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BRAKEMEIER, Gottfried. Panorama da dogmática cristã.

São Leopoldo: Sinodal/EST, 2010. 136 p.

VI. Soteriologia – a salvação que está em Cristo

Emendar a soteriologia à cristologia faz bom sentido e até mesmo é necessessário. Pois
teologia cristã trata essencialmente da salvação que está em Jesus Cristo e que é o fruto
de sua vinda. Aliás, “salvação” (em grego “sotēria”) é um termo relativo. Existem muitas
“salvações”. Depende de quê. O termo pode referir-se ao desfecho feliz de uma situação
constrangedora, à proteção experimentada num terremoto, à superação de uma ameaça de
falência financeira, entre outros. Para dizê-lo em outros termos: “Salvação” é um
fenômeno multiforme. Devemos definir, pois, qual a salvação que é devida a Cristo. Por
isto mesmo, quando falamos deste assunto, continuamos a falar, no fundo, da obra do
crucificado e ressuscitado. Cabe lembrar as afamadas palavras de Felipe Melanchthon,
dizendo: “Hoc est cognoscere Christum, beneficia eius cognoscere”. (Loci Communes,
1521. Gütersloh : Gütersloher Verlagshaus, 1993, p 22) Conhecer Cristo, isto significa
conhecer os seus benefícios. De nada adianta especular sobre suas duas naturezas. Se
você quer saber, quem é Jesus, veja o que fez, disse e sofreu. Portanto, qual é a obra de
Jesus Cristo e quais os benefícios que dela resultam?

Nós vamos desenvolver o assunto à base de três termos chaves, a saber justificação,
libertação e reconciliação. São conceitos soteriológicos centrais na Bíblia. É verdade que
há outros, a exemplo de redenção, cura, ressurreição, renascimento. Não podemos ser
exaustivos neste espaço. Aliás, existe estreita correlação entre todos estes conceitos.
Importa observar as interfaces dos mesmos. No fundo a salvação em Cristo é uma só.
Consiste no regate da ameaça da aniquilação, em todas as suas formas. Por isto mesmo
é sinônimo de concessão de vida eterna, ou seja, de vida já não mais ameaçada por
pecado, dor e morte. Diz o apóstolo Paulo: “...porque o salário do pecado é a morte, mas
o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus nosso Senhor.” (Rm 6.23) É o que
se articula de modo pluriforme e, todavia, unânime no testemunho bíblico.

A. Justificação.

Nós iniciamos com o conceito da “justificação”. Foi a discussão sobre este assunto que
desencadeou a Reforma do século XVI. Para igreja luterana não se trata de um conceito
soteriológico entre outros, e, sim, do critério central do evangelho. Nos Artigos de
Esmalcalde, Lutero afirmou que nessa questão não há como retroceder um só palmo,
ainda que desabe céu e terra. (Livro de Concórdia, São Leopoldo : Ed. Sinodal / Porto
Alegre : Ed. Concórdia, 1997, 5ª ed., p 313) Temos aí o artigo com o qual a Igreja
permanece ou sucumbe. Também na Confissão de Augsburgo, a justificação por graça
e fé está em grande destaque. Diz o artigo IV: “Ensinam também que os homens não
podem ser justificados diante de Deus por forças, méritos ou obras próprias, senão que
são justificados gratuitamente, por causa de Cristo, mediante a fé, quando crêem que são
recebidos na graça e que seus pecados são remetidos por causa de Cristo.” Vejamos as
implicações dessa afirmação.
“Justificação” é necessidade humana fundamental. Toda pessoa precisa ser aceita,
acolhida, ver atestada sua razão de ser. Sem o devido reconhecimento por parte de outros
serão inevitáveis graves problemas psíquicos e sociais. Justificação por graça e fé constrói
a auto-estima O ser humano necessita da certeza de “ser alguém”, de ter o seu valor, de
ser benquisto, se não por todos, pelo menos por alguns. Por isto mesmo uma pessoa
humilhada, ignorada, ferida em seu orgulho é perigosa. Pode desenvolver sentimentos de
vingança, acontecendo o mesmo no caso de complexos de inferioridade. Depende do grau
de intensidade. Marginalização corre o risco de provocar violência. De qualquer maneira,
saúde humana, tanto individual quanto social, pressupõe integração das pessoas numa
comunhão com garantia de direitos, sustento e espaço de vida. A história mundial de fato
é isto, a saber, uma história de “luta por reconhecimento mútuo”. (Oswald Bayer. Viver
pela fé. Justificação e santificação. São Leopoldo : Ed. Sinodal / IEPG, 1997, p 11) Todos
querem o seu lugar ao sol, bem como algum prestígio social. Consequentemente é
fundamental o “atestado de nascimento”. Quem não o possui, é alguém que, em termos
oficiais, não existe e está impedido de usufruir as benesses da cidadania. Embora este
atestado seja um “direito” de todos e todas, existem na sociedade os excluídos. Pessoa
excluída ou pessoa diminuída em seus direitos é pessoa a que se nega ou a que se limita
a “justificação.”

Sob tal ótica, justificação tem alguma proximidade a “socialização”, integração social,
garantia de vida. Para tanto a sociedade costuma aplicar critérios. Apesar de assegurar
o direito à cidadania a todos os seus membros, a realidade costuma ser outra. Existem os
mais e os menos aceitos. A sociedade exige produtividade. Pessoas sem utilidade
nenhuma são consideradas supérfluas. Salário, reputação, privilégios dependem em boa
medida do grau da capacidade produtiva que as pessoas têm ou que lhes é atribuída. O
valor do sujeito é definido à base do que o Novo Testamento chama a “lei das obras”. Ele
deve justificar-se mediante seus conhecimentos, sua inteligência, suas habilidades, suas
forças físicas, suas posses, seu poder. Ora, o critério de Deus é outro. Diz o evangelho
que Deus dá a razão de ser às pessoas independentemente das obras, por graça somente.
Aos olhos de Deus o ser humano é mais do que a soma de seus atos e de seus fracassos.
Deus é como pai ou mãe autênticos: Acolhem o filho puramente por amor. É nisto que
consiste o cerne da mensagem da justificação.

