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Capítulo 1

Cidadania e Direitos Humanos

Cidadania como conquista de direitos


Cláudio Damaceno Paz

A vida em sociedade constitui um imperativo, pois as interações entre os


humanos e com o meio em que estão inseridos não são escolha, mas necessárias
para a potencialização das suas capacidades. Porém, pela divergência de
interesses, essas relações tendem a se tornar conflituosas. Em decorrência,
para viabilizar suas existências, os humanos têm desenvolvido mecanismos que
viabilizem a resolução de conflitos. Diversos são os meios criados e utilizados
para disciplinar as condutas na busca da harmonia social, entre eles podemos
destacar o Direito.

É o Direito que deve garantir os interesses de cada um e impedir que uns sejam
prejudicados pelos outros. A pessoa que tem um direito violado está sofrendo
uma perda de alguma espécie. E quando uma pessoa que teve um direito
ofendido não reage, isso pode encorajar a ofensa de outros direitos seus, pois
sua passividade leva à conclusão de que ela não pode ou não quer defender-se.
(DALLARI, 1985).

A caminho do trabalho, no dia 1º de dezembro de 1955, uma costureira negra, de


42 anos, Rosa Parks (1913-2005), moradora de Montgomery, capital do Alabama,
nos EUA, tomou um ônibus, sentou-se numa poltrona situada ao meio para
frente do veículo de transporte coletivo. Minutos depois, o motorista exigiu que
ela e outros três trabalhadores negros cedessem seus lugares para passageiros
brancos, os quais embarcaram no ponto seguinte. Rosa Parks negou-se a
cumprir a ordem do motorista. Foi, então, retirada do ônibus, detida e levada
para a prisão. Em decorrência do seu ato, Rosa Parks enfrentou ameaças de
morte, humilhações e teve até de se mudar de estado por não conseguir arranjar
emprego no Alabama.

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No entanto, a atitude de resistência pacífica de Rosa Parks deflagrou uma


série de protestos contra a discriminação racial nos EUA. Trabalhadores negros
recusaram-se a embarcar em ônibus enquanto estivesse em vigor, no estado
do Alabama, a lei discriminatória que impunha aos negros ocuparem os lugares
do fundo dos transportes coletivos, enquanto aos brancos eram reservados
os lugares dianteiros. Durante os protestos, era comum encontrar grupos de
trabalhadores negros dirigindo-se a pé para o trabalho, acenando e cantando nas
ruas, enquanto eram xingados pelos brancos.

O exemplo emblemático de Rosa Parks e os avanços ocorridos nos EUA em


relação aos direitos civis nas décadas subsequentes demonstram que os direitos
nascem das lutas dos seres humanos contra as formas de opressão. No entanto,
são conquistas gradativas que se configuram no processo histórico.

Os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são


direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias,
caracterizados por lutas em defesa de novas liberdades contra
velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma
vez e nem de uma vez por todas. (BOBBIO, 1992, p.5).

Compreender os direitos humanos como conquista e construção humana ao


longo da história afirma o protagonismo das pessoas na luta pelos direitos a
serem positivados como direitos fundamentais. Ressalta-se que as expressões
“direitos humanos” e “direitos fundamentais” são frequentemente utilizadas como
sinônimos.

Segundo a sua origem e significado, poderíamos distingui-los da seguinte


maneira: direitos do homem [humanos] são direitos válidos para todos os povos
e em todos os tempos; [...] os direitos fundamentais seriam [são] os direitos
objetivamente vigentes numa ordem jurídica concreta. (CANOTILHO, 1998).
Partindo do pressuposto de que os direitos humanos resultam de conquistas
que se materializam no processo histórico, pela ação humana, evidencia-se a
importância das Revoluções Liberais (Inglesa, Americana e Francesa) para a
emancipação dos indivíduos e das coletividades no contexto de construção da
modernidade e da criação dos direitos.

No processo da Revolução Inglesa, em 1689, o Parlamento inglês apresentou


à monarquia uma declaração de direitos (Bill of Rights), que assegurava aos
indivíduos os direitos de liberdade, de segurança e de propriedade, como garantia
frente ao poder soberano – e arbitrário – do Estado absolutista.

