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Maria Silvia Garcia Fernández Hanna

Tese submetida ao Programa de Pós-


graduação em Teoria Psicanalítica da
Universidade Federal do Rio de
Janeiro/UFRJ, como parte dos requisitos
para a obtenção do grau de doutora.

Orientadora: Ana Beatriz Freire

Rio de Janeiro, 2000


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i MARIA SELVIA GARCIA FERNÁNDEZ HANNA


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para a obtenção do grau de doutora. ■

I Aprovada por !
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LETÍCIA MARTINS BALBI MARCO ANTONIO COUTINHO JORGE


Doutora em Psicologia Clínica PUC/RJ Doutor em Comunicação e Cultura UFRJ

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JEFERSON MACHADO PINTO ANA BEATRIZ FREIRE


i Doutor em Psicologia USP Doutora em Psicologia Clínica PUC/RJ
orientadora

ANGÉLICA BASTOS
Doutora em Psicologia Clínica PUC/SP

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Garcia Femández Hanna, Maria Silvia


A transferência na psicose: uma questão/ Maria Silvia Garcia Femández Hanna
Rio de Janeiro: EP/UFRJ, 2000 174 p.
i Notas: Tese de doutorado/Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica/
i Orientadora Ana Beatriz Freire.
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1.Psicanálise. 2.Tranferência na psicose 3. Tese (Doutorado IP/Teoria Psicanalítica/
i UFRJ) I. Título

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AGRADECIMENTOS

A Ana Beatriz Freire, pelo acolhimento e cuidadosa orientação, que certamente deram a
este trabalho a possibilidade de ser realizado. Suas observações foram preciosas e suas i!
críticas me motivaram a desenvolver esta pesquisa.
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1
A Universidade Federal do Rio de Janeiro e a seus professores, que através de suas aulas
;
contribuíram para o desenvolvimento do tema. ■!

A Capes, pela bolsa de estudos.


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A Neusa Souza Santos, por sua escuta atenta e generosa, que me motivou a escrever este i
trabalho.

i
A Angélica Bastos e Maria Teresa Pinheiro, por suas contribuições no exame de
qualificação.

Aos membros do NEP, Amélia Sant’Anna, Ana Tereza de Faria Groissman, Angela de
Andrade Pequeno, Carlos Fernando Motta e Isabel Lins, que muito me ajudaram na
realização desta tese.

Aos participantes do Seminário “A transferência na psicose”, coordenado por Neusa Souza


Santos, realizado na Casa Verde.

Aos participantes da Oficina do Hospital Psiquiátrico de Jurujuba, e em especial ao Dr.


Eduardo Rocha, a Sérgio Bezz, Daysy Rivas Carestiato, Walmir Sbano, Francisco L.
Fernándes, Emilia Berenger, Fernanda Dias, Elisa Troian Rodrigues, por compartilhar o
trabalho que o enigma da psicose suscita.

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■I

A todos os participantes da pesquisa coordenada por Ana Beatriz Freire e Verbena Dias,
sobre o tema da psicose.

A Verbena Dias, Paula Mancini e Ana Beatriz Freire, pela realização da pesquisa sobre G. ■>;

G. De Clérambault.

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A Angela Andrade Pequeno pelas conversações em tomo do tratamento da psicose e por I
i
sua generosidade na transmissão de seu conhecimento sobre o nó de trevo.

A Stella Jimenez e aos participantes do seminário de leitura do “RSI “e “O sinthoma”, i

realizados na EPB/RJ.
I

A Romildo Rego Barros e Alicia Cademartori, pela experiência do inconsciente.

A Angela Cavalcanti Bernardes por sua amizade e comentários sempre animadores. j


:

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A Christine Marshall Rothmüller, pela amizade e auxílio nas traduções.

A Lúcia Mariano, sempre carinhosa e disposta a me ajudar, especialmente na leitura do


RSI.

) A Jeferson Machado Pinto, por sua contribuição na discussão do projeto de tese.

A Wagner Neves Rocha, por sua pesquisa sobre anima e animus.


)
> Aos colegas de doutorado, pelas horas compartilhadas.
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)
A Sandra Niskier, por sua cuidadosa revisão da língua portuguesa.

>
A todos os professores e psicanalistas que me ensinaram psicanálise.
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A Gerardo Ricardo Hanna pelos caminhos percorridos e os que ainda nos esperam.

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Aos meus filhos, Valería, Bruno e Pablo, pelas alegrias e auxílios no uso do computador. i

Aos meus pais, Julio H. Garcia Femández (in memoriam) e Maria Susana Girard, pela sua
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dedicação. »
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!:
A Ana Claudia Rodrigues e Vinícius A. dos Passos por seu trabalho de inserção dos grafos :

na tese.
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RESUMO
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A presente tese visa discutir o estatuto do laço estabelecido por sujeitos inseridos !|
numa estrutura psicótica com o analista. Esta pesquisa delimita para investigar o tema da
transferência no grupo denominado “psicoses delirantes”, cuja caraterística fundamental é a
construção de sistemas delirantes.
O trabalho tem como fundamento a teoria de S. Freud e as elaborações de J. Lacan
para examinar o fenômeno transferenciai, especialmente quando surge na cena analítica e
articulado na rede delirante. Seus principais objetivos se circunscrevem em tomo da
elucidação da transferência delirante e a posição do analista na direção do tratamento da 1

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psicose.
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O percurso da tese obedece a uma articulação entre a teoria e a prática e vice-versa,
isto é no sentido circular, onde o tratamento de um caso de psicose atravessado por uma ■I

transferência erotomaniaca é o pivô das elaborações apresentadas. 1


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SUMMARY

The present thesis aims to discuss the relation that psychotics establish with the analist
during the treatment. This research delimits the group designated as “delirious psychosis”
to investigate the transference.
This work, wich is well founded in Freud’s theory and in J. Lacan’s elaborations, examines li

the transference especially when it appears inside the analitc scene. The main objetives are
circumscribed around the delirious transference, the analisfs position and his handling
during the treatment.
The thesis’s course presents a close and circular relation between the theoiy and the
practice, where the treatment of a psychotic case with an erotomanique transference is the
pivot of all the elaborations. I

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A todos aqueles analistas que i

são tocados pelo enigma da psicose. :!

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO..................... 3
O Ponto de Partida................... :
5
Sobre as escolhas e o percurso 7
Notas sobre a Bibliografia...... 10 :'

PRIMEIRA PARTE “ELABORAÇÕES SOBRE A EROTOMANIA” 11


I. 1. Uma leitura psiquiátrica da erotomania................................................. 12
I. 2. Sigmund Freud e a erotomania............................................................... 17
I. 3. A erotomania na obra de Jacques Lacan................................................ 19

SEGUNDA PARTE “A CONTRIBUIÇÃO DE S. FREUD PARA A ELABORAÇÃO


DA TRANSFERÊNCIA NA PSICOSE”.............................................................................. .21
II. 1. Recortes sobre a psicose e seu mecanismo...................................................................... 22
II. 2. A construção do conceito de transferência e sobre sua problemática na psicose......... 29
A descoberta: um obstáculo denominado transferências................................................................. 29
A transferência e a repetição......................................................................................................... 33
A transferência e o narcisismo...................................................................................................... 39
A transferência e a disposição libidinal......................................................................................... 42
O destinatário na psicose: um exame da carta aberta de Daniel Paul Schreber................................ 49 '
:
O delírio e a transferência............................................................................................................. 54
íi
O analista e seu lugar no tratamento da psicose............................................................................. 56
A posição Freudiana: seus limites e seus alcances em relação à transferência na psicose................ 60

TERCEIRA PARTE “JACQUES LACAN E SUAS ELABORAÇÕES EM TORNO


DA PSICOSE”........................................................................................................................ 62

III. 1 A estrutura da psicose: sua causa e seus efeitos........................................................... 63

Da significação ao signifícante................................................................................................... 63
O esquema L............................................................................................................................... 66
O Pai e a metáfora...................................................................................................................... 69
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Esquema R................................................. . 78
A foraclusão do Nome-do-Pai......................... 81
O discurso alucinatório.................................... 84
Formas de estabilização na psicose.................. 89
Sobre o desencadeamento na psicose............... 91
O delírio: uma “solução elegante” - A paranóia 93
O delírio e sua topologia: O esquema I............ 99
III. 2. Sobre as suplências............................ 103 ;

QUARTA PARTE “TRABALHANDO O TEMA DA TRANSFERÊNCIA


NA PSICOSE E SOBRE O LUGAR DO ANALISTA NO TRATAMENTO” 110
IV. 1. Introdução......................................................................................................... 111
O tratamento da psicose................................................................................................ 111
Sobre o delírio e a transferência..................................................................................... 112
Sobre a manobra de transferência.................................................................................. 113
IV. 2. Transferência e estrutura da fala na psicose................................................... 114
IV. 3. A elaboração do Sujeito suposto Saber.......................................................... 118
IV. 4. Sobre o sujeito e o saber na psicose: qual seria o seu enlace?...................... 126
IV. 5. Sobre o amor e a sexualidade na psicose........................................................ 133
IV. 6. O analista e a manobra de transferência na psicose....................................... 141
IV. 7. Uma psicose passional sob transferência........................................................ 144
Nota introdutória........................................................................................................... 144
Caso George: um homem em excesso............................................................................ 144
Sobre a demanda........................................................................................................... 145
O tratamento: seu primeiro período............................................................................... 147
O tratamento sob uma transferência erotomaníaca......................................................... 150
A construção de uma suplência...................................................................................... 155
Uma solução....................................................................................................... 159

CONSIDERAÇÕES FINAIS 162

BIBLIOGRAFIA 169

2
INTRODUÇÃO

RIOS SEM DISCURSO


Quando um rio corta, corta-se de vez o
discurso-rio de água que ele fazia;
cortado, a água se quebra em pedaços,
em poços de água, em água paralítica.
Em situação de poço, a água equivale a
uma palavra dicionária: isolada, estanque
no poço dela mesma, e porque assim
estanque, estancada e mais: porque assim
estancada, muda, e muda porque com
nenhuma comunica, porque cortou-se a
sintaxe desse rio, fio de água que ele
discorria.