Se para Deus o valor do ser humano independe de méritos e desméritos, isto


naturalmente deve ser respeitado pela sociedade. Vida humana é santa. Cabe-lhe
proteção, respeito, cuidado. Deus justifica não porque o ser humano o “merecesse”. Na
relação entre Deus e o ser humano há um estrago a ser reparado, chamado pecado. Deus
justifica “pecadores/as”, e isto em termos exclusivos. Por isto mesmo, a tradição
luterana identifica “justificação” com “perdão dos pecados”, o que sem dúvida alguma
está correto. Convém enfatizar, porém, que no perdão dos pecados está implícita a
concessão do “direito” à existência, a razão de ser. Quem perdoa, restabelece comunhão,
conserta relações rompidas, abre espaço de vida na convivência humana, enfim, aceita a
pessoa como parceira. Por isto mesmo a justificação implica o ato da dignificação.
Mostra-o a parábola do filho pródigo mediante a reinvestidura do filho perdido após a
volta para casa (Lc 15.11s). Justificação restitui o ser humano como humano e lhe
devolve a dignidade da filiação divina.

O exemplo da parábola de Jesus mostra que “justificação” não é uma “teoria” teológica
exclusiva de Paulo. É verdade que este apóstolo foi o primeiro a desenvolver uma
doutrina da justificação. Mas ela tão somente sistematiza o que está em evidência em
Jesus. Ele, Jesus, é a justificação por graça em pessoa, ficando reconfirmado que o
evangelho, antes de ser doutrina, é evento, acontecimento. Jesus praticou a justificação
em discurso e gestos, em sua morte e ressurreição. Buscou os pecadores e comeu com
eles ((Lc 15.1s). Lembrou que Deus prefere a misericórdia aos holocaustos (Mt 6.13).
Apregoou um publicano arrependido como exemplo de pessoa justificada, não o fariseu
cumpridor exemplar das determinações da lei (Lc 18.9s). Justificação aconteceu “através
de Cristo” e “em Cristo”, entregue por nossos pecados e ressuscitado por causa de nossa
justificação (Rm 4.25). Portanto, o mundo já está justificado, assim como está
reconciliado por ele (2 Co 5.18s). A justificação chega a nós por palavra e sacramento.
Mas seu “lugar” teológico é Jesus Cristo, o crucificado, justificador de pobres e
pecadores, de homens e mulheres, de judeus e gregos.

Cabe ao ser humano acolher este presente. A graça de Deus manifestada em Jesus busca
a resposta da fé. Ao “sola gratia” corresponde o “sola fide”. Fé é ação humana, mas
não é obra. É assimilação da graça, aprendizagem da gratidão, é “passividade ativa”,
assim como toda assimilação o é. Fé não produz a justificação nem a complementa. É
“re-ação”, tendo na ação de Deus sua origem e motivação (cf Fp 2.12). É a confiabilidade
de Deus, respectivamente é o seu amor que provoca a fé nas pessoas, mesmo que a
acolhida signifique trabalho. Assimilação sempre exige esforço, muito embora o
resultado já não possa ser a vanglória de quem conquistou, e, sim, a gratidão de quem
recebeu. Quem crê é como um apaixonado, em tudo devedor do sujeito de sua paixão. A
justificação é gratuita e como tal quer ser aceita. Deus espera que o ser humano confie na
sua palavra e lhe responda com gratidão e amor.

Por ser Deus fiel à sua palavra, a pessoa crente pode ter a certeza da salvação. Esta já
não depende de sua produção religiosa, do grau de sua piedade, enfim da quantidade e
qualidade de suas obras. Seriam critérios altamente inseguros. Pois como saberei se fiz o
bastante para herdar a vida eterna? (cf Mc 10.17s) Vai permanecer a dúvida. Da mesma
forma a certeza da salvação independe de intermediação eclesiástica. Os sacramentos são
importantes, mas não possuem força mágica para garantir o ingresso no reino de Deus. A
igreja é simples “repassadora da mensagem”, porta-voz do evangelho, instrumento da
ação divina. Nesta função ela é insubstituível. Mas de modo algum é “cooperadora” na
salvação. Esta se prende exclusivamente à misericórdia de Deus e à correspondente fé das
pessoas. O amor de Deus é mais confiável do que qualquer recurso humano.

E as obras? Ficarão descartadas, porventura? Já dissemos acima que não. Fé autêntica


torna-se ativa no amor (Gl 5.6). Não pode cruzar os braços nem entregar-se ao inativismo.
“Se alguém disser: Amo a Deus, e odiar a seu irmão, é mentiroso; pois aquele que não
ama a seu irmão que vê, não pode amar a Deus, a quem não vê.” (1 Jo 4.20) Fé não
dispensa do cumprimento da vontade de Deus. Esta, porém, já não mais consiste em
prescrições legais, e, sim, no mandamento do amor. Em outros termos, o que se exige da
pessoa justificada não são as “obras da lei”, e, sim, as “obras do amor”, feitas sem a
pretensão de conseguir vantagens próprias. São obras praticadas por gratidão, por
compaixão, por misericórdia, sem o propósito de granjear méritos, de alcançar
privilégios, de lucrar ou de sobressair. A justificação por graça e fé compromete com a
diaconia.