A Bill of Rights impunha limites ao poder real ao deslocar para o Parlamento as


competências de legislar e criar tributos. Ao mesmo tempo, instituía a separação
de poderes para evitar o autoritarismo do poder absolutista do monarca.

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No entanto, ao consentir em manter a imposição de uma religião oficial, a


anglicana, – estabelecida pelo rei Henrique VIII – muitos ingleses, sem a liberdade
de professar e manifestar sua crença religiosa, distinta da oficial, viram-se
constrangidos a migrar para terras distantes, temerosos de perseguições. Para
os puritanos (calvinistas ingleses), a América consistiu em alternativa para viver
em liberdade, conforme suas crenças.

Depois de estabelecidos na “nova Canaã”, como denominavam a América


do Norte, os agora colonos americanos foram constrangidos, em 1765, pelas
imposições fiscais da autoridade metropolitana – que contrariava o estabelecido
na Bill of Rights – a recolher uma série de impostos para cobrir o déficit da Coroa
que havia se envolvido na Guerra dos Sete Anos (1756-1763) contra a França.

Em 1773, na cidade de Boston, ocorreu a The Boston Tea Party. Colonos que
viviam do comércio, por se sentirem prejudicados com a Lei do Chá, disfarçaram-
se de índios peles-vermelhas, assaltaram os navios da companhia de transporte,
que estavam ancorados no porto de Boston, lançando o carregamento de chá
no mar. A reação inglesa foi imediata e mesmo violenta. Em 1774, os rebelados
criaram um exército comum entre as colônias, demonstrando a fragilidade
das suas relações com a metrópole inglesa, fato que abriu caminho para a
independência.

Em 1776 foi elaborada a Declaração de Direitos do Bom Povo da Virgínia,


afirmando que todos os seres humanos são livres e independentes, possuindo
direitos inatos, tais como a vida, a liberdade, a propriedade, a felicidade e a
segurança, registrando o início do nascimento dos direitos humanos na história.
(COMPARATO, 2003).

A referida Declaração de Direitos, que abriu caminho para a independência dos


EUA, ocorrida em 4 de julho de 1776, proclamada na Filadélfia, positivada na
Constituição da República dos Estados Unidos da América em 1787, afirmou
que o governo tem de buscar a felicidade do povo, definiu a separação de
poderes, estabeleceu o direito dos cidadãos à participação política, à liberdade
de imprensa e a livre escolha da religião, conforme a consciência individual. No
entanto, a pátria da liberdade manteve a mácula da escravidão que deixou a
herança da segregação racial.

A prática da escravidão foi abolida nos Estados Unidos da América em 1863, com
a Declaração de Emancipação promulgada pelo presidente Abraham Lincoln, no
contexto de uma guerra civil, a Guerra da Secessão. No entanto, a discriminação
racial, mesmo com a abolição, assumiu na cultura estadunidense um caráter
segregacionista, que deu origem a inúmeras ações afirmativas e reações violentas.

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Em virtude das manifestações decorrentes do protesto pacífico de Rosa Parks,


em 13 de novembro de 1956, a Suprema Corte aboliu a segregação racial nos
transportes coletivos de Montgomery, tornando também ilegal essa discriminação
racial em todo o território dos EUA. Em 21 de dezembro de 1956, o ativista negro
Martin Luther King e o sacerdote branco Glen Smiley entraram juntos num ônibus
e ocuparam lugares na primeira fila.

Martin Luther King organizou e liderou marchas que reivindicavam para os


negros o direito ao voto, o fim da segregação e das discriminações, bem como a
conquista de outros direitos civis básicos. A maior parte desses direitos foi, mais
tarde, agregada à constituição estadunidense, com a aprovação da Lei de Direitos
Civis (1964) e da Lei de Direitos Eleitorais (1965).

