As doenças e as enfermidades têm acompanhado a humanidade desde a
sua existência. Algumas, entretanto, preenchem os critérios de pandemia, que, no seu conceito moderno, traduz-se por “uma epidemia de grandes proporções, que se espalha a vários países e a mais de um continente” (WHO, 2010, s.p.). Um dos maiores exemplos de pandemia que assolou a humanidade é a “gripe espanhola”, que se seguiu à Primeira Guerra Mundial, nos anos de 1918- 1919, e que levou a óbito cerca de 50 milhões de pessoas em todo o mundo (BBC NEWS BRAZIL, 2020). E agora, a Covid-19, com todas as suas peculiaridades, e que a distingue das demais, sendo a primeira pandemia com cobertura mundial, 24 horas por dia, com informações just in time (JOHNS HOPKINS UNIVERSITY AND MEDICINE , 2020). Em dezembro de 2019, autoridades chinesas relataram que um grupo de pacientes teria desenvolvido um quadro de pneumonia de causa desconhecida, e que estaria ligado, epidemiologicamente, a um tradicional mercado popular na cidade de Wuhan, na China (WANG et al., 2020). Logo em seguida o agente etiológico foi descrito, tendo-se então em âmbito mundial o surgimento de um “novo coronavírus”, pertencente a uma grande família de RNA-vírus, e amplamente distribuído entre humanos, mamíferos e aves, relacionados à causa de diversas doenças: respiratórias, intestinais, hepáticas e neurológicas, com potencial, inclusive, para levar os pacientes a óbito (WHO, 2020). A cada dia se conhece mais sobre as formas de apresentação clínica da doença, através de um grande esforço mundial na obtenção e compartilhamento de dados e informações. Já se sabe que a Covid-19 apresenta-se geralmente com um quadro clínico que, em sua grande maioria, é leve, semelhante a um resfriado comum. No entanto, em alguns casos, evolui para problemas clínicos mais graves, como a Síndrome Respiratória Aguda Grave, além de outras complicações que, no conjunto, podem levar o paciente à morte. Não há ainda tratamentos eficazes disponíveis e a vacina já está sendo mundialmente distribuída entre a população, embora a princípio, com diferenças preocupantes: enquanto os países mais ricos conseguiram vacinar a grande maioria de sua população, países mais pobres engatinharam na vacinação. Por esta razão, o índice de óbitos demorou a reduzir. Em março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS), levando em conta a célere disseminação e os níveis alarmantes de contaminação mundial, elevou a doença causada pelo Covid-19, para o nível de pandemia (WHO, 2020). Nas semanas seguintes, o que se observou foi uma rápida disseminação da doença por todo o mundo. Atualmente, tem-se que o vírus está presente em cerca de 180 países. Os Estados Unidos da América (EUA), Índia e Brasil lideraram o ranking em número de casos e de óbitos (OUR WORLD IN DATA, 2022). Há que se considerar ainda, nas casuísticas apresentadas, o problema da subnotificação e os muitos reflexos que esta pandemia possui sobre os direitos humanos e, consequentemente, sobre o Direito Civil. É o que passa-se a expor.
2.1 OS CONCRETOS DESAFIOS DECORRENTES DA PANDEMIA DO
CORONAVÍRUS
De início, antes de adentrar aos concretos desafios que deverão ser
enfrentados diante da situação inusitada, que foi a pandemia ela Covid-19 cumpre analisar o aspecto contingencial que se buscou tutelar em meio à crise pandêmica. Como é cediço, as normas jurídicas são editadas com vistas a produzir efeitos futuros e por prazo indeterminado, em observância ao princípio da continuidade, previsto no art. 2º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro1 (LINDB). É dizer, a vigência somente cessará com a promulgação de outra norma que poderá derrogá-la ou ab-rogá-la expressa ou tacitamente2. Configura-se como exceção a essa regra a norma de vigência temporária, que pode ocorrer quando o legislador fixa o tempo de sua duração – como ocorre, por exemplo, com as leis orçamentárias – ou quando estabelecidas em determinadas circunstâncias – a exemplo das guerras e das calamidades
1 Art. 2o da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – “Não se destinando à vigência
temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue”. 2 Revogação é o gênero que contempla duas espécies, a saber: i) ab-rogação, que significa a supressão total da norma anterior; ii) derrogação, que consiste na supressão parcial da norma. públicas3 originadas de epidemias, endemias, pandemias ou até mesmo decorrentes de fatos da natureza (JABUR, 2000). Tais normas desaparecem do cenário jurídico com o decurso do prazo estabelecido ou com a cessação das causas excepcionais que a originaram, podendo, até mesmo, ultrapassar o período, desde que justificadamente, para que disciplinem de forma transitória a passagem para a normalidade, podendo sobrestar os efeitos da lei anterior ou revogá-los, observando a regra da não repristinação, nos termos do art. 2º, § 3º da LINDB4. Posto isto observa-se que a Covid-19 enquadra-se nas situações excepcionais que ensejam a regulação por meio de normas temporárias5. Assim, depreende-se que todo o arcabouço legislativo produzido neste período, além de ter vigência temporária – qual seja enquanto perdurar a pandemia e seus efeitos -, deve ter como foco tão somente a solução dos impactos ocasionados pela pandemia na vida humana sob todos os aspectos. Em outras palavras, não se pode utilizar desta situação atípica para, de forma discricionária e abusiva, cometer excessos que infrinjam os postulados constitucionais e, especificamente, civis.