João Cabral de Melo Neto


Antologia Poética

3
Constatamos que o conceito de transferência surge desde o início da psicanálise
amalgamado à experiência freudiana com sujeitos histéricos. Assim, trata-se de um
conceito que emerge no contexto das denominadas neuroses, e que, portanto, obedece a
seus parâmetros.
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A transferência, situada como uma modalidade de relação do sujeito com o outro,
não é uma invenção, e sim uma descoberta da psicanálise. Essa descoberta e construção do
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conceito de transferência emerge no campo da neurose, o que leva a S. Freud a dizer, em
vários momentos ao longo de sua obra, que não há transferência na demência precoce. Em
outros, diz que, se há transferência, esta não é aproveitável para o trabalho analítico, ou que
a transferência não se encontra inteiramente ausente, podendo ser utilizada até certo ponto. :
Como podemos entender isto?
Estas observações foram interpretadas e englobadas por muitos analistas, na
seguinte afirmação: a psicose não é analisável através da técnica da psicanálise, porque
dificilmente apresenta fenômenos de transferência, e, nos casos em que estas ocorrem, não
são manobráveis pelo analista pelo viés da interpretação.
Propomos examinar essa formulação, verificando o que há de verdadeiro e o que
pode ser repensado sobre este ponto de vista. Entretanto, consideramos que a posição
freudiana nos alerta para um problema, que se refere a uma certa impossibilidade de i

deslocamento dos conceitos de um campo para outro. Porém, a experiência clínica com
sujeitos psicóticos nos permite questionar esta afirmação, e colocar uma outra hipótese, que
sugere que a transferência pode ocorrer em alguns casos de psicose, sendo necessário
pensar, em primeiro lugar, em sua especificidade e seu funcionamento, e, em segundo, no
que seria possível em termos de tratamento analítico.
Para examinar esta hipótese recortamos, dentro do campo da psicose, os sujeitos
inseridos no grupo das psicoses delirantes, cuja caraterística fundamental consiste na
construção de sistemas delirantes, que constituem o essencial do quadro clínico. Esta
delimitação obedece a duas razões: a primeira se refere à impossibilidade de abranger todo

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o campo da psicose no tempo determinado para este trabalho, e a segunda está demarcada
pelas caraterísticas do caso examinado na pesquisa.
Todo este trabalho visa cernir o estatuto do laço que os sujeitos psicóticos
estabelecem com o analista, através de dois movimentos que obedecem a uma
circularidade: da teoria à prática, da prática à teoria. Cabe dizer que concebemos o conceito
de transferência como um mapa que permite orientar o visitante numa cidade desconhecida:
quanto mais preciso ele seja, mais fácil será chegar aos diferentes lugares.

o ponto de partida

Até pouco tempo atrás, o tratamento da psicose esteve exclusivamente sob o


domínio da psiquiatria. Neste século, no qual o tempo e o dinheiro tornaram-se valores
indiscutíveis, o descobrimento dos neurolépticos e dos antidepressivos provocaram i
i
modificações consideráveis na clínica psiquiátrica, onde tudo - ou grande parte - passou a
girar em torno da eficácia dos medicamentos (estes funcionando como determinantes do
diagnóstico, situação que ocasionou a perda dos aspectos que guiavam os psiquiatras do
século passado para realizá-lo). As denominadas “síndromes” ou “transtornos” dissolveram
as descrições e classificações de determinados quadros clínicos. Pensamos que não se trata
de idealizar uma clínica psiquiátrica em detrimento da outra, mas sim de poder preservar e
articular o valioso de uma clínica com o novo e moderno dos dias de hoje.
O surgimento da psicanálise - e sua descoberta do inconsciente - abriu uma nova
perspectiva para o tratamento dos sintomas psíquicos. Em 1911, S. Freud publicou um
texto sobre o livro de D. P. Schreber, “Memórias de um doente dos nervos”, onde
apresentou uma série de elaborações sobre a paranóia que questionaram a hegemonia do
saber psiquiátrico. S. Freud, de posse do modelo da neurose, retoma as memórias de
Schreber, com o objetivo de compreender a causa e o mecanismo psíquico da psicose.
A partir desse momento, a causa atribuída à psicose passa a ser de ordem sexual, e
os fenômenos da alucinação e do delírio ganham um novo estatuto, ao serem abordados no
registro da linguagem.
A proposta da psicanálise - de ouvir as palavras do paciente - implicou uma
reviravolta sustentada na premissa de que a fala do sujeito comporta uma verdade que se
produz nas fendas do discurso. Isto promoveu uma distância entre o saber e a verdade. A

I
nova abordagem, articulada principalmente ao domínio da neurose, delimitou também outro
terreno, o da psicose, retirando-a de uma concepção orgânica e inserindo-a no campo da
linguagem. Evidentemente, esta leitura abriu uma nova investigação, tanto no que se refere
a sua causa, a seu mecanismo e a seu tratamento.
Mas a história nos indica que este trabalho de pesquisa sofreu uma “certa” detenção,
que obedeceu ao fracasso da tentativa de deslocar os conceitos da neurose para a psicose, o
que exigiu a produção de novas elaborações. Destacamos, entre os pioneiros da psicanálise,
Karl Abraham e Sandor Ferenczi, analistas que se ocuparam da psicose, e que nos legaram
muitos valiosos trabalhos.
Agrupamos os preconceitos que dificultaram o andamento das investigações em
torno de dois eixos, que citamos a seguir:
1. A psicose foi tomada como deficitária em relação à neurose. Esta concepção
apoiava-se no desenvolvimento das fases de organização libidinal, e teve um papel
determinante na tese da ausência de transferência.
2. Foi amplamente difundida a idéia de que a psicose seria uma exceção que escapa
ao poder da psicanálise. Isto disseminou um certo pessimismo e uma posição desconfiada
em relação a um possível tratamento.
Ambas as idéias tinham como base o modelo denominado “neurose”, elevado ao
estatuto de ideal, a partir do qual o “diferente” era tomado como “aquém”. Destacamos
outro elemento, que designamos como “fator tempo”: tempo de trabalho, tempo de
experiência, necessário para este tipo de elaboração.
Desde S. Freud até os dias de hoje, consideramos que o surgimento da lingüística
moderna e da topologia foram de grande valia para realizar avanços neste terreno. Situamos
a importante contribuição de J. Lacan, que parte da leitura da obra de Freud para construir
uma teoria sobre a psicose. Mas, cabe dizer, mesmo de posse de todas estas elaborações, há
ainda uma enorme trabalho a ser realizado neste campo.
As elaborações sobre a psicose passaram fundamentalmente pelo viés da “escrita”:
as memórias de D. P. Schreber retomadas por S. Freud, os escritos de Aimeé estudados por
J. Lacan na sua tese de doutorado em 1932, e a obra do escritor irlandês James Joyce
examinada por J. Lacan no Seminário livro 23, O sinihomcx A presença de escritos e a
ausência de casuística (que atualmente vem sendo relativizada), nos dão pistas das

6
dificuldades e particularidades que o estudo da psicose comporta. Situamos a presente tese
neste contexto, e em resposta a uma necessidade discursiva em torno do tema da
transferência na psicose.
E importante dizer que este trabalho de investigação é fruto de uma firme decisão e
um desejo de promover no campo da psicanálise uma discussão que se refere à
problemática da psicose e seu tratamento.

Sobre as escolhas e o percurso

Falar de escolhas implica em introduzir as razões que nos levaram a tomar diversas
decisões ao longo do trabalho de tese, que são decorrentes de nossa posição na psicanálise.
O tema da investigação surgiu de nossa experiência clínica com pacientes psicóticos, onde
o percurso do tratamento de um caso nos impulsionou a realizar este trabalho. Tratou-se de
uma árdua e difícil tarefa, onde o laço estabelecido pelo paciente ao longo da análise tomou
a vertente da erotomania. As dificuldades, as dúvidas, os equívocos, os acertos e o
ensinamento que o caso nos proporcionou formaram parte do trabalho de tese.
Decidimos colocar o caso George no final da tese, mas é importante salientar que
ele está presente - nas linhas e nas entrelinhas - desde seu início, delimitando e demarcando
nossas escolhas. Deixamos o leitor decidir se prefere ler o caso antes ou seguir nosso
desenvolvimento.
Em relação ao tema da transferência na psicose, existem vários autores da
denominada escola inglesa (entre os quais destacamos Melanie Klein, D. Winnicot e W.
Bion), e outros autores mais contemporâneos (entre os quais citamos Otto Kernberg), que
se dedicaram a estudar o tema da psicose e seu tratamento. Optamos, por uma questão de
tempo e de transferência, por deixá-los de lado para um ulterior trabalho, dando preferência
aos autores S. Freud e J. Lacan, que consideramos fundamentais para elucidar o problema
em que o tema nos situa. Assim, orientados pela letra de Freud e J. Lacan, abordaremos a
problemática que a clínica com psicóticos nos apresenta.
Decidimos situar, na primeira parte do trabalho, o resultado da leitura dos textos que
se referem à erotomania, incluída dentro do grupo das psicoses passionais, de autoria de De
Clérambault - psiquiatra francês que se dedicou a observar e descrever este quadro de uma
maneira clara e precisa, não podendo hoje ser deixado de lado como uma referência

7
fundamental no que se refere a este tema. Seu esforço visou separar esse grupo de psicoses
da paranóia, proposta que não foi aceita pelos psiquiatras da época. Não nos interessa
entrar nesta discussão, mas acreditamos que suas elaborações sobre a erotomania nos abrem
caminhos para pensarmos sobre o amor na psicose, especialmente quando este se apresenta
endereçado ao analista. Neste mesmo tópico, incluímos as articulações de Freud em torno
do tema, que parte da causa da psicose, atribuindo-lhe uma posição libidinal, e situando o
delírio como resultado de uma gramática. Por último, situamos os dois momentos nos quais
J. Lacan aborda o tema da erotomania (Caso Aimeé e Seminário livro 3, “Aspsicoses”).
Na segunda parte da tese apresentaremos o percurso realizado na obra de S. Freud,
onde realizamos um recorte do mecanismo da psicose e da construção do conceito de
transferência, articulando-o passo a passo com as indicações que fomos encontrando na
leitura, sobre os obstáculos para pensarmos a transferência na psicose. Para enriquecer à
discussão dos obstáculos e das possibilidades em relação ao tema, retomamos algumas
elaborações de Karl Abraham e de Sandor Ferenczi. Guiados pela leitura de S. Freud
encontramos, na função do delírio, uma via para pensar a especificidade da transferência na
psicose. Transferência que comporta no seu âmago a posição narcisista do sujeito (eu =
objeto). O exame apresentado (da carta aberta que D. P. Schreber coloca nas suas
memórias) é um instrumento de grande valor, no sentido de nos permitir extrair algumas
vias para pensar a manobra do analista, quando este é situado no lugar do parceiro do
delírio.
Na terceira parte, introduziremos a teorização de J. Lacan em torno da causa e do
mecanismo da psicose, tomando como referências as articulações dos anos 50 (a partir das
quais consideramos a psicose como uma estrutura que situa o sujeito numa posição singular
na produção discursiva, articulando-a a um funcionamento do significante). Estrutura esta
que se revela na fala do psicótico, especialmente nos transtornos da linguagem, que
examinaremos a partir dos três registros propostos por J. Lacan: real, simbólico e
imaginário.
A causa da psicose, articulada à foraclusão do Nome-do-Pai (significante que tem
por função introduzir no simbólico a castração, cifrando o gozo através do significante falo)
;
provoca um buraco no simbólico e no imaginário, que exige um trabalho de restituição por

8
parte do psicótico para promover uma estabilização dentro da estrutura. Discutiremos, neste
tópico, a construção que pode permitir um sujeito psicótico se inserir numa realidade.