Em 4 de abril de 1968 Martin Luther King foi assassinado em Memphis, no


Tennessee. Em 20 de janeiro de 2009 Barack Obama tomou posse da presidência
dos Estados Unidos como primeiro negro eleito para o comando executivo do
mais influente Estado-nação do mundo:

Neste dia, estamos reunidos porque escolhemos a esperança


acima do medo, a unidade de objetivos acima do conflito e da
discórdia. Neste dia, vimos proclamar o fim dos sentimentos
mesquinhos e das falsas promessas, das recriminações e dos
dogmas desgastados que por tanto tempo estrangularam nossa
política. (OBAMA, 2009).

A sociedade organizada com justiça é aquela em que os encargos e os benefícios


são partilhados entre todos, pois os direitos, para além da sua criação histórica
e positivação jurídica, precisam constituir-se em prática social. A Declaração
de Direitos do Povo da Virgínia (1776) consistiu numa ação pioneira na luta
pelos direitos humanos ao reivindicar direitos políticos e justiça social, porém,
apresentava, na época, como referido, caráter seletivo. No entanto, foi a
Declaração dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembleia Nacional francesa,
no contexto revolucionário, em 1789, que exerceu grande influência sobre os
movimentos emancipacionistas e libertários na modernidade, pelo seu caráter de
universalidade.

A França quer ser exemplar, não para ensinar, mas porque é


a história dela, é sua mensagem. Exemplar para as liberdades
fundamentais: é a sua luta, é também sua honra. Esta é a razão
pela qual a França vai continuar a realizar todas essas lutas:
para a abolição da pena de morte, pelos direitos das mulheres
à igualdade e dignidade, para a descriminalização universal da
homossexualidade, que não deve ser reconhecida como um
crime, mas, pelo contrário, reconhecida como uma orientação.

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[...]. Todos os países membros [da ONU] têm a obrigação de


garantir a segurança de seus cidadãos, e se um país adere a
esta obrigação, então é imperativo que nós, nas Nações Unidas,
facilitemos os meios necessários para fazer essa garantia. Estas
são as questões que a França vai levar e defender nas Nações
Unidas. Digo isso com seriedade. Quando há paralisia e inação,
então a injustiça e a intolerância podem encontrar o seu lugar.
(HOLLANDE, 2012).

Os revolucionários franceses de 1789 iniciaram a Declaração de Direitos do


Homem afirmando, no artigo primeiro, que “Os homens nascem e são livres e
iguais em direitos”, e no artigo quarto enfatizam que

A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o


próximo. Assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem
não tem por limites senão aqueles que asseguram aos outros
membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes
limites apenas podem ser determinados pela lei.

Outro aspecto relevante da Declaração de Direitos criada pelos franceses está


explicitado no artigo dezesseis, nos seguintes termos: “A sociedade em que não
esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos
poderes não tem Constituição.” (DALARI, 1985, p. 53-54).

O século XX foi marcado por duas grandes guerras de proporções mundiais. Na


origem dessas guerras está o choque entre interesses imperialistas das potências
capitalistas e seus asseclas. A ambição pelo poder e pela riqueza, somada ao
desprezo aos direitos humanos, explicam os horrores gerados pelos referidos
conflitos, materializados em privações das liberdades e das garantias individuais
e sociais, crises de desabastecimento, bombardeios, destruição, terror e mortes
físicas e psicológicas.

O trauma causado pelas referidas guerras impeliu as lideranças mundiais à


criação e consolidação de uma organização (ONU) com o propósito de: assegurar,
por meios pacíficos, a manutenção da paz internacional; lutar pela defesa dos
direitos humanos; estabelecer relações amistosas entre as nações, com base
no princípio de autodeterminação dos povos; gerar mecanismos de cooperação
entre os países na busca de solução para os problemas internacionais de
ordem econômica, social, cultural e humanitária; e constituir-se em centro de
convergência das ações dos Estados-nação na luta por objetivos comuns.

Para que fosse permanentemente relembrado o valor da pessoa humana e para


estabelecer o mínimo necessário que todos os países e todas as pessoas devem
respeitar, a ONU encarregou um grupo de pessoas muito respeitadas, entre as
quais havia filósofos, juristas, cineastas, políticos, historiadores, de várias partes
do mundo, para redigir uma nova Declaração de Direitos.