Justificação como concessão, ascrição, outorga do direito à vida, bem como aceitação,
acolhida e assimilação por parte da pessoa que a recebe é um ato jurídico. Acontece
perante um tribunal, um “foro”. Daí porque se fala em justificação forense. De fato,
quem justifica profere um juízo, dá um parecer, concede – como vimos – um atestado.
Mas poderia surgir neste tocante um grave mal-entendido. Deus ao justificar o pecador
apenas o considera justo sem que na realidade o fosse? A experiência ensina que o ser
humano continua pecador. Seria a justificação um ato sem efeitos transformadores? Eis
porque há quem insista em que se deva falar em justificação eficiente. Deus não só
declara o ser humano justo nem tão- somente lhe imputa a fé como justiça (cf Rm 4.3s;
Gn 15.6). Deus faz o ser humano justo. Ele o transforma, dá-lhe um novo ser. A
compreensão forense da justificação é antes tradição luterana, a eficiente se encontra
predominantemente na teologia católico-romana. Ambas as concepções podem apoiar-
se na Escritura. Que justificação seja sentença do Deus juíz, não necessita de
comprovação. Também é verdade que o ser humano é transformado em nova criatura pela
ação redentora de Deus (cf Rm 6.1s). Portanto, não se trata de antagonismos. É claro que
justificação não é nada aparente. Ela estabelece uma nova relação com Deus,
inaugurando assim novidade de vida. Mas esta transformação não é mágica nem física.
Justificação é eficiente, sim. Entretanto, ela acontece nas condições de um mundo ainda
não redimido.

Por isto mesmo a teologia luterana apregoa que a pessoa crente é simultaneamente justa
e pecadora. A realidade do pecado não pode ser negada. A maldade continua morando
nas pessoas. Entretanto, enquanto creem, podem ter a certeza de que Deus não as
condenará (Rm 8.31). A fé ajuda a sermos honestos sem que devamos desesperar. Ela vê
“a realidade e totalidade do pecado humano, e não necessita se entregar a ficções.”
(Gerhard O. Forde. Vida cristã. Carl E. Braaten / Robert W. Jenson [ed.], Dogmática
Cristã. São Leopoldo : Ed. Sinodal, v 2, 1995, p 439) Justificação é promessa e certeza
de aceitação escatológica por Deus. Ao mesmo tempo é compromisso de luta contra o
pecado. “Em Cristo” somos justos, “em Adão” continuamos pecadores, tratando-se aí de
um lado a lado altamente conflituoso. Somente a ressurreição vai libertar o ser humano
em definitivo deste mundo e das forças do mal. Até lá vivemos no campo magnético entre
Adão e Cristo. Assim sendo, o “simul iustus et peccator” seria mal entendido como
afirmação de uma semi-justiça e de uma semi-pecaminosidade no ser humano. O simul
expressa duas totalidades. Como justa que é a pessoa cristã deve combater o pecado.
Lutero falou no afogamento diário do velho Adão em nós. Considerando que também as
pessoas justificadas carregam pecado, proibe-se em definitivo a separação de justos e
pecadores. Comunidade cristã é a comunhão de pecadores agraciados. Toda vanglória se
exclui, assim como também fica excluído o desespero dos “publicanos” (Lc 18.9s).

Tal combate ao pecado chama-se santificação. Em sentido abrangente, o termo designa


a obra do Espírito Santo em sua integralidade. Pois é isto o que o Espírito Santo faz: Ele
santifica, ou seja, recupera pessoas e coisas para Deus, integrando-as em seu reino. Em
sentido restrito, porém, santificação refere-se ao processo da assimilação da justificação.
Pessoas justificadas por Deus já são santas (1 Co 1.2). Mas como tais também devem ser
santas. São chamadas a traduzir em vivência o que são, ou seja, devem cuidar de sua
santificação (1 Ts 4.3). A relação entre justificação e santificação corresponde à do
indicativo e imperativo em Paulo. Cabe andar já não segundo a carne, e, sim, segundo o
Espírito (Rm 8.4), em novidade de vida (Rm 6.4). Isto significa: Existe um crescimento
na fé, um aperfeiçoamento na conduta, um progresso na compreensão do evangelho. A
pessoa cristã pode amadurecer. Ela pode passar da menoridade na fé para a maioridade
(1 Co 3.1s). E, no entanto, todo esforço ético do ser humano não acrescenta nada à
justificação. Santificação é uma questão de coerência com a dignidade outorgada ao
ser humano em Cristo. Já não há nada a conquistar. O que importa é que nos
comportemos dignos de nossa vocação (Ef 4.1).

As controvérsias em torno da justificação e de suas implicações selaram a cisão entre


“romanistas” e “protestantes” no século XVI. Porventura, não deveria o ser humano
contribuir com nenhuma parcela própria para sua aceitação por Deus? A posição
protestante, não levaria ela ao comodismo? Não seria o “sola gratia” por demais
perigoso? O diálogo ecumênico conseguiu aproximar as posições outrora excludentes. A
graça de Deus não despersonaliza o ser humano. Não o transforma em “peça inanimada”,
sobre a qual se derrama a justificação. Inversamente, o ser humano, frente ao dom de
Deus, não pode gabar-se de ter cooperado com a sua justificação. Isto seria desprezo ao
evangelho. Nesses termos foi possível celebrar uma “Declaração Conjunta Sobre a
Justificação por Graça e Fé” entre a Igreja Católico-Romana e as Igrejas Evangélico-
luteranas, filiadas à Federação Luterana Mundial. Ela foi assinada no dia 31 de outubro
de 1999, em Augsburg na Alemanha. A “Declaração” teve uma gênese complicada. Por
diversas vezes esteve à beira do fracasso. Finalmente, porém, conseguiu a aprovação com
alguns adendos. Trata-se de um consenso “em verdades concernentes à justificação.”
Essa formulação mostra que o consenso não é integral. Não só a questão do mérito
cabível às boas obras, nem tampouco o significado do “simul iustus et peccator”, como
também e sobretudo as implicações eclesiológicas da justificação por graça e fé
necessitam de futuros esclarecimentos. Mesmo assim, a Declaração Conjunta representa
um significativo passo adiante na árdua caminhada ecumênica. Ela colocou parâmetros
para futuros esforços pela unidade.