Retomamos o fenômeno alucinatório, o desencadeamento, as formas de


estabilização (bengalas imaginárias) segundo a leitura de J. Lacan. Neste último ponto,
recorreremos às elaborações de Helen Deutsch, psicanalista que trabalhou sobre o tema das
personalidades “como se”, para pensar algumas identificações, denominadas imaginárias,
que suportam a estabilidade da estrutura.
O delírio, enquanto solução elegante, é apresentado em sua função de estabilização,
recortando a relação entre o sujeito e o Outro, e o lugar do objeto. A partir disto,
introduziremos o esquema R e a transformação operada no esquema I, examinando as
concepções do espaço e do tempo. A solução paranóica, em torno do significante ideal, é
objeto de estudo e de trabalho, de onde nos perguntamos: qual seria a diferença entre o
delírio e a metáfora?
Ao final, apresentaremos a noção de suplência, elaborada por J. Lacan nos anos 70,
e apoiada na pluralização do Nome-do-Pai. Consideramos que é partir da suplência que
podemos pensar numa direção para o tratamento da psicose.
Na quarta parte, intitulada “Trabalhando o tema da transferência na psicose e sobre
o lugar do analista no tratamento”, nos ocupamos em discutir a transferência articulada à
estrutura da fala da psicose. Neste trabalho abordamos a idéia de que o delírio comporta a
transferência, idéia já apresentada na Parte II. Definindo a transferência em termos amplos
como a modalidade particular de relação entre o sujeito e o outro, examinamos a
especificidade da presença do objeto na psicose, denominada por S. Freud como decorrente
da posição narcisista. A partir de J. Lacan podemos dizer que surge, na paranóia, um
sujeito do gozo, que aponta à coincidência entre o sujeito e o objeto.
As teorias de amor da Idade Média serão apresentadas para estabelecer as relações
entre o amor extático e o amor do psicótico, Neste tópico, retomaremos as idéias
introduzidas na Parte I da tese, com o objetivo de precisar esta problemática. A singular
posição do psicótico frente ao sexo e à diferença sexual serão abordadas segundo as
fórmulas da sexuação propostas por J. Lacan.
O lugar do analista e sua manobra serão retomados a partir dos lugares da álgebra
lacaniana, examinando suas incidências na condução do tratamento. O caso intitulado

9
“Uma erotomania sob transferência” nos permitirá apreender sobre o lugar do analista na
transferência e sua manobra.
No fim, situaremos as nossas conclusões, certamente parciais, mas que introduzem
possibilidades para o tratamento da psicose.

Notas sobre a bibliografia

Cabe esclarecer que, em relação à obra de S. Freud, escolhemos inicialmente a


tradução espanhola da Biblioteca Nueva Editora, e recorremos, posteriormente, à edição em
português da Imago Editora, para incluir as citações. Em relação à obra de J. Lacan,
utilizamos os escritos na versão espanhola, da Siglo XXI Editora, por várias razões, entre
estas, a de que nosso trabalho se iniciou antes da publicação da tradução completa dos
Escritos em português, o que nos fez continuar com a mesma tradução até o final do
trabalho.
Há citados nesta tese, Seminários de J. Lacan que se encontram publicados, e outros
que são inéditos, alguns destes traduzidos para o espanhol e citados nesta língua. O único
seminário que foi lido em espanhol e que se encontra traduzido é o livro 20 “Aún”, que
decidimos manter.

10

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PRIMEIRA PARTE

ELABORAÇÕES SOBRE A EROTOMANIA

11
I. 2, UMA LEITURA PSIQUIÁTRICA DA EROTOMANIA

O terreno da psicose mapeado pelo saber psiquiátrico se constitui por uma grande
variedade de quadros clínicos, que foram se agrupando de diferentes maneiras ao longo da
história, até chegar aos dias de hoje.
A literatura psiquiátrica se baseia fundamentalmente numa clínica que utiliza o
método de observação, e através do procedimento taxonômico classifica os diferentes temas
e idéias delirantes, consideradas em si mesmas como patognômicas1, construindo
diferentes quadros, que vão das diversas neuroses até as loucuras agudas. É importante
citar, entre outros, a obra de Kraepelin, psiquiatra alemão que reuniu os casos existentes em
três grandes grupos: a paranóia, a demência precoce e a loucura maníaco - depressiva.
Nossa lente tem como ponto de foco as “psicoses delirantes”2. Sua caraterística
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fundamental é a presença e desenvolvimento de sistemas delirantes que organizam a vida
psíquica do paciente. Mas o caso George nos orienta para um grupo específico dentro das
psicoses delirantes, denominado “psicoses passionais”, que foi organizado e amplamente
descrito por G. G. De Clérambault3, psiquiatra francês que trabalhou no início do século
XX. O grupo das psicoses passionais ou delírios passionais está constituído pelos delírios
de ciúmes, delírios de reivindicação e pela erotomania.
De Clérambault se apóia nos estudos de observação clínica realizados por Dide4 e
sua escola, para sustentar a existência de um grupo distinto da paranóia, denominado
“delírios passionais”. Dide diferencia a interpretação delirante da interpretação passional,
baseando-se numa oposição situada tanto nas bases afetivas quanto na sua gênese
intelectual. Essa distinção permite apreender a particularidade da paixão delirante, na
medida em que esta surge submetida a um tipo de interpretação. A interpretação passional
nos apresenta a dependência do amor em relação ao funcionamento do simbólico. Assim,

1 BERCHERIE, P. "Osfundamentos da clinica. História e estruturas do saber psiquiátrico ", Zaliar Ed., RJ,
1988.
2 É uma denominação utilizada por Henri Ey em seu Manual de Psiquiatria.
3 GAETAN GATAIEN DE CLÉRAMBAULT nasceu na França em 1872 e morreu em 1934. Sua carreira
psiquiátrica desenvolveu-se praticamente dentro da “Enfermaria Especial de Alienados da Prefeitura de
Polícia de Paris” ( 1905 - 1934). A enfermaria de alienados surgiu a partir da lei promulgada em 1838, que
prescrevia formas a serem observadas na detenção dos alienados. Permitia ao prefeito de polícia internar, sob
ofício, os alienados cujos problemas de comportamento necessitaram a intervenção da polícia.
I 4 Psiquiatra francês contemporâneo de G. G De Clérambualt, autor de vários trabalhos, entre eles: "Les
B Jdéalistes Passionés ", Alcan, 1914.
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B 12
B
B

£
nos propomos a pensar quais são as caraterísticas da paixão que manifestam os sujeitos 'I,

inseridos neste grupo: “delirantes passionais”.


Dentro dos delírios passionais nos referiremos à erotomania, que foi estudada de
maneira ampla e exaustiva por De Clérambault, transformando-se no paradigma desse
grupo. Esses delírios se sustentam num “elemento gerador” que funciona como o “embrião :|
lógico” da organização delirante. Outros autores designam esse elemento como “idéia
prevalente”. Em relação a este ponto, o autor avança definindo o elemento gerador como

um postulado, que se suporta numa articulação lógica da qual se deduzem as idéias e os


atos do sujeito. De fato, esta foi uma grande contribuição em relação aos delírios
passionais.
As caraterísticas que De Clérambault identifica nestes delírios são as seguintes:

1. A extensão é polarizada, desenvolvendo-se no terreno do desejo, delimitado pelo sujeito


e seu objeto.
;
2. A vontade se apresenta de maneira clara e determinante.
3. Existe uma finalidade que movimenta o sujeito.
4. Surge a veemência como um traço marcado.
5. Aparece uma hiperastenia, podendo atingir em alguns momentos um nível hipomaníaco.
:
6. Há uma reivindicação.
Interessa-nos comentar o primeiro ponto porque o mesmo indica um campo onde se
delimitam o sujeito e o objeto, restabelecendo tanto suas diferenças como suas relações i
í
possíveis. Em relação a isto, teremos muitas considerações a fazer desde o ponto de vista
psicanalítico, na medida em que encontramos no delírio a evidência de que o próprio
sujeito se situa como objeto para seu parceiro, seja o amante, seja o traidor, ou o infiel. A
este aspecto voltaremos posteriormente, para desenvolvê-lo.
É importante dizer que a idéia de manter o grupo dos delírios separados foi rebatida
por Capgras e outros, argumentando que seu poliformismo, a associação desses delírios
com outros e o seu desenvolvimento variado fazem pensar que formam parte do grupo das
1
paranóias. De Clérambault se separa dos psiquiatras de sua época ao dar à paranóia uma
i
I noção basicamente caraterológica, que pode colorir as diversas formas delirantes e associar-