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Esses estudiosos reuniram-se, pediram a opinião de muitas outras pessoas e


prepararam um documento que proclama os Direitos Humanos, os quais devem
ser considerados fundamentais. (DALLARI, 1985, p. 51 e 52).

Os autores da Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela


Assembleia Geral das Nações Unidas, em Paris, no dia 10 de dezembro de 1948,
evitaram redigir uma mera carta de intenções. Nos artigos da referida declaração
foram incluídas exigências que devem ser atendidas para que a dignidade
humana seja respeitada. O artigo terceiro, por exemplo, lembra que “Todo homem
tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”. Em decorrência, no artigo
quarto está expressamente ordenado que “Ninguém será mantido em escravidão
ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as
suas formas.”

A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi assinada por países do mundo
inteiro, inclusive pelo Brasil, valendo como um compromisso moral desses países.
É necessário que o maior número possível de pessoas conheça a Declaração,
para cobrar de seus governos o respeito ao compromisso assumido. (DALLARI,
1985, p. 52).

Leia na íntegra os trinta artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos:


http://www.dhnet.org.br/direitos/deconu/index.html#deconu

A ênfase da referida Declaração está na internacionalização dos direitos humanos,


fixando-o no contexto internacional dos direitos fundamentais, ensejando a
prevalência desse no ordenamento jurídico dos Estados signatários do referido
documento e daqueles que se integram à comunidade das nações unidas como
filiados da ONU.

O Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, criado em 2006, em


substituição à Comissão das Nações Unidas sobre os Direitos Humanos, criticada
pela tolerância com Estados cujas ações constituíam desrespeito aos direitos
humanos, tem como objetivo combater as violações aos direitos humanos em
todo o mundo.

O Brasil, membro da ONU, signatário da Declaração Universal dos Direitos


Humanos, define na Constituição Federal, promulgada em 1988, os direitos
fundamentais no título II, Dos Direitos e Garantias fundamentais. O capítulo I
dos Direitos Individuais e Coletivos é constituído pelo artigo 5º, com 78 incisos,
alinhados com o referido documento da ONU. No caput deste artigo lê-se: “Todos
são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida,
à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, [...].”

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A dificuldade da concretização dos direitos humanos, entre outros fatores, reside


na adoção, pelos Estados-nação, de políticas seletivas, dando prioridade a alguns
direitos e postergando a positivação de outros.

Ressalta-se que os direitos humanos foram sendo positivados de maneira


gradativa. Estudiosos do tema, para fins didáticos, sem desconsiderar o princípio
estrutural de indivisibilidade, apontam para quatro gerações de direitos que foram
sendo criados e incorporados às constituições dos Estados-nação ao longo do
processo histórico-social na modernidade.

Na escala evolutiva dos direitos, legislados ao longo dos séculos XIX e XX, há
quatro gerações sucessivas de direitos fundamentais:

•• Os direitos de primeira geração: Os direitos de liberdade foram os


primeiros a constar dos instrumentos normativos constitucionais,
a saber: os direitos civis e políticos. Os direitos de liberdade têm
por titular o indivíduo. Os direitos de liberdade fazem ressaltar, na
ordem dos valores políticos, a nítida separação entre a Sociedade
e o Estado, e a submissão do segundo à primeira. Essa geração de
direitos corresponde aos direitos diretamente ligados ao conceito de
pessoa humana e de sua própria personalidade, como, por exemplo:
vida, dignidade, honra, liberdade. Basicamente, a Constituição de
1988 os prevê no art. 5º, tão significativo para todos os brasileiros.
•• Os direitos de segunda geração: decorrem dos efeitos
provocados pelas transformações econômicas e sociais gerados
pela industrialização e urbanização. São os direitos sociais
vinculados aos econômicos, bem como os direitos coletivos e os de
coletividades. Nasceram em decorrência das lutas dos trabalhadores
e estão articulados ao princípio da igualdade. A consciência de um
mundo partido entre nações desenvolvidas e subdesenvolvidas deu
lugar a que se buscasse outra dimensão dos direitos fundamentais,
aquela que se assenta sobre a fraternidade. Dotados de altíssimo
teor de humanismo e universalidade.
•• Os direitos de terceira geração: tendem a cristalizar-se enquanto
direitos que não se destinam especificamente à proteção
dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou determinada
sociedade, pois seu destinatário primeiro é o gênero humano e
sua existencialidade concreta. Emergiram da reflexão sobre temas
referentes à autodeterminação dos povos, incluindo o direito
ao desenvolvimento, à paz, à dignidade humana, o combate às
diferentes formas de discriminação, bem como a necessidade de
universalizar o acesso aos bens necessários para a vida digna, ao
meio ambiente equilibrado, ao patrimônio comum da humanidade.