Na América Latina, mas também em outras partes do mundo, tem sido particularmente
intenso o grito por justiça, levantando a pergunta pela relação entre a justiça de Deus e
a injustiça no mundo. Que significa justificação por graça e fé numa sociedade de
tamanhas disparidades sociais como a da atualidade? A teologia da libertação, com muita
propriedade, voltou a atenção às vítimas do pecado, denunciando os produtores de
sofrimento e opressão. Deus privilegia os pequenos, explorados, os pobres. Vai em seu
socorro. Decorre daí o compromisso da “opção preferencial pelos pobres” e da
solidariedade com eles na luta por um mundo mais justo e humano. Justificação, então,
significa o quê? Ora, injustiça é a negação da justificação. É exclusão da comunhão
humana, o que merece o juízo divino. Eis por que a justificação por graça e fé é a
premissa de justiça social. Esta será sempre “justiça distributiva”, zelosa em distribuir
direitos e deveres de acordo com o princípio do “suum cuique”, ou seja, “a cada qual o
seu”. Justiça social, pois, obedece ao critério do direito humano, não ao da gratuidade e
da fé. E, no entanto, a graça de Deus a ser acolhida na fé é fundamental para uma
sociedade justa. Deus deu o direito à vida, à dignidade, à subsistência a todas as pessoas
de graça. É o que a justiça humana está comprometida a traduzir em legislação, em
distribuição de renda, propriedade, trabalho chances e demais recursos humanos,
reservando a cada indivíduo o devido lugar na sociedade.

B. Libertação

Nas obras dogmáticas tradicionais, o tema da libertação não tem recebido o mesmo
espaço como a justificação e a reconciliação. Basta verificar a “Dogmática Cristã”
editada por Carl E. Braaten e Robert W. Jenson. Libertação não é considerada assunto a
merecer destaque em capítulo específico. Para outras “Dogmáticas” vale algo semelhante.
Isto é estranho, visto que libertação se encontra no miolo da soteriologia bíblica. A
libertação do Egito é dado fundante do credo isrealense e a libertação de lei, pecado e
morte é celebrada por Paulo como mensagem evangélica por excelência. Tanto maior foi
o relevo dado a essa matéria na América Latina, como aliás, em todas as teologias
chamadas políticas, empinando a bandeira da emancipação de dependências históricas.
Estaria aí o motivo do embaraço da teologia com relação ao assunto? Seja como for,
soteriologia cristã não pode excluir libertação de sua reflexão e práxis. Atesta-o não só
a Bíblia, desde o relato do Êxodo. Também a Reforma do século XVI colocou o assunto
em pauta, articulando-se como gigantesco movimento libertador. Sabia-se legitimado
para tanto pela promessa do próprio evangelho.

Mas que significa “libertação”? O conceito pressupõe um pano de fundo negativo, de


escravidão, opressão, dependência. Libertação quer superar determinado mal, como o diz
a sétima prece do “Pai-Nosso”. Por isto não é meta, e, sim, meio, ou seja um caminho,
um processo que dura enquanto não alcançado o objetivo. “Libertação” está a caminho
da “liberdade” e nela quer desembocar. Afirma o apóstolo Paulo: “Foi para a liberdade
que Cristo vos libertou” (Gl 5.1). E com efeito, sem liberdade não há salvação. A cassação
da liberdade é sempre castigo. Vida escrava, confinada a penitenciárias, sofrendo coação
de qualquer espécie, inevitavelmente significa prejuízo. Liberdade perfaz anseio
elementar do ser humano. É uma de suas necessidades básicas. Em razão disto, ela se
inscreve não só na agenda teológica. É tema também da filosofia, da política, da
antropologia em sentido abrangente. Juntamente com a “fraternidade” e a “igualdade”
integrou o projeto da “Revolução Francesa” de 1789. Liberdade se consagrou em “direito
humano”, suscetível de suspensão somente em caso de comprovada criminalidade. Qual
poderá ser a contribuição da fé cristã a este tão importante assunto?

Numa primeira aproximação “liberdade” poderia ser definida como “autonomia”,


“independência”, “auto-determinação”. Quem é livre, não é devedor de ninguém, a
ninguém sujeito, independente, senhor ou senhora de si mesmo ou mesma. Libertação se
processa como emancipação de “heteronomia”, de dominação alheia, de opressão. Isto
é importante. Pois a privação da liberdade acaba reduzindo o ser humano a “objeto”, a
máquina, a alguém “menor” em direitos, limitado em opções e responsabilidades. Ele fica
“despersonalizado”. Por isto o apóstolo Paulo, em 1 Co 9, tanto insiste no seu direito de
ser sustentado pelas comunidades. Somente quem tem assegurado seus legítimos direitos
pode deles abrir mão. Assim sendo, a fé cristã tem fortes motivos para apoiar movimentos
libertadores, desde que empenhados em superar o mal de dependências desumanas, sejam
elas produzidas por violência de matiz militar, político, econômico, sexual, religioso ou
qualquer outro.

E no entanto, “independência” não é sinônimo exato de “liberdade”. Ela é, isto sim,


um pressuposto da mesma. Liberdade é mais. É preciso até mesmo admitir que
“independência” absoluta não existe. Sempre há o que comanda a conduta humana. Em
caso de ausência de fatores externos, desejos, interesses, ambições de ordem pessoal ou
grupal ocuparão o espaço. Paradoxalmente, a pessoa totalmente “independente”,
descomprometida, arbitrária, “descontrolada”, será monstro, não gente. Independência
absoluta vai produzir tiranos, muito à semelhança daquela besta do cap. 13 do livro do
Apocalipse. Por isto importa que a “liberdade de” seja complementada pela “liberdade
para”. Liberdade solta, arbitrária, sem responsabilidade, ou seja sem a necessidade da
prestação de contas, transformar-se-á em ameaça à própria liberdade. E ela cria vítimas,
subjuga o próximo, não terá princípios. Liberdade autêntica, ao invés, sabe-se livre para
assumir compromissos e escolher o caminho do bem. Pessoas, grupos e povos serão livres
somente na medida em que se colocarem a serviço do bem, a exemplo da justiça, da paz
e da proteção ao meio ambiente.

