entre os sintomas dessa crise,
que se diz prevalecer em sociedades muito feminizadas, estão as dificuldades acadêmicas dos
meninos, a incapacidade dos homens de flertar, a recusa dos tribunais em conceder custódia
aos pais e também suicídios masculinos. Para tanto, parece importante questionar o impacto
21

desse discurso na definição da identidade masculina e na possível cooperação entre os gêneros


para avançar na construção de um projeto de equidade.

Dupuis-Déri afirma que não é por ser um simples discurso de crise que não afeta o
real. De fato, o discurso da crise tem sido frequentemente usado por especialistas em
comunicação - portadores de ideologias - para mobilizar as pessoas em seu proveito. Desta
forma, problemas sociais sérios podem receber menos importância diante de falsos problemas
ou problemas menores. Essa manobra política para apelar à ―crise" para incentivar
intervenções nesse sentido atende a interesses específicos daqueles que propagam esse senso
de urgência. Declarar uma crise pode servir como um poderoso agente mobilizador para as
autoridades políticas e sociais desenvolverem uma série de recursos, grupos, projetos de
pesquisa e posições em favor dos homens: "um estado de crise surge toda vez que uma
dominação é questionada" (Dupuis-Déri, 2010).

Segundo a antropóloga Mélanie Gourarier (2012), o discurso de crise tem três


consequências principais para uma sociedade: 1) insiste na divisão da sociedade em duas
classes de ―sexo‖ (sic), homens e mulheres; 2) especifica os critérios de pertencimento a essas
duas classes, recordando qualidades masculinas e falhas femininas (define o que um homem,
ou um ―verdadeiro‖ homem deve ser); 3) ele pede mobilização para (re) afirmar essa
masculinidade pelos privilégios e poder da classe dos homens, considerados superiores por
natureza e cuja supremacia deve ser restabelecida, protegida e mantida. Segundo essa tese, o
discurso da crise segue uma lógica supremacista segundo a qual tudo o que define um homem
é superior ao que define uma mulher, mas também que essas divisões devem permanecer
puras e protegidas de toda hibridação.

O conceito de "crise da masculinidade" aparece, portanto para Dupuis-Déri e


Gourarier, como um movimento reacionário diante da perspectiva de mudança global, ou seja,
a equalização dos papéis de gênero, que, segundo o ponto de vista daqueles que sempre
estiveram em posição de poder, só pode ser percebido como uma perda de seus privilégios e
um ataque ao modo de vida que foi ditado por eles. Mais do que a questão da "crise da
masculinidade", parece inevitável a partir de agora questionar a própria noção de
"masculinidade", um conceito que é elástico e variável em diferentes épocas e culturas, mas
que, usado como ferramenta de propaganda, serve aos poderosos para manter o status quo das
relações de gênero como uma hierarquia a favor dos homens.
22

Silvia Federici (2021) revela que o trabalho doméstico não remunerado é um fator
decisivo na estrutura de valor dos salários. Mostra que, ao fazer isso, podemos revolucionar a
interpretação de Marx e do capitalismo de que a categoria gênero estaria circunscrita a um
aspecto superestrutral. Federici demonstra como o trabalho doméstico feminino representa
enquanto força de trabalho um dos pilares do sistema de produção capitalista, apontando
como as reformas políticas do liberalismo disciplinaram a classe trabalhadora e empurraram
as mulheres para o reino do trabalho reprodutivo e doméstico. Para a autora, o capitalismo
concede aos homens poder sobre o trabalho e os corpos das mulheres, transformando o lar em
uma fábrica da classe trabalhadora e mostra que, ao minar socialmente as mulheres, a classe
trabalhadora também é atingida como um todo. Essa leitura tem como conseqüência a
conclusão de que a "privacidade" e a família não são mais percebidas como elementos
externos ao capital. Portanto, pode-se dizer que o movimento das mulheres, assim como o
movimento dos homens, é resultado das condições históricas decorrentes das grandes
transformações sociais, econômicas e culturais iniciadas no século XVII.

Este trabalho teve inicialmente por inspiração a pesquisa realizada no projeto sobre
masculinidades ―O Silêncio dos Homens‖2, organizado pelo site ―Papo de Homem‖3
promovendo um adensamento crítico da problematização acerca do campo semântico que
abarca o sentido das diferentes masculinidades em suas diferentes ubiquações com a cultura.
Neste movimento, pretendemos verificar três diferentes processos que supomos emergentes
na cultura como possível repercussão do movimento feminista, quais sejam: 1) o
aparecimento de uma ―masculinidade ameaçada‖; 2) o aparecimento de uma ―masculinidade
envergonhada‖; e 3) um processo de reidentitarização da masculinidade. Para dar conta da
problemática que esta pesquisa coloca, analisaremos a partir das principais contas de perfis
relacionados aos movimentos de homens na plataforma Instagram, elementos discursivos que

2
Projeto conduzido em 2019 com amostra inicial de 47.002 respostas, disponível em
https://www.dropbox.com/s/ad2gparx6duasyx/osilenciodoshomens.pdf?dl=0 e
https://www.dropbox.com/s/om46du2lkzbhyu5/osilenciodoshomens_desk.pdf?dl=0
3
Segundo o projeto ―O Silêncio dos Homens‖, do site Papo de Homem, existem hoje cerca de trinta
iniciativas e projetos que trabalham com a transformação dos homens, entre eles: Homens em Conexão
(Brasília), Coletivo Sistema Negro (São Paulo), Movimento Guerreiros do Coração (Nacional), Diamante Bruto
(Brasília), Masculinities — Educação, comunicação e cuidado para homens (Brasília), Clã Lobos do Cerrado
(Brasília), Círculo do Fogo Sagrado Masculino (Brasília), Portal Papo de Pai (Mogi das Cruzes), Paizinho
Vírgula (Rio de Janeiro), Homem Paterno (Ubatuba), Pai de Verdade (Recife), Pai Todo Dia (Recife), 4Daddy
(São Paulo), Podcast Balaio de Pais (São Paulo), Podcast AfroPai (São Paulo), Nerd Pai (São Paulo), Masculino
da Alma (Florianópolis), Homem Inteiro (Florianópolis), Refletindo Masculinidades (Florianópolis), MEMOH
(Rio de Janeiro), Papo de Segunda (Rio de Janeiro), Projeto Tempo de Despertar (São Paulo), E agora, José?
(Santo André, SP), Fórum de Gênero e Masculinidades do Grande ABC (Santo André, SP), Homem na Agulha
(São Paulo), Brotherhood Brasil (São Paulo), PrazerEle (São Paulo), Paternidade Sem Frescuras (São Paulo) e
Ressignificando Masculinidades (São Paulo).
23

remetam diretamente a aspectos centrais da agenda política em torno do debate de gênero e


masculinidades buscando categorizar os perfis de acordo com a posição que ocupam em
relação a este debate. Ao término, pretendemos construir uma cartografia dos diferentes perfis
de influenciadores do tema de masculinidades hoje atuantes no país, realizando uma
organização tipológica a partir das características específicas de cada uma destas contas.

A concepção deste trabalho caminhou na direção de interrogar se é possível ou


desejável estabelecer uma perspectiva teórico-epistemológica que nos permita abordar o tema
das masculinidades sem que esse diálogo precise forçosamente ser iniciado sob a perspectiva
da relação entre as alegadas ―falhas‖ e culpas dos homens vis-à-vis à agenda do feminismo.
Sua gênese ocorre a partir de questionamentos pessoais que estão íntima e profundamente
relacionados à minha própria experiência como participante de um grupo de homens, a
fraternidade ―Guerreiros do Coração‖4. Esta proposta, que se ancora na minha vivência como
participante do grupo, considera que existe um movimento de larga escala em curso no país,
onde homens de diferentes idades, raças, credos e pertencimentos começaram a organizar-se
coletivamente no sentido de promover redes de apoio e desenvolvimento pessoal a partir de
esforços de partilha e enfrentamento emocional tendo por objetivo ensejar mudanças sociais
que possam gerar o aparecimento de masculinidades menos infensas ao feminino e à própria
saúde psíquica dos homens.

4
Grupo de orientação mitopoiética fundado no Rio Grande do Sul em 1992, descrito em seu site como
―uma jornada de autoconhecimento que facilita a expansão e o desenvolvimento do seu maior potencial enquanto
homem, o resgate da inteireza e retomada do poder pessoal‖. Fonte: https://www.guerreirosdocoracao.com.br/,
acessado em 20/07/2021.
24

CAPÍTULO 1: PERCURSOS E CONTEXTOS

1.1 Justicativa e Motivação

A forma como o debate de gênero hoje atravessa nossas subjetividades por conta de
sua presença ubíqua no campo da cultura teve impacto decisivo na escolha do tema para esta
dissertação. A proximidade com ele me é tão distinta que a ancoragem deste trabalho deu-se
tão somente pela exigência de cientificidade da academia, pois o cotejamento de dados
extraídos de uma base empírica de largo alcance ―encorpa‖ e legitima cientificamente a
pesquisa, tornando mais factível sua circulação, ao menos no âmbito acadêmico, mas poderia
perfeitamente caber na forma de um longo ensaio confessional, projeto ao qual viso dar
conseqüência no médio-longo prazo. Aliás, este flerte com a alternativa de redigir um trabalho
na forma-ensaio é feito sem menosprezo à forma-pesquisa que elegemos como base para a
apresentação e discussão dos resultados, uma vez que a crescente participação das figuras
conhecidas como ―influenciadores digitais‖ no cenário público é um fenômeno da cultura de
massa de nosso tempo. Independente de sua forma, este trabalho representa a transição do
imperativo ―ser homem‖ ao subjuntivo ―devir homem‖5.

Mas muito antes de assumir uma atitude filosófica frente ao tema, este ―ser homem‖
compunha um receituário tão vasto quanto contraditório de prescrições que foram o cerne da
construção de minhas lógicas de subjetivação das experiências no mundo e que ainda ao me
tornar adulto permanecem reverberando numa dialética cuja urgência conduziu à tarefa de
empreender esta pesquisa. A masculinidade enquanto marcador identitário ocupa na minha
experiência um papel fundante frente aos demais marcadores da mesma natureza. E não por
acidente, trata-se de um marcador que se estabelece pela produção incessante de evidências
exteriores de sua legitimidade - isto é, o homem antes de ―ser‖, precisa provar-se. E ao não
provar-se, não é. E aqui reside toda uma moralidade específica deste ―ser homem‖.

Podemos dizer que, tradicionalmente, em outros sistemas filosóficos, a moralidade é


deduzida de uma ontologia: define-se a natureza do sujeito e do mundo e daí se deduzem
regras de comportamento. Em Emmanuel Levinas (1997), a moralidade é a filosofia primária.
A moral não é o que vem disciplinar uma disciplina previamente definida; a subjetividade é

5
Cabe a ressalva que em uma perspectiva Deleuziana, devires são necessariamente minoritários. Optou-
se aqui, portanto, por uma concepção de devir fundamentada no sentido metafísico clássico, remetendo ao
conceito heraclítico que faz coincidir devir com mutabilidade, como negação da fixidez e das essencialidades.
25

definida como acolhendo a alteridade: ―o sujeito é um hospedeiro‖, diz o filósofo francês, que
retoma e continua a fenomenologia de Husserl. A fórmula é simples e poderosa, mantendo as
velhas palavras da linguagem cotidiana, Levinas renova a concepção de subjetividade. A
moralidade não deve ser vista como um controle exercido pela razão sobre a sensibilidade,
mas sim como um acontecimento da sensibilidade. A moralidade não é da ordem de um dever
ser, é um fato, um trauma, como o produzido pelo encontro com o rosto do outro. Com
Levinas, nada precede a ética, porque a ética é o que está na própria origem da filosofia, do
espanto filosófico.

Centrando-se na relação do sujeito com os outros, a filosofia de Levinas procura


renovar radicalmente o pensamento da intersubjetividade. Para Levinas, a ética é a filosofia
primária. É na sua grande obra Ética e Infinito, que lemos uma definição de moralidade como
um absoluto que regula a existência com rigor implacável e designa a relação com os outros,
aquilo a que chama responsabilidade-pelos-outros. Sendo a relação com os outros assimétrica,
podemos dizer que a reciprocidade de ações não pode ser esperada pelo sujeito, ele deve agir
sem saber o que os outros farão, mesmo que o sujeito deva perder a vida. Subvertendo então a
moral da autonomia desenvolvida por Kant (da qual a autonomia era o centro nervoso), a
filosofia de Levinas torna possível a moralidade imperiosa graças à heteronomia do sujeito.
Essa experiência dos outros assume a forma do rosto. No entanto, o rosto, para Levinas, não
deve ser entendido no sentido literal: o rosto do homem excede qualquer descrição possível
(cor dos olhos, formato do nariz, etc.). Assim, Levinas descreve o rosto como uma miséria,
uma vulnerabilidade, uma destituição que, por si só, sem o acréscimo de palavras explícitas,
implora ao sujeito. É pelo rosto do Outro que sou convocado à minha responsabilidade . É
também a recepção do Outro que define minha subjetividade. O rosto do Outro me investe de
responsabilidade por sua própria vulnerabilidade: ele fala, ele proíbe o assassinato, ele diz o
dever de responsabilidade, que parece ser uma sujeição ao Outro. Nessa heteronomia da
responsabilidade, essa relação com o Outro me priva da liberdade. E, quando experimento
essa responsabilidade, fico como refém no face a face com o Outro: a relação é assimétrica. É
então que nessa relação, o Outro é imediatamente colocado acima de mim, como algo que
devo de certa forma preservar, sem o qual não posso existir. Esse movimento é e deve
permanecer unidirecional, e não investir na reciprocidade, é porque esse retorno à origem,
retorno a mim, seria um retorno ao ―mesmo‖, e ao mesmo tempo absorveria a tão almejada
alteridade numa tautologia do ego. É assim que a relação com os outros é a relação ética por
excelência. É a desproporção entre o ―Outro‖ e o ―Eu‖ que constitui a consciência moral.
26

É na heteronomia da relação do masculino com o feminino que se realiza, portanto,


um processo de abertura ontológica que determina tanto a condição feminina quanto a
masculina na forma de ―devires‖. E foi a consciência deste devir-homem6 que serviu de motor
para a concepção e construção deste trabalho. Seu autor, um homem branco cisgênero de
classe média, portador de um diploma de doutorado por uma universidade pública e recém
tornado pai, decidiu em meados do ano de 2019, aos 41 anos de idade, cursar um segundo
mestrado. Poucos meses depois entramos em uma noite de dois anos de duração, a pandemia
da COVID-21 - anos longos o suficiente para um intenso processo de reconfiguração de
minha vida, à custa de vivências traumáticas e lutos pessoais e coletivos. Foram mais de três
anos cuja duração, se medida fosse pela intensidade das transformações pessoais às quais
estive sujeito, pareceriam três décadas. A chegada do primeiro filho, uma separação amorosa,
uma mudança de cidade, uma nova crise depressiva, uma pandemia e um permanente estado
de prontidão intelectual decorrente dos inevitáveis e contundentes atravessamentos que o tema
desta pesquisa impôs sobre meu psiquismo e minha corporeidade, resultaram não apenas em
uma bizarra paralisia criativa oriunda não da falta, mas do excesso de produção de sentidos
como também em um sentimento de responsabilidade todavia agravado por basicamente ser
instado em transformar em objeto uma problematização dentro da qual é impossível guardar o
distanciamento prescrito pelos manuais de neutralidade científica.

A atividade de pesquisa e escrita em tempos pandêmicos consistiu em um penoso


exercício de resistência, posto que uma vez privado da rotina social à qual estávamos
habituados, o mergulho à fórceps na privacidade da vida doméstica implicou no angustiante
encontro com o próprio pensamento a funcionar como uma incessante câmara de ecos. Tendo
o universo das redes sociais como escape rapidamente convertido em uma forma de adicção
ou masoquismo, o mundo ao meu alcance se converteu em uma espécie de ―Torre de Babel‖
onde uma pletora de opiniões dissonantes oferecia dia após dia as mais variadas bulas de
sobrevivência no isolamento, entre platitudes pretensamente edificantes, receitas de pão
caseiro, roteiros de ginástica natural e, na pior fase, toneladas de desinformação disseminadas
numa rede oculta e alavancadas pelo discurso do mandatário supremo da nação, capitão de um
movimento inaudito de fascistização das massas brasileiras com a produção contínua de

6
―O homem ainda não existe‖, provocação que inverte o matema lacaniano sobre a inexistência da
mulher, assumindo que enquanto ator social, o homem e os movimentos de masculinidades são ainda credores da
positividade ontológica da agenda feminista. Esta perspectiva é muito bem problematizada no trabalho da
escritora e psicóloga Christina Montenegro, que defende a possibilidade de emergência de um Masculino, com
referencial identitário próprio.
27

pânico moral. Sob tudo isso, ainda o medo de morrer e não acompanhar o desenvolvimento
do meu filho, nascido em abril de 2019.

É interessante pensar aqui no mito babélico, No mito babélico ressoa uma certa
nostalgia da univocidade linguística perdida. A ideia de chegar ao céu mediante a edificação
de uma torre alude à possibilidade de um entendimento que transcende a questão da
linguagem, mas que aponta para uma sigularidade que bane a discórdia, o mal entendimento,
as disputas do campo das identidades subjetivas e sociais que marcam a inclinação humana
para o conflito. A concórdia do entendimento universal era condicionada a uma ideia de
totalidade patrocinada pela submissão a uma autoridade divina. Sem o recurso à divindade, no
plano da imanência, seriamos todos imaginariamente inclinados de forma espontânea a um
entendimento perfeito, sem os deslizamentos e arestas que a palavra emprestada às coisas traz
em sua própria constituição. A autoridade transcendente, o fundamento ulterior dessa
linguagem espontânea e universal, atua no mito babélico como limite a não ser ultrapassado
pela razão humana - se é que podemos falar em "razão" no sentido do logos grego, pois se
afigura aqui uma relação quase que simbiótica entre ser e pensar, não prescindindo da palavra.
O humano é por definição aquilo que sai da ordem das coisas, o que existe no entrelugar, o
que vaga. O que tende à queda. O humano é sempre resultante de uma debacle, e é a palavra o
signo do humano, "o verbo feito carne". Essa cópula entre carne e verbo, signo e significante
que autoriza nossa errância – ou devir.

Manter vigilância sobre os eventuais vieses carreados por minhas idiossincrasias


neuróticas era o lembrete mais enviado de mim para mim mesmo ao longo deste processo.
Porque logo após ser inscrito na linguagem, fui também inscrito na masculinidade, tornando-
me legatário de toda a violenta carga simbólica decorrente desta condição. E se dela não pude
me separar ao escrever este trabalho, ao menos posso crer ter logrado exercitar pela via da
análise crítica – no sentido mais radical da palavra crise: íntima, subjetiva, pessoal, agônica –
a construção de um retorno desta crise pessoal (e que é também cultural) pela via do
autoengajamento ético-político. Tal retorno demarca um movimento de ascese rumo à
construção de um projeto singular de masculinidade que considera sua indissociável paridade
dialética com o princípio da feminilidade no grande teatro social das relações de gênero,
desejoso de haver proposto ao menos o vislumbre de possíveis ―linhas de fuga‖ para os
impasses que ora constrangem o debate sobre o assunto, ainda eivado de essencialismos que
resultam na produção de antagonismos retóricos inflacionados por lógicas discursivas
28

tensionadas por um dualismo belicista incitado por ―racionalidades algorítmicas‖, prepostas


de um mercado ávido por toda sorte de sectarismo. Nas palavras de Gilles Deleuze,

A linha de fuga é uma desterritorialização. [...] Fugir não é renunciar às ações,


nada mais ativo do que uma fuga. É o oposto do imaginário. É também afugentar, não
necessariamente os outros, mas amedrontar alguma coisa, amedrontar um sistema
como você estoura um cano... Fugir é traçar uma linha, linhas, toda uma
cartografia. (DELEUZE, 1977, p. 47).

A fuga, em um sentido estrito, representa desenvolver formas criativas de transitar nas


infinitas frestas existentes entre os princípios da identidade e da diferença, avançando a
fronteira da ética pela via da alteridade, ou seja, da heteronomia proposta na fenomenologia
moral de Levinas. Neste aspecto, é impossível não pensar o sentido das ―linhas de luga‖ senão
pela via da transgressão. Somos seres capazes de linguagem porque somos seres capazes de
transgredir. Se a imagem e semelhança em relação à divindade não pode ser subsumida a
partir de características fisiológicas e materiais (o que nos levaria a pensar em um Deus que
defeca ou questionar por qual razão ele não é asiático, negro, mulher, anão ou amputado), e se
Deus é o "supremo criador", não cabe dessemelhança e desobediência mais grave à divindade
que fazer-se obediente e repetidor de formas pré-concebidas de ser e de existir. É uma traição
dupla, ao humano e à divindade. A cisão que a divindade opera é no sentido da punição pelo
desejo do homem em "tocar o céu" pelo uso da linguagem. Tanto no mito edênico, quando a
queda se dá pela prova do fruto da árvore do conhecimento - que nos atira no mundo do
trabalho e da transform-ação, quanto no mito babélico, onde a profusão de línguas nos atira no
universo da diferença, a transgressão é a gênese do humano e o vento que nomadiza. A
passagem do paleolítico para o neolítico é, portanto, em alguma medida um processo de
nomadização e errância, ao contrário do que consagra a historiografia - pelo menos em um
sentido estrito, no modelo ―de cima para baixo‖, objeto da crítica de E.P Thompson. O
homem se sedentariza geograficamente enquanto o humano se nomadiza na dimensão da
linguagem. E é por reconhecimento a este nomadismo que assumi o trabalho de buscar
compreender os deslocamentos do masculino na contemporaneidade e a tarefa ética de
produzir linhas de fuga dentro do aparente determinismo das relações de gênero, posto que
nos fazemos homens e mulheres e dissidentes de gênero dentro de um dispositivo
inexoravelmente relacional, heterônomo e portanto, a partir de uma ética da diferença.
29

1.2 Objetivos e pergunta

A pesquisa pretende investigar de maneira geral e não exaustiva o campo semântico


em que se inscreve o conceito de masculinidade, considerando suas interrelações com os
arranjos socioprodutivos da dita pós-modernidade7 - um pressuposto teórico que assumimos
como enquadramento conceitual desejável e complementar ao sentido investigativo que
empreenderemos. A empiria pretende erguer um mapa exploratório dos perfis sobre
masculinidade hoje constituídos na plataforma Instagram, aferindo impactos, objetivos e
sobretudo, pondo à teste a hipótese de que há uma implicação de má consciência segundo um
aspecto nietzschiano em relação à busca dos homens por ―curas emocionais‖ ou resgates de
dívidas históricas. Os integrantes destes movimentos tendem a identificar a masculinidade
tradicional como um problema, uma fonte de angústia. O movimento deste projeto seria no
sentido de averiguar a origem desse mal-estar e por que a masculinidade tende a ser percebida
no debate público ―progressista‖ como um valor negativo. Em resumo, nossa pergunta
consiste em: estamos nos deparando com um projeto ativo de redefinição da masculinidade
dos homens pelos homens ou trata-se de um mero movimento de adequação às demandas do
feminismo na contemporaneidade? – registrando inclusive não sabermos se é possível ou
conceitualmente adequado avaliar o problema em uma perspectiva assim disjuntiva.

1.3 Contribuições esperadas

1 - Criar categorias de análise a partir de uma cartografia dos perfis.

2 - Mapear tendências de discussão no campo.

3 – Formular um projeto de intervenção com vistas a ampliar o debate público em


torno da questão das masculinidades a partir de questionamentos não contemplados no debate
atualmente estabelecido.

7
Assumindo a polissemia do conceito, optamos por privilegiar a perspectiva desenvolvida por J.F.
Lyotard, que situa a pós-modernidade como um desenlace do projeto de emancipação iluminista resultando na
débâcle da autoridade das metarranativas históricas, tendo por resultado a emergência de um impasse cético
análogo ao experimentado na pré-modernidade. Cabe sublinhar o processo que resulta na erosão do princípio do
cogito cartesiano, cujo lastro epistemológico servia de pedra angular da empresa iluminista e foi posto em xeque
a partir dos aportes críticos originados na filosofia Nietzschiana, no marxismo, na psicanálise e culminados pela
crítica pós-estruturalista.
30

1.4 Proposta Metodológica

As etapas de pesquisa consistiram em: 1) levantamento do maior número possível de


contas cadastradas na rede social Instagram com alcance de pelo menos mil seguidores, tendo
como mote o tema das masculinidades; 2) cotejamento dos perfis com análise horizontal dos
conteúdos; 3) análise vertical dos três perfis selecionados como representativos das formas
identificadas como mais expressivas e representativas dentro do universo do debate sobre
masculinidades no Instagram; 4) descrição densa das categorias encontradas; 5) cartografia
dos perfis observados a partir da categorização realizada. O critério de seleção foi a
ocorrência de pelo menos um dos seguintes termos no nome principal da conta ou em sua
descrição: ―masculinidade‖, ―masculinidades‖, ―homem‖ e/ou ―homens‖ e a descrição de uma
proposta de engajamento social, cultural ou político voltada para a discussão dos valores
concernentes ao tema. A metodologia empregada consistiu na análise dos últimos dois anos
de publicação, visando circunscrever os temas principais em debate a partir da ocorrência das
hashtags (palavras-chave de acesso rápido às postagens) predominantes; considerando o perfil
social, racial e político dos influenciadores associados a estas contas para então cruzar as
informações com vistas a atender à pergunta estabelecida na introdução e objetivo deste
trabalho.

Nossa proposta metodológica intenta empreender um estudo exploratório qualitativo


através da realização de um estudo netnográfico não participante tendo a plataforma
Instagram como campo, buscando inventariar os principais grupos e influenciadores afins à
temática do trabalho em suas distintas tipologias, visando empreender nossa análise a partir
do levantamento de uso de expressões chave, modalidades de engajamento e utilização de
hashtags. Deste investimento, foi realizada uma análise horizontal, cotejando os aspectos
particulares de cada perfil em relação à posição discursiva assumida dentro do campo do
debate das masculinidades, produzindo a descrição densa8 necessária para a demarcação das
categorias que consistem na contribuição principal deste trabalho.

Justificamos a escolha por esta metodologia em razão da vertiginosa expansão das


relações de sociabilidade na internet nas últimas duas décadas, redefinindo e de certa forma
―borrando‖ as fronteiras entre o real o virtual em nossa cultura, valendo-nos da contribuição

8
Segundo o trabalho de Geertz, considera-se o aspecto semiótico da cultura e procura interpretá-la a
partir de sua rede de significados visando o ―alargamento do universo do discurso humano‖ (Geertz, 1978,
p.24). Em outras palavras, a descrição densa objetiva proporcionar a compreensão das estruturas significantes
implicadas na ação social observada, que necessita primeiramente ser apreendida para depois ser apresentada.
31

de Kozinets (2014), que define o trabalho netnográfico como uma ―forma especializada de
etnografia adaptada às contingências específicas dos mundos sociais de hoje mediados por
computadores‖.