I
i
* 13
Pi
I
5
n
se aos quadros passionais e a outras taras constitucionais, como a mitomania e a perversão,
enquanto que a psiquiatria considerava a paranóia uma entidade clínica diferenciada.
O Postulado Fundamental da erotomania se explicita pela certeza de ser amado,
traduzido da seguinte forma: “Ela (ele) me ama”. Neste caso, o sentimento provém do
outro, sem existir uma implicação por parte do sujeito, a não ser posteriormente, ou seja,
como uma resposta. Isto pode expressar-se através da seguinte frase: “ Eu a amo porque ela
me amou primeiro”. Na base do delírio encontramos o sujeito como objeto do outro. No
postulado erotômano o outro pertence geralmente a um nível superior, tratando-se de
alguém de uma classe mais elevada ou alguém que, ao possuir um atributo, se coloca como
um ideal. Esta relação que se estabelece entre o parceiro do delírio e o ideal será objeto de
desenvolvimento a partir da noção de significante, ao longo da tese.
No estudo da erotomania, De Clérambault identifica três fases no seu
desenvolvimento: a primeira é a Esperança, acompanhada de um estado de otimismo; a
segunda é o Desprezo, coincidindo com uma ambivalência acentuada onde o amor e o ódio
se alternam; e, finalmente, o Rancor, que se carateriza pelo surgimento de reivindicações e
condutas querelantes, onde prevalece o ódio.
A Esperança é um traço sempre presente na erotomania, mas nem sempre
explicitado. Por esta razão, o autor propõe uma manobra para a comunicação do delírio,
sempre com uma finalidade diagnostica. Na época, os casos inseridos neste grupo passavam
repetidamente pela mesma enfermaria, saindo sem um diagnóstico claro. De Clérambault
atribui este fato à falta de um questionário adequado para orientar o psiquiatra, situação que
o deixava à mercê de sua própria intuição. Mas, o autor ressalta que, nestes delírios, há
outro elemento, que confunde o psiquiatra e diz respeito ao Amor, o que dá uma certa
aparência de normalidade.
Tomemos o exemplo de um caso de erotomania apresentado pelo autor:

“Composición dei delírio: un funcionário (secretario de Comisaría) ama a


nuestra enferma, la mira con amor, la busca, la hace perseguir por sus
subordinados y también por prostitutas; tarde o temprano, ella realizará su deseo
que en el fondo no resulta sino de los deseos dei funcionário. Ella no niega que
el funcionário esté casado, ella misma quisiera conservar el amante que la
mantiene y está dispuesta a casarse con él, pero necesita como suplemento los

14

*
favores dei funcionário. Su amante, o marido, no pondría obstáculos para ello”.
(o sublinhado é de nossa autoria)5

Nesta paciente, a erotomania constitui a psicose e o delírio é o desenvolvimento do


postulado ou embrião lógico. O delírio não sofreu alterações que podem ser observadas nos
casos polimorfos (não há idéias de perseguição, não há alucinações, não há idéias de
grandeza, nem trabalho imaginativo). Houve uma passagem da fase da Esperança aos
estados de Desprezo e de Ódio. O interessante é que esta modificação é sempre reversível:
o otimismo e o amor estão sempre dispostos a reaparecer, se as condições forem
favoráveis. De Clérambault indica que, nesta paciente, o delírio parece ter de permanecer
indefinidamente puro.
O delírio, segundo De Clérambault, é necessário na sua função de suplemento, tema
que antecipa a função da suplência, que desenvolveremos posteriormente, a partir da
contribuição de J. Lacan.
Estes pacientes não são reconhecidos como delirantes nos hospitais, por serem
calmos, astutos, e porque o delírio é delimitado. Surge no médico uma síntese bastante
fácil, sustentada pela suposição de que, na origem da paixão, houve ou há uma história de
amor real. Isto conduz o psiquiatra a pensar que “algo deve ter acontecido”, descartando a
idéia de estar frente a um delirante.
De Clérambault remarca que, mesmo tendo acontecido um fato real, o que interessa
é que a reivindicação é parte da construção do delírio. O fundamental, nesta concepção, é a
lógica do delírio, e não o conteúdo. A erotomania não é tomada como um sintoma
acidental, e sim como um tipo de organização. Consideramos este aspecto fundamental
porque força o clínico a se afastar da compreensão, da semântica, para enfatizar que o que
realmente importa é a lógica que sustenta o delírio.
Todas as suposições e preconceitos indicam que a compreensão e a idéia de síntese
funcionam como barreiras para o diagnóstico. Essas observações foram importantíssimas, e
serviram como subsídios para as elaborações lacanianas sobre a estrutura da psicose.
Façamos aqui um pequeno desvio para lembrar a importância que J. Lacan outorgou à

5 DE CLÉRAMBAULT, G. G. (1921) “Erotomania pura Erotomania Asociada” in Automalismo Mental.


Paranóia, Polemos Editorial, Bs. As. 1995.
i
15
A
I

*
noção de automatismo mental 6de De Clérambault, cujo caráter anideico, isto é, atemático
serviu para pensar o funcionamento significante. Retomaremos esse ponto na parte III.
Ao longo de seus trabalhos, o autor nos dá exemplos das possíveis manobras que
têm como objetivo convencer o paciente a comunicar o delírio. A manobra surge como uma
solução ao problema que esses pacientes apresentam: “não são interrogáveis”. Assim, na
maioria das vezes, o psiquiatra se oferece como um “intermediário” entre o sujeito e o
objeto do delírio. O lugar do intermediário é um recurso para dar voz à construção
delirante. Essa manobra engendra uma acolhida do discurso delirante e ao mesmo tempo
uma aceitação da verdade da sua construção. Esta operação era sugerida por G. G. De
Clérambault como uma manobra a ser realizada na entrevista de investigação, que tinha
como propósito obter um diagnóstico psiquiátrico, a partir do qual o paciente era
encaminhado para realizar o tratamento.
Interessa-nos destacar a construção lógica do delírio erotômano. É a partir do
postulado gerador (“Ela (ele) me ama”) que se desprendem outros postulados, que devem
ser encontrados para realizar o diagnóstico e serem incluídos neste quadro:
1. A iniciativa vem do objeto, e este não pode ser feliz sem o apaixonado.
2. O objeto não pode ter um valor completo sem o apaixonado.
3. O objeto é livre.
Existe, em sua articulação da síndrome erotomaníaca, outro ponto que nos parece
relevante, e que se refere à fonte do postulado. O Orgulho Sexual é a fonte do postulado, e
não o Amor. Ao tomar o orgulho como a origem primordial, De Clérambault encontra uma
explicação para o fato de que as exigências sexuais nos sujeitos erotômanos são menos
marcadas do que nos sujeitos normais.
O Orgulho tem como função fazer consistir o eu e distinguí-lo do outro, à diferença
de Eros, que tende a unir o eu com o objeto. Aqui, encontramos uma indicação que permite
diferenciar, quanto à sua fonte, o amor dito “normal” do amor da erotomania. O orgulho
nos remete ao que Freud denominará narcisismo. Como já dissemos, voltaremos a este
ponto. A separação e articulação entre o sujeito e o objeto é promovida a partir de uma

6 A síndrome do automatismo mental é definida como uma síndrome mecânica, que surge como base ou
núcleo de muitas psicoses (psicoses alucinatórias crônicas, psicoses tóxicas, entre outras). Constitui-se por
fenômenos positivos, negativos ou mistos, cuja caraterística é serem nulos do ponto de vista idéico.

16

3
%
:

significação nova, que, em muitos casos, serve para acolher e explicar alguns dos
fenômenos provocados pelo automatismo mental.
A descrição cuidadosa realizada por De Clérambault sobre a erotomania nos
permite pensar sobre a dimensão do amor de transferência, quando o analista é situado no
lugar do “outro que amou primeiro”. O caso do paciente George vai nos indicar um destino
possível para a solução da transferência, quando articulada dessa maneira.
Pensamos que a presença do platonismo7 pode ser, neste casos, um traço importante
para que o tratamento tenha maiores condições de avançar, evitando passagens ao ato que
tenderíam à consumação do ato carnal, ou atos de violência nos momentos de rancor.
Por outro lado, reconhecemos que a manobra de De Clérambault nos indica sua
flexibilidade para se oferecer como instrumento para que o sujeito delirante fale. Essa
posição está ao mesmo tempo próxima e distante do lugar do analista. É próxima enquanto
finalidade imediata (é necessário que o paciente fale para que o analista encontre um
possível lugar na direção do tratamento), e distante no que se refere ao objetivo final, na
medida em que o analista não tem como objetivo o diagnóstico psiquiátrico, e sim
promover uma ordenação discursiva que encadeie o real que os fenômenos alucinatórios
apresentam.
Para concluir, deixamos assentado que a principal contribuição de De Clérambault
foi construir uma fórmula lógica para o fenômeno passional.

I. 2. SIGMUND FREUD E A EROTOMANIA

S. Freud nos apresenta a fórmula da erotomania, em 1911 na exposição do Caso


Schreber8, no capítulo referido ao mecanismo da paranóia.
A fórmula “Ela (ele) me ama” surge produzida pela negação que recai sobre o
complemento da frase inicial: “Eu o amo” - “Eu não o amo”, seguida de uma inversão do
complemento “Eu a amo”, sobre a qual recai uma projeção, acrescentando: “porque Ela me
ama”.

7 Este aspecto também foi objeto de discussões entre os psiquiatras da época; alguns consideravam o i
platonismo um aspecto essencial do quadro da erotomania, enquanto que De Clérambault defendia seu
caráter acessório, podendo ou não vir a se apresentar.
8 FREUD, S (1911) "Notas psicanalíticas de um relato autobiográfico de um caso de paranóia”, in: Ob.
Completas, Iinago Ed. RJ. 1969. Vol XII.

17

$
í

A frase inicial é correspondente à pulsão e a posição homossexual, na qual S. Freud


identifica a causa libidinal da psicose. Duas operações, negação - inversão, seguidas de :
.
uma projeção, formam parte de uma gramática, que transforma a libido.
Primeira operação: a negação / inversão: Eu não o amo. Eu a amo
Segunda operação: a projeção: porque ela me amou primeiro.
Neste caso, a gramática tem como função restabelecer, como uma cobertura, uma
aparência (semblante) de heterossexualidade. Freud afirma que o que foi rejeitado
internamente surge ou retorna vindo de fora. É o outro que me amou primeiro; essa
convicção é o elemento essencial da erotomania, que implica uma imputação ao outro.
Mas Freud acrescenta que este último elemento não aparece, em alguns casos, de
maneira bem clara, sendo necessário deduzi-lo. Alguns casos de erotomania podem ser
confundidos como fixações heterossexuais exageradas ou deformadas, se não é possível
extrair que a origem do amor surgiu por uma percepção externa de ser amado.
Freud afirma que a fórmula “Eu a amo” pode aparecer consciente, não elidida,
porque a contradição entre ela e a proposição original não é tão irreconciliável como a
existente entre o amor e o ódio (delírio de perseguição), sendo possível amar tanto a ela
quanto a ele.