É esta a dialética da liberdade. Ela está em grande evidência em Jesus. Como alguém
que era livre se fez servo, dando a sua vida em favor de outros (Mc 10.45). Em sua
qualidade de senhor, Jesus se fez diácono, permanecendo senhor exatamente assim. Está
aí o segredo do amor. Amor não se torna “servil”, não se subjuga nem abdica de sua
identidade. Não obstante ou justamente por isto, coloca-se a serviço do necessitado e sabe
renunciar, não obrigatoria, e, sim, voluntariamente. Observamos o mesmo espírito em
Paulo. Diz ele: “...sendo livre de todos, fiz-me escravo de todos” (1 Co 9.19). Seja
sublinhado que se trata nesse caso de uma “servidão” por opção evangélica, não de uma
escravidão imposta. Cabe lembrar, finalmente, a formulação clássica de Lutero em seu
escrito “Da liberdade Cristã”, dizendo que um cristão é um senhor livre sobre todas as
coisas e sujeito a ninguém, na fé, e, simultaneamente, um servo em tudo, e sujeito a todo
o mundo, no amor. Temos aí, em Lutero, o imprescindível lado a lado de independência
e compromisso, de “liberdade de” e “liberdade para”, de fé libertadora e amor servidor.

O exposto mostrou ser proibido restringir “libertação” e “liberdade” a um


fenômeno puramente “interior”, espiritual, mental. Situações objetivas, estruturas
sociais, relacionamentos humanos estão em jogo. É claro que também numa prisão a gente
pode sentir-se livre. E, no entanto, seria cinismo declarar as condições externas
irrelevantes na conceituação de liberdade cristã. Libertação pretende a evasão, a
aniquilação, a proscrição dos campos de concentração, das dependências econômicas, dos
cativeiros culturais, políticos e outros. É esta uma justa insistência latino-americana.
Libertação evangélica deve incluir as assim chamadas “libertações históricas” a
exemplo daquela experimentada pelo povo de Israel no Egito. A liberdade concedida por
Deus quer tomar corpo na sociedade global em forma de garantia dos direitos humanos,
de autonomia e respeito à dignidade. Em outros termos: A liberdade espiritual busca
réplica em liberdades sócio-políticas. Com justas razões e com amplo apoio do
evangelho, empobrecidos, negros, mulheres, idosos, doentes e outros integrantes dos
assim chamados “setores postergados” lutam por sua libertação e buscam a cura de suas
enfermidades.

Entretanto, “libertação” precisa aprender “liberdade”. Em outros termos, “libertação”,


para conduzir à liberdade, precisa aprender o amor, a fé e a esperança. Para tanto
não bastam as transformações estruturais ou as conquistas políticas. Exige-se a
transformação da mente, da qual o apóstolo Paulo fala em Rm 12.1s. Esta, porém, não
resulta de um simples imperativo. Ela não se faz por revolução armada ou ação militar.
Liberdade cristã nasce a partir da experiência da misericórdia divina. É ela que ensina o
“sacrifício dos corpos” (Rm 12.1), a renúncia em favor de outros, o amor ao próximo. A
fé liberta para o amor, descortina o futuro, despertando esperança. A comunidade cristã
insiste neste ponto: Liberdade autêntica tem a fé no Deus-amor por premissa. Sem esta fé
certamente poderá haver muitas “libertações”. Emancipação exitosa não necessita de
bênção divina, e muito menos de bênção eclesiástica. Mas a vivência da liberdade não
pode abrir mão da fé. É uma tese que tentaremos fundamentar.

A fé cristã sustenta: Somente quem tem Deus por Senhor, será verdadeiramente livre.
Pois não poderá ter outros senhores ao lado dele. “Ninguém pode servir a dois senhores”,
disse Jesus. “Não podeis servir a Deus e às riquezas” (Mt 6.24). O que vale com respeito
ao “mamonismo” (culto ao “capital”), aplica-se a qualquer outro “dono”, a exemplo do
“mercado”. Por isto é essencial ter Deus por Senhor, respectivamente Jesus Cristo, o
Espírito Santo. Impossibilita o culto a outras divindades e outorga maravilhosa liberdade
neste mundo. Também a afamada palavra de João 8.31 deve ser entendida desta maneira.
Disse Jesus: “Se vós permanecerdes na minha palavra, sois verdadeiramente meus
discípulos; e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.” O Deus de Jesus Cristo
não policia o ser humano, não o submete ao seu controle nem invade a esfera da
privacidade. Concede-lhe liberdade. Oferece-se, isto sim, como esteio confiável da vida,
dispensando-o da necessidade de buscá-lo em outros fenômenos. Quem crê tornar-se-á
crítico frente às ofertas sedutoras do mercado de bens religiosos, econômicos e outros. Já
não se deixa iludir pelo comércio das propostas pretensamente salvacionistas. Deuses
podem terrivelmente escravizar o ser humano. O Deus-amor de Jesus Cristo é por
natureza um Deus libertador.