1.5 A constituição do campo das masculinidades com área de estudos

Os movimentos de homens são uma coleção de organizações sociais, políticas e


filosóficas que buscam redefinir a relação dos homens com seus papéis de gênero prescritos.
Embora organizações centradas no homem tenham existido ao longo da história, as
organizações geralmente chamadas de movimentos masculinos começaram na década de
1970. Eles geralmente se formaram após os movimentos feministas da segunda onda9 e
buscaram reformar (ou reafirmar) a posição dos homens em uma sociedade com novos
valores. Os primeiros movimentos masculinos (os das décadas de 1970 e 1980) foram em
grande parte pró-feministas, seguidos por um período de agendas de reação que visavam
reivindicar direitos que se pensava terem sido perdidos para as mulheres. A partir da década
de 1990, os movimentos masculinos tornaram-se altamente formalizados e voltados para
nichos de grupos com interesses diversos. O movimento profeminista inicial era bastante
pequeno e tinha mais apoiadores femininos do que masculinos, mas como o foco se afastou
do apoio às mulheres para agendas focadas nos homens, a participação geral cresceu. As
mulheres são ativas em algumas organizações, embora geralmente em pequeno número, mas
muitas organizações não permitem mulheres como membros ou apenas lhes permitem acesso
limitado a atividades e treinamento (KIMMEL, 1996).

Sociólogos e psicólogos dos países nórdicos como os noruegueses Erik Grønseth e Per
Olav Tiller foram os pioneiros dos estudos masculinos como campo de pesquisa. O estudo
clássico de sobre a ausência do pai em famílias de marinheiros e seu impacto no
desenvolvimento da personalidade das crianças na década de 1950 é frequentemente
9
A primeira onda feminista reuniu os diversos grupos que se mobilizaram no final do século XIX e
início do século XX para obter o direito de voto para as mulheres. Também chamado de "movimento sufragista",
visava principalmente reformar as instituições para tornar as mulheres iguais aos homens em direitos.
A segunda onda surge nos anos 1960–1970. Embora muitos grupos com ideias às vezes muito
diferentes tenham surgido durante esse período, a segunda onda é frequentemente associada ao feminismo
radical. As mulheres então fizeram campanha contra a violência e pela livre escolha da contracepção e do aborto.
Esse feminismo também denuncia o patriarcado, um sistema de dominação que legitima lugares de poder com
base no gênero.
A reflexão resultante desses grupos permitirá o nascimento da terceira onda dos anos 1980. Isso põe em
questão a homogeneidade do feminismo como um todo único em relação a todas as mulheres que, por definição,
seriam brancas, heterossexuais e ―bem educadas‖. Várias teorias incorporam as diferenças vividas por mulheres
pobres, mulheres não brancas, lésbicas, etc. A noção de poder já não é concebida de forma hierárquica e binária,
mas sim circular, e as categorias de género - homem-mulher - são reconsideradas e permitem a emergência de
teorias queer. O sexo como elemento positivo também é uma característica dessa terceira onda.
32

considerado o ponto de partida dos estudos sobre homens nos países nórdicos. Nos países
anglófonos, os estudos dos homens foram formados, em grande parte em resposta a um
movimento emergente dos direitos dos homens e, como tal, tem sido ensinado em ambientes
acadêmicos apenas desde a década de 1970 (ibidem, 1996).

Em contraste com a disciplina da psicologia masculina, os programas e cursos de


estudos masculinos geralmente incluem discussões contemporâneas sobre os direitos dos
homens, teoria feminista, teoria queer, matriarcado, patriarcado e, mais geralmente, o que os
proponentes descrevem como as influências sociais, históricas e culturais sobre o construções
dos homens. Eles frequentemente discutem as questões em torno do privilégio masculino,
visto como evoluindo para formas mais sutis e encobertas, em vez de desaparecer na
contemporaneidade.

É importante distinguir a abordagem específica muitas vezes definida como ―Estudos


Críticos sobre os Homens‖. Essa abordagem foi amplamente desenvolvida nos países
anglófonos a partir do início da década de 1980 - especialmente no Reino Unido - centrada
então no trabalho de Jeff Hearn, David Morgan e colegas. A influência da abordagem se
espalhou globalmente desde então. É inspirado principalmente por uma variedade de
perspectivas feministas (incluindo socialista e radical) e enfatiza a necessidade de pesquisa e
prática para desafiar explicitamente o sexismo de homens e meninos. Embora explore uma
gama muito ampla de práticas masculinas, tende a se concentrar especialmente em questões
relacionadas à sexualidade e/ou violências masculinas. Embora originalmente enraizado na
sociologia, desde então se envolveu com uma ampla gama de outras disciplinas, incluindo
política social, serviço social, estudos culturais, estudos de gênero, educação e direito. Nos
anos mais recentes, a pesquisa dos Estudos Críticos sobre os Homens fez uso particular de
perspectivas comparativas e/ou transnacionais. Como os estudos sobre homens e os estudos
sobre masculinidade de forma mais geral, os estudos críticos sobre os homens foram
criticados por sua falha em se concentrar adequadamente na questão das relações dos homens
com as crianças como um local-chave para o desenvolvimento da masculinidade opressiva
dos homens (KIMMEL, HEARN e CONNELL, 2005).

Os primeiros pesquisadores das masculinidades estudaram a construção social da


masculinidade, com destaque para a socióloga australiana Raewyn Connell. Connell
introduziu o conceito de masculinidade hegemônica, descrevendo-a como uma prática que
legitima a posição dominante do homem na sociedade e justifica a subordinação da população
33

comum masculina e feminina e outras formas marginalizadas de ser homem. Sendo difundida
em todas as sociedades, resulta em múltiplas masculinidades, especificamente uma hierarquia
de masculinidades, na qual alguns homens não experimentam o mesmo privilégio que outros
homens por causa de suas outras identidades marginalizadas. O conceito atraiu várias críticas,
o que levou Connell a reformular o conceito. Esta versão mais recente analisa o poder e as
dinâmicas sociais encontradas na hierarquia de gênero, a geografia da masculinidade nos
níveis local, regional e global, a incorporação social e a dinâmica da masculinidade, incluindo
o complexo entrelaçamento de múltiplas masculinidades. Connell enfatiza que a
masculinidade está em constante evolução, o que significa que o currículo e a pesquisa desse
campo sempre mudarão (ibidem, 2005).

Michael Kimmel, sociólogo e feminista americano especializado em estudos de


gênero, escreveu sobre a masculinidade nos Estados Unidos. Segundo Kimmel, a
masculinidade começou a ser definida e reafirmada por volta do século XIX. Envolvia provar
o próprio valor masculino, bem como sustentar a família, e, portanto, também afetava a arena
política, o local de trabalho, a família e a sociedade em geral. Kimmel postula que a absorção
da masculinidade acontece com os meninos em casa, na escola e ao observar os adultos
interagirem. Kimmel descreveu o termo ―masculinidade tóxica‖ como as normas culturais
promulgadas por homens que são prejudiciais aos homens e à sociedade, porque incentiva
comportamentos negativos relacionados à dominação, agressão e sexualidade (KIMMEL,
1996).

O sociólogo e sexólogo estadunidense Eric Anderson, especializado em gênero e


sexualidades de homens adolescentes, pesquisou e escreveu sobre a relação entre
masculinidade hegemônica e homofobia. De acordo com a pesquisa empírica de Anderson, a
diminuição da homofobia pode levar a uma masculinidade mais inclusiva porque a
masculinidade hegemônica limitou o comportamento dos homens com medo de serem
percebidos como gays (ANDERSON, 2009; ANDERSON, McCORMACK, 2016).

As expectativas culturais de meninos e homens de serem duros, estóicos, agressivos e


sem emoção são prejudiciais ao desenvolvimento dos homens porque não lhes permite
experimentar a verdadeira gama de emoções humanas. Estudiosos da masculinidade
analisaram aspectos da saúde e dos homens, como morte prematura e doença cardíaca
coronária. O aumento dos níveis de raiva e depressão e pode até resultar em uma expectativa
de vida reduzida. A pesquisa sobre a violência tem sido um dos principais focos dos estudos
34

sobre homens. Estudar a relação entre masculinidade e vergonha sexual masculina revelou
que o maior endosso de valores tradicionalmente masculinos estava associado ao aumento da
vergonha sexual e que, por sua vez, é preditivo de depressão. Os estudos sobre homens
também estão particularmente preocupados com os arranjos do mundo do trabalho e do
cuidado parental, contribuindo para que as políticas estejam cada vez mais visando a função
paterna como uma ferramenta para mudar as relações de gênero (ibidem, 2016).

Harry Brod (1994), sociólogo estadunidense, explica que a importância dos estudos
sobre os homens se deve ao fato de que antes da constituição do campo, as feministas estavam
olhando para a generalização dos homens, ignorando os sujeitos empíricos e as questões
interseccionais. Para ele, a ênfase dos estudo sobre masculinidades se justifica no fato deste
campo voltar-se para ―experiências masculinas como aspectos sociais específicos e variados‖.
Connell (2013) acrescenta que ter um campo para estudos de masculinidade pode ajudar a
"identificar o interesse dos homens pela mudança".

O movimento dos homens consistia em redes de homens conscientemente envolvidos


em atividades relacionadas à masculinidade e gênero. Surgiu no final dos anos 1960 e 1970
nas sociedades ocidentais, ao lado e muitas vezes em resposta ao movimento das mulheres e
ao feminismo. Embora tendo muitas das características dos grupos terapêuticos e de
autoajuda, os grupos de movimentos de homens têm cada vez mais visto o crescimento
pessoal e melhorias nas relações com outros homens como inúteis sem uma mudança
concomitante nas relações sociais e ideologias que apoiam ou marginalizam diferentes
maneiras de ser homens (ANDERSON, 2009; ANDERSON, McCORMACK, 2016).

Os ativistas do movimento masculino que são simpáticos aos pontos de vista


feministas têm se preocupado muito em desconstruir a masculinidade hegemônica. Tomando
uma sugestão das primeiras feministas que criticaram o papel tradicional do gênero feminino,
membros do movimento de libertação dos homens usaram a linguagem da teoria dos papéis
sociais10 para argumentar que o papel do gênero masculino era igualmente restritivo e
prejudicial aos homens. Alguns liberacionistas masculinos descontextualizaram as relações de
gênero e argumentaram que, como os papéis sexuais eram igualmente prejudiciais para
ambos, mulheres e homens eram igualmente oprimidos (ibidem, 2016). O sociólogo Michael
Messner (2000) escreve que, no final da década de 1970, a libertação dos homens havia

10
A teoria do papel social é uma teoria psicológica social que se refere às diferenças sexuais e
semelhanças no comportamento social . Seu princípio fundamental é que as diferenças e semelhanças surgem
principalmente da distribuição de homens e mulheres em papéis sociais dentro de sua sociedade.
35

desaparecido. As alas conservadoras e moderadas da libertação dos homens tornaram-se um


movimento antifeminista dos direitos dos homens, facilitado pela linguagem dos papéis
sexuais. A ala progressista da libertação dos homens abandonou a linguagem do papel sexual
e formou um movimento profeminista baseado em uma linguagem de relações de gênero e
poder. O movimento dos homens pró-feministas foi influenciado pelo feminismo da segunda
onda, o movimento ―Black Power‖, o movimento estudantil, o movimento anti-guerra e os
movimentos sociais LGBTQIAP+ dos anos 1960 e 1970. É a vertente do movimento
masculino que geralmente abraça os objetivos igualitários do feminismo.

O movimento feminista refere-se a uma série de campanhas políticas por reformas em


questões como direitos reprodutivos, violência doméstica, licença maternidade, igualdade
salarial, sufrágio feminino, assédio sexual e violência sexual. O termo é mais frequentemente
usado para falar sobre homens que apoiam o feminismo e seus esforços para promover a
igualdade política, econômica, cultural, pessoal e social das mulheres com os homens. Muitos
homens pró-feministas acreditam que a masculinidade é sobredeterminada pela homofobia e
que o modelo dominante de masculinidade é a heterossexualidade. Homens que apoiam
ativamente o feminismo tentam trazer justiça e igualdade de gênero e sua simpatia pelo
movimento gira em torno de uma simples aceitação de que homens e mulheres devem ser
iguais. As mulheres devem ter acesso a empregos e áreas da vida pública, assim como os
homens. O problema é que existem dois sistemas gerais, um fundamentalmente baseado em
hierarquia e privilégio e outro sistema sobre o qual os homens pró-feministas discordam,
argumentando que eles devem mudar o conteúdo dos modelos de masculinidade ao invés de
se livrar completamente das noções de masculinidade e feminilidade. O medo de ser visto
como gay impede que meninos e homens questionem e, em última análise, abandonem a
masculinidade tradicional. Muitos homens pró-feministas acreditam que os homens e a
masculinidade não mudarão muito até que a homofobia seja radicalmente minada. Os homens
têm um papel vital a desempenhar na transformação das relações de gênero iniciadas pelo
feminismo e pelos movimentos de mulheres. "Estudos de representações de masculinidade na
mídia muitas vezes destacam construções que centram a masculinidade em torno de noções de
violência, controle, agressão." (KIMMEL, HEARN e CONNELL, 2005).

Os homens pró-feministas questionaram o ideal cultural da masculinidade tradicional e


frequentemente argumentam que as expectativas e normas sociais forçaram os homens a
papéis de gênero rígidos, limitaram a capacidade dos homens de se expressarem e
restringiram suas escolhas a comportamentos considerados socialmente aceitáveis para os
36

homens. Campanhas feministas como #MeToo levaram um grande número de homens a


refletir sobre suas próprias relações sexuais e sociais com as mulheres, embora também haja
resistência e reação. As críticas de algumas campanhas de homens pró-feministas são de que
eles fazem muito pouco, simplesmente assinando um formulário ou ―subindo‖ hashtags em
vez de tomar medidas reais, como abordar seu próprio comportamento e criticar diretamente o
comportamento de seus pares. Embora o feminismo tenha ganhado mais força recentemente
na sociedade, ele permitiu que mais homens adotassem um apoio meramente performático ao
feminismo. (ibidem, 2005)

Nas décadas mais recentes, após o início do movimento de homens pró-feministas nos
Estados Unidos, iniciativas semelhantes e interligadas foram organizadas internacionalmente.
Em 2004, vários líderes envolvidos no envolvimento de homens e meninos na justiça de
gênero em todo o mundo se uniram para formar a organização global ―MenEngage‖11. Desde
então, a MenEngage organizou duas conferências internacionais: uma no Rio de Janeiro em
2009 e outra em Nova Delhi em 2014.

Uma reflexão se faz necessária se pretendemos dar conta do objetivo deste trabalho,
qual seja, interrogar-nos sobre a possibilidade da revisão do estatuto ontológico da
masculinidade a partir de uma percepção autorreferenciada do esgotamento dessa forma
tradicional de hegemonia masculina. Ocorre que, de modo geral, homens seriam os principais
beneficiários do patriarcado – como poderiam então estar dispostos a lutar pela igualdade de
gênero? Pioneira na pesquisa científica sobre masculinidades, a australiana Raewyn
Connell, vem defendendo a existência de masculinidades plurais desde a década de
1980, chamando a atenção para as maneiras como a construção, a manutenção e a repressão
de masculinidades específicas são mediadas por relações de poder. Evitando leituras
essencialistas, que validam os corpos, pensamentos e comportamentos masculinos pela
suposta natureza de seu sexo biológico, Connell argumenta que ―a masculinidade não cai dos
céus. Ela é construída por práticas masculinizantes, que estão sujeitas a provocar resistência,
que podem dar errado, e que são sempre incertas quanto a seu resultado".

Desde o final do século XIX, movimentos feministas e LGBTQIA+ denunciam as


assimetrias das relações de gênero e a opressão que o patriarcado traz para mulheres e homens

11
A MenEngage Alliance é uma rede global e um espaço para os membros se unirem em solidariedade
com os mais visados pelas injustiças de gênero e sistemas patriarcais para desmantelar coletivamente as barreiras
estruturais aos direitos das mulheres e à igualdade de gênero. Fonte: https://menengage.org/about/, acessado em
20/11/2022.
37

homossexuais nas esferas doméstica, profissional, educacional, política, emocional e sexual e


evidenciam os privilégios concedidos aos homens tradicionais: branco, católico,
heterossexual, europeu, jovem, de classe média ou classe alta. O patriarcado é um termo
originalmente usado na antropologia para se referir a sistemas de poder nos quais o domínio
masculino e a subjugação feminina são mantidos em vários campos e situações. (GUASCH,
2006. Connell e Pierce, 2015. Connel, 1990. 1995; 1997; 2003; 2016).

Estudos pioneiros sobre o tema (BADINTER, 1993; CONNELL, 1990; 1995; 1997;
NOLASCO, 1995; KIMMELL, 1998) e recentes (MONTEIRO, 2000; PARRINI, 2001;
CORTÉS, 2001; GARBOGGINI, 2005; GUASCH, 2006; CASTAÑEDA, 2006;
HERNÑNDEZ et AL., 2007; JÚNIOR, 2010; GATTI, 2011; PERRY, 2018; NUNES E
MARTINS, 2017) concordaram que a pesquisa sobre masculinidades só foi possível por meio
de iniciativas do movimento feminista e LGBTQIAP+ e que por meio de sua penetração nas
instituições acadêmicas e movimentos sociais, possibilitaram que a categoria homem - gênero
até então naturalizado e assumido como referência para as críticas endereçadas às mulheres -
começasse a ser problematizado como objeto de investigação e análise, tal qual os conceitos
de patriarcado e dominação masculina. Como observa Badinter (1993), esse grupamento de
autoras e autores concorda que, por ação dos movimentos feministas e LGBTQIAP+, ―hoje,
para a maioria de nós, o homem já não é mais o Homem". Connell (1995) analisa que o
movimento pelos direitos dos homossexuais da década de 1970 ajudou a refutar os
estereótipos sobre a representação heterossexual e homossexual. Louro (2016) aponta que
jornais, o mercado publicitário e o meio artístico em geral, tornaram visível a identidade
homossexual no Brasil na mesma década. Além disso, a participação do movimento de
libertação homossexual e de intelectuais exilados no exterior também contribuíram para que o
discurso feminista e as preocupações políticas manifestadas em outros países no debate de
gênero tenham obtido um impacto duradouro no Brasil. Esses e outros aspectos que
demonstram o interesse pelo modo como os homens agem, pensam e são representados são
muitas vezes (re)formulados no campo dos estudos de masculinidade, um campo de
investigação que ascendeu no final do século XX e que, inicialmente, como explica Guerrero
(2012), foi classificado como antissexista e profeminista. Esses termos sinalizam o vínculo e
o apoio que os estudos das masculinidades conferem aos movimentos feministas e LGBTQIA

Para Connell (2016) o interesse dos homens em defender a liberdade de gênero pode
ser explicado, antes de tudo, por aquilo que a autora se refere como ―interesses relacionais‖,
ou seja, as preocupações que os homens externam em relação às mulheres com quem se
38

relacionam - como esposas, mães, funcionárias, colegas de trabalho, filhas, amigas, patroas,
etc. Em segundo lugar, porque homens também buscam superar os efeitos deletérios que o
dispositivo de gênero exerce sobre eles, denominados pela autora como ―toxidades da
masculinidade‖. Por fim, Connel atribui o interesse dos homens na luta pela liberdade de
gênero em razão do eventual compromisso com a paz e com a justiça social.

A masculinidade hegemônica evidentemente não constitui uma identidade


estigmatizada e tampouco oprimida. Em verdade, a masculinidade hegemônica desfruta de
vantagens que lhes são concedidas socialmente ou, como aponta Connell (1995; 1997; 2003;
2016), de um ―dividendo patriarcal‖ que pode ser percebido, por exemplo, em ―gaps‖
salariais, vantagens trabalhistas, maior representatividade econômica e política. Mas e os
sujeito masculinos que estão à margem do que constitui a masculinidade hegemônica e são
reprimidos por essa hegemonia? Até que ponto eles estão preocupados com o patriarcado? Por
que é pertinente questionar o papel de gênero de homens e mulheres? Essas questões
levantam o problema de como os privilégios e a violência proporcionados pelos fundamentos
patriarcais e machistas se manifestam de formas distintas, causando opressão até mesmo entre
os homens. É claro que nas sociedades patriarcais, as relações de gênero tendem a atribuir
privilégios e poderes aos homens e desvantagens às mulheres. No entanto, mesmo dentro do
mesmo gênero, o equilíbrio de poder não é tão simples, e a distribuição e recepção de
privilégios e desvantagens ocorre de forma desigual. Neste aspecto, esclarece Connel:

[...] se entendermos o gênero como uma construção social relacional em que


os sujeitos femininos e masculinos são produzidos uns em relação aos outros,
podemos assim compreender que o homem, mesmo ainda estando no domínio das
relações de poder estabelecidas em nossa sociedade, também é submetido a
constrangimentos sociais que impõem padrões de comportamentos. Esses
comportamentos afastam os homens de um maior contato consigo mesmo e com as
pessoas de suas relações. (CONNEL, 2013, p.314)

Diante disso, notamos que, embora as desigualdades de gênero privilegiem os homens


como um grupo separado das mulheres, elas não atingem os homens de maneira uniforme, e
até funcionam como mecanismos de opressão e agressão contra segmentos específicos não
hegemônicos da própria masculinidade: homens negros, transexuais, efeminados,
homossexuais, homens sensíveis, homens mais velhos, fracos ou debilitados, homens pobres,
etc. Assim, consideramos que os corpos, pensamentos e comportamentos dos homens também
atravessam e são atravessados pelo debate de gênero.
39

Para Júnior (2010), se os estudos de gênero afirmam a relação das definições e


modelos de gênero, então as mensagens e práticas feministas não devem se concentrar apenas
em um lado da relação, mas nos dois agentes das relações de gênero. Assumir os homens
como ―inimigos que devem ser combatidos ou vencidos‖ talvez sirva apenas para reforçar
essa visão da presença dos homens em nossa cultura. É importante registrar que outros grupos
de homens na década de 1980 também se opuseram às mudanças decorrentes da movimentos
feministas e LGBTQIAP+, apesar do surgimento de intelectuais interessados em incluir, por
exemplo, o Movimento Mitopoético12 (ou ―perspectiva espiritual‖), que valoriza a adoção de
arquétipos como uma estratégia para levar os homens ao lugar de uma masculinidade
―autêntica‖. Tais movimentos criticaram a discriminação dos homens em comparação com as
mulheres em processos judiciais e buscavam recuperar privilégios que haviam sido perdidos
diante do progresso feminista, como explicaram Connell (1995), Guerrero (2012) e Barreto
Januário (2016) – um embrião dos movimentos atualmente conhecidos como MGTOW.

Ao contrário desses grupos, os estudos de masculinidade não defendem que o


patriarcado retome ou mantenha os privilégios conferidos aos homens (em relação às
mulheres) e especialmente aos homens tradicionais (em relação a outros homens). Ao
contrário, reconhecem as desigualdades e a violência de gênero que o patriarcado provoca e se
propõem a desmantelá-las, ou ao menos reduzi-las. Apesar de sua brevidade, esta
apresentação histórica sugere que os estudos das masculinidades não representam uma área
homogênea, muito menos desprovida de controvérsia. No contexto e interesse atuais,
reconhecemos as contribuições da pesquisa feminista e LGBTQIAP+ e concordamos com
aqueles que buscam questionar o poder das relações de gênero que endossam certos sujeitos
masculinos e condenam outros. Nesse sentido, além de nossa percepção da masculinidade
como pluralidade, precisamos considerar quais masculinidades são aprovadas e censuradas e
de quais formas e por quais razões13.

12
Ver capítulos 2 e 3.
13
Não se pode falar em masculinidades plurais sem considerar as valiosas contribuições dos feminismos
interseccionais, que abrem o campo do debate de gênero para problematizações antes eclipsadas por um
universalismo conceitual legatário do pensamento colonial, ou seja: um feminismo que desconsiderava as
complexidades de classe, raça e orientação sexual em um contexto histórico marcado por processos de
invisibilização, segregação e dominação. O marco inicial desse debate é o pensamento da Filósofa estadunidense
Angela Davis, cujo feminismo profundamente anticapitalista denunciava os vícios coloniais, classistas e racistas
das ondas anteriores do movimento. Dentro do movimento negro é válido lembrar a contribuição do pensador
Martinicano Frantz Fanon, que na obra ―Pele Negra, Máscaras Brancas‖ denuncia os traumas associados ao
processo de subjetivação de uma identidade negra em uma cultura atravessada por ideais brancos, sublinhando a
atribuição de estereotipias relativas à hipersexualização do homem e da mulher negra, apontando para a
construção social da associação do homem negro ao predador sexual por excelência. Na continuidade do legado
40

1.5.1 Masculinidades Queer

Desde que entrou no idioma no século XVI, o termo queer em inglês significa
"estranho" ou "estranho", mas não teve uma conotação sexual até a virada do século XX,
quando começou a ser usado como um insulto contra homens gays ou efeminados. Durante a
década de 1980, o termo foi retomado pela comunidade gay e por acadêmicos com o objetivo
de reverter o estigma para desenvolver uma práxis de resistência contra o que chamavam de
"tirania do gênero", "heterossexualidade compulsória" e "o regime do sistema sexo/gênero‖.
Basicamente, a teoria queer começou a se definir por meio de um discurso de oposição ao
feminismo liberal norte-americano baseado nos escritos dos pensadores franceses Michel
Foucault, Jacques Lacan e Jacques Derrida. Um dos textos fundadores da teoria queer foi
publicado por Gayle Rubin nos Estados Unidos em 1981 em meio às ―sex wars‖ (―guerras
contra o sexo‖) entre facções feministas liberais, a favor do acesso ao discurso pornográfico e
sua produção e facções feministas radicais, contrárias a ele (LOURO, 2004).

O debate em torno do discurso pornográfico encontrava-se dividido em dois campos:


um para o qual a pornografia era fundamentalmente misógina, um sinal de violência contra a
mulher e, portanto, uma prática que deveria ser proibida. Para o outro campo, a pornografia
constituiria uma subversão das normas sexuais e, portanto, um lugar que poderia ser
reapropriado em nome das mulheres e das sexualidades minoritárias. Segundo esse campo, a
proibição da pornografia restauraria um tabu da sexualidade feminina e nos remeteria à
ideologia da mulher passiva e modesta do século XIX. Condenar a pornografia arriscaria
condenar totalmente a sexualidade. (PEREIRA, 2012).

Ao combinar e redefinir a luta pela libertação de gays e lésbicas e a luta das mulheres,
a teoria queer se baseia em uma crítica da norma e do normativo e, portanto, dos instrumentos
de regulação e regimes disciplinares que mantêm e garantem a continuação desta norma. De
acordo com Judith Butler e Gayle Rubin (2003), nossa sociedade funciona de acordo com a
lógica do sistema sexo/gênero onde o sexo anatômico (masculino/feminino) produz gênero

do feminismo interseccional, destacamos a contribuição de Patricia Hill Collins, que aborda os padrões
interligados de privilégio e marginalização ao longo das linhas de raça, classe, gênero e classe dentro das
instituições sociais bem como no nível da comunidade.
Cabe ainda uma menção ao movimento conhecido como “feminismo chicana” uma forma de teoria e
práxis sociopolítica que examina as interseções históricas, culturais, espirituais, educacionais e econômicas na
comunidade latina nos Estados Unidos, com destaque ao pensamento de Glória Anzaldúa. Ainda no âmbito do
pensamento feminista decolonial, há o trabalho de María Lugones, que reflete sobre o conceito do sistema
colonial/moderno de gênero e sobre a intersecção das categorias raça, gênero e colonialidade.
41

sexual (masculino/feminino) e desejo heterossexual. Este sistema é representado como sendo


não apenas normal, mas natural, e mantém no lugar os atributos hierárquicos que colocam o
masculino acima do feminino. O corpo sexuado torna-se, portanto, efeito de uma relação de
poder, pois é moldado e disciplinado por essa relação.