“Assim, pode acontecer que a proposição que foi substituída por projeção ‘Ela
me ama’ abra caminho novamente para a proposição da língua básica ‘Eu a
1 5? 9
amo .

Neste ponto, é interessante observarmos a diferença entre De Clérambault e S.


Freud. De Clérambault oferece a formulação lógica do fenômeno, enquanto Freud parte da
causa da psicose, identificada como uma posição libidinal, a partir da qual explicita o
delírio, produzido por uma gramática transformadora. Ambos os autores têm um ponto em
comum, que diz respeito à posição do sujeito tomado como objeto de amor - em outras
palavras, trata-se da convicção de ser amado. Isto nos aponta para o problema principal na
transferência: o lugar do objeto na psicose.

9 FREUD, S. (1911) “Notas psicanalílicas de um relato autobiográfico de um caso de paranóia’', in: Ob.
Completas, Imago Ed. RJ. 1969. Vol XII.

18

1
3
I. 3. A EROTOMANIA EM J. LACAN

!
Retomemos dois momentos das elaborações de J. Lacan. O primeiro se encontra no :
:
caso de sua tese de doutorado, Aimeé, onde ele alerta que a paixão não pode ser estudada
fora do objeto que a qualifica. Nesse caso, sua função é a de assegurar a não realização
sexual, onde a presença do platonismo é explicada como uma conseqüência dos problemas
em relação à sua identificação sexual.
No Seminário livro 3, "Aspsicoses”, o autor aponta o aspecto que De Clérambault
tinha ressaltado: “...parece tão mais próxima do que se chama normal”10. Mas, mesmo
assim, nas psicoses passionais há uma “ausência de dialética”, o que se traduz pela
1
prevalência da reivindicação, que indica o ponto em torno do qual se centra toda a vida do
sujeito. Neste caso, o núcleo da inércia dialética se situa mais perto do eu do sujeito.
Temos, assim, a dimensão da certeza instalada, que foge da problemática do saber e da
dialética da verificação. Isto não implica ausência de perguntas, mas todas elas se fecham
em torno do ponto da certeza. Outro aspecto importante é situado em torno do outro:

“Esse outro ao qual se endereça o erotômano é particularíssimo, já que o sujeito


não tem com ele nenhuma relação concreta, de modo que foi possível falar em
ligação mística ou de amor platônico. É, com muita freqüência, um objeto
afastado, com o qual o sujeito se contenta em comunicar por meio de uma
correspondência de que nem mesmo ele sabe se ela chega ao seu destinatário.
...há alienação... A despersonalização do outro de que ela se faz seguir é l

manifesta nesta resistência heróica a todas as provas, como se exprimem os


próprios erotômanos. O delírio erotomaníaco se endereça a um outro
neutralizado ...”M

Evidentemente, a pergunta pela especificidade do amor na psicose é trazida à tona


pela erotomania. Perguntamo-nos: que tipo de amor é esse, que liga o sujeito a um outro, e
que, situado no lugar de ideal, desencarnado, despersonalizado, dirige a sua vida? Para
tentar avançar nesta questão, desenvolveremos (na parte IV da tese sobre o tema da

10 LACAN, J. (1955-56) Seminário livro 3 "Aspsicoses”, Jorge Zahar Ed, R. J. 1988, p. 32.
11 LACANÍ J.Id p. 54.
m
II 19
»

m
s
a
transferência, segundo a contribuição de J. Lacan), um tópico específico para articular a
dimensão amorosa.

20

9
SEGUNDA PARTE

A CONTRIBUIÇÃO DE S. FREUD PARA A


ELABORAÇÃO DA TRANSFERÊNCIA NA PSICOSE

P
P
P
P 21

P
P
1

*1
II. 1. RECORTES SOBRE A PSICOSE E SEU MECANISMO

Sempre mantendo, no horizonte desse trabalho, a idéia de que a estrutura da psicose


se manifesta na posição do sujeito no discurso, retornaremos em primeiro lugar as
elaborações que S. Freud propõe, ao longo de sua obra, para explicar o mecanismo
causador da psicose. Esta tarefa está indicada no título acima, e tem como foco a
construção de um instrumental que permitirá discutirmos a problemática da transferência na
psicose.
Partimos do texto de 1894, intitulado “As Neuropsicoses de defesa”12, onde Freud
apresenta a teoria da defesa, que mais tarde denominará como “a pedra angular de toda a
estrutura da psicanálise”. Essa teoria tem como hipótese de trabalho a existência de...

“...uma quota de afeto ou soma de excitação - que apresenta caraterísticas de


uma quantidade (embora não disponhamos de meios para medi-la), capaz de
crescimento, diminuição, deslocamento e descarga, e que se espalha sobre os
traços de memória das idéias tal como uma carga elétrica se expande na
superfície de um corpo.”13

A hipótese tem como suporte um modelo elétrico e associacionista, que permite


construir uma explicação para o surgimento dos sintomas, tanto neuróticos como
psicóticos.
Nesta época, o mecanismo atribuído à psicose é denominado Vemerfimg14, sendo
definido como uma defesa muito enérgica, que funciona rejeitando a representação
intolerável e o afeto concomitante.

“Há, entretanto, uma espécie de defesa, muito mais poderosa e bem sucedida.
Aqui, o ego rejeita a idéia incompatível juntamente com seu afeto e comporta-se
como se a idéia jamais lhe tivesse ocorrido.”15

12 FREUD, S. (1894) "Neuropsicoses de defesa”, in: Ob. Completas, Vol. III, lmago Ed. R.J. 1969.
13 FREUD! S. Jd. pág. 73.
14 Este termo só voltará a ser utilizado em 1918, em "Historia de una neurosis infantil”. Neste texto esse
mecanismo aponta para um modo específico de recusa da castração, à luz do qual Freud discute a alucinação
do “dedo cortado”.
15 FREUD, S. (1894) "Neuropsicoses de defesa” in: Ob. Completas, Vol. III, lmago Ed. R.J. 1969. p. 71.

m 22
m

9
»

Tanto a defesa neurótica como a psicótica, trabalham no sentido de resolver o


conflito suscitado por uma representação sexual em relação às outras representações. A
particularidade da defesa psicótica está situada no processo, que rejeita tanto a
representação quanto o afeto concomitante, deixando como vestígio um curto-circuito
(metáfora elétrica). Lá, onde estava a representação intolerável, fica um buraco. A tentativa
a posíeriori de reatar a cadeia de representações encontra duas vias: a alucinação e o
delírio.
No “Rascunho H”, Freud define a confusão alucinatória e a paranóia como psicoses
de desafio ou de oposição. Entretanto, em relação à paranóia, situa uma diferença, que
citamos a seguir:

“O propósito da paranóia é rechaçar uma idéia que é incompatível com o ego


projetando seu conteúdo no mundo externo. 51 16

Para Freud, o específico da paranóia não é o mecanismo da projeção em si, mas o


uso que a defesa faz dele. Trata-se, segundo Freud, de um uso abusivo, que resulta numa
supervalorização daquilo que os outros sabem a respeito do sujeito, sem nada ele saber.
Mas, o fundamental é que esse saber vem de fora, sendo impossível para o sujeito admiti-lo
como próprio. Em outras palavras, o sujeito imputa esse saber ao outro.
Como dissemos anteriormente, todas essas elaborações possibilitaram retirar a
psicose de uma abordagem organicista. A partir daí, a psicose ganha um novo estatuto, que
tem como consequência uma nova discussão relativa a seu tratamento.
No artigo “Novos comentários a Neuropsicose de defesa”17, Freud examina um

caso de paranóia crônica, sobre o qual diz que o peculiar da paranóia é que a repressão da
auto-acusação opera pela via da projeção. Vemos a insistência de S. Freud na indicação de
que a produção comparece desde fora para o sujeito.
Alguns anos mais tarde (1911) Freud realiza um trabalho18 de interpretação sobre o
livro de Memórias de Daniel Paul Schreber19, considerado seu maior texto acerca da

16 FREUD, S. Rascunho H “Paranóia” in: Ob. Completas, Vol. I., Imago Ed. R.J. 1969. p. 286.
17 FREUD, S. (1896) “Novos comentários sobre as neuropsicoses de defesa”, in: Ob. Completas Vol. III,
Imago Ed. R. J. 1969.
18 FREUD, S. “Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia” in: Ob.
Completas. Imago Editora, R.J. 1969.
19 SCHREBER, D. P. “Memórias de um doente dos nervos", R.J. Ed. Paz e Terra, 1995.

K 23

I
I
i
»

i
psicose, no qual produz uma nova elaboração sobre a causa e o mecanismo psíquico das
»
psicoses. Freud diz que o caraterístico da paranóia é que o sujeito reage com delírios de
»
perseguição, para repelir uma fantasia de desejo homossexual. O que se encontra no centro
i
» do conflito é a defesa contra o desejo homossexual. O desejo homossexual é colocado no
i nível da causa.
»
i “...quando uma fantasia de desejo aparece, nossa tarefa é associá-la com alguma
i frustração, alguma privação na vida real. »20
m
» A fantasia de desejo é articulada a um tipo de falta (frustração ou privação) que foi
* experimentada pelo sujeito. Essa frustração desencadeia uma regressão, que encontra seu
limite nos pontos de fixação21. Essa concepção surge pela primeira vez nos “Três Ensaios
»
sobre a teoria da sexualidade”22, e é utilizada para discutir o caso do Presidente Schreber.
»
No caso da paranóia, a frustração é a não satisfação da pulsão homossexual, que provoca
»
» uma regressão até o ponto de fixação, isto é, o narcisismo.
£ A homossexualidade como causa se apóia na constatação dos casos estudados por
Freud e por seus discípulos, afirmando que nos delírios de perseguição, o perseguidor é
£ sempre do mesmo sexo, inclusive no artigo “Um caso de paranóia que contraria a teoria
»
psicanalítica”23.
i