Foi o apóstolo Paulo quem mais intensamente refletiu sobre a liberdade concedida em
Jesus Cristo. Viu o ser humano disputado por poderes que o querem possuir e dominar.
Consistem, na visão do apóstolo, de pecado, lei e morte. São poderes que atuam em
estreita cooperação e de cujas garras somente Jesus Cristo pode libertar. Valem um breve
comentário:

1. A pessoa humana é refém do pecado. Paulo não nega que o ser humano seja capaz de
algumas boas obras. Mesmo assim as pessoas permanecem em dívidas com Deus e
seus semelhantes. Todos pecaram e carecem da glória de Deus (Rm 3.23). Isto
significa que o ser humano necessita ser libertado tanto de sua culpa quanto do seu
egoísmo. Nem a pessoa devedora nem aquela que vive atrelada a seus interesses
próprios são de fato livres. Que perdão seja uma necessidade humana, é verdade
sublinhada pela quinta prece do “Pai-Nosso”. Da mesma forma, porém, a liberdade
do ser humano requer uma nova vontade, um novo rumo de vida. Ele deve ser
libertado dos ídolos que cultua, passar por uma profunda “conversão”. Ambas as
coisas, o perdão da culpa e a renovação da mente, realizam-se “em Cristo”, isto é
na esfera em que Cristo reina. (cf Rm 8.1s) O evangelho estipula outros referenciais
do que aqueles em uso na sociedade. Livre é a pessoa capaz de louvar a Deus, de
servir à pessoa necessitada e de resistir às ilusões. É claro que a libertação do pecado
deve ser diária, mediante sempre novo recurso ao evangelho e a (re-) aprendizagem
da fé.

2. A pessoa humana está sob o jugo da lei. É este é o caso não somente do “judeu”.
Também o é do “grego”. O ser humano vive sob as coações de convenções sociais e
da própria exigência de Deus. Abusa da lei para a auto-justificação, desprezando a
graça de Deus e caindo no pecado da vanglória. Ou então desespera por não cumprir
a lei e tornar-se réu de castigo. Assim ou assim, a lei revela o pecado (Rm 3.20). Ela
não produz a fé nem a pessoa boa. Antes polariza a humanidade em “fariseus” e
“publicanos”, em pretensos justos e pecadores. Engana-se, pois, quem atribui à lei
função salvadora. A lei é necessária, sim, para regulamentar a vida em sociedade.
Ela possibilita convivência mediante o estabelecimento de “regras de jogo”, de
convenções sociais e estatutos. Mas quem espera “salvação” de estruturas, códigos
penais e outros regimentos vai em breve esbarrar em limites. Vai instalar a “tirania
legal.” Jesus, ao justificar por graça, liberta de tal tirania, não eliminando a lei, mas
lembrando ser a misericórdia de Deus a fonte de vida e ensinando o exercício do amor.
3. O ser humano vive sob a ameaça da aniquilação. Vive sob o jugo da morte, isto é da
redução radical ao não ser. A morte cria pânico que se estende para todas as fases da
vida. E pânico redunda em loucuras. Daí a tentativa de desesperadamente segurar a
própria vida e de monopolizar os recursos necessários para tanto, mesmo às custas de
outros. Daí a veia assassina do ser humano, responsável pela tentativa de eliminar o
outro como possível concorrente e estorvo. Injustiça social é fruto da tirania da morte.
Liberdade pressupõe esperança. Não mediante a transformação da morte em tabu.
Pois não é ignorando-a que se vai desagravar seu horror. É superando-a mediante o
poder da ressurreição de Cristo (Fp 3.10) e a certeza de que não a morte, e, sim, Deus
é o horizonte último da realidade. Somente pessoas com futuro serão livres. Isto vale
inclusive para o futuro imediato, para perspectivas de vida, para expectativas pessoais
e sociais. A falta de futuro produz violência e pré-dispõe ao crime. Por isto mesmo
liberdade está condicionada à superação da morte, a negadora do futuro por
excelência.

A fé cristã se sabe comprometida com o anseio por liberdade tão profundamente


arraigado no ser humano. Vai cooperar com toda autêntica libertação. Vai lembrar,
porém, que, sem solução para o pecado, para o regime da lei e para a morte, liberdade
estará seriamente prejudicada. A igreja vai proclamar a fé em Deus como fonte de
liberdade e a filiação divina como expressão máxima da mesma. Liberdade cristã é a
vivência da liberdade dos filhos e das filhas de Deus (Rm 8.21; Gl 4.1s). Quem considera
isto pouco, deve cuidar para não cair em novos cativeiros e novas formas de escravidão.
Que Deus não é empecilho, e, sim condição de verdadeira liberdade, isto o mundo
secularizado está convidado a novamente aprender.

C.. Reconciliação

“E tudo isto provém de Deus que nos reconciliou consigo mesmo por Jesus Cristo, e nos
deu o ministério da reconciliação; isto é, Deus estava em Cristo reconciliando consigo o
mundo, não lhes imputando os seus pecados; e pôs em nós a palavra da reconciliação” (2
Co 5.18s). Esta é a passagem básica da doutrina da reconciliação no Novo Testamento.
Mas o assunto não se prende a este texto somente nem mesmo à ocorrência do vocábulo.
Reconciliação está em pauta sempre que se fala em perdão dos pecados, em paz com Deus
(Rm 5.1), em restituição da filiação divina, para citar apenas estes exemplos. Entre o ser
humano e Deus existe uma ruptura a ser eliminada, uma inimizade por parte do ser
humano (Rm 5.10) que o joga na desgraça e que precisa ser superada. Salvação exige a
recuperação das relações rompidas com Deus, isto é a re-aprendizagem do temor, do amor
e da confiança em Deus acima de todas as coisas. O fator causador da inimizade é o
pecado humano que, como visto acima, consiste essencialmente em revolta contra Deus,
usurpação da autoridade divina, negação dos direitos de Deus, desrespeito à sua vontade
e, consequentemente, em desamor à pessoa do próximo. Pecado afasta de Deus, aliena e
cria inimizade entre os seres humanos. Portanto, reconciliação se faz necessária em razão
de um trágico conflito entre criatura e criador.