Toda a sociedade trabalha para garantir o sucesso do sistema: o casamento, a família,


os tabus contra a homossexualidade; no entanto, de acordo com Butler (ibidem) e sua teoria
da performatividade, o gênero não é inato e natural, mas sim um comportamento aprendido,
um efeito da cultura e não da natureza. Assim, é por meio da repetição e desempenho de
nossos papéis de gênero que aprendemos a ser sujeitos de gênero e heterossexuais.
Atualmente, na maioria dos países, a exclusão das sexualidades minoritárias
(homossexualidade, intersexualidade, transexualidade) implícitas no sistema sexo/gênero,
transforma a heterossexualidade em ‗norma absoluta e estabelece a necessidade de
comportamentos masculinos e femininos no âmbito social. A teoria queer também busca
mostrar que a subjugação da mulher está intimamente ligada à heterossexualização do desejo
(BUTLER, 2015).

É por meio de uma crítica principalmente foucaultiana das relações de poder que a
teoria queer busca implementar estratégias de resistência contra a normalização do gênero e
do desejo. O autor Jack Halberstam visa o status protegido da masculinidade masculina e
mostra que a masculinidade feminina ofereceu uma alternativa distinta a ela por mais de dois
séculos. Demonstrando como a masculinidade feminina não é uma imitação ruim de
virilidade, mas uma encenação viva e dramática de gêneros híbridos e minoritários,
Halberstam cataloga a diversidade de expressões de gênero entre mulheres masculinas, desde
práticas pré-lésbicas do século XIX até performances contemporâneas de drag king.
Por meio de leituras textuais detalhadas, bem como pesquisas empíricas, Halberstam revela
uma história oculta das masculinidades femininas enquanto defende uma compreensão mais
sutil das categorias de gênero que as incorporariam em vez de patologizá-las. Halberstam
explora questões de transexualidade entre ―transgêneros sapatões‖ — lésbicas que se passam
por homens — e transexuais de mulher para homem que podem achar o rótulo de ―lésbica‖
um refúgio temporário (HALBERSTAN, 2020).

Já Haraway baseia-se particularmente na ideia segundo a qual a realidade conhecida só


pode ser apreendida como uma construção social sistêmica. O conceito de ciborgue em Donna
Haraway se refere à ideia de que as pessoas são seres híbridos, formados pela combinação de
42

elementos humanos e tecnológicos. Segundo Haraway, o ciborgue é um ser que ultrapassa as


categorias tradicionais de gênero, raça e espécie e que é capaz de questionar e desafiar as
noções tradicionais de identidade e pertencimento. A ascensão do ciborgue e o aumento da
tecnologia pode concorrer ainda mais para a necessidade dos homens se adaptem a novas
formas de ser e de se relacionar com o mundo em virtude do ―embaralhamento‖ dos papéis de
gênero e da urgência em encontrar novas formas de expressarem sua masculinidade em um
mundo cada vez mais tecnológico. Por outro lado, cabe considerar que a tecnologia pode ser
usada para ampliar as possibilidades de gênero e para ajudar os indivíduos a se libertarem de
padrões tradicionais de masculinidade e feminilidade. Assim, o mundo não deve mais ser
analisado de forma essencialista, baseado na ―ideologia do determinismo, biológico‖ mas no
modelo construtivista tendo em conta a (re)produção de normas sociais por um sistema
hierárquico (HARAWAY, 1995).

Reivindicando uma abordagem que se estende aos trabalhos sobre biopolítica de


Michel Foucault, Haraway mostra claramente como a sociedade capitalista busca o controle
permanente dos indivíduos, pois cada época pensa um modelo de família como fundamento
da sua realidade social, assente num modelo patriarcal. O ciborgue não é mais uma simples
―criatura da realidade social‖, livremente articulada por esse sistema, mas um ser híbrido entre
materialidade e imaginação. Libertando-se de qualquer passado construído, o ciborgue
ultrapassa assim os mitos de origem. Ele não tem história, tornando esse indivíduo um ser
desnaturalizado, desmodernizado, independente. (HARAWAY, 2009).

Afastar-se dos discursos modernos parece, pois, obrigatório para a reconstituição das
interações sociais, até então controladas e (in)conscientemente limitadas pelo discurso
científico dominante e pela norma política que este impõe. Os dualismos e,
mais amplamente, o sistema binário que funda as práticas sociais já não são, portanto,
relevantes, mas, pelo contrário, parecem pertencer a um tempo passado. A apropriação do
corpo, do próprio corpo, é uma questão central para qualquer ciborgue. ―Meu corpo‖ é o
primeiro elemento engajado na pesquisa, tanto como lugar de investigação quanto como
suporte para a experiência. Um corpo que parece tão complexo de apreender, mesmo para
Haraway, entre corpo tecnológico, corpo pessoal e portanto político, corpo-limite ou corpo-
infinito. Para o ciborgue, o objetivo é conseguir uma "apropriação definitiva do corpo" e
assim sair da objetificação sexual dos dominantes, consequência da estrutura do sexo e do
gênero. E ao romper as fronteiras modernas (corpo x mente), pela apropriação do corpo, é de
43

fato ao mesmo tempo a apropriação da mente que está em jogo e, portanto, a vontade de
conscientização e a luta pela livre escolha de consentir (ou não) (ibidem).

No mesmo terreno da crítica ao binarismo situa-se Paul B. Preciado, nascida Béatriz


Preciado em 1970 na Espanha ainda franquista, formado na prestigiada Universidade
Americana de Princetown. Filósofo, pesquisador associado da Universidade de Paris VIII, é
hoje uma das vozes reconhecidas do movimento feminista queer em todo o mundo. Mas suas
reflexões vão muito além da simples questão de gênero. Afirmando-se durante muito tempo
como lésbica, Béatriz Preciado foi companheira de Virginie Despentes antes de iniciar um
longo processo do que hoje chama de libertação. Cavando um longo túnel, ele abriu caminho
para a liberdade e a afirmação de sua transexualidade, injetando-se testosterona para sair da
"gaiola política" em que a sociedade heteropatriarcal o havia trancado (PRECIADO, 2017).

Paul B. Preciado afirma ter feito a escolha consciente de fazer de sua vida uma lenda
literária, um espetáculo biopolítico, ao invés de deixar que a psiquiatria, a farmacologia ou
mesmo a medicina construíssem uma representação dele como homossexual ou transexual. E
é justamente essa posição que lhe rendeu o desprezo de grande parte do mundo acadêmico.
Tendo estudado durante toda a sua vida os "diferentes tipos de gaiolas sexuais e de gênero"
em que os humanos se encerram, ele denuncia a sociedade atual baseada em princípios
(oposição mulher/homem, preto/branco, etc.) forjados e imaginados há décadas. Ele afirma
que a binariedade em que se baseia os sistema tradicional de gênero não é mais relevante e
que é hora de questioná-la. (ibidem).

Nessa abordagem, ele aponta quatro elementos fundadores dessa mudança de


paradigma: o advento da bomba atômica que constitui o surgimento, para o ser humano, da
possibilidade de destruir toda a vida no planeta; a invenção do conceito de gênero quando este
entende que grande parte dos recém-nascidos não corresponde ao sistema binário; a invenção
da pílula anticoncepcional como sistema de controle e regulação da sexualidade (segundo
Preciado, a pílula anticoncepcional marca a entrada da indústria farmacológica nesse sistema,
que foi introduzida com o objetivo de impedir a reprodução de raças não brancas segundo ao
pensamento racista da época, sendo, portanto, originalmente, uma ferramenta de eugenia e
controle racial); e por fim a pornografia. Esses quatro eventos constituem para Paul B.
Preciado os marcos dessa mudança social que o mundo da psicanálise é incapaz de enfrentar
hoje (PRECIADO, 2011).
44

O que denuncio é a fidelidade da psicanálise, desenvolvida durante o século


XX, à epistemologia da diferença sexual e à razão colonial dominante no Ocidente ‖,
afirma em seu ensaio. Ele compara, até assimila, o processo de binarização dos corpos
ao das fronteiras nacionais e assim qualifica a transição de gênero como um processo
de descolonização do corpo, um dos objetivos do qual, menos pessoal, é, portanto,
para ele a desconstrução do patriarcado heterocolonial. (PRECIADO, 2017, p.112).

Entusiasmado com as atuais mutações da diferença sexual, o filósofo se posiciona


como ―denunciante da violência epistemológica da diferença sexual e como pesquisador de
um novo paradigma‖. Segundo ele, isso só pode ser feito por meio de uma mutação
revolucionária da psicanálise e uma superação dos pressupostos patriarcais-coloniais.

1.6 Mapeamento da produção acadêmica sobre o tema “masculinidades”

Em levantamento realizado em maio de 2022 na plataforma Scielo a partir da palavra-


chave ―masculinidades‖, foram identificadas 176 ocorrências no total dentro do arco temporal
compreendido entre os anos de 1998 e 2022, distribuídas por 44 periódicos. De partida, o
levantamento já aponta para um aspecto fundamental das pesquisas em masculinidades e dos
próprios movimentos masculinos e que será mais detidamente abordado ao longo deste
trabalho: sua subtdertminação ao campo de estudos feministas e pelo próprio movimento
feminista, como indicam as 34 ocorrências de publicações na revista ―Estudos Feministas‖, da
UFSC, que conta com 15 publicações a mais em relação ao periódico imediatamente abaixo
na tabela de ocorrências do termo de pesquisa, como vemos a seguir:

Revista Estudos Feministas: 34 ocorrências.

Ciência & Saúde Coletiva: 19 ocorrências.

Cadernos Pagu: quinze ocorrências.

Sexualidad, Salud y Sociedad (Rio de Janeiro): doze ocorrências.

Saúde e Sociedade: onze ocorrências.

Physis: Revista de Saúde Coletiva: oito ocorrências.

Psicologia & Sociedade: seis ocorrências.


45

Cadernos de Pesquisa; Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea; Psicologia:


Ciência e Profissão; Revista Brasileira de Enfermagem; quatro ocorrências.

Cadernos de Saúde Pública; Galáxia (São Paulo); História (São Paulo); Horizontes
Antropológicos; Interface - Comunicação, Saúde, Educação; Revista Brasileira de Ciências do
Esporte; Revista Brasileira de Educação; Revista Latino-Americana de Enfermagem; Revista
de Administração de Empresas: três ocorrências.

Acta Paulista de Enfermagem; Educar em Revista; Fractal: Revista de Psicologia;


Trends in Psychology: duas ocorrências.

BBR. Brazilian Business Review; Cadernos EBAPE.BR; Contexto Internacional;


Educação e Pesquisa; Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências (Belo Horizonte); Estudos
de Psicologia (Campinas); Intercom: Revista Brasileira de Ciências da Comunicação;
Movimento; Pro-Posições; Psicologia USP; Religião & Sociedade; Revista Brasileira de
Ciências Sociais; Revista Brasileira de Educação Física e Esporte; Revista Brasileira de
Psicodrama; Revista Katálysis; Sociedade e Estado; Texto & Contexto – Enfermagem;
Trabalho, Educação e Saúde; Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica: uma ocorrência

Por área temática, a distribuição se deu da seguinte forma: Ciências Humanas: 125
ocorrências; Ciências da Saúde: 72 ocorrências; Ciências Sociais Aplicadas: onze ocorrências;
Lingüística, Letras e Artes: cinco ocorrências. No gráfico abaixo, é apresentada a série
histórica das públicações, iniciada no ano de 1998. Cumpre considerar que é a partir da
segunda década do século XXI, graças à revolução comunicacional decorrente do advento das
grandes redes sociais que o feminismo ciberativista incluiu de forma definitiva o debate de
gênero na ordem do dia, como podemos observar:

Pesquisas no campo das masculinidades:


Publicações por ano em períodicos indexados
25
20
15
10 Publicações
5
0
1998 2000 2002 2004 2006 2008 2010 2012 2014 2016 2018 2020 2022

Gráfico 1
46

1.7 O Método Netnográfico

A natureza da netnografia é a de ―um conjunto específico de dados relacionando


coleta, análise, práticas de pesquisa ética e representacional‖, onde uma quantidade
significativa dos dados são coletados por meio de uma postura de pesquisa observacional-
participante (KOZINETS, 2015). Para Caliandro trata-se de uma ―etnografia fundamentada
em métodos digitais em vez de um baseado na própria internet‖ (CALIANDRO, 2014). Em
outras palavras, a netnografia é uma pesquisa etnográfica, realizada sob as novas coordenadas
culturais e temporal-espaciais mediadas por comunicações contemporâneas em rede, como a
Internet e a variedade de dispositivos e formas que os humanos usam para acessá-la. Em
geral, e talvez o mais importante, a netnografia se associa muito estreitamente com a ideia de
que os seres humanos devem estudar outros seres humanos, tanto quanto possível, como
outros seres humanos, apesar das tentações da tecnologia e dos dados em massa de querer
reduzir e desumanizar nossa humanidade em números e outras formas descontextualizadas. A
netnografia se concentra em detalhes cada vez mais refinados na questão: Como exatamente a
tecnologia está mudando a experiência humana?

A observação participante é um método qualitativo derivado da pesquisa etnográfica


tradicional. O termo foi usado pela primeira vez pelo antropólogo social Malinowski na
década de 1920, e a abordagem foi posteriormente desenvolvida pela Escola de Chicago
liderada por Robert Park e Howard Becker (GIVEN, 2008; MACK, WOODSONG,
MACQUEEN, GUEST E NAMEY 2005). Essa abordagem permite que o pesquisador
(trabalhador de campo) use o contexto sociocultural do ambiente observado (conhecimento
socialmente adquirido e compartilhado disponível aos participantes ou membros desse
ambiente) para explicar os padrões observados de atividade humana. Em outras palavras,
consiste em colocar o pesquisador no grupo observado, fazer parte dele, comunicar-se com os
sujeitos por muito tempo, tentar compartilhar seu cotidiano para sentir o que significa estar
naquela situação (MARIETTO E SANCHES, 2013; DANA, 2008; QUEIROZ, VALL,
ALVES, E SOUZA E VIEIRA, 2007; VAN MAANEN, 1979).

A observação participante visa criar uma "descrição aproximada" das interações


sociais em ambientes naturais (e virtuais para o caso das netnografias). Ao mesmo tempo, os
informantes são encorajados a usar sua própria linguagem e conceitos cotidianos para
descrever o que está acontecendo em suas vidas, esperando no processo criar uma imagem
mais apropriada do contexto da investigação como um sistema social descrito através de uma
47

série de perspectivas participantes (MARIETTO e SANCHES, 2013). Outro objetivo é obter


uma compreensão profunda de um determinado tópico ou situação por meio dos significados
atribuídos a esse fenômeno por quem o vive e o vivencia. Em geral, a observação participante
ocorre em ambientes comunitários ou em locais considerados relevantes para as questões de
pesquisa. O método é diferente porque o pesquisador aborda os participantes do estudo em
seu ambiente. Assim, em geral, o pesquisador de observação participante tenta descobrir
como é a vida para os "nativos" enquanto inevitavelmente permanece um "estranho" (MACK
et al., 2005).

Portanto, os pesquisadores tentam entender esse fenômeno apenas observando ou


observando e participando em graus variados das atividades diárias da comunidade, grupo ou
contexto em estudo (GIVEN, 2008; MAC AN GHAILL, 1994). O método de observação
participante completa é uma estratégia de campo abrangente porque "combina
simultaneamente análise de documentos, entrevistas com participantes e informantes,
participação direta, observação e introspecção". Por exemplo, pesquisadores normalmente
combinam seus dados com notas de campo, observações de testemunhas, informações de
informantes, entrevistas informais e descrições de "nativos" ou informantes. O pesquisador
usa estratégias de coleta de dados múltiplos e sobrepostos para se envolver totalmente em
experimentar (sentir ou experimentar) o arranjo contextual (participação) enquanto observa e
conversa com outros participantes sobre o que está acontecendo (PATTON, 2002).

Miller e Horst enfatizam o papel da materialidade na antropologia digital,


argumentando que estudar o que significa ser humano também significa estudar como os seres
humanos se socializam ―dentro de um mundo material de artefatos culturais que incluem a
ordem, a agência e as relações entre as próprias coisas e não apenas suas relações com
pessoas" (2012). ―Temos, portanto, três formas de materialidade para enfrentar em qualquer
antropologia do digital: a materialidade da tecnologia e a própria infraestrutura digital, a
materialidade do próprio conteúdo digital, e a materialidade do digital como um contexto real
para os sentidos e corpos humanos e cada vez mais para e sobre a cultura e a sociedade
humanas‖ (KOZINETS 2015, p. 81).

A netnografia é, portanto, um método que facilita a validação dos dados pelos


membros participantes. De fato, o pesquisador pode entrar em contato com os membros da
comunidade virtual e apresentar-lhes os resultados da pesquisa netnográfica para coletar seus
comentários e demonstrar transparência. Este método usado em outros contextos (ARNOULD
48

& WALLENDORF, 1994; HIRSCHMAN, 1985; LINCOLN & GUBA, 1985) também se
aplica à netnografia. O feedback é importante porque permite que os membros matizem os
resultados da pesquisa e os alimentem com dados adicionais, o que melhora a compreensão do
tópico da pesquisa. Além disso, do ponto de vista ético, essa comunicação possibilita informar
os integrantes sobre o trabalho do pesquisador. Kozinets defendeu a abordagem participativa
que implica que o investigador declare a sua presença na comunidade, durante a fase de
entrada, sob o risco de ser rejeitado (KOZINETS, 2002; 2009). No entanto, esta abordagem
não tem sido adotada em vários estudos que defendem posturas puramente observatórias ou
passivas (BROWN, KOZINETS, & SHERRY JR, 2003; HAMILTON & HEWER, 2010;
MAULANA & ECKHARDT, 2007) – e como é o caso desta pesquisa. Os pesquisadores
justificaram sua abordagem puramente observatória pelo fato de que esse método lhes
permitia acessar dados sem o viés que acompanha a interação. A facilidade de uso da
ferramenta da Internet possibilita um diálogo entre os participantes e o netnógrafo, o que
enriquece o estudo e constitui uma característica única em comparação com outros métodos
qualitativos. Além disso, esta acessibilidade do investigador atesta uma abertura de espírito da
sua parte, que lhe permite estabelecer uma relação de confiança com os seus informantes e,
consequentemente, a possibilidade de uma troca contínua de informação (KOZINETS, 2002).

Mas para Langer e Beckman (2005), a intervenção do investigador representa uma


interferência que pode ter impacto na autenticidade dos dados e comprometer os resultados da
investigação, em particular para sujeitos sensíveis onde os indivíduos receiam participar em
qualquer forma de investigação. Em conformidade com esta leitura, decidimos adotar uma
abordagem de observação não-participante, pois nosso objetivo era preservar a autenticidade
de nosso campo para melhor entendê-lo (HEWER e BROWNLIE, 2007). Além disso, essa
postura se justifica pela natureza do espaço investigado, que é considerado público na medida
em que seu acesso pode ser feito livremente e as contas observadas pertencem a
influenciadores digitais (BEAVEN e LAWS, 2007).

1.8 A Plataforma Instagram

A indústria da comunicação passou por mudanças significativas impulsionadas pela


revolução tecnológica nos últimos anos. Isso se manifestou na configuração de um cenário
midiático altamente mutável e dinâmico (SANTA MARÍA e MEANA, 2017). Um dos pilares
dessa revolução, sem dúvida, foram as redes sociais, plataformas tecnológicas que
conseguiram tornar mais fácil para as pessoas produzirem e compartilharem seus próprios
49

conteúdos, promovendo a conectividade social com amigos, seguidores e até fãs (AZER,
HARINDRANATH e ZHENG, 2019 ).

O debate sobre até que ponto a socialização online afeta a forma como as pessoas
formam suas opiniões online está em andamento. Existem duas frentes acadêmicas que
fornecem evidências antitéticas sobre esses efeitos. Por um lado, há quem afirme que a
Internet facilita a exposição seletiva de conteúdos, levando os usuários a reforçarem suas
crenças pré-existentes. Aqui o conceito de câmara de eco (BRUGNOLI, CINELLI,
QUATTROCIOCCHI & SCALA, 2020), da psicologia dissonância cognitiva (OSHIKAWA,
1969), e da teoria da comunicação, exposição seletiva (CORREIA, JERONIMO e GRADIM,
2019). Por outro lado, há quem defenda que a Internet desafia as fronteiras sociais tradicionais
ao expor os usuários a opiniões. Com tudo isso, à medida que as redes sociais se
popularizaram, personagens icônicos chamados de influenciadores começaram a se destacar
dentro dessas plataformas digitais e com elas novas formas de interação social
(RODRÍGUEZ, GONZALO, PLAZA e SÁNCHEZ, 2019). Através de suas redes, eles
conseguiram amplificar o efeito da mensagem proveniente de grupos, coletivos e
organizações que buscam se expressar digitalmente, catalogando suas ações no que poderia
ser considerado uma forma de ciberativismo (BONAVITTA, HERNÁNDEZ e CAMACHO,
2015).

O Instagram é um aplicativo, rede social e serviço de compartilhamento de fotos e


vídeos, fundado e lançado em outubro de 2010 pelo americano Kevin Systrom e pelo
brasileiro Michel Mike Krieger. Desde 2012, o aplicativo pertence ao grupo americano Meta
(antigo Facebook Inc), está disponível em plataformas móveis como iOS, Android e Windows
Phone e também em computadores com funcionalidade reduzida. A idade mínima exigida
para usar o Instagram é de 13 anos. O Instagram possui mais de um bilhão de usuários em
todo o mundo, com 75% dos usuários fora dos Estados Unidos. O Instagram é bastante
popular entre os brasileiros que têm acesso à internet. Desde 2015, a presença de brasileiros
na plataforma é maior do que a média global - naquele ano, 55% dos usuários de internet
estavam presentes na rede social de fotografias, mais do que a média global de 32%.

Em 2016, esse número subiu para 75%, mais do que os 42% da média global do
mesmo ano. Segundo especialistas, um dos motivos para a grande presença de brasileiros em
mídias sociais e aplicativos como o Instagram é a combinação de um país bastante
―conectado‖ com uma crescente penetração de smartphones no Brasil. Curiosamente, não se
50

trata apenas de uma rede social utilizada pelos jovens - 57% dos usuários brasileiros de
internet na faixa dos 55 aos 65 anos também usam o Instagram. Com 400 milhões de contas
mensais ativas, o Instagram é considerado uma mídia social líder. Em comparação com outras
grandes redes como Facebook, Twitter, Pinterest ou Snapchat, o Instagram oferece vantagens
específicas quanto aos conteúdos audiovisuais, como por exemplo: permitir a publicação de
vídeos (de 1 minuto no máximo como padrão, mas até 60 minutos com IGTV) ou fotos, que
podem ser editadas diretamente na rede com cerca de dez filtros diferentes. Em relação às
facilidades de compartilhamento, o Instagram oferece recursos mais limitados em relação às
outras redes.

No Twitter, um usuário pode "retweetar" o conteúdo, ou seja, pode compartilhar uma


publicação de outro usuário com sua comunidade de assinantes. O mesmo princípio existe no
Facebook (botão ―compartilhar‖) ou no Pinterest, por exemplo (botão ―repin‖). No Instagram,
os usuários não podem compartilhar diretamente o conteúdo de outros usuários, diminuindo o
potencial de viralização de conteúdos nativamente produzidos. Os usuários podem, no
entanto, compartilhar conteúdo de outros membros no recurso ―stories‖ ou reutilizando
aplicativos de terceiros que permitem que a operação seja realizada. O compartilhamento de
conteúdo no Instagram é chamado de "repost". O Instagram é frequentemente apresentado
como a ―rede do engajamento‖ em comparação com as demais existentes. De fato, a rede
torna fácil ―curtir‖ as publicações dos membros clicando em um ícone de coração ou tocando
duas vezes na imagem em questão. Essa facilidade de interação e o imediatismo da relação
com a imagem permitem que os usuários se envolvam em grande proporção no conteúdo
publicado na rede. Vários estudos publicados nas contas de grandes marcas presentes na rede
mostraram que os níveis de engajamento foram, em média, superiores a 5% (para 100
inscritos, cinco curtidas ou comentários no conteúdo), ou seja, 80 vezes mais do que no
Facebook e 160 vezes mais do que no Twitter14.

O Instagram não permite que os membros publiquem links ativos (clicáveis) em seu
conteúdo. Se um membro adicionar um link de URL em um comentário ou uma descrição de
foto/vídeo, esse link aparecerá, mas não será clicável, será considerado como texto simples. O
Instagram atualmente permite um único link clicável que pode ser encontrado na seção ―bio‖
da conta do usuário. Desde 2018, o Instagram também permite a postagem de links clicáveis
nos ―stories‖ do Instagram de contas com mais de 10.000 assinantes. Além do link na

14
https://emplifi.io/resources/blog/social-media-benchmarks?utm_source=socialbakers.com, acessado
em 13/09/2022.
51

biografia e links em ―stories‖, a rede é focada em um universo próprio, ao contrário do


Twitter e do Facebook que permitem inserir links ativos para outros sites de qualquer
publicação.

Os novos formatos de publicidade introduzidos pelo Instagram permitem que os


anunciantes hoje ofereçam links para seus sites e plataformas da web. O site do Instagram
deve ser diferenciado de seu aplicativo móvel. Embora o site possa ser usado em qualquer
tipo de meio (desktop, tablet, smartphone), o aplicativo é baseado no princípio ―mobile-first‖.
Aplicativos como o Layout permitem que as imagens sejam formatadas para que possam ser
compartilhadas via Instagram e/ou Facebook. A rede social permite assim que surjam muitos
influenciadores. Chamados de "instagramers", eles são seguidos por vários milhares (até
milhões) de assinantes. Eles obtêm receita de parcerias com marcas (por meio de agências de
influenciadores em particular ou por meio de plataformas de monetização de postagens do
Instagram). Se o Instagram não publicar estatísticas precisas dos maiores influenciadores do
Instagram, é possível encontrar alguns rankings em sites que exploram a API15 do Instagram
para publicar determinados números.

Quando ao aspecto do impacto do uso das redes sociais na saúde mental de seus
usuários, um estudo de 2017 da Royal Society for Public Health (RSPH) indica que o
Instagram e o Snapchat podem levar à ansiedade entre jovens de 12 a 24 anos16. De acordo
com documentos redigidos enviados à Comissão de Valores Mobiliários dos Estados Unidos
e ao Congresso dos Estados Unidos pela advogada denunciante Frances Haugen em 2021, a
corporação Meta sabia que a mídia social Instagram poderia ser prejudicial ao bem-estar de
adolescentes17. De fato, de acordo com um estudo realizado internamente pela empresa, os
adolescentes pesquisados disseram ter tido pensamentos suicidas: 13% dos usuários
britânicos e 6% dos usuários americanos do Instagram revelaram que esses pensamentos
sombrios apareceram após o uso das mídias sociais. Ainda segundo o mesmo documento
partilhado internamente, um em cada cinco adolescentes diz, no contexto deste estudo, que o
Instagram prejudica a sua autoestima.