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•• Os direitos de quarta geração: constituem-se no direito à


democracia, à informação, à defesa da vida, à proteção da
intimidade, o direito à diferença e o respeito ao pluralismo num
mundo multicultural. (Texto adaptado de palestra proferida por Paulo
Bonavides, quando do aniversário de quinze anos da Constituição
Federal do Brasil, promulgada em outubro de 1988.).

Considerando este resumo, você, caro aluno(a), pode alargar sua compreensão
sobre os Direitos Humanos e sua positivação na legislação brasileira. São muitas
as possibilidades para aprofundar estudos nesta área. Selecionamos no EVA
para vocês o texto do autor SARMENTO, Jorge. AS GERAÇÕES DOS DIREITOS
HUMANOS E OS DESAFIOS DA EFETIVIDADE. Leia e destaque alguns avanços e
possibilidades de efetividade dos Direitos Humanos na vida dos brasileiros.

Apesar de inúmeras dificuldades produzidas historicamente, o Brasil tem


buscado, em meio às desigualdades econômicas e sociais, promover ações
destinadas à emancipação dos indivíduos na busca e efetivação dos direitos
fundamentais. A discussão dos direitos humanos e as ações políticas e práticas
empreendidas por meio de programas governamentais e iniciativas da sociedade
civil tem criado condições objetivas para a promoção da cidadania e o respeito
aos direitos humanos. No entanto, ainda existem brasileiros sem acesso aos
meios que os assegurem usufruir dos direitos fundamentais.

Direitos humanos como prática social 1


Valéria Rodineia Zanette

Em tempos de pluralidade de valores, como é o caso da contemporaneidade,


é bastante complexo estabelecer conteúdos gerais a que todos devem seguir,
mesmo que esses conteúdos sejam os direitos humanos. Ocorre que tais direitos
conseguem até se fazer presentes nos ordenamentos jurídicos de muitos Estados.
Prova disso é o fato de um grande número deles terem assinado a Declaração
Universal dos Direitos Humanos. Mas a verdade é que, no cotidiano das pessoas,
os direitos humanos, muitas vezes, estão ausentes ou inexistem.

1 Extraído de: ZANETTE, V.R. Schulze. Desafios da cidadania e dos direitos humanos na contemporaneidade.
In: Ética, cidadania e direitos humanos. Livro digital, 5ª ed. Palhoça: UnisulVirtual, 2012.

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É consenso, entre muitos autores que tratam do tema dos direitos humanos,
que a democracia e o Estado de direito são elementos indispensáveis para a
realização desses direitos. No entanto, como já deve ser de seu conhecimento,
existe mais de um tipo de Estado de Direito, bem como mais de um tipo de
democracia. Qual Estado e qual sistema democrático praticam melhor os direitos
humanos? Aliás, algum desses pode realizar tais direitos?

Como uma resposta à própria evolução histórica, podemos observar que muito se
tem evoluído na garantia dos direitos humanos, no próprio entendimento do que
eles são e de sua importância na sociedade mundial e brasileira.

Tendo feito essa análise dos direitos humanos até o presente, cabe agora pensar:
quais são os desafios dos direitos humanos, hoje? E amanhã? Mais ainda: pode-
se afirmar que os direitos humanos são efetivamente garantidos no Brasil? E
no mundo? A resposta mais rápida e fácil a ser dada é que, evidentemente, os
direitos humanos não são garantidos de maneira efetiva como um todo; e nem
para todos, como podemos ver a seguir.