»
“...A causa ativadora de sua doença, então, foi uma manifestação da libido
homossexual, o objeto desta libido foi provavelmente, desde o início, o médico,
i
Flechsig, e suas lutas contra o impulso libidinal produziram o conflito que deu
n
. . . j»*>4
origem aos sintomas. "

i 20 FREUD, S.( 1911) "Notas psicanalílicas de um relato autobiográfico de um caso de paranóia”, Ob.
* completas, Imago Ed. RJ 1969. Vol XII.
» 21 Apresentamos a articulação fnistração-regressão-fixação, através da qual Freud explica a formação de
sintomas. Frente a uma frustração da realidade, a libido toma o caminho regressivo, buscando sua satisfação
em organizações anteriores e em objetos abandonados ao longo do desenvolvimento. As representações sobre
i as quais a libido se deposita formam parte do sistema inconsciente, encontrando-se submetidas aos processos
de deslocamento e condensação. A fixação é, segundo Freud, produzida pelas experiências sexuais infantis,
isto é, pelas pulsões parciais, e os objetos primitivos infantis. A regressão implica num retorno a um tipo de
m satisfação abandonada.
22 FREUD, S (1905) ‘Três ensaios para uma teoria sexual” in: Ob. Completas, Imago Ed. RJ 1969.
» 23 FREUD, S.(1915) “Um caso de paranóia que contraria à teoria psicanalítica” in: Obras Completas, Imago
£ Ed. R.J. 1969.
24 FREUD, S. (1911) “Notas psicanalíticas de um relato autobiográfico de um caso de paranóia”, in: Ob
t Completas, Imago Ed. RJ. 1969. Vol XII. p. 62.
£
£ 24
£
£
5
£
n
*
*

0
m Enquanto as evidências apontam uma homossexualidade, há uma pergunta que se
m coloca no texto, e que se refere ao enigma da psicose: por que esse conflito se resolve
m numa psicose? Essa questão força S. Freud a continuar trabalhando para tentar encontrar
m uma resposta.

m J. Lacan, no Seminário livro 3, “As psicoses”25, fazendo uma leitura do texto


m freudiano, indica que a articulação homossexualidade - paranóia é resultado da ausência de
um questionamento por parte de Freud, referente ao lugar da economia psíquica em que
m intervém a homossexualidade. Isto o levou a situar no mesmo nível a fonte
0
(homossexualidade) e o conflito, impedindo a percepção de que o mecanismo da
0
0 Verwerjung, causa da psicose, acarreta um vazio e uma ausência de conflito. Nesta ótica, a
homossexualidade se transforma num efeito do mecanismo psíquico da psicose.
m O mecanismo da psicose, proposto por S. Freud no caso Schreber, é definido como
&
uma repressão efetuada por meio do desligamento da libido dos objetos. Esse mecanismo
m
m depende da história do desenvolvimento da libido e da disposição que lhe dá origem. O

m suprimido (Aufgehobene26) no simbólico reaparece no real. Em relação a este ponto, Freud


m corrige a concepção de projeção, encontrada em textos anteriores já citados, e diz que foi
m incorreto pensar que a percepção suprimida é projetada para o exterior. Trata-se, na
verdade, de que aquilo que foi abolido (Aufogehobene) retorna desde fora.
O desligamento da libido é sucedâneo do que, em 1894, tinha sido denominado a
rejeição do afeto. Assim, o mecanismo de projeção é situado claramente ao lado da
tentativa de restabelecimento dos laços com a realidade, ou seja, está ao lado da reparação.
Freud retoma o mecanismo da projeção para explicar o surgimento de um saber fora do
m sujeito, do qual ele nada sabe (no sentido do recalque). O produzido fora funciona de forma

m restitutiva, construindo um novo enlace, exatamente no lugar onde se provocou a ruptura da


cadeia. Neste ponto, ergue-se o delírio ou a construção delirante.
m O termo projeção foi criticado por J. Lacan, no Seminário livro 3, “As psicoses ”,
indicando que o mesmo acarreta uma série de problemas: de ordem topológica e de
*
registros, já que não há como projetar algo que foi abolido simbolicamente; e,
»
m
»
25 LACAN, J. (1955-56) Seminário livro 3, "Aspsicoses” Jorge Zahar Ed. RJ 1988.
p 26 Este termo possui significados contraditórios: suprimir, abolir, conservar, guardar para depois, protelar e
0 adiar.
0
» 25
0
»
$
*
%
i
i

i
I fundamentalmente, por se tratar de um mecanismo comum às neuroses, cuja única
I diferença na paranóia é, como já dissemos anteriormente, seu uso abusivo.
»
Jacques Lacan propõe relegar este termo unicamente para explicar alguns
»

I produtos da estrutura neurótica, e articula o problema da causa da psicose fazendo um


» desdobramento a partir do mecanismo da Verwerfimg freudiana - que denomina a
I Foraclusão do Nome-do-Pai. A este assunto, retornaremos mais adiante.
»
Já em 1914-15, Freud conta com a teoria do narcisismo, onde aparece claramente a
i idéia de que o eu pode ser tomado como objeto sexual da libido. No caso da psicose, o eu é
i
tomado como objeto da libido após sua retirada violenta dos objetos, ocorrendo uma
è
i fixação que dificulta a operação inversa (retorno da libido aos objetos).
§ Enquanto que, em outros fenômenos psíquicos (durante o sono ou em períodos de
è doenças), a retirada da libido do mundo é totalmente reversível, a psicose não possui essa
è
caraterística. Na psicose, é a ausência de objetos fantasiados ou irreais que provoca a
i
dificuldade de retorno da libido aos objetos, sendo necessária uma construção secundária e
i
» auxiliar, para que isto seja possível. Surge, assim, a concepção do delírio como um
» remendo, que restabelece a relação com os objetos (representações).
»
A tese que sustentava que o eu pode ser tomado como objeto foi inserida numa
leitura na qual prevalecia a idéia de um desenvolvimento de fases , que se sucediam umas
i
» às outras, ocorrendo uma fixação ao narcisismo (no caso de paranóia), e ao auto-erotismo
i (no caso da esquizofrenia). O estreito vínculo entre a psicose e a libido auto-erótica trouxe
» conseqüências importantíssimas para o tema da transferência na psicose, que discutiremos
posteriormente.
II
A última elaboração de Freud em relação à psicose data de 1925, e se encontra nos
»
textos “A perda da realidade na neurose e na psicose” e “Neurose e Psicose”. O conflito na
ft psicose se situa entre o Ego e o Mundo externo. O mundo externo afeta o Ego de duas
RI formas: a primeira através das percepções atuais e sempre renováveis, e a segunda mediante
»
o armazenamento de percepções anteriores que constituem o “mundo interno”. Esse mundo
P
»
27 LACAN, J. (1955-56) Seminário: Livro 3 "Aspsicoses", Jorge Zaliar Editor, Rio de Janeiro, 1988.
D 2SABRAHAM, KARL leve uma grande importância na susieniação desta abordagem, Este autor
D confeccionou um quadro onde relacionava os estádios de organização da libido com os estádios evolutivos
das ligações objetais e os pontos de fixação prevalentes nos distúrbios psicopatológicos. Encontramos este
0 trabalho no Versuch einer Eniwicklungsgeschiclue der libido. I.P.V.. p. 90. O quadro se encontra reproduzido
0 na pagina 44.
0
0 26
0
0


1*
externo e seu representante interno obedecem às leis da linguagem, e a uma lógica que lhe
dá coerência e organização. No caso da psicose, Freud diz:

“...0 ego cria, autocraticamente um novo mundo externo e interno, e não pode
haver dúvida quanto a dois fatos: que esse novo mundo é construído de acordo
com os impulsos desejosos do Id e que o motivo desta dissociação do mundo
i
externo é alguma frustração muito séria de um desejo, por parte da realidade—
frustração que parece intolerável. ”29

O mundo externo rejeitado é justamente aquele que se articula pelo Edipo. É


justamente o desejo sexual que serve ao homem para construir sua história, na medida em
que é nesse nível que se introduz a lei. Essa introdução da lei implica na proibição do
incesto, e acarreta as diferentes dimensões de falta. Freud situa a frustração como algo
intolerável, que provoca um rechaço, num primeiro momento, seguido de um trabalho de
construção de um novo mundo, no qual esta não exista. É a lei edípica que o sujeito
psicótico rejeita, e a partir deste ponto, se faz necessária a criação de algo novo, que
permita uma relação com o mundo.
A primeira operação de rejeição não é observável, acontece de forma silenciosa e
coincide com um arrastar o ego para longe da realidade. A segunda, é uma tentativa de
reparar o dano e restabelecer as relações com a realidade, e pela criação de uma nova
realidade, que não provoca as mesmas objeções que aquela que foi abandonada.

“...a etiologia comum ao início das psiconeuroses e de uma psicose consiste em


uma frustração, em uma não realização de um daqueles desejos de infância que
nunca são vencidos... 0 efeito patogênico depende do ego...permanecer fiel a
sua dependência do mundo externo e tentar silenciar o Id, ou ele se deixar
derrotar pelo Id, e, portanto, ser arrancado da realidade... 7530

I Nesta formulação, o acento está posto na resposta do ego frente às exigências com
»
as quais se vê confrontado, deixando claro que a solução, seja psicótica ou neurótica, se
»
relaciona com uma atividade do sujeito.
i

i
i 29 FREUD, S. “Neurose e Psicose” in: Ob. Completas, Vol XIX, Imago Ed. R J, 1969. p. 191.
I 30 Id. p. 191.
§
I 27
9
9
9
*

3
Para S. Freud, tanto na neurose quanto na psicose há uma perda da realidade
psíquica. A diferença fundamental entre neurose e psicose é de ordem topográfica e radica
na primeira reação ou resposta. Essa ordem topográfica será retomada a partir das
elaborações de J. Lacan no esquema I, que servirá como suporte para pensarmos na
diferença apontada por S. Freud.
Na psicose, o fragmento da realidade é remodelado, mas o que foi rejeitado insiste
em se impor novamente, tal como faz a pulsão recalcada na neurose.31 Neste ponto, Freud
aponta um retorno daquilo que foi remodelado, retorno que pode precipitar um surto ou um
desencadeamento.
Cabe comentar que a partir do texto “Organização sexual infantil” (1925), Freud
utiliza o termo Verleugnwig para nomear o mecanismo psíquico das psicoses. Observamos !
I
a mudança de termos para identificar o mecanismo da psicose, encontrando a Vewerfung
I
(1894-96), a Aufogehobcne no caso Schreber, e, por último, a Verleugnung.
I
Depois de realizar este percurso na obra de S. Freud, constatamos uma insistência
I

\ em relação à causa da psicose e que se refere à idéia de conflito e de uma defesa que age
I eliminando-o internamente. A operação de retorno dá-se sempre desde fora. O conflito
encontra diferentes articulações ao longo da teoria, que podem ser resumidas da seguinte

forma:
i
)
1. (1894-96) Eu vs. representação incompatível (sexual),

> 2. (1911-14) conflito em relação à pulsão homossexual (Caso Schreber),


) 3. (1925) Ego vs. Realidade exterior.
Consideramos que o recorte realizado nesta parte é condição preliminar para
realizarmos uma conexão entre o mecanismo da psicose e o conceito de transferência (e
seus impasses na psicose).