15
A expressão Application Programming Interface, ou, em português, Interface de Programação de
Aplicativos, originou o acrônimo API. APIs são ―tradutores‖ com a função de conectar sistemas, softwares e
aplicativos. Dessa forma, é possível entregar uma experiência de uso mais familiar para as pessoas. Fonte:
https://www.zenvia.com/blog/apis-entenda-o-que-sao-e-como-funcionam/. Consulta em 03/11/2022.
16
Disponível em https://www.rsph.org.uk/about-us/news/instagram-ranked-worst-for-young-people-s-
mental-health.html, acesso em 02/11/2022.
17
Matéria do ―The Wall Street Journal‖, disponível no link https://www.wsj.com/news/types/the-
facebook-files?mod=svg-breadcrumb, acessado e 03/11/2022.
52

A RSPH e o Young Health Movement (YHM) publicaram um novo relatório


#StatusOfMind, examinando os efeitos positivos e negativos das mídias sociais na saúde dos
jovens, incluindo uma tabela classificativa de plataformas de mídia social de acordo com seu
impacto na saúde mental dos jovens. O YouTube lidera a tabela como o mais positivo, com o
Instagram e o Snapchat aparecendo como os mais prejudiciais à saúde mental e ao bem-estar
dos jovens. No início de 2017 (treze de fevereiro a oito de maio), a RSPH/YHM realizou
uma pesquisa com quase 1.500 jovens (de catorze a 24 anos) de todo o Reino Unido. A
pesquisa pediu que eles pontuassem como cada uma das plataformas de mídia social que eles
usam impactam em catorze questões relacionadas à saúde e bem-estar que foram
identificadas por especialistas como as mais significativas. Segundo Shirley Cramer, CEO da
RSPH,

A mídia social tem sido descrita como mais viciante do que cigarros e álcool,
e agora está tão enraizada na vida dos jovens que não é mais possível ignorá-la quando
se fala sobre a vida dos jovens. problemas de saúde mental. Por meio de nosso
Movimento de Saúde Jovem, os jovens nos disseram que as mídias sociais tiveram um
impacto positivo e negativo em sua saúde mental. É interessante ver o ranking do
Instagram e do Snapchat como o pior para a saúde mental e bem-estar – ambas as
plataformas são muito focadas na imagem e parece que podem estar gerando
sentimentos de inadequação e ansiedade nos jovens. (CRAMER, 2017, online.
Tradução nossa).
Becky Inkster, pesquisadora honorária da Universidade de Cambridge, acredita que
para os jovens, usar mídias sociais e tecnologias digitais como uma ferramenta para ajudar na
saúde mental faz sentido por muitas razões. As mídias sociais fazem parte de suas vidas
diárias e, portanto, os cuidados podem ser prestados em uma abordagem autogerenciada e
integrada ao estilo de vida das pessoas. Ainda segundo Inkster,

A socialização atrás de uma tela também pode ser um isolamento exclusivo,


obscurecendo os desafios da saúde mental ainda mais do que o normal. À medida que
a primeira geração de usuários de mídia social se torna adulta, é importante
estabelecermos as bases agora para minimizar possíveis danos e moldar um futuro
digital saudável e próspero. (INKSTER, 2017, online. Tradução nossa).
Cabe apontar que tais riscos inerentes à universalização de mídias digitais que
consagram a imagem como ferramenta primordial de comunicação capturam a atenção e a
subjetividade de seus usuários de tal forma que a incidência de riscos como os apontados
nestes estudos concorre para corroborar a percepção de Marshal Macluhan acerca da
coincidência entre meio e debate, ou seja, os meios de comunicação são extensões do
53

homem: eles o estendem, o multiplicam, o aceleram18. A teoria do meio e debate de Marshall


McLuhan se refere à ideia de que o meio pelo qual uma mensagem é transmitida tem um
impacto significativo na forma como esse debate é percebido e compreendida pelo público.
Segundo McLuhan, cada meio de comunicação tem suas próprias características e
propriedades que afetam a forma como as pessoas processam e entendem as informações
transmitidas por ele. Quanto à emergência de redes sociais como o Instagram, é possível
argumentar que essas plataformas têm um impacto significativo na forma como as pessoas se
comunicam e compartilham informações. O Instagram, por exemplo, é um meio visual que
permite que as pessoas compartilhem imagens e vídeos curtos com seus seguidores.

Isso pode ter um impacto na forma como as pessoas percebem e compreendem as


mensagens transmitidas pelo Instagram, já que elas são transmitidas através de uma
plataforma visual em vez de uma plataforma de texto ou áudio. Além disso, o Instagram
também é uma plataforma altamente pública e amplamente acessível, o que significa que as
mensagens compartilhadas nele podem ter um alcance muito maior do que as mensagens
compartilhadas através de outros meios de comunicação. Passa a vigorar uma confusão entre
o real e o virtual a tal ponto que, imaginar atualmente a supressão destes meios é vislumbrar
um cenário de colapso das próprias redes intersubjetivas que dão suporte aos modos de ser
das pessoas contemporâneas no mundo, ou, conforme Baudrillard, é a falência da realidade
em um contexto de hiperrealidade pela via da universalização dos simulacros.

18
McLuhan deve em parte a ampliação radical de sua definição de meio a Giedion, que considerou que
qualquer objeto pode ser "estético", ou seja, ser estudado do ponto de vista de sua relação com o aparato, a
percepção humana. Levando esse ensinamento a sério, McLuhan considera como ―meio ‖ qualquer objeto,
artefato ou dispositivo que mantenha uma relação com o sensório humano , todos os artefatos técnicos que
estendem funções, faculdades ou órgãos sensoriais humanos. A roupa, a estrada ou a roda também
são mídias que têm ―efeitos‖ psicológicos e sociais muito importantes. Dessa forma, a análise da mídia teve o
efeito inesperado de recolocar o corpo no centro da análise de certos autores que se dizem de McLuhan,
considerando assim que "a última lição de Marshall é que o corpo é o meio, e que é o nosso principal patrimônio
(Coupland , 2009, p. 232).
54

CAPÍTULO 2: APORTES ANALÍTICOS

2.1 Sistemas de classificação (categorias de análise):

a) Macroesfera progressista:

Caracterizada pelos grupos cujo debate se inscreve no marco da desnaturalização dos


processos sociohistóricos conformadores da percepção tradicionalista em relação à temática
de gênero e sexualidades. O marcador ―progressista‖ é a classificação mais abrangente da
pesquisa, compreendendo toda a constelação de perfis cuja abordagem sobre masculinidades
tenha como premissa fundamental a necessidade de revisão ou mesmo de refundação do
conceito tradicional de masculinidade, abrindo o campo para a instituição de concepções
plurais sobre modos de vida e subjetivações do ser homem dentro das possibilidades da
cultura. Considera que o ―homem‖ é determinado sociohistoricamente, e portanto, um projeto
em aberto.

b) Generorreformistas:

Grupos organizados em torno da busca de caminhos de reformulação dos padrões de


masculinidade hegemônicos e cuja transmissão social se dá de forma vertical e não
problematizada. Também classificados com ―desconstrucionistas‖. Os generorreformistas
estão inseridos no campo progressista mas consideram ser possível, aceitável e mesmo
necessário empreender movimentos ativos que convoquem os homens para, a partir da
admissão de uma posição hegemônica privilegiada, iniciar a adesão a uma sequência
específica de preceitos explantados da militância feminista contemporânea para então ceder
passagem a um ―novo homem‖, afeito ao estabelecimento de relações de gênero mais
harmônicas e justas. Cabe frisar que os generorreformistas identificam naquilo que nomeiam
como ―masculinidade hegemônica‖ um receituário que é infenso não apenas à condição
feminina, mas igualmente prejudicial, insalubre do ponto de vista social, físico e psíquico
também para os próprios homens.

c) Generoabolicionistas:

Grupos influenciados pela agenda queer, pugnam pela superação das linhas clássicas
que dão contorno às identidades de gênero, por considerar o conceito um dispositivo político
de dominação social. Também classificados como ―não-binaristas‖.
55

d) Generodissidentes:

Grupos identificados com a agenda transgênero em gênero e transmasculinista em


particular. Considerados ―desertores da cisgenereidade‖.

e) Homomasculinidades19:

Grupos inseridos no registro da agenda homossexual e homoafetiva, identificados com


a cisgenereidade masculina.

f) Não-binaristas:

Subgrupo generoabolicionista.

g) Interseccionalistas:

Grupos pautados pelo debate interseccional, incorporando perspectivas originadas pelo


entrecruzamento de ao menos mais de uma perspectiva identitária.

h) Étnicorraciais:

Especificidade de grupo relacionada ao debate identitário circunscrito ao campo


étnicorracial, tendo no movimento de masculinidades negras a sua representação mais
expressiva20.

i) Transmasculinidades:

Subgrupo generodissidente.

j) Mitopoiéticos:

Grupos de cariz binarista e generorreformista pautado pela fração feminina do mesmo


movimento. Consideram o masculino e o feminino princípios naturais sagrados e
complementares. Os perfis ―mitopoiéticos‖ são aqueles que incorporam práticas e ritos de
medicina e filosofia orientais, originárias, africanas, xamânicas e têm em comum alguma

19
Termo cunhado por Jack Fritscher, professor universitário, historiador e ativista social estadunidense
conhecido internacionalmente por suas análises de ficção, erotismo e não-ficção da cultura popular e cultura
masculina gay e que objetiva demarcar a cisgenereidade masculina não heteronormativa como um pertencimento
identitário capaz de ampliar os limites da masculinidade hegemônica, atuando pela heterogeneização do campo.
Fonte: https://jackfritscher.com/PDF/Drummer/Cal%20Action%20Guide%20Homomasculinity%2003.pdf,
consultado em 30/10/2022.
20
Há o registro de grupos voltados para o debate de masculinidades amarelas, masculinidades
nordestinas, e masculinidades indígenas, porém optamos pela não inclusão no trabalho em razão do alcance
inferior a quatro mil seguidores, critério descrito na apresentação metodológica.
56

matriz Junguiana, por conta da abordagem mediante o trabalho com arquétipos e


representações do inconsciente coletivo. É caracterizado por apropriações culturais e
crossovers, considerando que a desconstrução dos padrões da masculinidade hegemônica não
pode prescindir de um mergulho profundo na complexa malha de traumas de infância e às
repetições por ele condicionadas ao longo da vida, incidindo em padrões ―tóxicos‖ de
comportamento. É a chamada ―cura da criança interior‖. É também conhecido como o
movimento do sagrado masculino, em contiguidade ao movimento análogo do ―sagrado
feminino‖21. O marco fundador desta tendência é a obra ―João de Ferro‖, de autoria de Robert
Bly e seu grupo precursor no Brasil tem o nome de ―Guerreiros do Coração‖.

l) Macroesfera masculinista:

É caracterizada pelos grupos cujo debate se inscreve no marco da naturalização dos


processos sociohistóricos conformadores da percepção hegemônica em relação à temática de
gênero e sexualidades. Exprimem uma projeção etnocêntrica e reducionista das relações
sociais e por efeito, invisibilizam suas cadeias de dominação. É considerado um movimento
de reação às agendas progressistas, em particular do feminismo. Apresenta um mapa bem
menos rizomático que o campo progressista, em verdade, é composto por apenas um tronco –
dado explicado pela recepção e circulação verticalizada de seus axiomas22.

m) Filomasculinistas:

Categoria inaugurada como subgrupo masculinista para estabelecer uma distinção


entre os masculinistas moderados, chamados aqui de filomasculinistas, dos masculinistas

21
Movimento feminista inspirado nas representações arquetípicas de práticas religiosas antigas, que
pregam um resgate do sagrado feminino a partir de símbolos alternativos à matriz judaico-cristã, exercem forte
apelo nos meios urbanos.
22
Segundo com a historiadora J. Allen, o termo ―masculinismo‖ surgiu 1914, quando deu uma série de
palestras públicas em Nova York intitulada "Estudos em Masculismo". O termo teria surgido para se referir à
oposição de homens misóginos aos direitos das mulheres e, mais amplamente, também para descrever ações
políticas e culturais coletivas dos homens em nome de seu próprio sexo, ou o que Allen chama de "política
sexual de discursos culturais androcêntricos‖ (ALLEN, 1990). Para Wood (2004), a teoria masculinista
desenvolveu-se ao lado do feminismo da terceira onda e da teoria queer e foi influenciada pelo questionamento
dessas teorias sobre os papéis tradicionais de gênero. Farrell, apud Elder (2005), argumenta que os homens
executam a maior parte dos trabalhos sujos, fisicamente exigentes e perigosos – a mesma leitura que realiza o
psicólogo e acadêmico canadense Jordan Petersen. Os masculinistas citam taxas mais altas de suicídio em
homens do que em mulheres e também expressam preocupação com a violência contra os homens sendo
ignorada ou minimizada em comparação com a violência contra as mulheres. Wood (2004) argumenta que o
apelo do movimento masculinista está em afirmar que a ideia igualdade de gênero é incompatível com os valores
cristãos. O masculinismo procura reafirmar o homem como o chefe da família, a quem as mulheres devem se
submeter-se voluntariamente. De maneira resumida, trata-se de um movimento antifeminista que busca
reafirmar visões essencialistas de gênero e promover uma agenda cristã conservadora.
57

radicais, pertencentes à chamada ―manosfera‖23, subcultura cibernética originada na ―deep


web‖ e de natureza abertamente misógina. São grupos predominantemente assentados em
discursos a favor da família tradicional e da preservação e resgate de preceitos associados a
uma masculinidade ―mítica‖ assentada principalmente em ideais de virilidade e
autossupressão da expressividade afetiva.

n) Redpillers:

Termo oriundo do filme Matrix, designando os indivíduos que ousam romper com os
padrões sociais hegemônicos, optando por uma separação quase radical entre os gêneros. Os
redpill são homens que decidem trilhar o próprio caminho, os MGTOW24, isto é, homens
decidem não priorizar relacionamentos amorosos com mulheres. Os redpillers possuem um
discurso frontalmente antifeminista e interpretam o comportamento das mulheres como
padrões idissincrásicos destinados ao controle e manipulação dos homens. É frequente nestes
grupos o ensino de técnicas específicas para desenvolver nos homens ferramentas capazes de
protegê-los dessa alegada má fé por parte das mulheres, indicando inclusive estratégias de
aproximação, corte e jogos emocionais. Redpillers acreditam que as feministas e o
politicamente correto obscurecem a realidade social, e que os homens ―são vítimas que devem
lutar para proteger sua existência‖. Aceitar a ideologia masculinista é equiparado a "tomar a
pílula vermelha", e aqueles que não o fazem são vistos como a "pílula azul" ou como tendo
"tomado a pílula azul. A filosofia da "pílula vermelha‖ se dedica ao suposto despertar dos
homens face à suposta realidade de que a sociedade é estruturalmente misândrica e controlada
por valores feministas. Segundo Donna Zuckerberg, (2018), "A pílula vermelha representa
uma nova fase na misoginia online. Seus membros não apenas zombam e menosprezam as
mulheres; eles também acreditam que em nossa sociedade os homens são oprimidos pelas
mulheres‖.

o) Subgrupos não categorizados:

o.1 Motivacionais:

23
Para efeitos de registro, não foram acompanhados páginas no Instagram com discurso abertamente
misógino, conceito que não coincide com o antifeminismo retórico.
24
MGTOW é a sigla para Men Going Their Own Way , que pode ser traduzido para o francês como:
―homens seguindo seu próprio caminho‖ . A expressão designa um fenômeno social de homens que desejam se
desvincular das relações homem-mulher, que consideram desfavoráveis, em particular o casamento e a
paternidade. Este é um processo individual, não um movimento ou partido. Não deve ser confundido com o
fenômeno dos incels , homens involuntariamente celibatários. Esse fenômeno é considerado por seus detratores
(principalmente feministas) como um movimento que faz parte da ―manosfera‖ e mais amplamente da esfera
masculinista , misógina, antifeminista e propagadora do ódio .
58

Composto por criadores de conteúdo pertencentes em sua maioria ao campo


tradicionalista, são caracterizados pela ausência de aportes conceituais ou promoção de
debate, primando apenas pela publicação de cards cuja iconografia alude à apologia da
virilidade hegemônica, consagrando a figura do personagem Thomas Shelby da série ―Peaky
Blinders‖25 como totem.

o.2) Prescricionistas:

Característica comum à maior parte das contas pesquisadas, característica


possivelmente atribuída à arquitetura informacional da própria rede. Consideramos
prescricionistas os perfis que apresentam seus conteúdos usualmente de forma explicativa,
didática, sem aprofundamento teórico e visando uma comunicação em boa medida
espontânea. Outra hipótese é que o manejo da apresentação dos conteúdos esteja em alguma
medida associada à lógica de mercado, dado o fato de boa parte destes perfis serem também
parcialmente plataformas comerciais. Os perfis prescricionistas são caracterizados pelo que se
convenciona chamar no jargão psicanalítico de ―discurso do mestre‖. A incidência de tal
modelo é predominante não apenas entre os perfis de orientação progressista mas também
entre os tradicionalistas, posto que há uma demanda democraticamente distribuída em todos
os espectros ideológicos por formação, orientação ou mesmo, amparo. A palavra ―amparo‖
não é casualmente escolhida, posto que assumindo a hipótese pós-moderna como arranjo
societário vigente, o colapso das metanarrativas e a dispersão browniana26 dos múltiplos
discursos e referenciais teóricos acelerados pela emergência das novas tecnologias de
informação e comunicação resultou por lançar a comunidade humana em um estado análogo
ao do impasse cético experimentado na pré-modernidade. Tais perfis usualmente funcionam
como plataformas para a venda de cursos, formações, palestras, seminários, mentorias ou
vivências terapêuticas e muitos se aproximam ou mesmo coincidem com o conceito que
define a prática de ―coaching‖27.

o.3) Aporéticos:

25
Personagem interpretado pelo ator irlandês Cillian Murphy , caracterizado com um gangster ―frio e
calculista‖. Violento, sombrio, politicamente incorreto, um anti-herói assumido. O mais antipático possível,
impulsivo, assassino, misógino, megalomaníaco, conforme descrição disponível na plataforma Netflix (acessado
em 30/12/2022).
26
Consequência da dissolução das metanarrativas, percebida por alguns a dissolução dos laços sociais,
fazendo passar das coletividades sociais para o estado de uma massa de átomos individuais lançados em absurdo
movimento análogo ao descrito pelo botânico Robert Brown, também podendo se referir ao modelo matemático
usado para descrever tais movimentos aleatórios, também conhecido como ―teoria da partícula‖.
27
Apropriação do termo ―coaching‖ utilizado na área esportiva como mentor, técnico, orientador, e
empregada em diversas áreas da vida cotidiana como relacionamentos amorosos, trabalho e finanças.
59

Característica atribuída aos perfis cuja abordagem é orientada mais para a


problematização dos temas que para a exposição de conceitos ou interpretações fechadas,
admitindo a natureza complexa da maior parte das questões da ordem das relações sociais e
políticas.

o.4) Parentalistas:

Voltados para a integração dos pais à vivência ativa da paternidade, percebendo no


processo de paternagem uma oportunidade singular para o amadurecimento pessoal e
crescimento emocional do homem. Optamos por não alocar este subgrupo no campo
progressista, em que pese a ocorrência de contas desta natureza ter se dado quase que
exclusivamente sob suas premissas, posto que a tomada de atitude dos homens face às suas
responsabilidade parentais é em grande parte uma conseqüência direta das pautas feministas.
Ocorre que, diferentemente dos grupos étnicorraciais e homomasculinistas, a rubrica ―pais‖,
não aponta para uma identidade rigorosamente minoritária, não havendo contradição clara
entre paternagem e tradicionalismo, considerando inclusive concessões deste segmento em
relação à prática de uma paternagem mais amorosa, como foi possível observar ao longo da
pesquisa.

o.5) Relacionistas:

Contas voltadas predominantemente para a apresentação de prescrições e reflexões


acerca da dinâmica das relações amorosas, especificamente binárias e
cisheteromononormativas. São observadas com considerável frequência tanto no campo
progressista quanto no campo tradicionalista.

2.2 Tabulação por categorias de análise, publicações e seguidores:

Campo progressista

Perfil Categoria Início Seguidores Publicações


Generorreformista
Paizinho Vírgula 08/14 208 mil 2500
Parentalista
Generorreformista
Etnicorracial (parcialmente)
João Marques.psi 07/14 187 mil 590
Relacionista
Prescricionista
Papo de Homem Generorreformista 03/11 170 mil 2671
Homem Paterno | Parentalista
01/18 165 mil 1220
Paternidade
Masculinidade Generorreformista
06/11 133 mil 535
Saudável Sacaralista
60

Perfil Categoria Início Seguidores Publicações


Prescricionista
Prazerele por Claudio Generorreformista
01/18 88,1 mil 451
Serva
Generorreformista
Pais Pretos Parentalista 03/19 50,7 mil 8641
Étnicorracial
Tadeu França | Parentalista
02/14 48,2 mil 746
Paternidade
Coletivo Ser Cabra
Generorreformista 09/12 28 mil 162
Macho
Homem sem Tabu Generorreformista 04/19 24,1 mil 645
Generorreformista
Memoh 07/18 20,7 mil 162
Prescricionista
Portal Mundo Homem Generorreformista 11/18 17 mil 667
Amor de Pai Parentalista
14,2 mil 610
Motivacionista
Masculinidade sem Generorreformista
04/12 13,3 mil 1778
tabu
Generorreformista
Brotherhood 06/18 12,3 mil 167
Generorreformista
Papo de Machona Interseccionalista 01/20 12 mil 823
Não-binarista
Guilherme Nascimento Generorreformista
10/13 10,6 mil 422
Valadares
4daddy Patrentalista 08/15 10,3 mil 1687
Parentalista
Pai e Filho - Oficial 12/18 9.205 718
Motivacionista
Generorreformista
Masculinidade Negra 11/18 8.3 286
Étnicorracial
Ressignificando Generorreformista
05/19 7.888 188
Masculinidades
Homossexualidade
Generorreformista
Saudável 06/19 6.964 828
Homomasculinista
Generorreformista
Agni Santoro 10/18 6.740 587
CONFIAR - Tear da
Generorreformista
Comunicação 06/17 6.1 221
Sacaralista
Consciente
Generorreformista
Almasculina 08/19 5.922 697
Aporético
projetofamiliastronger
Transsexualidades 05/17 5053 178
Gema-Gênero e Generorreformista
09/19 5.213 785
Masculinidades
Generorreformista
Leonardo M. B.
Transativista 4.822 1129
Peçanha
Interseccionalista
Parentalista
Dicionário do Pai 07/18 4.518 180
Motivacionista
Meninos Bons de Bola Transmasculinidade 03/17 4.393 628
Homens em Conexão Generorreformista 03/18 4.376 335
Generorreformista
ABRAFH 10/15 3.473 320
Seja Homem! Generorreformista 10/18 2.712 366
Sou Papai - Oficial Parentalista 01/20 2.645 368
61

Perfil Categoria Início Seguidores Publicações


Motivacionista
Generorreformista
Homens Que Sentem 2.590 204
Generorreformista
Promundo 06/19 2.359 330
Instituto Papai
Parentalista 05/15 2.356 477
Rede Brasil de Generorreformista
02/19 2.151 608
Masculinidades
Parentalista
PAPIcast 08/20 2.044 32
Motivacionista
PARA TODO Generorreformista
11/20 1.687 44
HOMEM
Lincoln Tavares de Generorreformista
08/11 1.679 1826
Melo
Generorreformista
MenEngage Alliance 1.383 195
Generorreformista
Margens UFSC 06/20 1.300 111
Masculinidades Generorreformista
01/21 1.079 11
Amarelas he/him Étnicorracial
Generorreformista
Horagá Diversidade 01/20 1.071 26
Generorreformista
O Homem da Casa 01/20 1.036 125
Generorreformista
E Agora, José 04/19 1.005 106
Espaço Somato | Generorreformista
296 53
Terapeuta Espiritualista
Projeto Olhar Ribeirão Generorreformista
140 11
Preto
Instituto Social de
Generorreformista
Cultura e 138 8
Masculinidades
Sagrado Masculino Espiritualista 69 8
Tabela1

Tradicionalistas (masculinistas)

Perfil Categoria Início Seguidores Publicações


Fúria e Tradição Motivacionista 12/13 291 mil 1136
Relacionalista
Prescricionista
Manual Red Pill Relacionalista 10/15 273 mil 589
Brasil Prescricionista
Redpiller
O Homem Racional Relacionalista 02/20 41,4 mil 669
Prescricionista

Covil Alpha Motivacionista 05/21 33,3 mil 2152


Prescricionista
Fúria e Tradição 2.0 Motivacionista 12/20 44,6 mil 39
Prescricionista
Clube de Homens Motivacionista 12/19 21,6 mil 369
62

Perfil Categoria Início Seguidores Publicações


Prescricionista
Macho Alfa Motivacionista 02/18 19,3 mil 572
Prescricionista
Atitude Respeitavel Motivacionista 04/21 17,4 mil 30
Prescricionista
Lucas Contessoto Relacionalista 06/19 14,9 mil 204
Prescricionista

Homem de Motivacionista 10/20 11,8 mil 70


Pricipios (sic) Prescricionista
Homens de Valores Motivacionista 08/17 10,9 mil 99
Prescricionista
O Segredo Alpha Motivacionista 05/21 9.242 400
Prescricionista
Tabela 2

2.3 Categorização por correlação necessária

Optamos no sistema de classificação das contas relacionadas ao debate em


masculinidades pelo uso do termo generorreformista em lugar de desconstrucionista, situando
este no espectro dito progressista, em oposição ao espectro tradicionalista. A escolha pelo
termo ―generorreformista‖ justifica-se pela distinção aos subgrupos generoabolicinista e
generodissidente, que abrigam respectivamente os grupos não-binaristas e os grupos das
transmasculinidades. Optamos ainda por situar o grupo de homomasculinidades no campo
generorreformista, uma vez que o critério aplicado é o de correlações necessárias, ou seja,
ainda que não presente na empiria, não é impossível imaginar representantes do campo da
homomasculinidade que não se percebam como dissidentes de gênero, salvo optarmos pela
assunção da categoria masculinidade como equivalente ao seu sentido hegemônico – o que
não é o caso. A dissidência no campo das homomasculinidades acontece no campo das
práticas sexuais e das relações afetivas, ou seja, a dissidência se dá em outro plano. A mesma
assunção ocorre quanto à inscrição deste grupo no campo progressista, posto que, à rigor,
ainda que de forma paroxística, não é impossível no plano ideal e tampouco no empírico, a
existência de segmentos aderentes a uma visão tradicionalista acerca das relações de gênero.
O subgrupo étnicorracial também obedece ao critério acima descrito, pois não há uma
correlação necessária entre questões raciais e étnicas e progressismo, ainda que haja
forçosamente com o princípio da interseccionalidade, conforme exposto no mapa mental
(figura 9).