Como sanar esta enfermidade? A pergunta se coloca não só no nível religioso, ou seja
no que tange a relação entre o ser humano e Deus. Coloca-se de igual forma no nível
puramente humano, social. Como acabar com os conflitos neste mundo e promover a
reconciliação? Como barrar a espiral da violência, eradicar o ódio e construir a paz?
Existem teoricamente três possibilidades:
1. Poder-se-ia tentar ignorar a ofensa, o mal cometido, a ferida responsável pela
ruptura da comunhão. Caberia “esquecer” o passado, passar uma esponja sobre
ele e reiniciar na estaca zero. É a solução mais cômoda, mas nada eficiente. Pois
ofensa não se esquece. Voltará sempre de novo à tona, infesta o convívio. Não se
elimina pecado mediante um “apagão”, ou seja, a supressão da memória.

2. Poder-se-ia buscar reconciliação mediante justa retribuição, de acordo com o


princípio “olho por olho, dente por dente” (cf Mt 5.38s): Se você me causou
prejuízo, tenho o direito de causar prejuízo igual a você, sendo assim equilibrada
a balança dos créditos e débitos. Não mais haveria reivindicações a fazer de parte
a parte. Estaríamos quites. Na verdade, porém, a retribuição não repara, e, sim,
causa nova ferida, clamando por vingança. A escalada da violência, pois, não
estará interrompida. Reconciliação não se faz dessa forma.

3. O único meio eficaz para reconciliar inimigos é o perdão que nem retribui nem
esquece e, sim, remove o que bloqueia a comunhão e que implica num reinício. É
a única atitude correspondente ao amor. E com efeito: “...o amor cobre multidão
de pecados” (1 Pe 4.8). Perdão anula dívidas, cria paz entre adversários e
reinaugura comunhão.

O evangelho consiste essencialmente na mensagem da oferta do perdão de Deus aos


inadimplentes, ou seja, os pecadores, bem como de nova comunhão com ele. É amplo o
lastro de comprovantes neotestamentários. Deus é como aquele senhor que perdoou a
dívida astronômica de dez mil talentos a seu servo (Mt 18.23s) ou como o pai que volta a
receber seu filho perdido em casa. Jesus anuncia o perdão de Deus, ele o pratica (Mc
2.1s). Veio para servir e dar a sua vida em resagate da criatura afundada na desgraça (Mc
10.45). O mesmo é expresso pela carta aos hebreus ao apregoar Jesus como sumo-
sacerdote que, sacrificando-se a si próprio, reabre o acesso a Deus (Hb 9.1s). Ao lado de
justificação e libertação, reconciliação é tema soteriológico central do Novo
Testamento. Dela se fala em muitas variantes, destacando-se fundamentalmente duas
modalidades, a “subjetiva” e a “objetiva” (Wilfried Härle. Dogmatik, Berlin/New York :
Walter de Gruyter, 2ª ed., 2000, p 322s):

1. No caso da “reconciliação subjetiva” o perdão ocorre sem nenhum compromisso de


restituição ou reparação por parte do devedor. É anistia ampla e radical. A dívida é
simplesmente extinta. É perdão incondicional. Tal perdão perfaz exigência
evangélica aos cristãos e às cristãs (cf Mt 6.14; Ef. 4.32). O próprio Deus dá o
exemplo. É como no caso da parábola do filho pródigo: O pai acolhe seu filho sem
lhe impor nenhuma restrição – o que incomoda o filho mais velho (Lc 15.11s). O
perdão neste caso é fruto de pura misericórdia com a pessoa culpada. O credor
renuncia aos direitos que, na verdade, teria.

2. Não assim no caso da “reconciliação objetiva”. Agora sim, o perdão está vinculado
a alguma condição a cumprir. É o que se observa no perdão por expiação. Exige-se
alguma forma de indenização. A pessoa culpada sofre algum “castigo”. Deve
“pagar” pelo que fez. Ainda que ela mesma não pague (ou não consiga pagar), é outro
que deve fazê-lo, entrando na brecha. Aliás, toda justiça civil está baseada no
princípio da indenização. Não pode preconizar a impunidade. Pois esta significaria
um estímulo para o crime. Ademais, a própria dignidade humana requer a
responsabilização e por isto também a eventual penalização das pessoas pelos seus
atos. Isto significa que, no caso da reconciliação objetiva, o perdão não abre mão
da justiça. Alguma sanção deve haver para restabelecer a ordem das coisas. O Novo
Testamento afirma que Jesus sofreu esta sanção “por nós”. Morreu pelos nossos
pecados (1 Co 15.3s).

Ambas as formas do perdão necessitam de comentários. Iniciamos com a “reconciliação


objetiva” entre Deus e o ser humano, baseando-se em expiação e morte vicária.
Como entender? É claro que “expiação” é conceito provindo do AT e do judaísmo
contemporâneo do NT. Expiação acontece no templo. Parte da convicção de o pecado ser
um poder destruidor que, por isso, requer a penalização da pessoa pecadora. “O salário
do pecado é a morte”. É o que diz também o apóstolo Paulo (Rm 6.23; cf. Rm 1.32).
Logo, o pecado deve ser desarmado. Suas consequências nefastas devem ser eliminadas,
desviadas, o que acontece mediante o sumo-sacerdote em rito cultual. O pecado do povo
é depositado virtualmente em bodes que a seguir são “sacrificados”. Um é mandado ao
deserto, onde sucumbe. O outro é abatido, sendo seu sangue aspergido no recinto mais
sagrado do templo. São os assim chamados “bodes expiatórios”. O NT identifca Jesus
com este “bode” ao dizer: “Eis o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (Jo 1.29).
A idéia da expiação está no pano de fundo da teologia da carta aos hebreus. Mas está em
evidência também em passagens como Rm 3.24s. Tem em Is 53 seu texto-base. Afirma-
se aí do servo de Javé: “o castigo que nos traz a paz, estava sobre ele...” e “como um
cordeiro foi levado ao matadouro...” Expiação dá expressão à convicção de que perdão
dos pecados deve incluir a eliminação da maldição que o pecado acarreta. Alguém deve
sofrer a maldição, carregar e sepultá-la juntamente com a sua própria morte.