No passado, o Brasil vivia em um Estado escravagista, em que o negro africano


não merecia direitos porque não era visto como pessoa, mas sim como
propriedade. Para ter direitos, tinha-se que preencher requisitos importantes
como: o sexo, a cor da pele, a classe social, as relações de poder, a religião etc.

O que vemos atualmente é um Brasil bastante evoluído, mas distante, muito


distante, de ser chamado de um país alheio às discriminações. O que falar das
inúmeras leis que tentam garantir um tratamento digno aos homossexuais, que,
no fundo, ainda enfrentam, diariamente, situações discriminatórias? E, no caso da
mulher que os relatórios estatísticos de violência revelam a grave desigualdade
de gênero? E da diferença salarial entre homens e mulheres? E o nordestino que
escuta diariamente piadinhas de sua origem? E, pior ainda, daqueles que, pelo
simples fato de serem pobres, são taxados de marginais?

Tais circunstâncias são corriqueiras e fazem parte do cotidiano de todos nós, de


forma tão natural que nem parece uma verdadeira afronta aos direitos humanos.
A conscientização de todos em relação a isso é um processo demorado. De
qualquer forma, o Brasil tem trabalhado bastante na elaboração de um sistema
normativo que prima pelos direitos fundamentais, assim como na ratificação e
engajamento aos direitos humanos no plano internacional. Sendo assim, o que
falta então?

O problema está no cumprimento das normas jurídicas criadas, sejam elas de


direitos humanos ou fundamentais. Bem como assevera Norberto Bobbio (1992,
apud PIOVESAN, p. 110), o problema dos direitos humanos hoje: “não é mais o
de fundamentá-los, e sim o de protegê-los”.

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Uma constatação negativa é que ainda temos trabalho escravo em todas as


regiões do país, como descreve Breton (2002, p. 25):

Hoje em dia as coisas são um pouco mais sutis. Você não possui
a pessoa, você apenas a usa por quanto tempo precisar dela. É
a escravidão por dívida. Funciona assim: oferecem um emprego
para o cara, dão um adiantamento, e ele começa a trabalhar.
Quando chega o dia do pagamento, ele descobre que está
endividado. Tem de descontar o adiantamento, o pagamento do
transporte e o que deve na cantina – alimentos, ferramentas e
remédios – a dívida não termina nunca.

Com isso, as pessoas trabalham, horas a fio, no meio do nada, correndo risco
de vida e, ao final, o que recebem é muito pouco. A boa notícia é que a Justiça
Federal está condenando fazendeiros por terem submetido trabalhadores a
condições semelhantes à escravidão: pessoas que vivem sem remuneração,
presas a relações de dívidas forjadas e as mais variadas condições degradantes
de trabalho, expostas a existência de alojamentos precários, instalações
sanitárias em péssimo estado de conservação, não fornecimento de água potável,
não fornecimento de equipamentos de proteção individual, entre outras. São
muitas as situações sendo superadas pela ação dos órgãos que combatem o
trabalho análogo a escravo.

Outro exemplo são as ações afirmativas, como o sistema de cotas nas


universidades. Esse sistema foi criado com o intuito de promover a igualdade
material, já que as pessoas negras, constantemente, formam um número muito
inferior nas universidades. Isso pode ser justificado como uma consequência
das desigualdades econômicas, pois as pessoas negras não têm acesso a
uma educação fundamental de qualidade, precisam trabalhar para seu próprio
sustento e de sua família, ficando impossibilitadas de competir, em grau de
igualdade, com os outros com melhores condições e preparo.

Nesse contexto,

[...] o Estado abandona sua tradicional posição de neutralidade


e de mero espectador dos embates que se travam no campo
da convivência entre os homens e passa a atuar ativamente
na busca de concretização da igualdade positivada nos textos
constitucionais. (GOMES, 2001, p. 20).