O grupo ―binaristas‖ corresponde ao entroncamento do campo progressista com o


campo tradicionalista, posto que para o segundo não há abertura crítica em relação ao
63

estabelecido no campo da cultura que possibilite uma revisão dos estatutos normativos acerca
dos papéis e relações de gênero. Cabe apontar que optamos pelo uso da categoria
―filofeminista‖ para um grupo transeccional que não apenas dialoga com todo o campo
progressista em geral, pois os movimentos de homens são como definiu Parrini (2001),
―costelas de Eva‖, isto é, movimentos agenciados pela emergência do movimento feminista e
pelas questões colocadas por este em relação ao conjunto social que compõe a masculinidade
e seus padrões viciados, mas com os generorreformistas em particular, pois são esses os que
se engajam mais diretamente na produção de um debate que visa rever e reformular tais
padrões com o intuito de promover relações de gênero mais harmoniosas.

Na verdade, toda crítica à masculinidade tradicional só faz tornar a


masculinidade objeto dos estudos, ou seja, torna objeto aquilo que sempre foi sujeito.
Aqui a questão do outro é essencial: se o homem sempre foi o sujeito universal e
genérico, como vou propor, o surgimento do outro como crítica (gays e feministas,
nesse caso) afeta o arranjo tradicional das categorias e força uma mudança, a chamada
crise de masculinidade (MONTEIRO, 2000, p.66)

Cabe registar que a ausência de correlações diretas entre os filofeministas e os demais


grupos do campo progressista não implica necessariamente na exclusão deste ou em sua não
influência em relação a estes últimos. Enfatizamos todo o campo progressista do debate em
masculinidades é filofeminista, corroborando a descrição de Parrini. Ocorre que tal
implicação é perceptível em primeiro plano apenas para o grupo generorreformista e para o
subgrupo mitopoiético, este especificamente binarizado, logo, essencialista por definição, por
considerar a masculinidade e a feminilidade dois princípios complementares de natureza
sagrada.
64

Figura 1

O campo tradicionalista ou masculinista apresenta uma configuração bastante mais


simplificada em comparação com o campo progressista. Pela natureza tradicionalista, todos
derivam de uma percepção binarista de gênero. O termo filomasculinista pode inclusive ser
assumido como antifeminista, posto que as pautas identitárias como um todo são percebidas
como reivindicações antinaturais – por tomarem o campo da cultura não como resultante de
um processo sociohistórico, mas como expressão de uma projeção etnocêntrica que naturaliza
as relações sociais e invisibilizam suas cadeias de dominação. A maior parte dos grupos
inscritos neste campo são de natureza motivacional, apologistas das relações familiares
tradicionais e prescritivos quanto ao aspecto da promoção de valores e ideais bastante
ortodoxos acerca das performances sociais esperadas para cada gênero, e sempre com o
intuito do estabelecimento de laços amorosos, familiares ou mesmo sexuais, como no caso
dos ―redpillers‖, influenciados diretamente pelo movimento MGTOW. Como desdobramento
desta seção, incluímos abaixo uma representação gráfica das afiliações e interações entre os
diferentes grupos estudados mapeadas em forma de diagrama.
65

Figura 2
66

CAPÍTULO 3: PERSONAGENS E DISCUSSÃO

3.1 Fúria e Tradição

Figura 3

O perfil intitulado ―Fúria e Tradição‖ é o que conta com mais seguidores dentro do
campo tradicionalista, com um total de 277.7880 seguidores registrados em 25/10/2022,
estando ativo no Instagram desde dezembro de 2013. A página segue 326 perfis, tem 1097
publicações, média de 14.408 curtidas por postagem e 400 comentários a cada publicação,
além de uma média de 106.989 visualizações por vídeo publicado. Seu administrador é
Felippe Chaves, carioca, casado, na casa dos 30 anos de idade.

Em seus ―stories‖ fixos, são apresentadas informações sobre o programa de mentoria e


a comunidade ―Fúria e Tradição‖, projetos comerciais do autor da página, uma longa
sequência de perguntas e respostas extraídas da ferramenta interativa disponibilizada no
aplicativo, além de stories específicos sobre ―livros‖, onde expõe a capa das obras ―João de
Ferro‖ de Robert Bly, ―The Way of Men‖, de Jack Donovan, ―Os Melhores Contos de H.P.
Lovecraft, ―Libido Dominandi – Libertação Sexual e Controle Político‖, de E. Michael Jones
e o Mangá ―Dragon Ball‖, legendado como preparação do ensino da moral masculina para seu
filho. A página utiliza esta última obra também na seção ―análise‖, relacionando-o com a
filosofia de Nietzsche. Há ainda as seções ―casamento‖, ―palestras‖, ―citações‖, ―inserções na
mídia‖ - contendo uma matéria da revista ―Época‖ sobre um congresso antifeminista
organizado pela ativista de extrema direita Sara Winter e uma reportagem de um veículo
espanhol. Por fim, uma seção intitulada ―palestras‖.

Seguindo o link externo para a comunidade ―Bela e Fúria‖, de propriedade do


administrador do perfil em parceria com sua esposa, Vanessa Chaves, encontramos a seguinte
67

legenda na página principal: ―A feminilidade torna o mundo mais belo. A masculinidade torna
o mundo mais seguro‖. A descrição da comunidade apresenta o seguinte texto:

Primeira comunidade de Masculinidade e Feminilidade da América Latina.


Nós criamos a primeira comunidade de estudos de temas antes não explorados:
feminilidade, masculinidade, diferenças entre os sexos e relacionamentos. Onde
oferecemos aulas e e-books semanalmente com embasamento científico, podendo ter
também dicas de livros e filmes selecionados para você. (FÚRIA E TRADIÇÃO,
Online, 2022).
A comunidade também apresenta uma espécie de ementa simples do seu programa,
consistindo em quatro itens: feminilidade, masculinidade, diferenças entre os ―sexos‖ (sic) e
relacionamentos. A descrição do administrador da página, Felippe, apresenta o seguinte texto:
―Pai, escritor, fundador do Fúria e Tradição. Seja homem e nunca se desculpe por isso. Ter
filhos é a comprovação prática de que teremos um futuro, e que tudo ficará bem…‖. A
apresentação de sua esposa, Vanessa Chaves, apresenta a seguinte descrição: ―Esposa, mãe,
dona de casa e escritora. Desenvolve um trabalho nas mídias sociais há alguns anos, onde
ajuda milhares de mulheres a entenderem sua essência e florescerem seus relacionamentos.‖.
Não há referências sobre formação acadêmica ou trajetória profissional em nenhum dos perfis
citados.

Em 2018 Felippe foi candidato a vereador na cidade do Rio de Janeiro pelo Partido
Socialista Cristão, tendo recebido 441 votos, não obtendo a eleição. Possui cadastro de
microempreendedor individual, com empresa sediada no bairro carioca de Vaz Lobo, tendo
como atividade principal o serviço de edição de livros. Foi tentado contato com o
administrador do perfil para obtenção de dados específicos sobre o número de seguidores,
mas sem sucesso.

Sua conta no Instagram apresenta uma linha de crescimento consistente desde a


criação, com pico de 18.696 novos seguidores na data de 02/08/2021. A série histórica
apresentada no gráfico a seguir corresponde ao período de 08/06/2020 a 30/10/2022.
68

Gráfico 2

Evolução do número de postagens

Período Postagens
De 15/03 a 14/05/2018 25 publicações,
De 15/05 a 14/07/2018 12 publicações
De 15/07 a 14/09/2018 14 publicações,
De 15/09 a 14/11/2018 21 publicações
De 15/11 a 14/01/2019 16 publicações
De 15/01 a 14/03/2019 26 publicações
De 15/03 a 14/05/2019 12 publicações
De 15/05 a 14/07/2019 12 publicações
De 15/07 a 14/09/2019 9 publicações
De 15/09 a 14/11/2019 21 publicações
De 15/11 a 14/01/2020 29 publicações
De 15/01 a 14/03/2020 50 publicações
De 15/03 a 14/05/2020 52 publicações
De 15/05 a 14/07/2020 54 publicações
De 15/07 a 14/09/2020 52 publicações
De 15/09 a 14/11/2020 38 publicações,
De 15/11 a 14/01/2021 39 publicações
De 15/01 a 14/03/2021 54 publicações
De 15/03 a 14/05/2021 47 publicações
De 15/05 a 14/07/2021 48 publicações
De 15/07 a 14/09/2021 55 publicações
De 15/09 a 14/11/2021 42 publicações
De 15/11 a 14/01/2022 23 publicações
De 15/01 a 14/03/2022 31 publicações
De 15/03 a 14/05/2022 52 publicações
De 15/05 a 14/07/2022 45 publicações
De 15/07 a 14/09/2022 35 publicações
De 15/09 a 21/10/2022 5 publicações

Tabela 3
Título do Eixo

0
2
4
6
8
10
12
14
16

15/03 a 14/05/2018
15/05 a 14/07/2018
15/07 a 14/09/2018
15/09 a 14/11/2018
15/11/2018 a 14/01/2019
15/01 a 14/03/2019
15/03 a 14/05/2019
15/05 a 14/07/2019
15/07 a 14/09/2019

Gráfico 3
15/09 a 14/11/2019
15/11/2019 a 14/01/2020
15/01 a 14/03/2020
15/03 a 14/05/2020
15/05 a 14/07/2020
Ocorrência de Temas

Família

Religião
Feminino

Casamento
Paternidade
Bravura Masculina
69

Comportamento Feminino
Comportamento Masculino

Comportamento Masculino e
70

Ocorrência de temas
18
16
14
12
10
8
6
4
2
0

Comportamento Masculino Comportamento Feminino


Comportamento Masculino e Feminino Bravura Masculina
Paternidade Casamento
Família Religião
Política Sexo
Crítica à Pornografia Tradição X Modernidade
Pedofilia Divulgação
Virilidade Crítica as novas masculinidades

Gráfico 4
71

Evolução do número de curtidas


60
50
40
30
20
10
0

Acima de mil Acima de 2 mil Acima de 4 mil


Acima de 10 mil Acima de 20 mil Acimda de 40 mil

Gráfico 5

Evolução do número de curtidas


60
50
40
30
20
10
0

Acima de mil Acima de 2 mil Acima de 4 mil


Acima de 10 mil Acima de 20 mil Acimda de 40 mil

Gráfico 6

3.1.2 Discussão do perfil


O perfil em questão é líder em número de seguidores na esfera masculinista e seu
conteúdo é voltado para a ideia de resgate de uma tradição alegadamente perdida, na qual
ainda não teria acontecido a ―decadência do homem viril‖. Segundo esta interpretação, a forte
72

divisão dos papéis de gênero obedece a um padrão civilizatório necessário para a garantia da
paz e da ordem social – definição que também se encaixa no conceito de ―masculinismo‖.
Cumpre destacar a filiação ideológica ao movimento conservador brasileiro, observável no
discurso dos principais influenciadores do campo, em sua maior parte afiliados ao trabalho do
médico psiquiatra Ítalo Marsili28, ex-aluno do recém-falecido místico, influenciador e
ideólogo de extrema direita, Olavo de Carvalho e do professor e psicólogo canadense Jordan
Peterson29.

Cabe ressaltar o destacado papel do ideólogo Olavo de Carvalho na emergência da


onda neofascista brasileira, apologista de uma cruzada ―conservadora‖ frente ao avanço da
agenda progressista (assumida no léxico olavista como ―comunista‖). Para Olavo, era mister
que a nova direita brasileira abandonasse o debate economicista dos liberais democratas e se
organizasse em torno de um projeto orgânico de poder mediante o ingresso numa guerra no
campo da cultura, tal qual defendido por Antonio Gramsci, como exposto no artigo ―Perdendo
a guerra cultural‖, publicado em sua página na internet no ano de 2008:

Nunca, como ao longo das últimas décadas, o esquerdismo esteve tão fraco
intelectualmente: um ataque maciço a esse flanco teria quebrado a máquina de
doutrinação esquerdista nas universidades e na mídia, destruindo no berço a militância
em formação e mudando o curso das eleições subseqüentes. Mil vezes tentei mostrar
isso aos liberais, mas eles só davam ouvidos a quem falasse em PNB e investimentos.
Trancaram-se na sua torre-de-marfim economicista e lá se encontram até hoje,
perdendo mais terreno para os esquerdistas a cada dia que passa e conformando-se
com sua condição de forças auxiliares, destinadas fatalmente a tornar-se cada vez mais
desnecessárias à medida que a esquerda não-petista acumule vitórias contra o partido
governante. (CARVALHO, O. Online, 2008).

A postagem abaixo copiada em imagem foi postada em cinco de março de 2019 e


demonstra inequivocamente a influência da ideologia olavista no conteúdo das publicações do
perfil:

28
Médico carioca formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e atua e ex- psiquiatra forense
canônico no Tribunal Eclesiástico de São Sebastião no Rio de Janeiro. Possui 1,6 milhões de seguidores no
Instagram.
29
Personalidade da mídia canadense , psicólogo clínico , autor e professor emérito da Universidade de
Toronto . Começou a receber ampla atenção como um intelectual público no final dos anos 2010 por suas
opiniões sobre questões culturais e políticas, muitas vezes descritas como conservadoras . Peterson se descreveu
como um liberal britânico clássico e um tradicionalista .
73

Figura4

Como também ocorreu nos perfis da esfera progressista, a conta ―Fúria e Tradição‖
assumiu uma posição política clara durante a campanha presidencial de 2022. Mas se entre os
perfis progressistas a ênfase era em apresentar um manifesto contrário à agenda neofacista do
candidato Jair Bolsonaro, a conta Fúria e Tradição posicionava-se de forma abertamente
favorável ao candidato à reeleição. Cabe apontar que no período eleitoral, o Tribunal Superior
Eleitoral suspendeu diversas contas de perfis de redes sociais que atuavam deliberadamente
como vetores de discurso de ódio e desinformação e em 26 de outubro de 2022, utilizando a
conta reserva do pefil intitulada ―Fúria e Tradição 2.0‖, seu proprietário, Felippe Chaves,
alegou estar entre os influenciadores que foram alvo da decisão – porém a citação nominal
não foi localizada em nenhum despacho oficial. Em doze de novembro de 2022 o perfil
principal foi reativado. A narrativa de restrição autoritária ao direito de liberdade de expressão
foi bastante utilizada durante o período da campanha presidencial por diversos perfis e
influenciadores, amplificando assim a repercussão da narrativa sobre perseguição e censura
jurídica, estratégia largamente utilizada pelos estratos bolsonaristas.
74

Figura 5

Figura 6

Outro dado de relevo é a maciça presença do avatar do personagem Thomas Shelby, já


citado no capítulo anterior, presente em 97 publicações. Para a filósofa Olivia Gazalé (2021,
online), são jovens, não são necessariamente os mais bem colocados na escala do poder ou da
75

desejabilidade aqueles que talvez estejam mais expostos a uma crise e propensos a aderir à
arquetipia viril de Peaky Blinders. O apelo à iconografia masculinista de virilidade seria uma
espécie de sintoma do rebaixamento masculino face ao progresso social.

Figura 7

Para efeito de enquadramento analítico, recorremos ao conceito de ―Ur-Fascismo‖ ou


―fascismo eterno‖ de Umberto Eco30, ilustrando a partir das próprias postagens da página,
onze das catorze características elencadas como conformadoras deste fenômeno sociopolítico
segundo o intelectual italiano:

1) Culto da tradição:

Figuras 8 e 9

30
Em seu ensaio de 1995 "Ur-Fascismo", o teórico cultural Umberto Eco lista quatorze propriedades
gerais da ideologia fascista. Ele argumenta que não é possível organizá-los em um sistema coerente, mas que
"basta que um deles esteja presente para permitir que o fascismo coagule ao seu redor".
76

2) Repulsa ao modernismo:

Figura 10

3) Culto da ação pela ação:

Figura 11
77

4) Não aceitação do pensamento crítico:

Quando andei nos corredores da UFF, UERJ e UFRJ aqui no Rio, era
deprimente ver no que os jovens rapazes estavam se tornando: parece que estão se
desfazendo fisicamente, ansiosos a se submeter ao coletivismo cego que fazem o
sistema funcionar em favor dos líderes dos movimentos. E a masculinidade é uma
ameaça a essa nova configuração do "homem moderno", e por isso tantos tentam
destruí-la da forma que for, pois ela em seu cerne não busca apenas força, conflito e
conquista, ela busca um senso de valor. Neste sentido, a força é a coisa menos
igualitária que existe, pois você não pode apenas chorar e dizer que merece ter: ou
você é forte ou não é. E para ser precisa de esforço. E por isso quem tenta se manter
fora desse sistema atrai o ódio dos defensores do próprio sistema. Ser forte é uma
declaração pública de que você não é mais um escravo‖ (FÚRIA E TRADIÇÃO,
online, 2019).

5) O racismo na essência:

Não há ocorrência de nenhuma pessoa negra nas imagens publicadas em 1162


postagens do perfil.

6) O apelo aos precarizados e frustrados :

Figura 12
78

7) O nacionalismo como identidade social:

Figura 13

8) A vida como guerra permanente:

Figura 14
79

9) O heroísmo como norma:

Figura 15

10) O machismo como espécie de virtude:

Figura 16
80

11) O líder se apresenta como intérprete único da vontade comum:

Figura 17

Tal como acontece com a maioria dos movimentos masculinistas, o perfil ―Fúria e
Tradição‖ tem principalmente membros brancos e de classe média. Há um evidente
alinhamento da orientação deste perfil com o movimento político radical conhecido como
―Alt-Right‖ nos Estados Unidos, que cevou a ascensão política de Donald Trump.
Ao contrário dos movimentos de direita radical anteriores, o Alt-Right opera de forma nativa
dentro do meio político da modernidade tardia – o ciberespaço – porque surgiu dentro desse
meio e foi continuamente moldado por seu desenvolvimento. A Alt-Right americana
apresenta um programa teórico e discursivo centrado na apropriação e adaptação do
pensamento de direita europeu – especialmente o da Nova Direita Francesa, a Revolução
Conservadora Alemã e o Tradicionalismo de Julius Evola (também referência fundamental no
pensamento de Olavo de Carvalho) e também uma política de gênero refinada e intensificada,
uma forma de ―ultramasculinismo‖. Griffin (2003), nos alerta para a expansão de
agrupamentos denominados ―grupúsculos rizomáticos‖, historicamente ignorados ou
negligenciados pelos radares das bolhas progressistas mas responsáveis pela disseminação do
pensamento neofacista de forma vertiginosa. No Instagram, grupos como este funcionam
como ―satélites‖ de grupos maiores, servindo como catalizadores de engajamento e/ou
correias de transmissão da ideologia neofascista dos grupos masculinistas.

Outro aspecto que deve ser salientado é o uso recorrente de citações de estudos
publicados em revistas internacionais, buscando respaldar o viés de suas interpretações
81

impregnadas de determinismos, fazendo uma utilização de construções paralogísticas e


análises ―selvagens‖ e descontextualizadas de estudos especializados com o intuito de reforçar
as premissas estereotipadas que tencionam envernizar epistemologicamente a ideologia
masculinista mediante o recurso a uma psicologização leiga e esvaziada de rigor, mesmo que
apelando para a autoridade do discurso científico, incorrendo apenas em cientificismo, como
se pode observar nas figuras 4 e 14.

3.2 João Luiz Marques

Figura 18

João Luiz Marques na descrição de seu perfil no Instagram apresenta-se como


―Escritor, palestrante e estudioso de psicologia das masculinidades negras e plurais‖. João é
um homem preto na casa dos 20 anos, gaúcho de Porto Alegre. A página em 24/10/2022
aponta um total de 574 publicações, sendo a primeira datada de 11/09/2016. O total de
curtidas é de 3750 por postagem e 84 comentários, além de uma média de 21.010
visualizações por vídeo publicado. Em 24/10/2022 a página possuía um total de 191 mil
seguidores e seguia 607 perfis. O administrador do perfil possui sete coleções de stories
fixados na página, estando contido na primeira a divulgação de sua participação como
produtor oficial de conteúdo na rede social ―Linkedin‖; na segunda, um release de suas
participações em eventos acadêmicos, lives, matérias de jornais e revistas da grande imprensa
e inserções em programas de televisão e podcasts; na terceira, imagens de sua participação em
debate sobre masculinidades no canal CNN; na quarta, sua participação no programa ―Saia
Justa‖ no canal ―GNT‖, na quinta, sua participação no evento de cultura preta ―Boogie
Week‖; na sexta, sua retratação quanto ao episódio de plágio envolvendo a pesquisa da
professora Valeska Zanello, da Universidade de São Paulo; e por fim, a divulgação de seu
Podcast ―Mensagem da Caixinha‖.
82

No redirecionamento disponível para o site ―linktree31‖ constam sete links externos


relacionados ao trabalho do influenciador:

1) Perfil profissional na plataforma ―Linkedin‖.


2) Podcast ―Mensagem da Caixinha‖, hospedado na plataforma ―Deezer‖, voltado para
serviços de consultoria sobre relacionamentos.
3) Novo link para o mesmo Podcast, desta vez hospedado na plataforma ―Anchor FM‖.
4) Perfil do influenciador na plataforma ―Tik Tok‖.
5) Perfil na plataforma ―Clubhouse‖32.
6) Canal no Youtube.
7) Canal no Telegram.
8) Perfil na Plataforma ―Medium‖33.
Na plataforma ―Linkedin‖, o influenciador apresenta a seguinte autodescrição:

Formou-se no ensino médio no Centro Estadual de Formação de Professores


General Flores da Cunha, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Possui curso técnico
em eletrônica pelo SENAI-RS. Atualmente estudante de psicologia, ingresso em
2016/2, pela Universidade do Rio Grande do Sul (UFRGS). Realizou a ação de
extensão universitária Gênero e Participação Feminina Na África Contemporânea,
participou da conferência: Interlocuções Metodológicas 2019. Fez parte da construção
da edição de 2019 do Novembro Negro dos cursos da saúde da UFRGS.
Atualmente, a página é vice-líder em número de seguidores entre os influenciadores de
perfil progressista, perdendo apenas para a página ―paizinho vírgula‖, que contava em
24/10/2022 com um número total de 211 mil seguidores. Porém, desde o mês de março de
2022 é observado um intenso declínio no número de seguidores, explicado pelo processo de

31
Serviço de redirecionamento para outras redes sociais e páginas profissionais relacionadas a projetos
e trabalhos associados ao proprietário do perfil principal.

32
O Clubhouse está disponível somente para convidados e para o sistema operacional IOS. Cada novo
usuário tem direito apenas a dois convites. Diferente da maioria das redes sociais, o Clubhouse não foca em
rotinas, pessoas ou narrativas individuais, mas no interesse por temas, trocas e aprendizados. Assim que baixar o
aplicativo, existe a opção de listar suas preferências por assuntos e os algoritmos personalizam sua experiência
com base nas respostas e em quem você deseja seguir. A partir daí dá-se o acesso a salas de bate-papo
com palestras e painéis de discussão sobre música, negócios, entretenimento, cultura e outros diversos temas. O
usuário pode participar das salas por quanto tempo quiser, como ouvinte ou orador. Também é possível ser
moderador e criar sua própria sala, personalizando os assuntos que deseja discutir. Um alerta importante é que as
conversas não podem ser salvas, nem gravadas, segundo os termos de uso do aplicativo.

Fonte: https://www.printi.com.br/blog/o-que-voce-precisa-saber-sobre-clubhouse-a-rede-social-do-
momento?gclid=CjwKCAjw79iaBhAJEiwAPYwoCGVgLx9C22CDfFlt5g-
2PfeNcSvQKA3YqJbRX021dWakGeZ9HV_VFxoCiPEQAvD_BwE, acesso em 24/10/2022.
33
Semelhante aos antigos blogs, o Medium é uma plataforma voltada para a publicação de textos
longos.
83

―cancelamento‖ do autor em razão de acusações de plágio no conteúdo de suas postagens.


Desde o estopim do caso até o mês de outubro de 2022, houve uma deserção de mais de 114
mil seguidores, atualmente ainda com tendência de queda. Em 27/07/2022, segundo dados
enviados via email pelo próprio responsável pelo perfil, sua conta possuía um total de 78.9% de
seguidores do gênero feminino e 21% de seguidores do gênero masculino. A distribuição etária dos
seguidores apresentava a seguinte configuração:

Faixas Etárias Homens Mulheres


18-24 17.1% 16.3%
25-34 51.3% 44.1%
35-44 24.3% 28.1%
45-54 4.9% 7.8%
55-64 - 2.1%
Tabela 4

A tabela 1 apresenta a evolução do número de seguidores do perfil dentro do arco


temporal que vai de 14/09/2020 até 31/10/2022. Os dados foram coletados através da
plataforma ―not just analytics‖ na data de 24/10/2002 e indicam uma acentuada curva de
crescimento no período compreendido entre 10/05/2021 até 21/02/2022, data do pico do
número de seguidores do perfil, que chegou à cifra 306.935 pessoas. Em uma semana o perfil
perdeu aproximadamente 80 mil seguidores, período coincidente ao escândalo de plágio
envolvendo seu autor, episódio que abordaremos na seção seguinte.

Gráfico 7
84

Evolução do número de postagens

Período Postagens
De 28/05 a 27/07/2021 15 publicações
De 28/09 a 27/11/2021 18 publicações
De 28/11 a 27/01/2022 18 publicações
De 28/01 a 27/03/2022 9 publicações
De 28/03 a 27/05/2022 12 publicações
De 28/05 a 27/07/2022 13 publicações
De 28/07 a 27/09/2022 9 publicações
De 28/09 a 20/10/2022 2 publicações
De 28/09 a 27/11/2021 18 publicações
Tabela 5

Ocorrência de temas
20
18
16
14
12
10
8
6
4
2
0

Negritude Gênero/masculinidade Relacionamentos


Psicologia/Autocuidado Pessoal/privado Sexualidade
Divulgação Crítica à Pornografia
85

Gráfico 8

Evolução do número de curtidas


16
14
12
10
8
6
4
2
0

Acima de mil Acima de 2 mil Acima de 4 mil


Acima de 10 mil Acima de 20 mil Acima de 40 mil

Gráfico 9

3.2.1 Discussão do perfil

Inaugurado em 11/09/2016, o conteúdo das publicações da conta de João Luiz


Marques esteve inicialmente relacionado a imagens de caráter privado, compreendendo desde
cenas de lazer, viagens, situações públicas a fotos posadas de destacado apuro estético. O
perfil em questão foi classificado como progressista generorreformista prescricionista com
ênfase em relacionamentos amorosos binários heteronormativos com abordagem
filofeminista. Apenas em 28/05/2020, 31 postagens após sua ativação, João publica seu
primeiro material com abordagem crítica: uma convocação aos homens pretos para inserirem-
se no debate sobre masculinidade:
86

Figura 19

A partir desta postagem, João inicia uma série de publicações regulares utilizando-se
do recurso de ―cards‖ no formato carrossel acompanhados de textos curtos embutidos nas
imagens e com desenvolvimento mais longo na área de legendagem da publicação, sempre
introduzindo temas em voga no debate sobre gênero e racialidade com ênfase em
relacionamentos e masculinidade. As publicações de João passam a seguir trends, isto é,
tendências temáticas de circulação predominante no dito campo progressista, ou, em
linguagem mais específica, a dita ―bolha progressista‖ da Internet.