2.2 DIREITOS DA PERSONALIDADE
O art. 6º da CRFB/1988 eleva a saúde à categoria de direito social6. Na
mesma toada, o Código Civil confirma em seus arts. 13, 14 e 15 esse preceito fundamental como um direito da personalidade, sendo um desdobramento do próprio direito à vida (art. 5º, caput da CRFB/1988). Por outro lado, o art. 5º, inc. XV da CRFB/1988, também preceitua, pela via oblíqua, o direito de ir e vir como um postulado constitucional. Nessa linha, a Covid-19 proporcionou uma verdadeira antinomia real7 entre duas normas
3 Vide art. 2º, IV, do Decreto 7.257/2010.
4 § 3º da LINDB – “Salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência”. 5 Vide art. 1o do Projeto de Lei n. 1.179/2020. 6 Vide art. 196 da CRFB/1988. 7 Segundo Tércio Sampaio Ferraz Jr., antinomia real é “a oposição que ocorre entre duas normas contraditórias (total ou parcialmente), emanadas de autoridades competentes no mesmo âmbito normativa, que colocam o sujeito numa posição insustentável pela ausência ou inconsistência de critérios aptos a permitir-lhe uma saída nos quadros de um ordenamento dado.” (FERRAZ JR., SAMPAIO, 1977, p. 14-18). constitucionais que envolvem tais direitos da personalidade, rompendo a harmonia, de maneira inusitada, com a consequente colisão entre os direitos. Explica-se. A OMS editou uma série de orientações para o combate do novo coronavírus8. Dentre seus anúncios, o confinamento horizontal passou a ser uma das medidas de maior relevância e eficiência para o efetivo combate à doença. Assim, passou a ser fortemente recomendada a suspensão da maioria das atividades econômicas e restrição de convivência social, cuja aplicação foi adotada por muitos países e replicada no Brasil na grande maioria dos estados- membros. Destarte, abriu-se margem a uma discussão que, ao menos aparentemente, mostra-se até desarrazoada, com o devido respeito às opiniões contrárias, diante da magnitude do conteúdo jurídico dos direitos envolvidos. Sem dúvida alguma, os direitos à vida e à saúde devem se sobrepor aos direitos de liberdade, tanto de locomoção quanto de reunião9 ou de livre iniciativa (art. 170 da CRFB/1988). Isto porque o art. 5º da LINDB10 prevê que a norma deve atender ao bem comum, sendo a equidade critério que se impõe para a solução do conflito real de normas jurídicas. Ora, há que se considerar que o bom senso e a lógica do razoável não autorizam outra conclusão senão a de articulação de um esforço coletivo em prol da proteção da vida humana, especialmente a dos mais vulneráveis. Portanto, o conflito aqui exposto, segundo Diniz (2020) acaba por permear todas as liberdades civis que serão a seguir examinadas (contratuais, reais, familiares, etc.), sendo a equidade o vetor preponderante que pautará a aplicação da norma jurídica em cada caso concreto, tanto no aspecto da subsunção, da integração, quanto da correção. Tendo em vista esse cenário, não se duvida que a legalidade extraordinária foi um dos remédios mais relevantes para conter o avanço da pandemia, posto que atribuiu ao Estado o dever-poder de valer-se de todas as providências que se fizessem necessárias para estancar ou minorar os efeitos
8 ESPII, o mais alto nível de alerta da OMS, em 30 de janeiro de 2020.
9 Vide art. 4º do PL n. 1179/2020, que suspende a realização de reuniões e assembleias presenciais das pessoas jurídicas elencadas nos incisos I a IV do art. 44 do Código Civil. 10 Art. 5 º do PL n. 1179/2020 - Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum. decorrentes da pandemia. Portanto, não se trata de uma prerrogativa facultada ao Poder Público fazer ou não uso dos referidos mecanismos, mas sim de um dever de implementar políticas públicas que emergencialmente pudessem assegurar a universalização do direito à saúde e, consideradas as repercussões sociais e econômicas, procedessem à distribuição de renda (CAMBRICOLI, 2020). Países como Itália, Espanha e Irlanda adotaram mecanismos típicos de legalidade extraordinária mediante particular estatização dos recursos de saúde e, inclusive, atividades industriais de produção de medicação e equipamentos necessários à prestação de serviços de saúde. Na Espanha, por exemplo, o Real Decreto no 463, de 14 de março de 2020, obrigou que o sistema privado de saúde contribua para o fortalecimento do modelo público capitaneado Sistema Nacional de Saúde. No dia seguinte, em 15 de março de 2020, por meio da Orden SND/232/2020, o Ministério da Saúde espanhol apropriou, temporariamente, de centros e estabelecimentos de saúde privados do país (WARDE; VALIM, 2020). Referidos exemplos demonstram que a pandemia alterou, significativamente, o papel do Estado, bem como dos instrumentos jurídicos à sua disposição. Antes de adentrar-se especificamente em tais aspectos, é fundamental que se proceda a uma breve incursão sobre o papel atribuído a Estado pela CRFB/1988 em situações excepcionais. No magistério de Warde e Valim:
A falha no acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde,
a despeito das previsões constitucionais e infraconstitucionais, é notoriamente histórica no Brasil e ganhou contornos ainda mais fatais com a pandemia que enfrentamos atualmente. Acidulou-se a grave e massiva violação de direitos fundamentais e sociais, bem como das falhas estruturais, razão pela qual são prementes políticas públicas que assegurem a universalização do direito à saúde e distribuam renda. Portanto, o atual contexto sanitário e social impõe o fortalecimento dos mecanismos sociais de proteção a vulneráveis (WARDE; VALIM, 2020, p. 146).