31 FREUD, S.( 1925) “A perda da realidade na neurose e 11a psicose”, in Ob. Completas, Vol XIX, Iniago Ed.
Rio de Janeiro, 1969.

I 28

I
»
5

9
Para S. Freud, tanto na neurose quanto na psicose há uma perda da realidade
psíquica. A diferença fundamental entre neurose e psicose é de ordem topográfica e radica
na primeira reação ou resposta. Essa ordem topográfica será retomada a partir das
elaborações de J. Lacan no esquema I, que servirá como suporte para pensarmos na
diferença apontada por S. Freud.
Na psicose, o fragmento da realidade é remodelado, mas o que foi rejeitado insiste
em se impor novamente, tal como faz a pulsão recalcada na neurose.31 Neste ponto, Freud
aponta um retorno daquilo que foi remodelado, retorno que pode precipitar um surto ou um
desencadeamento.
Cabe comentar que a partir do texto “Organização sexual infantil” (1925), Freud
utiliza o termo Verleugmmg para nomear o mecanismo psíquico das psicoses. Observamos
i a mudança de termos para identificar o mecanismo da psicose, encontrando a Venverfimg
(1894-96), a Aufogehobene no caso Schreber, e, por último, a Verleugnwig.
Depois de realizar este percurso na obra de S. Freud, constatamos uma insistência
em relação à causa da psicose e que se refere à idéia de conflito e de uma defesa que age
eliminando-o internamente. A operação de retorno dá-se sempre desde fora. O conflito
encontra diferentes articulações ao longo da teoria, que podem ser resumidas da seguinte
forma:
1. (1894-96) Eu vs. representação incompatível (sexual),
I
2. (1911-14) conflito em relação à pulsão homossexual (Caso Schreber),
> 3. (1925) Ego vs. Realidade exterior.
í Consideramos que o recorte realizado nesta parte é condição preliminar para
I realizarmos uma conexão entre o mecanismo da psicose e o conceito de transferência (e
I
seus impasses na psicose).
I
I
I
I
I
I

I
1 31 FREUD, S.(l925) “A perda da realidade na neurose e na psicose”, in Ob. Completas, Vol XIX, Imago Ed.
Rio de Janeiro, 1969.

» 28

§
B
»

9
*
i
II. 2. A CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE TRANSFERÊNCIA
E SOBRE SUA PROBLEMÁTICA NA PSICOSE.

A exposição deste tema visa elucidar o impedimento que leva S. Freud a apreciar
que o laço estabelecido por sujeitos psicóticos, ao longo de um tratamento, não é
aproveitável pela técnica da psicanálise.
A transferência é considerada por S. Freud uma condição indispensável na
construção do dispositivo da análise (associação livre - interpretação). Deste fato
depreendemos a idéia de que é impossível conceber o tratamento psicanalítico sem a
transferência.
O analista obtém, pela via da transferência, um lugar na economia psíquica do
analisante, a partir do qual dirige o tratamento. A noção de transferência tem como
correlato sua manobra, que corresponde à operação realizada pelo analista, a cada vez que
se produz uma interrupção no trabalho da análise.
A seguir, abordaremos o percurso da construção do conceito na obra freudiana, tal
como ocorre na estrutura da neurose, e retomaremos os pontos a partir dos quais Freud
nega sua existência na psicose, e os outros, nos quais indica uma possibilidade de abertura
para pensá-la. Utilizaremos as categorias propostas por J. Lacan (real, simbólico e
imaginário), para diferenciar as diferentes articulações da transferência.

A descoberta: um obstáculo denominado transferências

O encontro inesperado de Freud com o fenômeno da transferência ocorreu na


experiência do tratamento das histéricas. Sua presença emergiu como um “obstáculo”
inevitável, ou seja, necessário, o qual o analista tinha de enfrentar para que o tratamento
chegasse a um bom termo.
As transferências são explicadas a partir da hipótese auxiliar, apresentada por Freud
no texto “As neuropsicoses de defesa” e retomada em “Novas contribuições sobre as
neuropsicoses de defesa” . Essa hipótese suporta a teoria da defesa, que consiste na

32 FREUD, S (1894) “As Neuropsicoses de defesa”, in: Ob. Completas, Imago Ed. R.J. 1969.
33 FREUD, S. (1896) “Novas contribuições as neuropsicoses de defesa” in: Ob. Completas, Imago Ed. R.J.
1969.
%
29

5
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©
0

í»

operação de recalque, que separa a representação intolerável do afeto, seguido de um


* deslocamento (obsessões e fobias) ou conversão (histeria) deste último. As representações
$
intoleráveis separadas de seu afeto ficam fora do comércio associativo, formando um
è
segundo grupo psíquico (precursor do conceito do inconsciente).
è
i As transferências inicialmente são definidas como um falso enlace, que inclui a
è figura do analista e que se transforma em obstáculo para a continuidade do tratamento. O
è analista, nas primeiras elaborações, baseava-se numa teoria do recordar, e visava levantar a
i defesa (recalque), que mantinha as representações sexuais intoleráveis no inconsciente.
ê
Portanto, o fim do trabalho analítico coincidia com o preenchimento das lacunas de
i
» memória e as transferências se colocavam a serviço da manutenção do recalque, opondo-se
i à rememoração.
I Encontramos, no texto intitulado “Psicoterapia da histeria”34, uma fina descrição
i dos fenômenos das transferências, articuladas a um mecanismo e uma causa inconsciente.
i ;
;
Esses fenômenos surgem, segundo Freud, acompanhados de um sentimento de mal estar, e
I i

§ são referidos à figura do analista. A expressão “figura do médico”, utilizada nesta época,
§ permite inferir que desde o início Freud indica que ali não se trata da pessoa, e sim do
I analista, enquanto representação.
I Em 1900, no livro sobre “A interpretação dos sonhos’’, Freud define a transferência
I
como um deslocamento do desejo inconsciente para um resto diurno. Este deslocamento
I
» movimenta a carga psíquica de uma representação para outra, produzindo como resultado
I uma representação substitutiva.
I Depreendemos desta articulação a idéia de que o analista funciona como um resto
»
diurno (representação), que recebe a carga psíquica do desejo inconsciente. As
I
transferências, portanto, são solidárias à manutenção da defesa. Esta definição de
»
» transferência é homóloga à noção das formações do inconsciente.
§ As transferências, no gênero plural, implicavam numa irrupção pontual, a serviço do
» recalque, indicando uma resistência ao tratamento. A contrapartida era a manobra de
§
transferência, realizada pelo analista com o propósito de dissolvê-las.
I
O trabalho analítico é apresentado como a abertura de um novo canal para o
0
§ aparecimento de novas produções psíquicas, denominadas de transferências, que têm como
0
i 34 FREUD, S. (1895) “Psicoterapia da histeria" in: obras Completas, Imago Ed .RJ 1969.
0
» 30
i
0
0
9
9
i
>
)

efeito o fechamento da via utilizada anteriormente, o que, geralmente, coincide com a


cessação dos sintomas anteriores, ou com sua re-significação. Assim, o tratamento
psicanalítico fabrica uma nova patologia, isto é, uma nova forma de sofrer.
Em 1905, no caso “Dora”, encontramos uma definição que inclui um novo aspecto:

“São novas edições, ou fac-símiles, dos impulsos e fantasias que são criados e
tomam conscientes durante o andamento da análise; possuem, entretanto esta
particularidade, que é caraterística de sua espécie; substituem a figura do
anterior pela figura do médico.”35

Surge aqui uma elaboração que introduz a dimensão da repetição, e que obedece a
uma série, claramente apontada na utilização das expressões “nova edição” e “fac-símiles”.
As transferências se apresentam na cena analítica como uma resistência ao tratamento, que
opera pela edição repetida de uma matriz, e que implica uma relação com o objeto.
Destacamos outro parágrafo do mesmo texto onde Freud coloca uma incógnita, que será
respondida anos mais tarde ao retomar o tema da repetição:

“Assim ela aluou uma parte essencial de suas lembranças e fantasias, em


vez de reproduzi-la no tratamento. Qual era essa quantidade desconhecida,
naturalmente não sei dizer.”36

Nesta articulação, reitera-se que o surgimento da transferência é pautado numa


repetição sem texto, sem associações. Entretanto, o aspecto que realmente distingue as
transferências de outras formações do inconsciente é que estas últimas surgem endereçadas
ao analista, ou seja, incluindo-o.
Examinaremos, a seguir, a resposta do analista proposta por Freud para combater ou
dissolver as transferências. Ao longo de seus textos, ele identifica a manobra do analista
sob vários termos, entre os quais encontramos: adivinhar, combater, decifrar, induzir.
Tomaremos o significado de cada um destes para perceber suas diferenças e semelhanças.