Figura 20
87

A decisão por fixar-se prioritariamente em assuntos relacionados à gênero,


relacionamentos e masculinidades se refletiu em um aumento exponencial do número de
seguidores do perfil. Entre 28/05 e 27/07/2020, das 24 publicações visíveis, 23 eram sobre
negritude, três sobre sua vida pessoal e apenas uma sobre gênero/masculinidade. Observou-se
a ocorrência de cinco postagens com número superior a mil curtidas, sendo a media de
curtidas algo próximo à casa de 200/300.

Entre 28/07 e 27/09/2020, foram 23 publicações, sendo 16 relacionadas à negritude,


dez de caráter pessoal/privado, sete voltadas para relacionamentos, seis relacionadas à
gênero/masculinidades, quatro na área de psicologia/auto-cuidado e uma sobre política.
Observou-se a ocorrência de nove publicações com mais de duas mil curtidas e dez com mais
de mil.

Entre 28/09 e 27/11/2020 foram 23 publicações. onze delas voltadas para


relacionamentos, dez para o tema psicologia/auto-cuidado, nove para gênero/masculinidade,
duas publicações de caráter pessoal/privado e uma sobre negritude. Neste período, onze
publicações ficaram acima das duas mil curtidas, três acima das quatro mil e duas acima das
dez mil. Pela primeira vez não foi registrada a presença do tema da negritude.

Entre 28/11/2020 e 27/01/2021, foram 19 publicações, 17 delas voltadas para o tema


relacionamentos, catorze voltadas para o tema psicologia/auto-cuidado, oito voltadas para o
tema gênero/masculinidades, uma de caráter pessoal/privado e uma direcionada a temas
políticos. Neste periodo, quinze publicações receberam mais de quatro mil curtidas, dez
receberam mais de duas mil, seis mais de dez mil e uma mais de vinte mil. Neste período, pela
primeira vez o perfil registrou uma publicação com mais de 40 mil curtidas.

Entre 28/01 e 27/03/2021 ocorreram 18 publicações, das quais treze versavam sobre o
tema psicologia/auto-cuidado, oito sobre relacionamentos e seis sobre gênero/masculinidades.
catorze obtiveram mais de quatro mil curtidas, sete tiveram mais de dez mil e novamente uma
publicação superou as 40 mil curtidas.

Entre 28/03 e 27/05/2021, ocorreram 18 publicações, sendo 23 sobre relacionamentos,


21 sobre gênero/masculinidade, sete sobre psicologia/auto-cuidado e três sobre sexualidade.
16 publicações receberam mais de quatro mil curtidas, duas receberam mais de dez mil, três
receberam mais de vinte mil e uma recebeu mais de 40 mil, sendo esta a primeira postagem a
superar a marca de 50 mil curtidas desde o começo do perfi, conforme a figura 4.
88

Figura 21

É impossível identificar sem uma consulta direta ao autor qual a razão para a guinada
temática percebida a partir de maio de 2020. Empiricamente o que se observa é que foi a
partir desta guinada que seu perfil passou a gerar um expressivo nível de engajamento. Ou
seja, se não podemos auferir a intencionalidade desta guinada, é altamente provável que, ao
verificar a repercussão e o alcance das postagens dentro da temática de amor e gênero, o
influenciador tenha assumido uma estratégia de exploração de um segmento com elevada
demanda de consumo, especialmente por parte do público feminino.

Para efeito de fazer justiça ao objeto de análise, cumpre destacar que havia no modo
de apresentação dos conteúdos de perfil uma evidente inclinação à representação da categoria
―homem‖ de modo a negligenciar os gradientes que forçosamente separam sua forma ideal de
sua forma empírica. Isto é, o universal ―homem‖ era referido na maior parte das publicações a
partir dos efeitos concretos da masculinidade nas relações sociais – sobretudo amorosas, com
ênfase na perspectiva do sofrimento feminino. A natureza deste perfil era indiferenciada em
relação a diversos outros canais dedicados à exploração da temática amorosa34, mas a
percepção específica era a de que, ao dar-se conta da demanda do público feminino em obter
explicações razoáveis para os impasses e dilemas experienciados em suas vivências pessoais

34
Soltos S/A, Marcus Boaventura, Manuela Xavier, para citar apenas os perfis progressistas com maior
engajemento.
89

no campo amoroso, o influenciador tivesse decidido investir na produção de uma leitura que
atribui ao campo masculino uma deficiência atávica na sua conformação afetiva. Ou seja,
todas as disfuncionalidades percebidas no campo das relações de gênero teriam por origem
comum a atribuição de uma ―essencialidade defeituosa‖.

A estes ―defeitos‖, caberia a aplicação de um remédio determinado: a desconstrução.


Como efeito, a natureza desta abordagem resultou na adesão de um público
predominantemente feminino, algo em torno de 80% em julho de 2022, já após o episódio do
cancelamento. E entre os homens aderentes à proposta de seu discurso, sequiosos de
―desconstrução‖, uma reação mencionada em nossa hipótese é a emergência de uma
―masculinidade envergonhada‖, muito eventualmente sobrecarregada pela percepção de uma
―culpa‖ ancestral, beneficiária dos dividendos da estrutura patriarcal de sociedade, percepção
agravada pela eventual intersecção de fatores como branquitude, heterossexualidade e
cisgenereidade. O baixo número de seguidores do gênero masculino em páginas progressistas
voltadas para masculinidade é inclusive um aspecto a ser considerado e carece de
aprofundamento a sua investigação. O perfil ―Homem sem Tabu‖, consultado sobre o perfil
de gênero de seus seguidores, em 21/06/2022 apresentou o número de 63,4% de seguidoras
mulheres e 36,5% de homens, quando contava com um total de 22.132 seguidores. Mesmo o
perfil do Instituto Papo de Homem, pioneiro no debate sobre masculinidades no país e
responsável pela pesquisa mais abrangente até hoje realizada sobre o tema em território
nacional, com 169 mil seguidores em sua conta Instagram, apresenta uma predominância
masculina em seu público seguidor, mas dentro de uma proporção de 58,7% e homens e
41,2% de mulheres, o que indica um concernimento todavia bastante elevado do público
feminino para o debate que envolve as questões de gênero com ênfase em masculinidades.

Conforme apresentado na categorização do perfil como de natureza ―progressista


prescritiva generorreformista, antimasculinista com ênfase em relacionamentos amorosos‖, o
perfil apresentava em seus cards conceitos genéricos indicando a prevalência de uma má
conduta masculina no que diz respeito à sua inserção na dinâmica amorosa no espectro
heteronormativo. As chamadas de seus cards não infrequentemente apontavam para a
elucidação didática de coloquialismos anglicistas hoje correntes no vocabulário social-
amoroso tais como ―benching‖, ―hoovering‖, ―love bombing‖, ―curving‖ e ―ghosting‖35, bem

35
Respectivamente, 1) deixar a pessoa numa espécie de ―lista de espera‖; 2) manipulação emocional
que se destina a atrair o parceiro(a) de volta a uma dinâmica relacional abusiva; 3) técnica ―narcisista‖ de
sedução visando a conquista rápida por meio de demonstração excessivas de afeto; 4) manipulação que visa
90

como outros apropriados do discurso feminista vigente na contemporaneidade como


―mansplaining‖, gaslight‖, ―brotherhood‖, ―manterrupting‖, ―manspreading‖ e
36
―bropriating‖ , este último indicando a apropriação masculina de produções intelectuais
egressas do movimento feminista em sua expressão militante nas redes.

Uma questão importante a ser apontada é que não havia a prática de apresentação de
evidências científicas ou menção a eventuais fontes de estudo e pesquisa, apesar do conteúdo
não clamar em nenhum momento uma condição de autoralidade primária. O procedimento era
ampliar a visibilidade de conceitos que já circulavam anteriormente pela grande rede e
apresentar-se como uma espécie de consultor para a temática dos relacionamentos amorosos,
sobretudo com a utilização do recurso ―caixa de perguntas‖, disponibilizado através da função
―stories‖ da rede social. É importante que em sua fase de maior projeção, João Marques
chegou a conceder entrevistas para o jornal ―CNN Brasil Tonight‖, do canal CNN; para o
programa ―Saia Justa‖ no canal GNT e para o site Universia, do portal UOL.

Porém, no começo do mês de março de 2022, a pesquisadora da Universidade de


Brasília, Valeska Zanello37, anunciou através de sua conta no Instagram ter recebido
denúncias de seguidores e de pessoas próximas acerca da apropriação de conceitos e

adiar ao máximo concretização do encontro romântico visando manter a disponibilidade do outro sem a
pretensão de levar à cabo a conseqüência da aproximação; 5) afastamento súbito e inexplicado, provocando
confusão afetiva e ausência de fechamento dos processos amorosos.
36
Respectivamente: 1) Pretensão masculina de primazia prática e teórica em relação aos testemunhos e
percepções acerca de vivências e opiniões enunciados por mulheres; 2) quando um homem manipula as situações
para a mulher acreditar que a realidade que ela está tendo contato não é real. A mulher se sente confusa, podendo
até mesmo duvidar do que está vendo, do que sabe e das suas próprias percepções; 3) fraternidade masculina
definida pela complacência mútua; 4) hábito de interromper sistematicamente as falas das mulheres; 5) Quando
um homem se ―espalha‖ corporalmente em diversos espaços (por exemplo: sentar de pernas abertas ocupando
duas cadeiras, podendo encostar na pessoa ao lado – geralmente mulher ou utilizar de um espaço que não é
destinado a ele). O manspreading acontece com maior frequência em transportes públicos; 6) quando um homem
se apropria de algum feitos, estudos, pesquisas, realizações, serviços ou produtos que uma mulher produziu.
O bropriating se dá principalmente em reuniões formais e/ou informais causando o silenciamento e apagamento
histórico das mulheres diante de suas próprias realizações.
37
Membro do Grupo Psicologia e Estudos de Gênero da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-
Graduação em Psicologia (ANPEPP) Coordena o grupo de pesquisa "Saúde Mental e Gênero" (foco em
mulheres) no CNPq. Foi representante do Conselho Federal de Psicologia no Conselho Nacional dos Direitos da
Mulher (SPM) e no GEA (Grupo de Estudos do Aborto) no periodo de 2014 a 2016. Membro do Grupo de
Estudos Feministas (GEFEM) e do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre a Mulher) da UnB. Autora de
vários artigos e livros no campo da Saúde Mental, Gênero e Interseccionalidades com raça e etnia. A professora
desenvolve pesquisas sobre: a) Tecnologias de gênero (músicas, filmes, livros, etc.) e constituição subjetiva; b)
adoecimento psíquico e saúde mental de mulheres em sociedades sexistas como a brasileira, utilizando-se das
categorias analíticas do dispositivo amoroso e materno; c) masculinidades e dispositivo da eficácia (casa dos
homens e cumplicidades; imaginário erótico; e violências); d) Técnicas de intervenção em gênero; e) Violências
(explícitas e implícitas) contra as mulheres; f) Educação não sexista. Fonte:
http://lattes.cnpq.br/0163069128352529, acessado em 28/10/2022.
91

discussões originalmente desenvolvidos e publicados por ela originalmente38. Mesmo sem


apontar a autoria do fato, João Luiz Marques passou a ser pressionado em suas redes e após a
repercussão, admitiu em sua conta ter realmente incorrido em plágio. Tal retratação ocorreu
dias após o episódio e foi feita mediante a publicação de uma gravação de vídeo
disponibilizada no recurso ―reels‖. Tempos depois, a publicação foi retirada e substituída por
uma retratação textual, marcada em postagem fixa na função stories da conta, com a legenda
―nota‖, datada de 12/04/2022, mais de um mês após o ocorrido (figura 5).

Figura 22

É curioso observar o reparo presente no segundo card dos stories acima, no qual o
influenciador altera o pronome todxs para ―todes‖, assumindo o uso de uma terminologia de
gênero neutra. A curiosidade advém do fato que desde a criação da conta, João jamais optou
por essa forma de linguagem, sobretudo por suas postagens terem sido sempre orientadas para
o debate em torno de relacionamentos amorosos heteronormativos, ou seja, segundo o
paradigma binário de gênero, sem qualquer referencial teórico aproximado à teoria queer39, o
que talvez denote alguma concessão pontual às pressões sofridas por ocasião do

38
https://revistamarieclaire.globo.com/Feminismo/noticia/2022/03/sexismo-e-apagamento-diz-valeska-
zanello-que-acusa-influencer-de-plagio.html , acessado em 28/10/2022.
39
Segundo Teresa de Lauretis , uma das principais teóricas da teoria queer, este agrupamento propõe
uma complementaridade necessária ao feminismo materialista: definir e construir uma alternativa credível ao
patriarcado heteronormativo e cisnormativo, nomeadamente um espaço conceitual e político para o gênero e
orientações sexuais descategorizadas, afetando o campo da linguagem em sua pretensão de neutralidade e
empreendendo uma disputa política visando a reterritorialização dos conceitos envolvendo a temática.
92

cancelamento. A publicação abaixo, do perfil ―Masculinidade Saudável‖ ilustra a repercussão


negativa do episódio dentro da ―bolha progressista‖:

Figura 23

Algumas das frases que foram utilizadas sem o devido crédito em postagens nas redes
sociais fazem parte do livro que pesquisadora Valeska publicou em 2018, "Saúde Mental,
Gênero e Dispositivos", fruto de 20 anos de experiência clínica e 13 anos de pesquisas em
saúde mental, sob a perspectiva de gênero. Entre outros temas, o livro aborda o
funcionamento das relações afetivas e lança luz sobre o porquê, segundo sua investigação, das
mulheres tenderem a sofrer mais na esfera do amor do que os homens. Valeska é responsável
pela elaboração teórica do termo ―dispositivo amoroso‖, de origem no conceito foucaultiano
de dispositivo40, que configura uma certa forma de amar que vulnerabiliza as mulheres.
Segundo Valeska, elas se subjetivam na ―prateleira‖ do amor, na qual ―ser escolhida‖ e
validada por um homem torna-se uma legitimação fundamental. Isso porque o amor seria
identitário para as mulheres, de um modo que não se constitui para os homens.

O episódio foi sucedido de uma migração em massa de seguidores da conta de João


Marques para a conta de Valeska, incrementada pela repercussão do caso, que também trouxe
seguidores que desconheciam até o momento o trabalho de ambos. Atualmente, a conta da

40
Dispositivo é um termo usado pelo intelectual francês Michel Foucault, geralmente para se referir aos
vários mecanismos institucionais, físicos e administrativos e estruturas de conhecimento que potencializam e
mantêm o exercício do poder dentro do corpo social.
93

pesquisadora e influenciadora possui um total de 205 mil seguidores – não muito acima do
número total de seguidores do autor dos plágios. Após o episódio, houve um hiato de 47 dias
desde a última postagem de João, que retornou a movimentar a conta apenas em 18 de abril de
2022. Nesta postagem intitulada ―Não existem Alecrins Dourados – todos somos um
amontoado de erros, e nas relações não seria diferente‖, uma espécie de autocrítica velada,
João retoma questões relacionadas à masculinidade negra, citando um diálogo recente com
seu pai.

Figura 24

À propósito, dos poucos influenciadores que saíram em seu socorro, estes eram
também homens negros, como o perfil @nagodengo, pertencente ao influenciador Omoloji
Àgbára Dúdú, com 71.600 seguidores em 28/10/2022, que publicou o seguinte texto no dia
19/03/2022, intitulada ―A culpa é do homem negro‖:

Todo mundo quer responsabilizar. Mas quem quer ser o/a responsável?
Responsável na compreensão de que os fenômenos são complexos e que a abordagem
simplista de algum conteúdo pode ser mais problemática do que eficaz na proposição
de práticas de melhorias a qualidade de vida da comunidade negra. Uma irmã negra
me disse em tom de deboche: ―você ama defender homens (negros)‖. Respondi:
defendo porque somos previamente condenados por toda estrutura social. A militância
negra de internet com ênfase em gênero tem fetiche em culpar homens negros.

Efetivamente o influenciador João Marques passou a acrescentar referências


bibliográficas a cada postagem nova, bem como editou todas as postagens antigas que
careciam de fontes. Seu discurso retornou a algum nível de consideração sobre as questões de
94

gênero e raça, mas a característica mais notável, 86 postagens após o cancelamento, é que
houve um ajustamento do tom empregado na crítica ao masculino que antes notabilizava o
perfil. O ―affair‖ João Marques é fundamental para nossa discussão não apenas pelas questões
interseccionais evocadas por ele mesmo, mas, sobretudo porque destaca a discussão acerca da
visibilidade do trabalho intelectual feminino. Foi necessário que um homem, se apropriando
das falas e do trabalho de uma mulher, sensibilizasse um contingente significativo de
seguidores – em sua maioria outras mulheres para pautas que diziam respeito à própria
condição feminina. A perplexidade é agravada pelo fato destas falas e o conteúdo deste
trabalho serem fundamentalmente críticos às práticas que o influenciador condenava
publicamente e na qual acabou por incorrer, um caso emblemático não apenas de plágio, mas
de ―bropriating‖. E foi através deste grave incidente ético que só então a voz da mulher autora
pode ter finalmente o reconhecimento justo. Da noite pro dia, João foi deslocado da posição
de reserva moral de lucidez e modelo positivo de masculinidade, para o mais pedagógico e
concreto exemplo de desrespeito ao trabalho das mulheres. Para o campo progressista, um
impasse interseccional, posto que o homem em questão tratava-se de um homem negro,
acrescentando camadas de complexidade que envolvem aspectos raciais, de classe e de
gênero. João encarnou em seu perfil o dualismo corpóreo/incorpóreo de Haraway: um homem
que se anunciava enquanto homem não hegemônico e que portava mensagens de uma mulher,
não assumindo diretamente sua apropriação. O perfil de João Luiz Marques e seu caso
emblemático apontam não apenas para o ciborgue e para a interseccionalidade, mas para
aquilo que pensadores como Rafael Haddock-Lobo, Luiz Antônio Simas e Luiz Rufino, ao
buscarem uma forma originalmente brasileira de ser e pensar n(o) mundo, denominaram
―Filosofia das Encruzilhadas‖.

3.3 Masculinidade Saudável


95

Figura 25

O perfil ―Masculinidade Saudável‖, no ar desde o mês de junho de 2011, possuía na


data de 24/10/2022 um total de 133 mil seguidores, 509 publicações e seguia a 907 perfis,
sendo a quarta colocada em número de seguidores entre os influenciadores de perfil
progressista. Sua média de curtidas por postagem é de 8.241, sua média de comentários por
postagem é de 327 e sua média de visualizações por vídeo publicado é de 106.685. Em seus
stories fixos o único conteúdo disponibilizado apresenta depoimentos de participantes das
vivências oferecidas pelo administrador do perfil, Fabio Manzoli, um homem paulista, branco,
casado, na casa dos 40 anos, cuja autodescrição no site ―Linkedin‖ apresenta o seguinte
conteúdo:

Formado em administração de empresas pela FGV, trabalhou 12 anos no


mercado corporativo com passagens por Votorantim Finanças e Cotia Trading. Em
2014 iniciou uma transição profissional, realizando workshops de inteligência
emocional para homens, com foco na construção de uma masculinidade saudável. Já
facilitou mais de 100 cursos por 12 estados brasileiros e realiza palestras in-company e
online sobre Masculinidade Saudável e Equidade de Gênero. Últimas palestras na
CSN e Nike!
Sua descrição na página principal do Instagram apresenta as seguintes informações:
―Palestrante (TEDX Speaker); Grupos Reflexivos (in company), Retiro Alquimia do Amor (p/
mulheres e homens) - 21 a 23 de outubro; Infos x dm‖. Ou seja, seu administrador anuncia a
realização de uma vivência sobre masculinidade e relacionamentos, trabalho que antecede a
criação do perfil; divulga sua atuação como palestrante em empresas e oferece sua ―dm‖, do
inglês ―direct messages‖ (mensagens diretas) para a prestação de maiores informações.

Fabio possui ainda um perfil no portal ―Eu Sem Fronteiras‖, voltado para divulgação
de trabalhos de natureza holística, integrativa e/ou espiritual, o que também se convenciona
chamar de ―práticas de medicina alternativa‖. O perfil de Fabio é descrito da seguinte
maneira:

Fabio Manzoli cria seu caminho como terapeuta enquanto percorre sua
jornada como buscador de si mesmo. Formado em administração de empresas pela
FGV, depois de 12 anos trabalhando no mundo corporativo, Fábio passou por diversos
trabalhos internos que o fizeram encontrar uma vida com mais sentido, mais sentir,
mais consciência - que ressignificaram as sensações de inadequação, sua sexualidade,
o vazio existencial, as constantes crises de ansiedade, raiva e desequilíbrio emocional
que regiam suas relações. Um terapeuta que tem como sua maior medicina o
compartilhamento de sua própria história de desconstrução e reconstrução. Um
homem que carrega em si a sensibilidade na identificação de padrões
mentais/comportamentais e o potencial de abrir espaços sagrados de confiança,
irmandade, respeito e compartilhar genuíno entre homens. Um condutor que guia a
lugares internos de revelação; de suas sombras, vergonhas, culpa e rigidez- com a
96

maestria da compaixão, do acolhimento, da empatia, do não julgamento; com


intensidade e profundidade, porém mantendo a simplicidade e leveza características de
suas manifestações. Fabio traz para as suas vivências, ferramentas como o Rebirthing,
Deeksha, Meditações Sonoras, dinâmicas de Psicoterapia Corporal, o estudo do
Patchwork.
A conta no Instagram apresenta uma consistente evolução no ganho de seguidores ao
longo do tempo, apresentando uma pequena queda no período eleitoral recente,
provavelmente em razão do posicionamento político assumido de forma coletiva em forma de
manifesto pelos perfis relacionados ao campo das masculinidades progressistas em favor do
candidato Luiz Inácio Lula da Silva, iniciado pelo agrupamento MEMOH41. A publicação em
esquema de ―carrossel‖ segue nas imagens abaixo:

Figuras 26, 27 e 28

41
―O MEMOH é um negócio social que oferece a homens a possibilidade de refletirem, em conjunto,
sobre seu comportamento por meio de Grupos Reflexivos, Produção de Conteúdo e Serviços de Consultoria
voltados para o ambiente corporativo‖. Fonte: https://memoh.com.br/, acesso em 03/11/2022.
97

Figuras 29, 30 e 31

Figuras de 32 e 33

Os gráficos a seguir apresentam a evolução do número de seguidores no arco


temporal de 22/06/2020 a 31/10/2022, o volume de publicações do perfil em sequência
cronológica, a ocorrência de temas por trimestre e a evolução do número de curtidas do perfil.

Gráfico 10

Evolução do número de postagens

Período Postagens
De 26/09 a 25/11/2020 5 publicações,
De 26/11/2020 a 25/01/2021 18 publicações.
De 26/01 a 25/03/2021 7 publicações
De 26/03e 25/05/2021 54 publicações
De 26/05 a 25/07/2021 43 publicações
98

Período Postagens
De 26/07 a 25/09/2021 15 publicações
De 26/09 a 25/11/2021 20 publicações
De 26/11/2021 a 25/01/2022 37 publicações
De 26/01 a 25/03/2022 21 publicações
De 26/03 a 25/05/2022 12 publicações
De 26/05 a 25/07/2022 19 publicações
De 26/07 a 25/09/2022 14 publicações
De 26/09 a 21/10/2022 3 publicações
Tabela 6

12
10
8
6
4
2
0

Divulgações Vulnerabilização
Sexualidade Crítica à Pornografia
Autocuidado Masculino Espiritualidade
Feminismo Masculinidade
Relacionamentos Homoafetividade e homossexualidade
Misoginia Paternidade
Pessoal/Privado Violência e/ ou abuso
Política

Gráfico 11
99

14
12
10
8
6
4
2
0

Acima de mil Acima de 2 mil Acima de 4 mil


Acima de 10 mil Acima de 20 mil Acimda de 40 mil

Gráfico 12

3.3.1 Discussão do perfil


Duas características particulares chamam atenção para o este perfil quando comparado
aos outros que são objeto de análise nesta pesquisa. A primeira é a ausência do uso de
referenciais científicos como recurso de validação para os conteúdos postados. A segunda, é
que diferentemente das outras duas contas analisadas, que são predominantemente
prescritivas, a página de Fabio possui um conteúdo confessional. Suas experiências pessoais
atravessam as tematizações e abordagens. Fabio divide com seus seguidores a importância da
―sinceridade radical‖ como ferramenta de ―cura‖, portanto, incentiva em suas vivências a
partir de um ato voluntário de coragem pela exposição pública que os homens em processo de
―reconstrução‖ (ou desconstrução) façam o mesmo. A utilização da palavra ―cura‖ bem como
o nome do perfil (―Masculinidade Saudável) não casualmente expressam implicitamente a
percepção de que a masculinidade hegemônica se constitui em uma enfermidade social e
cultural. Tal abordagem fica bastante evidente nas duas sequências de imagens abaixo,
postadas originalmente no sistema de ―carrossel‖:
100

Sequência 1:

Figuras 34 e 35

Figuras 35 e 36
101

Figuras 37 e 38

Figuras 39 e 40

Figura 41
102

Sequência 2:

Figuras 41 e 42

Figuras 43 e 44

Figuras 45 e 46
103

Figuras 47 e 48

Figuras 49 e 50

Figura 51
104

Como referido anteriormente, o perfil ―Masculinidade Saudável‖ destaca-se entre os


do grupo mitopoiético, baseado nas ideias do poeta norte-americano Robert Bly,
particularmente aquelas expressas em uma entrevista de 1982, publicada sob o título "O que
os homens realmente querem? Uma entrevista da Nova Era com Robert Bly", e na Publicação
de 1990, ―Iron John: A Book about Men‖. Neste livro, Bly confia fortemente no estudioso de
mitologia e religião Joseph Campbell sobre a natureza arquetípica dos contos de fadas, que ele
derivou da psicologia analítica junguiana. Bly usou um conto de fadas dos irmãos linguistas e
folcloristas alemães Jakob LK Grimm e Wilhelm K. Grimm chamado "Iron John" como
modelo para os homens contemporâneos e como forma de guiar os homens em um jornada
espiritual para se reconectar com as partes masculinas profundas de si mesmos que a
sociedade moderna escondeu deles. Ele se esforça para reafirmar uma masculinidade original,
arquetípica, para permitir que os homens lidem com a dor de suas vidas e é, portanto, uma
combinação de construções de gênero essencialistas e relativistas. A base do movimento na
psicologia moldou a aplicação de seus ensinamentos: evitou questões abertamente políticas
relacionadas aos homens (nas quais outros movimentos se concentraram) e se preocupou com
o bem-estar emocional, espiritual e psicológico dos homens. O movimento mitopoiético tem
várias organizações, algumas mais formais que outras, associadas a ele, cada uma com seus
próprios objetivos. Os assuntos gerais de interesse do movimento, no entanto, são aqueles
tradicionalmente associados aos homens: guerra, violência, a capacidade (ou incapacidade) de
viver de acordo com os ideais de masculinidade e como exercer a paternidade, embora o
movimento também possua uma orientação filofeministas.