Isto significa que, quem recebe a expiação, não é Deus, e, sim, o ser humano. Este é o
beneficiário da mesma. É um engano supor que Deus, para poder perdoar pecados
necessite do sacrifício. Deus não exige “satisfação”. A interpretação da expiação como
satisfação de Deus pelo pecado humano é antes concepção de Anselmo da Cantuária
(1033-1109 d.C.) do que da Bíblia. Não existe nenhuma necessidade de transformar a ira
de Deus em benevolência. Pois a ira de Deus se dirige ao pecado (cf Rm 1.18s), enquanto
o pecador sempre é alvo de seu amor (Jo 3.16). Em outros termos, Deus não é monstro
que, para ser bondoso, precisasse ver o sangue de seu Filho. Deus é capaz da
reconciliação subjetiva, incondicional, agindo por misericórdia tão-somente. Por isto
mesmo, o perdão de Deus não está vinculado à morte expiatória de Jesus de Nazaré, como
se somente depois desta Deus fosse capaz de perdoar. Também antes, na história do povo
de Israel, o perdão de Deus era uma realidade (cf Sl 103.3s).

Mas então, por que permanecer com a idéia da expiação? E, qual é o papel de Jesus
Cristo em tudo isto? Em que sentido a morte de Jesus tem sido salvífica? Para
compreendê-lo são fundamentais os seguintes considerandos:

1. Jesus, como portador do amor de Deus, assume o lugar do sumo-sacerdote em seu


tempo, providenciando expiação para o seu povo, sim, para toda a humanidade (Hb
4.4s). Ele perdoa por palavra e gesto, e isto em nome de Deus. Acolhe a pessoa
pecadora. Doravante o perdão dos pecados é conseguido junto a ele, não mais no
templo, nem por imolação do sangue de cordeiros. A cristandade celebra em Jesus o
mediador da reconciliação com Deus e o fim do culto sangrento.
2. Nesse processo, a morte de Jesus possui especial significado. Pois ela é decorrência
da oposição a Jesus, ou seja da oposição ao próprio Deus, em cujo nome Jesus fala e
age. A crucificação de Jesus é obra do pecado humano. A história da paixão o
demonstra: Todo tipo de maldade se precipita sobre Jesus: Traição, negação, sadismo,
cinismo, covardia, indiferença. Jesus de fato carrega o pecado do mundo. Ele sofre
seu feroz ataque. O pecado tenta matar o filho de Deus (cf Mc 12.1s), sendo os
carrascos de Jesus os representantes da humanidade rebelde e pecadora, incluindo
também “nós”. É porque a comunidade cristã diz ter ele morrido “por nós”,
respectivamente “pelos nossos pecados” (1 Co 15.3s). Ela não pode culpar apenas as
pessoas atuantes naquela época. Descobre a profunda cumplicidade de todas as
pessoas com os agentes da paixão de Jesus, todos colaboradores no crime da execução
de Jesus de Nazaré, embora em modalidades distintas e em diversos graus de
intensidade. Enquanto pecadores somos todos inimigos de Deus e promotores da cruz
de Jesus Cristo.

3. Mas em vez de vingar-se, o crucificado diz: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o
que fazem!” Nenhuma palavra de vingança contra seus algozes sai da boca de Jesus.
É esta a loucura da cruz, como o diz o apóstolo Paulo (1 Co 1.18s). O crucificado
responde ao ódio com seu amor. Sacrifica-se em favor de seus inimigos e dos
inimigos de Deus (cf. Rm 5.10). Na cruz se revela o amor de Deus que em vez de
revidar, perdoa. Este é o Deus de Jesus Cristo. Não se vinga em seus inimigos, e, sim,
perdoa-lhes o crime. Quebra a espiral da violência, não retribuindo, antes perdoando.

4. Suportando os efeitos do pecado, Jesus sofre o “castigo” que, na verdade os


crucificadores mereceriam. Sua morte é morte vicária. Aplica-se a Jesus o que lemos
com respeito ao servo de Javé em Is 53.5: “Mas ele foi ferido pelas nossas
transgressões, e moído pelas nossas iniquidades: o castigo que nos traz a paz estava
sobre ele...” Consequentemente Lutero falou da “alegre troca” que acontece na
cruz: Jesus, o inocente, assume o castigo que caberia a nós, e, em troca, nos dá a sua
justiça. A cruz de Jesus é exemplo insuperável de amor aos inimigos.

5. A fala em morte vicária e expiatória pode parecer obsoleta hoje. O termo expiação se
tornou incompreensível. Não há necessidade de insistir no vocábulo. Importante é
enfatizar que o perdão dos pecados, conferido por Deus, teve “preço.” Não se trata
de graça barata. Uma concepção puramente subjetiva de reconciliação poderia
redundar em sentimentalismo e acabar em indevida desvalorização do perdão dos
pecados. Ela necessita da complementação pela “reconciliação objetiva”. O perdão
dos pecados “custou” algo, a saber a vida de Jesus de Nazaré. Houve quem “pagou”
por nossa dívida. Por isto mesmo a paz com Deus (Rm 5.1) exige a gratidão, bem
como o compromisso do ser humano em promover a reconciliação entre pessoas,
grupos e nações. A comunhão com Deus quer traduzir-se em nova comunhão entre
as pessoas, ou seja em paz na terra (Lc 2.11).

Reconciliação é assunto multi-dimensional. É impossível esgotar neste espaço a riqueza


das implicações. De qualquer maneira, salvação cristã é impensável sem reconciliação.
Restabelece a paz com Deus (Rm 5.1) e implica no imperativo de construir a paz no
mundo (Rm 12.18). Para tanto se faz necessária a remoção do pecado, a eliminação do
ódio, a capacitação das pessoas para a vivência do amor em comunhão. Um mundo salvo
requer pessoas que se entendam como irmãos e irmãs. Isto porém, é possível somente
quando se lembram serem filhos e filhas do mesmo Deus, membros de uma só grande
família, vivendo da graça do “Pai que está nos ceús”

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