Mesmo parecendo um caminho simples, muitos brasileiros, na verdade, são contra


esse tipo de ação. Não conseguem entender que tudo isso faz parte de um círculo
vicioso e que, se não forem promovidas ações discriminatórias positivas em favor
dos desprivilegiados, possivelmente o caminho ainda será mais longo para se
alcançar a igualdade. O caso do acesso ao ensino superior ilustra, bem, isso.

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Uma das principais argumentações contra o “sistema de cotas” era que, mesmo
conseguindo entrar na universidade, os cotistas acabariam por desistir, ou mesmo
que isso acabaria por prejudicar o próprio andamento do curso, já que esses não
conseguiriam acompanhar os outros estudantes em decorrência do déficit no
ensino médio. No entanto, pesquisas produzidas, por exemplo, Mandelli (2010),
destacam o fato de que, mesmo vindo de um ensino médio defasado, o esforço
dos cotistas é tamanho que apresentam bom desempenho acadêmico.

As mulheres também são objeto desse tipo de ação, como é o caso de se


destinar a elas um número de cadeiras no executivo. Essa ação afirmativa em
benefício das mulheres também é uma forma de promover o tratamento igualitário
entre homens e mulheres, possibilitando-se que ambos tenham acesso na
administração do nosso país.

Mas, certamente, há alguns passos importantes a serem dados nessa busca da


igualdade entre homens e mulheres, já que, infelizmente, a mulher ainda recebe
salários inferiores (mesmo exercendo a mesma função), ocupa menos cargos de
chefia (mesmo quando apresenta alto grau de instrução), entre outras situações
corriqueiras a serem conquistadas pelo gênero feminino. A violência doméstica e
familiar contra a mulher é uma das evidências mais graves das desigualdades de
gênero.

Considerando isso e verificando a elevação dos índices de violência e a frágil


segurança pública a que o povo brasileiro tem sido remetido, seu direito está
longe de ter a proteção necessária.

A vida e a boa convivência social são essenciais para a humanidade e compete


a todos nós, sociedade e organizações do Estado, zelarmos pela sobrevivência
saudável e sustentável, nossa e do meio ambiente.

Outro elemento que contribui para o direito à vida saudável é o acesso à


saúde. O Brasil conta com um sistema único de saúde (SUS) reconhecido
internacionalmente pela sua cobertura e universalização do acesso, no entanto,
ele não possibilita atendimento satisfatório. Além da falta de atendimento, os
profissionais da saúde regularmente protestam por “melhores condições de
trabalho”. No concernente ao saneamento básico, a realidade evidencia que
metade dos domicílios brasileiros não possuem qualquer ligação com a rede
coletora de esgoto, sendo que quanto mais pobre a região, maior o descaso.

Também está entre os basilares dos direitos civis o direito de “não ter o lar
violado”. Isso vai depender de uma série de circunstâncias para que realmente
seja respeitado, tais como: o bairro em que mora, o tipo de policial que está em
atividade e, até mesmo, o momento histórico. Tudo isso pode ser comprovado se
nos lembrarmos das invasões que ocorrerem nas favelas dos grandes centros,
em que absolutamente todos os “barracos” são invadidos, mesmo ali morando
pessoas de bem. Essas acabaram pagando por estarem no lugar e no momento
errado.

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Capítulo 1

Muitas pessoas constroem suas moradas em áreas de risco, de preservação


ambiental, em lugares que geram perigos à vida. A violação do direito à moradia/
habitação é constante. Acompanhamos diariamente despejos forçados sem
cumprir as determinações internacionais de realojar essas pessoas, pois, na
prática, elas são retiradas por meio de força policial (que nada mais é do que o
braço do próprio Estado). Irresponsabilidades pessoais, privadas e do Estado
gerando insegurança às famílias, regiões, cidades, pela falta de condições de um
habitar seguro.

Os direitos humanos são a melhor forma de se defender e garantir a liberdade


pública, assim como de se proporcionarem as condições mínimas para uma
existência digna. E, para isso, conta-se com os poderes executivo, legislativo e
judiciário, voltados para o fortalecimento da democracia e da paz social.