Cumpre aqui destacar que dentre os perfis analisados, foi junto ao


divulgador/influenciador Fabio Manzoli que tive uma experiência de contato direto, porém
muito antes de iniciado o trabalho de pesquisa e que não resultou em nenhuma forma de
proximidade posterior. Nos idos do ano de 2017 tive a oportunidade de participar de duas
vivências realizadas em espaços alugados na cidade do Rio de Janeiro. Em verdade, esta
configurou minha primeira experiência imersiva com grupos relacionados aos movimentos de
homens. O primeiro encontro funcionou em sistema de partilha de vivências, ou seja, homens
de diferentes idades e orientações sexuais (todos brancos e de classe média) compartilharam
depoimentos sobre processos pessoais envolvendo aspectos causadores de sofrimento
psíquico tendo a condição masculina como causa comum. Ao longo do trabalho, que ocupou
os períodos matinal e vespertino, foram realizadas práticas de meditação, respiração e
dinâmicas interacionais, conduzindo invariavelmente à experiências de catarse emocional. O
105

segundo encontro conservou as mesmas características, mas teve como diferencial a presença
de mulheres, fator que concorreu para elevar ainda mais o processo de catarse emocional,
sobretudo em razão da intensidade das partilhas, catalisadas pelas identificações mútuas e
aberturas reconciliatórias.

Na ocasião, Fabio estava iniciando sua transição profissional, tendo deixado uma
promissora carreira no setor privado na área de administração de empresas. A condução de
suas vivências era sempre atravessada por relatos pessoais envolvendo aspectos negativos de
sua própria masculinidade e sobre sua jornada individual de transformação. Consumo de
pornografia, crises de ansiedade, descontrole emocional, objetificação sexual da mulher,
infidelidade e ressentimento de gênero eram os temas mais recorrentemente mencionados por
ele. Três anos depois destes encontros, quando seu perfil no Instagram é inaugurado, estes
persistem sendo os principais temas de suas publicações.
106

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O problema que nos moveu foi a emergência dos variados movimentos de homens que
possuem como objetivo a redefinição, reconstrução e/ou a, ―ressignificação‖ da
masculinidade‖, sem a apresentação prima facie, de uma unidade estrutural interna que
autorize auferir um sentido de unidade que escape à redução semântica que os termos
―redefinir‖, ―ressignificar‖, ―reconstruir‖ ensejam. Com essa investigação, pretendíamos à
princípio encontrar uma possível unidade intrínseca a estes movimentos, buscando localizar
sob uma perspectiva sociológica e filosófica, o ponto em que se situa o ―moto aglutinador‖, a
alavanca ontológica deste movimento: dentro do ―coração‖ dos homens, movendo-se a partir
de uma ―vontade de mudança‖ originada nas angústias enfrentadas face à uma conformação
de mundo que não mais atende aos padrões que correspondiam aos anseios e necessidades das
gerações que nos antecederam? Ou fora de si, como ressonância das pautas feministas
dirigidas especificamente ao modo de ser dos homens no mundo e seus papéis na sociedade,
fazendo do movimento para ―reconstrução, ressignificação, redefinição‖ das masculinidades
uma espécie de ―feminismo de segunda mão‖? Detectamos que as mutações recentes do
capitalismo via não apenas o movimento feminista mas também através de todos os
questionamentos aportados pelo que convencionou-se chamar de ―agenda identitária‖ passou
a representar uma forma de risco para a manutenção das hegemonias de raça, classe e gênero
historicamente constituídas. Como apontado na introdução do trabalho, a repercussão destas
mutações no que diz respeito ao estudo das masculinidades, operamos com um tripé de
fenômenos representativos deste processo: 1) O aparecimento de uma ―masculinidade
ameaçada‖; 2) o aparecimento de uma ―masculinidade envergonhada‖; e 3) um processo de
reidentitarização da masculinidade.

Nos objetivos específicos da pesquisa, nos propusemos a cumprir três tarefas: 1 ) criar
categorias de análise a partir de uma cartografia dos perfis; 2) mapear tendências de
discussão no campo; 3) formular um projeto de intervenção com vistas a ampliar o debate
público em torno da questão das masculinidades a partir de questionamentos não
contemplados no debate atualmente estabelecido. A primeira tarefa foi cumprida a partir da
categorização dos grupos observados, devidamente tabelados e conceitualmente justificados.
A segunda tarefa foi executada de maneira não exaustiva, posto que a heterogeneidade de
abordagens temáticas e manifestações de formas emergentes de masculinidade, sobretudo
calcadas na interseccionalidade e na fluidez representam um desafio metodológico cuja
107

complexidade demanda um investimento observacional permanente, incompatível com um


processo de pesquisa de duração breve. A terceira tarefa consta no apêndice I do trabalho.

Quanto à pergunta central desta pesquisa, se estamos nos deparando com um projeto
ativo de redefinição da masculinidade dos homens pelos homens ou se trata-se de um
movimento de adequação às demandas do feminismo na contemporaneidade, talvez a melhor
resposta seja optar por uma via não disjuntiva. O que não é preciso é a definição sobre o
agente causador – talvez mesmo, seja um problema não necessário ou um falso problema.
Como refletimos na justificativa, trata-se de um processo de natureza ético-política. Daí a
opção pela fenomenologia levinasiana em considerar que, em sendo seres-para-o-outro, tal
separação é ociosa, equivocada. A mesma perspectiva surge, em formulações não idênticas a
esta, na maioria dos estudos sobre gênero. Trata-se de um sistema, e, assim sendo, toda
tentativa de separação estanque na análise das transformações dos atores sociais nele
implicados são negações da complexidade. Daí que, ao buscar-se a possibilidade da afirmação
de um movimento masculino alavancado em uma ontologia da masculinidade como motor da
sua própria revisão e transformação, resultaria na negação da alteridade – o que incorre em
fascistização. Parafraseando Sartre em seu ―o existencialismo é um humanismo‖, o machismo
é um fascismo, posto que o segundo é a afirmação supremacista de toda e qualquer forma de
hegemonia – evidentemente, este processo existe e assim foi detectado na análise dos grupos
masculinistas, que consideram o princípio feminino um apêndice à ideia de superioridade
natural do ente masculino – mesmo que de maneira dissimulada. O que notamos portanto foi a
assunção de uma retórica de ―guerra cultural‖ entre conservadores e progressistas que parece
ditar os rumos do debate político atual no Brasil e no mundo, processo alçado a uma condição
exponencial graças ao advento das redes sociais.

Há de fato algo no discurso do campo das esquerdas que aparentemente retroalimenta


o apetite do neofascismo, conduzindo ao estabelecimento de um sistema ―discursofágico‖: os
tradicionalistas se alimentam da produção crítica que circula no ambiente das redes nas ditas
―bolhas de esquerda‖, dado característico de sua arquitetura algorítmica baseada no embate
binário. A esquerda é sempre posta em um impasse: ao buscar o universal, realça o valor da
diferença exaltando a função ético-política dos devires-minoritários. Ao fazê-lo, seus
numerosos atores atravessados por pertencimentos identitários hegemônicos são postos em
xeque. Seu discurso, enfraquecido pela denúncia da impropriedade dos ―lugares de fala‖ é
comprometido em sua potência. O enunciador hesita e emula um discurso que circula na rede
a partir de legitimações consensuais. Há um dado de culpa atravessando o enunciador. Uma
108

fala que se dirige a uma autoridade imaginária, conferida pelo devir-minoritário. E dessa falha
se nutre o pensamento totalizante: ele afirma o poder de uma idealização identitário-unitária.
É a hora de resgatar ―o homem‖ tradicional, o não afetado pela culpa, pelo embaraço, isento
da necessidade de admoestação, escrutínio e penitência frente a um tribunal ético
autolegitimado que avalia os pequenos e grandes delitos e impropriedades do masculino.

A conformação altamente capilarizada das redes sociais permite uma exploração


infinita da permeabilidade das massas a discursos de apelo alarmista, tirando proveito do
alcance que as novas mídias oferecem. Vimos ao longo do último processo eleitoral, como
eco deste embate entre conservadores e progressistas, o apelo à ideia de ―liberdade de
expressão‖ como princípio máximo, submetendo inclusive o conceito de democracia a uma
posição menor, ou querendo fazer coincidir uma com a outra. Mas, grosso modo, tratar
desinformação deliberada como liberdade de expressão, não apenas rebaixa e reduz esse
princípio a um uso vulgar e descontextualizado como também produz um estado de anomia
informacional com efeitos corrosivos pro tecido social. Liberdade nas democracias é sempre
liberdade circunstanciada, porque democracias demandam potabilidade da informação
circulante. Em democracias, se a liberdade de desinformar é tomada como valor supremo e
confundida com "liberdade de expressão" como summum bonum, em algum momento a
crítica vai morrer de inanição. Pode continuar ainda democracia, mas é democracia adoecida.
Quem garante a liberdade de expressão é a democracia e não o contrário. Se a liberdade de
expressão ameaça a democracia, ela precisa ser relativizada. Reforçando, qualquer liberdade
"absoluta‖ representa anomia.

Já na esfera progressista, observamos a ética do ―cancelamento‖ como uma prática


política mais freqüente que entre os conservadores, considerando que as vítimas da dita
―cultura do cancelamento‖ estão dentro do próprio campo. Há a possibilidade de que exista
dentro deste campo uma primazia da crítica, podendo a mesma ser levada ao paroxismo,
tornando-se autofágica – ou seja, crítica sem autocrítica. A cultura do cancelamento é
perniciosa, mas ela neutraliza predominantemente gente de dentro do próprio campo
progressista. A anomia informacional virou aposta política da extrema direita e faz um estrago
que extrapola os limites de seu campo ideológico, sobretudo quando atua deliberadamente no
sentido de criar estados de pânico moral com potencial para interferir diretamente no
resultado das eleições. Todavia, também percebemos que o mansplaining, o manterrupting, o
bropriating e o manspreading deixam de ser ameaças oriundas um novo superego social
(ironicamente, a função punitiva da instância superegoica correspende à função paterna na
109

teoria psicanalítica do inconsciente). A onda tradicionalista pode ser percebida então como
uma onda contramoral e dessa onda emergem grupos como os incels e os MGTOW,
caracterizados pela rejeição ao feminino e pela demarcação rígida das fronteiras de gênero. O
que resta como liame entre os segmentos antagônicos do debate sobre masculinidades é que,
de algum modo, tanto os movimentos de masculinidade generorreformistas quanto os de
resgate tradicionalista do ideal viril e os de radicalização misógina são todos costelas de Eva.
Os levantes minoritários, contrahegemônicos, são, como apontam as filosofias da contradição,
o motor da História. Tal constatação aponta para um dado incontornável: o antigo sujeito
universal, a ―ratio‖ iluminista, masculina, branca, ocidental, cisgênero, patriarcal e
monogâmica, foi despojado de suas vestes e por ora ainda não sabe como cobrir suas
vergonhas. Quem sabe o passo que falta nos seja aprender a deixar de cobri-las, como sempre
fizeram aqueles a quem chamamos ―índios‖.
110

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ANEXO I
―Projeto Libertas‖, submetido ao edital PDPI em parceria da UFF com a prefeitura de
Niterói no ano de 2020.

Resumo

Este projeto, integrante do eixo ―Niterói Inclusiva: Igualdade de Oportunidades‖,


consiste em um movimento de intervenção assistencial e pedagógica no campo das discussões
de gênero e de sexualidade. Está baseado na formação de professores multiplicadores em
parceria com a Universidade Federal Fluminense tendo por público alvo estudantes do 8º e 9º
ano do ensino fundamental II da rede pública municipal de Niterói. Seu objetivo central é a
prevenção à violência e a promoção da equidade de gênero através do tripé: ensino, grupos
reflexivos/mediação de conflitos, acompanhamento psicossocial. O agenciamento dos grupos
reflexivos contemplará adolescentes de ambos os gêneros buscando a construção de uma
cultura de diálogo norteada pelos princípios da comunicação não violenta (CNV) com foco no
enfrentamento dos aspectos deletérios do androcentrismo, tratando-se efetivamente de uma
ação orientada pela Base Nacional Curricular Comum (BNCC) na dimensão das competências
socioemocionais. O projeto abarca os princípios da: 1) autoconsciência; 2) autogestão; 3)
consciência social; 4) habilidades de relacionamento; 5) tomada de decisões responsáveis. O
projeto visa também confrontar as circunstâncias que facilitam a formação dos processos de
misoginia e lgbtfobia nas relações sociais mediante a promoção do reconhecimento da
dignidade outro, orientada por uma concepção ética, de respeito às diferenças, enquanto valor
positivo, democrático e promotor da empatia. Em seu percurso, pretende-se disponibilizar aos
atores envolvidos ferramentas de combate ao bullying com origem em questões sexoafetivas e
estereotipias de gênero, enquadrando-se no escopo do projeto ―Escola da Paz‖ e da Rede
Mediar, ambos no âmbito da prevenção no ―Pacto Niterói Contra a Violência‖.

Introdução

A violência contra mulheres vem sendo tratada como uma questão de saúde há cerca
de duas décadas. É um fenômeno social que, por muito tempo, permaneceu relativamente
oculto (Saffioti, 2015). Para sua prevenção, a organização Mundial da Saúde tem incentivado
o trabalho junto a homens. Diversas publicações internacionais de impacto no campo da saúde
trataram desse tipo de intervenção, mais recentemente em busca de uma compreensão
renovada da sua lógica. Incentivam e problematizam a participação dos homens em
118

intervenções planejadas desde o nível comunitário que focalizam os determinantes culturais


da violência contra mulheres, e enfatizam uma abordagem preventiva e de promoção da
equidade de gênero. Vislumbra-se assim propor a relação entre homens e mulheres por
intermédio da desconstrução das oposições de gêneros e, por conseguinte, a possibilidade da
vivência satisfatória de relacionamentos afetivos desprovidos da violência e das relações de
poder. Segundo Louro (1997), uma das consequências mais significativas da desconstrução
dessa oposição binária reside na possibilidade que abre para que se compreendam e incluam
as diferentes formas de masculinidade e feminilidade que se constituem socialmente. Ao
aceitarmos que a construção de gênero é histórica e se faz incessantemente, estamos
entendendo que as relações entre homens e mulheres, os discursos e as representações dessas
relações estão em constante mudança.

As mudanças provocadas pelo feminismo desestabilizaram o modelo masculino


tradicional e colocaram a necessidade de sua revisão. Desde a década de 70, a questão
masculina tem sido objeto de muitos estudos, em diferentes países, como Estados Unidos,
Canadá, França, Brasil, Peru (Tolson, 1977; Carrigan, Connel & Lee, 1985; Bly, 1991;
Badinter, 1993; Nolasco, 1993). Tendo como preocupação básica ―repensar o masculino‖ e
compreender os processos de mudança por que passam os homens, tais estudos adotam em
suas análises a perspectiva social e/ou relacional de gênero. Como diz Badinter: ―longe de ser
pensada como absoluta, a masculinidade, atributo do homem, é relativa e reativa. Tanto que,
quando a feminilidade muda – em geral, quando as mulheres querem redefinir sua identidade
– a masculinidade se desestabiliza‖ (Badinter, 1993).

É possível hoje discutir sobre as masculinidades pensando-as, sob a contribuição de


Connell (1995), como a construção social das performances masculinas nas relações de
gênero. Heilborn e Carrara (1998) argumentam que o desenvolvimento da questão de gênero
cunhou discussões como a criação do termo: ―masculinidades‖, ou seja, distintas e
coexistentes identidades masculinas. Tal conclusão revela que as masculinidades se
constituem em aspectos históricos, culturais, sociais que realizam arranjos relacionais que
distinguem as vivências masculinas e abrem possibilidades para a diversificação do que se
considera masculino.

Nesta direção, temos observado o crescimento de coletivos masculinos que investem


na produção de novos valores associados principalmente à aceitação das condições
inerentemente limitadoras da existência (castração, finitude e abandono) que são
119

predominantemente elaborados na identidade dos homens através de respostas que levam os


homens à fantasia de poder, posse, controle, onipotência e infalibilidade. Em levantamento
recente do Instituto Papo de Homem, responsável por ações no campo de gênero e
masculinidades, existem em torno de 180 grupos atuando em território nacional com foco na
prevenção da violência e na desconstrução de padrões deletérios associados ao psiquismo
masculino.

Para o sociólogo Francis Dupuis-Déri (2010) não é novidade que as mulheres são
acusadas de ―reivindicar demais‖, que lhes dizem que já têm direitos suficientes, que a
igualdade de fato é alcançada e que a luta feminista é de fato um pretexto para alcançar a
supremacia das mulheres. Também não é novidade que tentamos reafirmar a identidade
feminina de acordo com tipos de comportamentos e princípios de valores como gentileza,
tolerância, dedicação, compaixão e, acima de tudo, dependência em relação aos homens.
Quando mulheres ou grupos de mulheres se recusam a obedecer aos padrões de vida
impostos, também ouvimos a reação dos homens que dizem estar ―sofrendo‖ em relação à sua
identidade como homens e, de fato, sua razão de ser. Isso é chamado de ―crise da
masculinidade‖, ou melhor, ―discurso de crise‖. Dupuis-Déri afirma que não é por ser um
simples discurso de crise que não afeta o real. De fato, o discurso da crise tem sido
frequentemente usado por especialistas em comunicação – portadores de ideologias – para
mobilizar as pessoas em seu proveito. Desta forma, problemas sociais sérios podem receber
menos importância diante de falsos problemas ou problemas menores. Essa manobra política
para apelar à ―crise‖ e incentivar intervenções nesse sentido atende a interesses específicos
daqueles que propagam esse senso de urgência. Declarar uma crise pode servir como um
poderoso agente mobilizador para as autoridades políticas e sociais desenvolverem uma série
de recursos, grupos, projetos de pesquisa e posições em favor dos homens.

Sociólogos e antropólogos argumentam que o discurso da crise é um dos dominantes e


que ―um estado de crise surge toda vez que uma dominação é questionada‖ (Dupuis-
Déri,2010). Segundo a antropóloga Mélanie Gourarier, o discurso de crise tem três
consequências principais para uma sociedade: ―1) insiste na divisão da sociedade em duas
classes de ―sexo‖ (sic), homens e mulheres; 2) especifica os critérios de pertencimento a essas
duas classes, recordando qualidades masculinas e falhas femininas (define o que um homem
―verdadeiro‖ deve ser); 3) ele pede mobilização para (re) afirmar essa masculinidade pelos
privilégios e poder da classe dos homens, considerados superiores por natureza e cuja
supremacia deve ser restabelecida, protegida e mantida‖. Mais do que a questão da ―crise da
120

masculinidade‖, parece inevitável a partir de agora questionar a própria noção de


―masculinidade‖, um conceito que é elástico e variável em diferentes épocas e culturas, mas
que, usado como ferramenta de propaganda, serve aos poderosos para manter o status quo das
relações de gênero, hierárquicas, a favor dos homens.

Relevância da Proposta

Segundo Saffioti (2015), as maiores preocupações dos brasileiros residem, geralmente,


no desemprego e na violência. No bojo dessas preocupações, sobre hegemonia do capital
financeiro e do neoliberalismo, para além da violência urbana, da diminuição do poder
aquisitivo, do esfacelamento de relações familiares, figura a violência de gênero. Nosso
entendimento acerca do conceito de violência de gênero aponta para a definição de Busin
(2010):

(...) a violência de gênero é uma violência simbólica que atinge qualquer pessoa que
(...) seja vista como inferior, desigual, desqualificada, excluída, objetificada ou desumanizada
por não seguir os scripts culturais de gênero em que foi socializada. Como qualquer violência
simbólica, a violência de gênero dá base e legitima outras violências, por isso proponho
também que qualquer violência física ou econômica, bem como psicológica ou sexual que se
dê por causa das relações desiguais de gênero seja também denominada violência de gênero.

Essa perspectiva mobiliza quase sistematicamente o conceito de ―masculinidade


hegemônica‖ por três motivos: (1) permite ressaltar a importância das relações de poder em
escala social, legitimadas por certas representações dos ideais da masculinidade, enquanto
fator determinante das violências perpetradas por homens contra outros homens, contra si
mesmos e contra as mulheres; (2) focaliza as masculinidades: além de desnaturalizar a
violência perpetrada por homens, dificulta a tradicional responsabilização das mulheres por
essa violência; (3) permite compreender possíveis ―custos da dominação masculina‖ sem
perder o enfoque na promoção da equidade de gênero, o que ajuda a pensar intervenções que
envolvam a participação ativa dos homens.

As representações da feminilidade enquanto não-sujeitos plenos e como responsáveis


quase que exclusivamente pela sustentação de uma ética baseada no cuidado são
preponderantes na cultura. O frequente sucesso da violenta imposição dessas representações
às mulheres impede os homens de compreender que são representações ideológicas, parciais
da realidade. Ser mulher significa ser forçada a cuidar das necessidades dos outros – enquanto
121

parceira sexual mãe, esposa, mas também no mercado do trabalho formal. São as implicações
subjetivas deste trabalho de cuidado que não são acessíveis à consciência dos homens,
configurando o que Tronto (2012) chama de ―indiferença dos privilegiados‖. Mais do que dar
voz aos ―excluídos‖, é necessário convidar os que estão no centro e insensíveis aos próprios
privilégios a refletirem sobre a questão, fazendo visíveis os danos naturalizados pela cultura
na reprodução destes padrões

A ênfase na questão do androcentrismo42 justifica-se, portanto, por se tratar se de uma


constituição valorativa típica do processo civilizatório que se espraia desde nossa matriz
sociocultural, considerando a rigidez emocional, a exigência performativa de infalibilidade e o
elogio à competitividade como aspectos definidores de uma conformação de mundo que
coloniza as subjetividades que lhes são adjacentes como permanentes linhas auxiliares que
atualizam o poder masculino, que autoriza ou desautoriza a partir de sua centralidade formas
diferenciais de existir no mundo a partir da perspectiva hegemônica de gênero.
Consequentemente é pela existência de um padrão hegemônico de masculinidade convertido
em ideologia dominante que são estabelecidas as demais hierarquias de gênero e as relações
de poder delas decorrentes, implicando no surgimento das variadas formas de violência
concreta e simbólica que se manifestam no convívio social, como a misoginia e a lgbtfobia.
Isso abarca as variações de discriminações centradas no comportamento sexual dos indivíduos
a partir de uma normatividade organizada ao redor de padrões naturalizados pela cultura,
predominantemente heterossexual e androcêntrica. Não há sentido, portanto, na separação
estanque entre homens e mulheres para se atacar a questão da reprodução da violência de
gênero. É da natureza da violência enquanto fenômeno estrutural produzir a supressão da
comunicação, e por extensão, do lastro humanitário que sustenta as relações mediadas pelo
reconhecimento da dignidade do outro. Na violência, todos são reduzidos a objetos. É
somente a partir do resgate da dimensão humana no sentido da restituição dos sentidos da
alteridade como condição que sustenta a dignidade subjetiva que se pode avançar na
compreensão e mitigação dos fenômenos que produzem a violência como fenômeno
sociocultural. Desarmar os mecanismos produtores de violência a partir da sua condição
estrutural presente na ideologia androcêntrica está necessariamente na ordem do dia de
42
Podemos aplicar em substituição o conceito de ―falogocentrismo‖, cunhado por Jacques Derrida em
1975, designando a dominação masculina, evidente no fato de o falo ser sempre aceite como o único modo de
validação da realidade cultural. A sociedade dominada pelo falogocentrismo percebe sempre a mulher com base
na sua relação com o homem, fazendo prevalecer os aspectos que lhe faltam em oposição a uma alegada
plenitude masculina. O discurso é falogocêntrico porque se organiza internamente à volta de todos os sinais e
signos do masculino, seja no que diz respeito ao vocabulário, seja em relação à sintaxe, à gramática ou mesmo às
próprias regras da lógica discursiva.
122

qualquer agenda favorável à equidade de gênero que se pretenda eficiente – isto se aplica às
agendas feminista e pelos direitos LGBTQI+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais,
Travestis, Transgêneros, Queers, Intersexuais, Assexuais, Pansexuais). Mais que reivindicar a
força destes segmentos, se quisermos caminhar na necessária promoção da equidade de
gênero e na diminuição da violência concreta e simbólica que cinde as relações sociais como
um todo, é fundamental concentrar esforços no sentido de compreender e transformar os
processos que sustentam a repulsa à vulnerabilidade como grande sintoma de adoecimento do
psiquismo masculino e, por consequência, como fator de desestruturação de suas relações
sociais.

Como desdobramento desta cultura, surgem os padrões de comportamento que


funcionam como marcadores de sucesso social a partir de uma perspectiva sexocentrada cujas
repercussões no plano subjetivo poder operar de maneira oposta em homens e mulheres mas
potencialmente devastadoras para ambos, sobretudo durante a adolescência. O grupo
denonimado ―Incels‖ (traduzido do Inglês como ―celibatários involuntários‖) pode ser
enquadrado no escopo deste fenômeno. A timidez, o sentimento de inadequação, as falhas
narcísicas que se acentuam durante a adolescência tendo como pano de fundo as pressões
sobre a afirmação da identidade masculina a partir da experimentação sexual auxiliaram na
emergência de comunidades organizadas em fóruns virtuais em que jovens promovem a
circulação de representações depreciativas sobre o feminino nas quais assumem a condição de
vítimas de uma espécie de sistematização de padrões imaginários de masculinidade que
supostamente privilegiariam um perfil cujos requisitos lhes são percebidos como inatingíveis.
O ressentimento alimentado mutuamente nesses grupos, geralmente constituídos por jovens
vítimas de bullying em suas escolas, tem chamado a atenção desde os massacres escolares
ocorridos em Suzano (2019) e Realengo (2011), reivindicados por jovens autodeclarados
celibatários involuntários. Organizados ou não, não se trata possivelmente de um tipo social
pouco frequente e estes dois episódios em território nacional já bastariam para acender o sinal
de alerta entre as autoridades, uma vez que se trata de um fenômeno cultural já bastante
capilarizado, mas ainda não devidamente mapeado.

Ainda no registro da violência psicológica originada em padrões do comportamento


sexual, destacamos a prática do slut shaming, que consiste literalmente na humilhação pública
– iniciada em geral pela exposição de imagens e diálogos de conteúdo erótico envolvendo
meninas. Este fenômeno tem sido responsável por um aumento considerável no número de
suicídios entre meninas e sua principal premissa é a da existência de uma interdição
123

imaginária fundada na primazia do masculino no campo da sexualidade. A partir desta


perspectiva, os homens heterossexuais seriam naturais legatários do direito ao sexo,
produzindo a condenação ao direito à livre experimentação da sexualidade e à autonomia dos
corpos femininos, fazendo prevalecer o conceito de ―duplo padrão moral‖ no campo da
sexualidade que define a existência de mulheres ―boas‖ ou ―más‖ a partir suas condutas
sexuais.

Este projeto tem, portanto, o potencial de intensificar ferramentas já existentes e


inovar em estratégias de proteção contra o bullying de fundo na sexualidade, a partir da
formulação de indicadores, sistemas de alerta e prevenção, redes de apoio psicossocial e
espaços de mediação de conflito que, a depender do êxito de sua implementação, poderão ter
impacto direto na transformação das relações de gênero nos territórios contemplados com
consequências diretas e indiretas na redução dos índices de violência nas relações escolares e
familiares.