As medidas mais eficazes e, portanto, legitimadas, em tese, à adoção pelo
mecanismo da legalidade extraordinária imposta pela atual pandemia, podem ser classificadas em afastamento de compromissos fiscais e de regras procedimentais, tais como aquelas relativas ao processo licitatório, condicionamentos sanitários e de saúde pública, limitações à liberdade, ao exercício de atividades econômicas e, ainda, intervenção do Estado na propriedade. Por fim, políticas públicas de subvenções sociais, benefícios fiscais e de acesso ao crédito público a agentes econômicos e alteração de regras trabalhistas foram, exemplificativamente, outras medidas praticadas recentemente em decorrência do estado de legalidade extraordinária ora instaurado (FAVORETTO, 2022). Quanto aos condicionamentos sanitários e de saúde pública, a Lei n o 13.979/2020, no seu art. 3º, inc. III previu a possibilidade de:
[...] realização compulsória de exames médicos, testes laboratoriais,
coleta de amostras clínicas, vacinação e outras medidas profiláticas, tratamentos médicos específicos, estudo ou investigação epidemiológica e, ainda, exumação, necropsia, cremação e manejo de cadáver. Do mesmo modo, o inc. VIII do mesmo dispositivo previu a possibilidade de autorização excepcional e temporária para a importação de produtos sujeitos à vigilância sanitária sem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), desde que registrados por autoridade sanitária estrangeira e, ainda, previstos em ato do Ministério da Saúde (BRASIL, 2020, s.p.).
Limitações à liberdade estão previstas na mesma Lei federal n o
13.979/2020, a qual, no seu art. 3º, inc. I trouxe como previsão a possibilidade de isolamento, este entendido como:
[...] a separação de pessoas doentes ou contaminadas, bem como de
bagagens, meios de transporte, mercadorias ou encomendas postais. Do mesmo modo, o inc. II previu a possibilidade de quarentena, assim conceituada como a restrição de atividades ou isolamento de pessoas, bagagens, contêineres, animais, meios de transporte ou mercadorias (BRASIL, 2020, s.p.).
Por fim, o inc. VI do aludido diploma legal previu a possibilidade de se
valer de restrição, excepcional e temporária, no que concerne ao deslocamento por rodovias, portos e aeroportos. Especificamente com relação às medidas relativas à intervenção do Estado na propriedade privada, a Lei no 13.979/2020, no seu art. 3º, inc. VII previu a possibilidade de requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, possibilidade em que será assegurado o pagamento posterior de indenização monetária justa. Previsões similares constam de espécies normativas de diversos entes da federação. Referida regulamentação infraconstitucional decorre da previsão constante do art. 5º, inc. XXV, da CRFB/1988, segundo o qual, “no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano” (BRASIL, 1988, s.p.). A requisição administrativa no sistema de saúde pública em hipóteses extraordinárias já estava prevista na Lei no 8.080/1990, no seu art. 15, inc. XIII, o qual prescreve que, para fins de atendimento às necessidades da coletividade que se fizerem urgentes e transitórias, oriundas de situações de perigo iminente, calamidade pública ou mesmo a irrupção de epidemias, a exemplo do que está- se a vivenciar no momento, a autoridade competente vinculada à esfera administrativa correspondente foi autorizada a requisitar, se necessário, os bens e serviços de pessoas naturais ou jurídicas, sendo-lhes garantida uma justa indenização. Veja-se, portanto, que a existência de um fator de desestabilização, qual seja a pandemia, ensejou a adoção de legítimas medidas de legalidade extraordinária, ao passo que muitas delas, fundamentadas na mesma excepcionalidade, são oportunistas e contrárias ao regramento constitucional. Feitos estes esclarecimentos iniciais sobre a importância das leis temporárias para assegurar, na medida do possível, as liberdades civis e os direitos da personalidade em tempos de pandemia, passa-se ao segundo capítulo, que irá descrever os reflexos da pandemia do Covid-19 no Direito Civil.
Medidas de emergência na pandemia: análise das medidas adotadas no Brasil e discussão sobre sua legalidade e pertinência frente às garantias constitucionais