O poder judiciário é o último guardião dos direitos humanos, isso porque é a


ele que o indivíduo, provado de seu direito, vai buscar guarida. E, por isso, é
tão importante que todos esses poderes estejam preparados para tamanha
responsabilidade: a de garantir os direitos humanos fundamentais.

A busca pela efetividade dos direitos humanos – principalmente dos direitos


econômicos, sociais e culturais – passa pela efetivação de políticas públicas e
pela responsabilidade de todas as instâncias e poderes. Muito ainda precisa ser
feito, principalmente visando à busca da universalidade e indivisibilidade dos
direitos humanos, porque o desrespeito aos direitos civis e políticos e a ausência
dos direitos econômico-sociais remete a preconceitos, exclusão e desigualdades
evidentes. Aqueles em situação de maior vulnerabilidade social são os mais
atingidos. São aqueles que vivem em locais com precárias condições de vida,
sem instrução, sem segurança, às margens da sociedade, os mais suscetíveis
à violência da criminalidade comum, são vítimas de balas perdidas, de violência
na escola, de doenças relacionadas à falta de saneamento básico, entre outras
violações.

Essas desigualdades ficam ainda mais evidentes quando relacionadas às


minorias, porque, por mais que sejam promovidas leis com o intuito de promover
a igualdade, ainda enfrentam grandes obstáculos, diariamente.

Vejamos o caso das mulheres, das crianças e dos idosos. As mulheres,


como já dito, ainda estão num processo intenso de busca de valorização.
Profissionalmente, precisam provar que são tão capazes quanto os homens
para merecerem respeito, quando em muitas circunstâncias são muito mais
capacitadas. Em casa, nem todas mantêm relações de respeito e igualdade na
divisão das responsabilidades.

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Estudos Socioculturais

As crianças ainda são as que mais sofrem as vicissitudes da miséria e da


violência, já que, por si só, não possuem maturidade para lutarem pela sua
própria subsistência e proteção. E, quando acontece de lutarem, a falta de
estrutura sempre leva a caminhos bastante tortuosos, que o digam as crianças de
rua nas cidades brasileiras, entregues ao abandono, aos vícios, aos abusos.

Os idosos também têm sido objeto de legitimação, na tentativa de a sociedade


ou os órgãos públicos promover-lhes certa qualidade de vida quando chegam
à terceira idade. O fato é que a realidade ainda está distante de acompanhar as
normas. Constatam-se abandonos, descasos, fragilidades, violências tanto por
parte das famílias quanto por parte do Estado.

Quanto aos direitos políticos, esses não são amplamente assegurados quando o
povo não tem um mínimo de instrução para entender a importância de seus atos
e de suas escolhas, quando prevalece nas práticas dos gestores públicos práticas
de manobras conduzidas pelos interesses pessoais, políticos partidários, de
grupos privilegiados acima dos interesses coletivos e da república.

Podem ser citados muitos outros direitos que são violados diariamente em nosso
país, os quais são resultados de muitos fatores, entre eles deve ser ressaltada
a falta de informação e até de educação da população quanto aos seus direitos
humanos. A importância de nos percebermos como sujeitos transformadores da
vida, dos ambientes de convivência, do local onde moramos, da cidade, do país.

A paz, a solidariedade, a sustentabilidade a democracia são pilares de uma


sociedade que todos precisamos visualizar e ajudar a construir. Muito já
avançamos, precisamos continuar nos colocando como protagonistas da vida e
da história.

Existem muitas iniciativas que evidenciam a responsabilidade do Estado e da


sociedade com os Direitos Humanos, veja algumas iniciativas no site da Secretaria
de Direitos Humanos: http://www.sdh.gov.br e no site da Secretaria de Políticas para
Mulheres: http://www.spm.gov.br. Os links estão disponíveis no EVA.

Assim, entendemos que: não basta a incorporação dos direitos humanos ao


ordenamento jurídico brasileiro se esse não for do conhecimento de todos. Faz-
se necessária a promoção da educação para os direitos humanos, a fim de que
a população em geral possa conhecê-los para então buscá-los, respeitá-los e
vivenciá-los.

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