Objeto a ser executado

Este projeto de intervenção se apoia sobre o tripé atividades pedagógicas, grupos


reflexivos/mediação de conflitos e acompanhamento psicossocial. A supervisão de ensino
ficará sob competência da equipe Pedagógica (profissionais da educação) e a supervisão
psicossocial, no que tange a mediação de conflitos e a constituição da subjetividade na
formação humana, sob competência da equipe de Psicologia, e no que diz respeito às
articulações da rede de atendimento e acompanhamento social, sob supervisão da equipe de
Serviço Social.

O projeto deverá se iniciar pela aplicação de um questionário exploratório nas doze


escolas de 3º e 4º ciclos do ensino fundamental, perfazendo um total de 12 unidades escolares,
contemplando o corpo docente e discente. O conteúdo do questionário será voltado para
representações familiares, representações de gênero, autorrepresentações sobre o corpo e
subjetividade, representações morais de fundo religioso, vivências discriminatórias (vítima
e/ou autor), além do perfil socioeconômico. A avaliação deste questionário pretende balizar
alguns aspectos fundamentais da intervenção: entre alunos, avaliar o ressentimento como
condição primária do comportamento misógino/lgbtofóbico entre homens; avaliar o grau de
exposição à violência de gênero dos participantes, avaliar a escala de valores pessoais de
natureza moral/religiosa como possíveis fatores de resistência à abordagem; entre professores,
avaliar a abertura para participar do projeto e as eventuais resistências implicadas.
124

O prazo para aplicação, análise e definição de estratégias será de 30 dias. Esta escolha
será realizada em conjunto com a Secretaria de Educação, Ciência e Tecnologia do município
de Niterói, que também estará encarregada da divulgação junto às coordenadorias regionais
com a finalidade de promover a indicação de um professor representante por escola, a quem
caberá, caso haja adesão à proposta em questão, a responsabilidade pela implantação local do
projeto e pela interlocução com a equipe de supervisão. Esta fase inicial não deverá extrapolar
em 30 dias do início do projeto. Uma vez indicados estes profissionais, a coordenação do
projeto deverá iniciar as atividades de formação no prazo máximo de 15 dias. A formação
acontecerá no formato de curso de extensão e é aberta a todos os professores das escolas
participantes. Caberá ao professor representante articular as estratégias para a implantação do
projeto em sua unidade escolar juntamente com os profissionais envolvidos (professores de
outras disciplinas e equipe pedagógica). Para tal, ele contará com o suporte da equipe de
supervisão responsável pela sua regional.

Os educadores designados receberão treinamento específico para mediação de


conflitos com ênfase em relações de gênero e sexualidade voltado para a ampliação do
diálogo entre os atores sociais envolvidos nestes processos e para a construção conjunta e
reflexiva de modelos de subjetividade capazes de admitir a vulnerabilidade como componente
indissociável do humano. Ao término dos quatro módulos, o participante deverá realizar o
planejamento de intervenção em modelo a ser disponibilizado pela coordenação do projeto,
bem como o relatório final ao término do ciclo anual como prerrequisito necessário para a
obtenção do certificado de conclusão. Os formadores e palestrantes (prestadores esporádicos
autônomos, não contínuos, sem subordinação, sem horário fixo e não repetidos) e não quando
não possuidores de vínculo com a UFF receberão um valor previsto na rubrica ―serviços de
terceiros – pessoa física‖, podendo eventualmente receberem auxílio previsto em orçamento
para transporte e diária quando no caso de residentes em outras praças.

Após a formação, os profissionais serão responsáveis pela realização de intervenções


pedagógicas no âmbito da unidade escolar, articuladas em uma perspectiva transdisciplinar.
Esta abordagem terá como uma de suas tarefas oferecer aos alunos material audiovisual e
conteúdos on line em ambiente virtual de aprendizagem relacionados à desconstrução de
padrões viciados de gênero, a saber, lugares estáticos e estereotipias que produzem e
perpetuam relações de poder assimétricas entre homens e mulheres que estão são base da
manutenção da cultura de violência de gênero nas dimensões física e simbólica,
compreendendo sobretudo o bullying de origem em padrões androcêntricos. As reuniões de
125

avaliação deverão ocorrer na Escola de Serviço Social da UFF, com periodicidade bimestral.
A equipe responsável será formada por um representante de cada escola municipal, três
estagiários da UFF em composição multidisciplinar, envolvendo alunos de graduação de
Psicologia, Pedagogia e Serviço Social e um professor responsável para cada uma das áreas
de competência deste projeto, cumprindo a tarefa de supervisão – que poderá valer como
campo de estágio curricular. Cabe ressaltar que serão seis estagiários ao todo, cobrindo um
total de doze escolas, de modo que as equipes serão dividas em sistema de rodízio para
garantir a cobertura adequada de todas as unidades. A equipe completa do projeto ainda
contará com um bolsista de pós-doutorado, cujo estágio deverá consistir na sistematização dos
resultados do projeto e em sua análise teórica aprofundada; dois técnicos especializados,
responsáveis pelo suporte administrativo; e um mestrando, responsável pelo suporte à
pesquisa.

O espaço virtual de aprendizagem a ser desenvolvido pela Superintendência de


Tecnologia da Informação da UFF (STI) servirá como repositório de material de apoio e para
a expansão dos espaços de interlocução aos quais este projeto se destina, criando interfaces
entre as diversas escolas da rede e profissionais e pesquisadores da área, fazendo circular os
conhecimentos adquiridos a partir da cultura do diálogo e contribuindo para ampliação da
massa crítica no público-alvo e com repercussões no âmbito de suas comunidades. A duração
do projeto será de um ano, tendo a meta de atingir 80% das unidades escolares e 70% do
alunado do 8º e 9º ano do ensino fundamental.

Bismestralmente, ocorrerão palestras ministradas por estudiosos e profissionais


especialistas contemplando os eixos fundamentais do projeto. Essas atividades também
ocorrerão na Escola de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense, que ficará
responsável pelo transporte dos alunos.

Em relação ao curso de formação, o mesmo será dividido em quatro módulos de


quatro aulas semanais, de quatro horas cada, a ser realizado nas dependências da Universidade
Federal Fluminense, inicialmente na Escola de Serviço Social, totalizando 16 encontros ao
longo de aproximadamente 4 meses. O primeiro módulo consistirá na apresentação da
estrutura, metodologia e objetivos do projeto; o segundo abordará os fundamentos e a prática
da comunicação não violenta (CNV); o terceiro será voltado para a prevenção ao bullying e à
violência de gênero; e o quarto será dedicado às relações de gênero a partir dos debates sobre
masculinidades e feminismo.
126

Ao término da primeira semana do curso de formação os professores envolvidos já


poderão iniciar as atividades em suas unidades escolares, organizando reuniões com os
demais colegas e a equipe pedagógica para traçar as diretrizes da execução do trabalho. A
ideia é iniciar as atividades em no máximo quinze dias após o encerramento da primeira
semana do curso. As dificuldades na implantação do primeiro módulo na escola deverão ser
relatadas à equipe de supervisão, que deverá oferecer suporte e propor direcionamentos para
otimizar a execução das atividades.

O projeto, mesmo em se tratando de uma política pública, provavelmente deverá


contar com a adesão voluntária das escolas, para tal é fundamental o engajamento das equipes
de coordenação e supervisão no trabalho de sensibilzação. Desde a aplicação do questionário
ao início efetivo dos trabalhos temos um prazo máximo de 45 dias. Caberá aos supervisores
fazer os avisos quanto ao cumprimento destes e zelar pela observação do cronograma.

As escolas poderão aproveitar as atividades como componente de avaliação bimestral


de acordo com seus projetos político-pedagógicos. Não há por parte dos idealizadores deste
projeto a previsão desta obrigatoriedade, em respeito à autonomia dos professores e das
unidades escolares.

Pensando na possibilidade da liberação de verbas deste edital não ocorrer


simultaneamente ao início do ano letivo, sua implementação não está atrelada ao cronograma
escolar de maneira estrita. As unidades de trabalho são livres e as temáticas poderão ser
selecionadas pelos educadores seguindo temas compatíveis com as fases de aprendizagem.
Por se tratar de uma modalidade de atividades focada predominantemente na organização de
grupos reflexivos e no aprendizado por competências, haverá flexibilidade quanto à
apropriação didática por parte dos educadores devendo apenas o responsável enviar à equipe
de supervisão o planejamento referente à implantação do projeto em sua unidade escolar.

Objetivos e Escopo

O objetivo central deste projeto é prevenção à violência e promoção da equidade no


âmbito das políticas de gênero e sexualidade e seus objetivos secundários são: 1) desenvolver
competências socioemocionais com vistas à construção da autonomia individual; 2) combater
a misoginia, a lgbtfobia e a cultura do estupro; 3) prevenir a prática de bullying com origem
em representações sociais oriundas da normatividade sexual androcêntrica; 4) promover a
construção de paradigmas positivos de masculinidade; 5) promover a ampliação do diálogo
127

intergênero; 6) incentivar a construção de uma cultura de paz com base na comunicação não
violenta; 7) estimular a promoção de sociabilidades saudáveis; 8) incentivar a construção de
projetos integrados de vida, nas dimensões emocional, profissional e familiar; 9) desenvolver
o senso de coletividade e engajamento ético-político; 10) auxiliar na ampliação da massa
crítica em torno do tema central com desdobramentos no âmbito das comunidades.

Os objetivos deste projeto estão alinhados:1) aos objetivos de desenvolvimento


sustentável da Organização das Nações Unidas (ONU) – Agenda 2030; 2) às diretrizes do
plano estratégico de Niterói,‖Niterói que Queremos‖ (NQQ); 3) Ao Pacto ―Niterói Contra a
Violência‖, no eixo da prevenção, alinhado à dois projetos específicos, a ―Rede Mediar‖ e ao
projeto ―Escola da Paz‖.

Sob a orientação da agenda da ONU, destacamos os itens 4 e 5, sobre educação e


igualdade de gênero, respectivamente: ―assegurar a educação inclusiva e equitativa e de
qualidade, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos‖ e
―alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas‖.

• Até o ano de 2030 todos os alunos deverão adquirir ―conhecimentos e


habilidades necessárias para promover o desenvolvimento sustentável, inclusive, entre outros,
por meio da educação para o desenvolvimento sustentável e estilos de vida sustentáveis,
direitos humanos, igualdade de gênero, promoção de uma cultura de paz e não violência,
cidadania global e valorização da diversidade cultural e da contribuição da cultura para o
desenvolvimento sustentável. (item 4.7).

• Acabar com todas as formas de discriminação contra todas as mulheres e


meninas em toda parte‖ (item 5.1).

• Eliminar todas as formas de violência contra todas as mulheres e meninas nas


esferas públicas e privadas, incluindo o tráfico e exploração sexual e de outros tipos‖ (item
5.2).

• Assegurar o acesso universal à saúde sexual e reprodutiva e os direitos


reprodutivos, como acordado em conformidade com o Programa de Ação da Conferência
Internacional sobre População e Desenvolvimento e com a Plataforma de Ação de Pequim e
os documentos resultantes de suas conferências de revisão (item 5.6).
128

• Adotar e fortalecer políticas sólidas e legislação aplicável para a promoção da


igualdade de gênero e o empoderamento de todas as mulheres e meninas em todos os níveis
(item 5c).

No âmbito da municipalidade, o ―Pacto Niterói Contra a Violência‖ prevê em seu


texto base, no que tange a prevenção, a aplicação de ―ações universais de caráter preventivo,
com foco no fortalecimento dos fatores de proteção a comportamentos de risco para todas as
crianças e adolescentes da cidade‖. Em consonância com esta diretriz, pretende-se uma
articulação com o projeto ―Escola da Paz‖ (eixo da prevenção), que estabelece os seguintes
termos:

―A Prefeitura de Niterói estabelecerá parceria com uma Organização da Sociedade


Civil selecionada via chamamento público, para que os professores construam, a partir da
vivência de um processo formativo coordenado por profissionais especializados, recursos
teóricos e pedagógicos para lidar com possíveis situações de violência nas escolas. A partir da
formação, os professores utilizarão a arte, o trabalho com o corpo e a cultura a fim de
promover o desenvolvimento das habilidades socioemocionais por meio de um processo
participativo que envolva toda a comunidade escolar – estudantes, profissionais da escola e
famílias – na melhoria da convivência escolar‖.

E ainda no âmbito do Pacto, pretendemos articular o projeto ao programa de Mediação


de Conflitos intitulado ―Rede Mediar‖, em conformidade ao estabelecido pelo decreto nº
13.380/2019, que prevê ações no âmbito escolar de mediação de conflitos, tendo também
como princípios a transversalidade, a comunicação não violenta, de onde destacamos os
seguintes artigos:

Art. 1º A implementação do programa de Mediação de Conflitos no Município dar-se-


á através da Rede Mediar que articulará iniciativas orientadas nos princípios da Mediação de
Conflitos e da Justiça Restaurativa com o objetivo de corroborar, disseminar e construir a
Cultura de Paz no Município.

Art. 9º O projeto da Mediação Escolar deverá ser apresentado à Comunidade Escolar


e, prezando o princípio da voluntariedade, ela optará ou não pela execução do projeto.

§ 1º Após a opção pela implementação, será desenvolvida em conjunto com a


Comunidade Escolar, o plano de trabalho, priorizando os princípios da autonomia e
129

empoderamento, os objetivos da participação direta dos envolvidos e a experiência


democrática.

Metas

Este projeto se alicerça em um plano simplificado de metas composto por onze itens:

1 – Criar indicadores para o monitoramento de aspectos específicos associados à


violência de gênero em suas diversas manifestações, incluindo as práticas de bullying que
estejam atravessadas por manifestações diretas da cultura androcêntrica: slut shaming,
lgbtfobia, humilhações relacionadas à sexualidade de maneira geral e potencialmente
geradoras de ressentimento e feridas emocionais.

2 – Atingir pelo menos 80% do corpo docente das escolas envolvidas e 70% do
alunado.

3 – Inserir os princípios norteadores do projeto no projeto político-pedagógico das


escolas.

4 – Ensejar a criação de políticas públicas voltadas para a prevenção do bullying no


campo de gênero e sexualidade.

5 – Incentivar a adesão dos alunos a partir do diálogo com as famílias, prestando


esclarecimentos para o caso de eventuais resistências à abordagem ou ao conteúdo.

7 – Atingir pelo menos 70% dos alunos dos 8º e 9º anos do ensino fundamental e 80%
das escolas durante o projeto.

8 – Certificar os alunos participantes e torná-los representantes permanentes do


projeto.

9 – Prevenir episódios de violência de gênero e bullying associado ao tema a partir do


monitoramento dos casos e intervenção pontual realizada pela equipe de supervisão em
parceria com as escolas.

10 – Organizar um seminário de abrangência nacional na área de gênero e sexualidade


dando destaque aos resultados do projeto. A previsão orçamentária para sua consecução
encontra-se em planilha anexa, bem como a justificativa dos gastos com transporte e diárias
para os convidados.
130

11 – Preservar sua continuidade através da criação de um projeto permanente de


extensão.

Metodologia

Em consonância com os Parâmetros Curriculares Nacionais, consideramos que este


projeto dialoga com o campo da Educação Afetivo-Sexual, cujo trabalho implica no
tratamento de questões que nem sempre estarão articuladas com as áreas do currículo — seja
porque são singulares e necessitam de tratamento específico, seja porque permeiam o dia-a-
dia na escola das mais diferentes formas, emergindo e exigindo do professor flexibilidade,
disponibilidade e abertura para trabalhá-las. A sexualidade gera nos alunos grande variedade
de sentimentos, sensações e dúvidas. Suas manifestações são espontâneas, acontecem
inevitavelmente e os professores precisam estar preparados para lidar com elas. A atitude de
acolhimento a essas expressões e de disponibilidade para ouvir e responder é fundamental
para o trabalho que aqui se propõe. O trabalho de Orientação Sexual se dará dentro da
programação, por meio dos conteúdos já transversalizados nas áreas do currículo, e
extraprogramação, sempre que surgirem questões relacionadas ao tema.

A partir do sexto ano a Orientação Sexual comporta também uma sistematização e um


espaço específico. Esse espaço pode ocorrer, por exemplo, na forma de uma hora-aula
semanal para os alunos (dentro ou fora da grade horária existente, a depender das condições
de cada escola). Do sexto ano em diante, os alunos já apresentam condições de canalizar suas
dúvidas ou questões sobre sexualidade para um momento especialmente reservado para tal,
com um professor disponível. Isso porque, a partir da puberdade, os alunos também já trazem
questões mais polêmicas sobre sexualidade e já apresentam necessidade e melhores condições
para refletir sobre temáticas como aborto, virgindade, homossexualidade, pornografia,
prostituição e outras.

O projeto é estruturado sob a perspectiva da organização por competências, assim


definida por Perrenoud (1999, p. 30): ―a faculdade de mobilizar um conjunto de recursos
cognitivos (saberes, capacidades, informações etc.) para solucionar com pertinência e eficácia
uma série de situações‖. No caso específico deste projeto, a ênfase está no desenvolvimento
das competências socioemocionais conforme a recomendação da Base Nacional Curricular
comum, abarcando os princípios da: 1) autoconsciência – Envolve o conhecimento de cada
pessoa, bem como de suas forças e limitações, sempre mantendo uma atitude otimista e
voltada para o crescimento.; 2) autogestão – Relaciona-se ao gerenciamento eficiente do
131

estresse, ao controle de impulsos e à definição de metas; 3) consciência social – Necessita do


exercício da empatia, do colocar-se ―no lugar dos outros‖, respeitando a diversidade; 4)
habilidades de relacionamento: Relacionam-se com as habilidades de ouvir com empatia, falar
clara e objetivamente, cooperar com os demais, resistir à pressão social inadequada (ao
bullying, por exemplo), solucionar conflitos de modo construtivo e respeitoso, bem como
auxiliar o outro quando for o caso; 5) tomada de decisões responsáveis – Preconiza as
escolhas pessoais e as interações sociais de acordo com as normas, os cuidados com a
segurança e os padrões éticos de uma sociedade.

A abordagem em sala de aula envolverá não apenas o acesso ao conteúdo pedagógico


do projeto, mas também a promoção de grupos reflexivos, cuja orientação metodológica é
baseada na experiência dos principais movimentos de ressignificação de masculinidades
espalhados pelo Brasil. Esta opção justifica-se tanto pela expertise quanto pela capilaridade
desses grupos quanto pelos resultados obtidos na promoção da equidade de gênero e da
violência contra a mulher, a lgbtfobia, a transfobia e outras práticas de discriminação de
natureza androcêntrica. O passo a passo metodológico para a formação dos grupos reflexivos
é inspirado no projeto ―Derrubando Muros e Construindo Pontes‖, uma parceria do Instituto
PDH e do Instituto Avon, que tem se debruçado sobre o mapeamento dos grupos de discussão
de masculinidades no Brasil bem como fomentado a sua multiplicação:

Quanto ao trabalho em sala de aula, os professores que aderirem ao projeto poderão


para acessar o conteúdo programático na plataforma on line, selecionando o material a ser
trabalhado a partir dos eixos principais, que são:

1 – Comunicação Não Violenta na discussão de gênero: 2 – Gênero e Sexualidade:


Conceitos Fundamentais 3 – A violência enquanto linguagem.

4 – Ética e humanismo na dimensão afetivo-sexual 5 – A violência concreta e a


violência simbólica 6 – A cultura androcêntrica como expressão ideológica 7 – As diferentes
expressões da sexualidade humana 8 – Os movimentos feministas e as novas masculinidades
9 – As dimensões sociais do gênero

10 – Ressentimento e sexualidade

11 – A centralidade do sexo em nossa cultura 12 – Patriarcado, sistema produtivo,


organização social e sexualidade
132

Os eixos serão desdobrados em subitens a serem elaborados pela equipe constituída


logo após a aprovação do projeto neste edital. Esta etapa corresponde à elaboração final do
projeto curricular, com ementas, conteúdo programático, indicações de material
complementar. O objetivo não é esgotar todo o conteúdo, considerando que as atividades em
sala de aula são entendidas apenas como uma das ações previstas para o projeto.

Quanto à discussão teórica:

1) Usar a perspectiva de gênero e as teorias feministas contemporâneas com


abordagem crítica e reflexiva, de modo a contemplar direitos humanos, igualdade de gênero,
interseccionalidades, diversidades e desconstrução do patriarcado, da lgbtfobia e da
transfobia. Estas são características fundamentais para evitar naturalização, banalização e
legitimação social das violências de gênero, além de problematizar como os diferentes
marcadores da diferença contribuem para as desigualdades sociais;

2) Dar ênfase em programas de caráter reflexivo ou psicoeducativo, e não


terapêutico, para evitar uma perspectiva psicologizante ou patologizante da violência.

Quanto à metodologia específica:

3) Partir de perspectiva multidisciplinar que contemple a complexidade da


temática, sem a reduzir a simplismos de causas e efeitos;

4) Incentivar metodologias de caráter reflexivo e crítico que possam produzir


mudanças subjetivas, culturais e sociais mais amplas, sem restringir-se a responsabilizações
individualizantes;

5) Focar em dinâmicas de conscientização e responsabilização com metodologias


participativas e ativas, perguntas reflexivas, uso de atividades lúdicas, e ressignificações sobre
a construção social de masculinidades.

Quanto à implementação do projeto nas escolas, a estrutura metodológica será definida


nesta ordem:

1 – Formação dos professores multiplicadores.

2 – Replicação junto aos demais professores nas unidades escolares.


133

3 – Aplicação das práticas e utilização do conteúdo disponibilizado pela ferramenta on


line.

4 – Realização das reuniões de supervisão.

5 – Criação de ferramenta virtual para denúncia e assistência psicossocial às vítimas


de bullying (incels e slut shaming).

6 – Realização de palestras nas escolas com pesquisadores da área de gênero


sexualidade.

Após a formação, os profissionais serão responsáveis pela realização de intervenções


pedagógicas nas unidades escolares, articuladas a uma perspectiva transdisciplinar. Esta
abordagem terá como meta oferecer aos alunos material audiovisual e conteúdos on line em
ambiente virtual relacionados à desconstrução de padrões viciados de gênero, a saber, lugares
estáticos e estereotipias que produzem e perpetuam condições assimétricas entre homens e
mulheres e disputas de poder que estão são base da manutenção da cultura do estupro e da
violência nas dimensões física e simbólica. As escolas serão agrupadas por região, abarcando
os sete pólos administrativos da secretaria, de modo que as reuniões de avaliação ocorrerão na
UFF. A equipe responsável por cada pólo consistirá em um representante regional das escolas
e quatro estagiários da UFF em composição multidisciplinar, envolvendo alunos de graduação
de Psicologia, Pedagogia e Serviço Social além de um professor supervisor responsável pelas
três áreas envolvidas no projeto.

Cronograma simplificado:

Primeiro mês

- Análise e definição das estratégias em parceria com a Secretaria de Educação,


Ciência e Tecnologia.

- Divulgação do Projeto junto às coordenadorias (pólos administrativos) e escolas.

- Indicação dos professores participantes pelas unidades escolares.

- Aplicação e avaliação do questionário exploratório.

Segundo mês
134

(primeira quinzena):

- Início das atividades de formação (UFF).

- Reuniões locais de planejamento (unidades escolares).

(Segunda quinzena)

- Início das atividades locais.

Quarto mês

- Primeira reunião de avaliação (UFF)

- Palestra (unidades escolares).

Sexto mês

- Segunda reunião de avaliação (UFF)

- Palestra (unidades escolares).

Oitavo mês

- Terceira reunião de avaliação (UFF)

- Palestra (unidades escolares).

Décimo mês

- Quarta reunião de avaliação (UFF)

- Palestra (unidades escolares).


135

Décimo segundo mês

- Seminário (UFF).

- Reunião de avaliação final (UFF).

- Palestra de encerramento (unidades escolares).

Resultados

Ao desejarmos no limiar de encerramento do projeto obter como principal resultado a


construção de sujeitos eticamente implicados na construção de sociabilidades mais
harmoniosas, é imperioso considerar que haja a abertura de espaços de participação ativa dos
estudantes na confecção do relatório final ao lado dos demais atores envolvidos. Neste
relatório deverá constar o projeto inicial, o balanço das avaliações bimestrais, o conteúdo das
intervenções pedagógicas realizadas nas escolas, os programas das aulas ministradas nas
atividades de formação bem como o currículo elaborado para sua estruturação, os dados
profissionais de todos os participantes com seus respectivos perfis na plataforma Lattes, os
dados referentes ao número de pessoas alcançadas pelo projeto de forma direta e indireta, as
atas das reuniões de avaliação, a avaliação individual dos diversos participantes, o balanço
final dos resultados obtidos e, por fim, a prestação de contas do projeto.

Os estagiários e professores serão convidados a produzirem ao menos um artigo


científico acerca da experiência, podendo o mesmo ser elaborado segundo a distribuição por
pólos. Sendo ao todo sete pólos, é desejado que cada pólo apresente um artigo, elaborado de
forma coletiva ou não. A coordenação do projeto deverá auxiliar na submissão dos artigos em
revistas indexadas pela CAPES.

Orientados pelos professores, o coletivo de alunos deverá apresentar um material


didático em forma de cartilha de prevenção à discriminação com base em aspectos de gênero
e sexualidade com foco na modificação dos paradigmas hegemônicos de masculinidade. O
material deverá ser distribuído gratuitamente nos equipamentos públicos do município pelo
período de um ano.

Para além destes itens, pretende-se enfatizar o instrumento de prevenção ao bullying


de natureza sexual a partir da criação de indicadores para o monitoramento de aspectos
específicos associados à violência de gênero em suas diversas manifestações. Em alcançando
êxito em sua implementação, a utilização desta ferramenta poderá ser decisiva na formulação
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de estratégias de combate à violência de gênero e formulação de estratégias pedagógicas de


enfrentamento do problema.

Ao cabo do projeto, a coordenação do mesmo será responsável pela organização de


um seminário nacional de pesquisa em gênero e sexualidade onde serão apresentados os
resultados obtidos. Outro desdobramento fundamental é a articulação com as redes pré-
existentes de pesquisadores e educadores do campo afetivo-sexual voltadas para as escolas.
Como legado, é esperada a criação de um observatório do setor, convidando pesquisadores de
diversas áreas e representantes das secretarias de ensino para atuarem permanentemente na
divulgação de boas práticas no campo e para a formulação de políticas públicas específicas.
Durante a apresentação dos resultados, será divulgado um mapeamento das culturas juvenis
do município de Niterói e a partir das representações de gênero a elas associadas, trabalho a
ser realizado mediante a aplicação de instrumento específico nas escolas participantes e a ser
desenvolvido coletivamente pelas equipes de supervisão e coordenação. A metodologia
deverá ser sistematizada tendo o acesso facilitado a setores da sociedade civil e ao poder
público para sua eventual replicação como secretarias de ensino, secretarias de assistência
social e varas da infância e juventude. A abordagem permitirá também a criação de
indicadores para aferir a prevalência de inclinações que tendem à produção de potenciais
agressores sequenciais, a partir da observação de padrões associados à agressividade e ao
ressentimento associado à sexualidade, podendo servir, juntamente às propostas de combate e
prevenção à violência existentes (Abramovay, Ruas, 2002), como ferramenta inovadora de
combate e prevenção a estes comportamentos.

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