§ - Adivinhar significa prever ou predizer por meio de sortilégios ou falsas ciências. Os


» sinônimos são: decifrar, interpretar, prever.
§
35FREUD, S. (1905) “Fragmento da análise de um caso de histeria”, in Ob. Completas, Imago Ed. RJ.
Í 1969.Vol Vil p. 113.
36FREUD, S. !d p. 113.
»
*
31

B
5
$
m
§
i
0
0 - Explicar quer dizer tornar inteligível ou claro o que é ambíguo ou obscuro. Os sinônimos
0 são: explanar, interpretar, dar a conhecer a origem.
0
- Combater nos coloca em outra direção, trata-se de opor-se, lutar contra, procurar,
0
dominar.
0
0 - Decifrar implica em ler a cifra, interpretar, explicar.
0 - Induzir é definido como instigar, levar ou persuadir, aconselhar.
0 Encontramos termos que são convergentes e que podem ser tomados como
0
homólogos, entre os quais estão: adivinhar, explicar, decifrar e interpretar. Todos estes nos
0
colocam na dimensão do enigma, da causa e da origem, e, portanto, abrem as vias para a
0 construção do saber inconsciente.
0 Os termos ‘combater’ e ‘induzir’ nos colocam em outro caminho: o do poder, da
0 luta, da dominação e da mestria, todos vinculados à função do eu, onde prevalece a
0
dimensão imaginária. Estes últimos se relacionam de maneira bastante íntima com uma

0 posição sugestiva. Apresenta-se aqui um laço entre a manobra e a sugestão. Cabe esclarecer
0 que Freud considerava a sugestão uma forma de influenciar alguém por meio dos
0 fenômenos de transferência. A psicanálise não é uma técnica baseada na sugestão, mas esta
0 definição de Freud nos permite inferir que em toda operação de transferência há uma
0
margem de sugestão, margem que deve ser minimizada o quanto possível. A clínica
0
0 analítica não se apóia nem se suporta na sugestão, portanto é dever ético do analista abrir
0 mão de qualquer anseio de manipulação ou de uso do poder que a transferência lhe outorga,
0 pelo lugar que ocupa.
0 Toda a manobra tem como objetivo remover as resistências provocadas pelas
0
transferências na clínica das neuroses. Esta operação exige do analista muita habilidade e
0
0 cuidado, na medida em que é através desta que é possível transformar o obstáculo das
0 transferências num motivo de lembrança e de novas associações, o que acarreta a produção
0 do inconsciente.
0 Em síntese, apresentamos até o presente momento que as transferências foram
0
consideradas:
0
0 - Em termos abrangentes, efeito do mecanismo (deslocamento e substituição), que é
0 homólogo às formações do inconsciente.
0 - Um obstáculo, resistência ao tratamento e estando a serviço da manutenção do recalque.
0
0
0 32
0
0
0
0
%
- Causadoras da inclusão da figura do analista enquanto representação.
- A reedição de impulsos e fantasias na relação com o analista.
- No que se refere a sua manobra, como a operação realizada pelo analista, que visa
transformar transferências (obstáculos), em causa de lembrança e produção de um novo
saber.

A transferência e a repetição

Qual seria a relação entre transferência e repetição? A princípio, consideramos que,


ao utilizar a conjugação “e” para articulá-las, estamos indicando, já de partida, uma
diferença entre ambas, a qual que iremos esclarecer ao longo de nossa exposição.
É no contexto da cura que Freud descobre que as transferências obedecem ou
dependem da repetição de uma matriz. Para avançar, nos serviremos de algumas das
elaborações encontradas no texto intitulado “A dinâmica da transferência”37, primeiro
trabalho dedicado integralmente ao tema da transferência. No seu início, encontramos o
parágrafo que transcrevemos a seguir:

“Deve-se compreender que cada indivíduo, através da ação combinada de sua


disposição nata e das influências sofridas durante os primeiros anos, conseguiu
um método específico próprio de conduzir-se na vida erótica-...Isto produz o que
se poderia descrever como um clichê esterotípico (ou diversos deles),
constantemente repetido - constantemente reimpresso -no decorrer da vida da
pessoa na medida em que as circunstâncias externas e a natureza dos objetos
amorosos a ela acessíveis permitam. >,38

A identificação da transferência com a repetição é um risco, seguido por vários


analistas. Alertados e orientados por J. Lacan, podemos dizer que ambos são conceitos que
possuem uma especificidade, ao mesmo tempo em que é possível notarmos sua articulação.
A cena analítica revela que a transferência que surge está submetida ao mecanismo da
repetição. Nesta época (1912), a transferência é colocada no gênero singular, e passa a
abranger a totalidade do percurso do tratamento, O começo da análise coincide com a
abertura da transferência, isto é, o analisante outorga ao analista um lugar na sua economia

37 FREUD, S. (1912) “A dinâmica da transferência”, in: Ob. Completas, Imago Ed. RJ, 1969 Vol XII.

33

%
5
psíquica, pautado na matriz fantasmática que rege sua vida; e o fim implica na destituição
do analista deste lugar.
Para entender a repetição que se opera na transferência, Freud distingue dois tipos
de carga libidinais: as conscientes e as inconscientes. As cargas libidinais inconscientes são
produzidas pela fixação das pulsões parciais que alimentam as fantasias do sujeito. Todas
as cargas libidinais inconscientes, insatisfeitas, se dirigem à figura do analista, que se
oferece como uma representação. Desta forma, o analista é incluído numa das séries que
governam a vida do sujeito, sem este sabê-lo.
A transferência se constitui claramente como a válvula do tratamento, e, por outro
lado, como sua maior resistência, ao reanimar imagens infantis, evocadas pela presença do
analista. Esta reanimação (atuação) é considerada como uma forma inconsciente de
lembrar. A figura do analista, nestas situações, surge como uma barreira, que impede o
trabalho associativo, afastando o sujeito do que Freud denomina complexo patogênico.
Assim, a análise ocorre graças e apesar da transferência.
Para entender o duplo aspecto da transferência, Freud a divide em positiva
(constituída por sentimentos carinhosos, que promovem a colaboração do analisante no
tratamento), e a negativa (formada por sentimentos hostis e eróticos, que dificultam e
impedem o trabalho analítico).
A transferência negativa está a serviço do recalque e se opõe a qualquer
modificação ou mudança da solução inventada pela neurose. Enquanto que a transferência
positiva é a responsável pelo movimento associativo.
Para a resolução da transferência negativa é necessária a operação de manejo do
analista, que aponta para a remoção dos componentes de ódio e os eróticos, sem desligar o
analisante da figura do analista. Este manejo do analista visa a construção de um saber não
sabido, isto é, produzir inconsciente.
No caso dos paranóicos, Freud comenta que a manobra, correlativa à transferência
que ocorre na neurose, se mostra ineficaz. Portanto, afirma que, nesses casos (paranóicos),
quando a transferência...

38 FREUD, S. (1912) “A dinâmica da transferência”, in: Ob. Completas, Imago Ed. RJ. 1969 Vol XII p. 133.

34
R
R
5
I
I

» "... tomou-se essencialmente limitada a uma transferência negativa,...deixa de


i haver qualquer possibilidade de influência ou cura. >*39
i
» Extraímos deste comentário a necessidade de precisar as condições do processo de
» transferência na paranóia, a partir do qual será possível construir uma manobra adequada
» A função do analista, enquanto uma presença, promove a introdução dos impulsos
§
eróticos e hostis na cena do tratamento, fazendo disto uma condição necessária para sua
9
solução. Portanto, somente é possível resolver o que é trazido à cena da análise, no presente
9
9 vivido na transferência com o analista. S. Ferenczi, analista discípulo de S. Freud, utiliza
uma metáfora para falar da presença e do lugar do analista, (que nos parece interessante
m incluir), na qual o analista é comparado a um “fermento catalisador”, que atrai os sintomas,
para num segundo momento dissolvê-los. Desta forma, o analista oferece uma circunstância
m
m apropriada para a repetição na transferência, a partir da qual pode operar.
O analista, na sua posição, funciona como aquele que dá garantias da existência do
m inconsciente, isto é, o fato de que o analisante não fala em vão porque a associação livre
possui uma causa. Entre as recomendações que Freud dá ao analista, destacamos aquela que
diz que este deve prestar atenção se o paciente respeita, dentro do possível, a regra
fundamental, mais do que a manifestação de sentimentos de confiança ou desconfiança.
Também o analista deve colocar todos seus esforços em permitir que o analisante se ligue
ao tratamento, e que isto se transforme em trabalho.
A relação entre a interpretação e a transferência segue as mesmas orientações que os
sintomas; só haverá interpretação na medida em que a transferência se apresente como
resistência. Espera-se que, em cada caso, e na medida em que surjam as resistências, se
opere a remoção de sua causa.
Tanto em relação à interpretação, quanto a seu manejo, Freud recomenda ao analista
“saber esperar”, ou seja a paciência é fundamental para respeitar o ritmo e o tempo
necessários de cada análise.
Retomemos a noção de repetição na transferência a partir do texto de 1914, onde
*
Freud diz:

39 FREUD, S. (1912) “A dinâmica da transferência”, in: Ob. Completas, Imago Ed. RJ, 1969 Vol XII p.142.

35
I

I
i
»
“...o paciente não recorda coisa alguma do que esqueceu e reprimiu, mas
i expressa-o pela atuação ou atua-o (acts it out). Ele o reproduz não como
i lembrança mas como ação, repete-o, sem naturalmente, saber que o está
»
repetindo.”40
»
§ O recalcado se apresenta pelo viés da atuação com o analista. Trata-se, segundo
Freud, de uma forma de recordar, sem o sujeito saber. É o tratamento analítico que oferece
9 as condições propícias para as duas formas de recordar: a primeira, que denominamos
9 “discursiva”, e a segunda, “atuada”. A atuação coincide, pontualmente, com a detenção
das associações do analisante. No texto citado, surge pela primeira vez a expressão
“compulsão à repetição”, referindo-se à nova forma de recordar, descoberta pela
psicanálise. Com a psicanálise, a neurose não é mais considerada simplesmente algo
referido a um fato acontecido no passado, um fato enterrado, e sim uma potência atual, que
continua a se repetir no tempo presente e na relação com o analista. É justamente o analista,
através do dispositivo, que se oferece a elevar à máxima potência essa repetição.
Entretanto, o que é que se repete?

“O repetir, tal como é induzido no tratamento analítico, segundo a técnica mais


recente, implica, por outro lado, evocar um fragmento da vida real, e, por essa
razão, não pode ser sempre inócuo e irrepreensível. 5> 41

Um fragmento da vida real, que introduz algo que resiste a se articular no campo
das associações, isto é, das representações, e, por tal razão, irrompe como uma atuação. O
analista, através de seu ato, transforma essa atuação em motivo de lembrança, isto é,
provoca uma retomada das associações. A partir disto, o analisante obtém uma
0*
reconciliação com o recalcado e uma margem mais larga de tolerância na neurose.

A transferência cria, segundo Freud, uma zona (ou franja) intermediária entre a
0*
neurose e a vida que denomina “neurose de transferência”. Trata-se, a partir da entrada do
analista, de uma nova significação dos sintomas, na economia psíquica do analisante. Essa
*
“neurose de transferência” é introduzida como um caminho para a solução da neurose, mas
acarreta, por outro lado, um problema sobre o fim do tratamento, na medida em que este se

40 FREUD, S. (1914) “Recordar, repelir e elaborar”, in: Ob. Completas, Imago Ed. RJ. 1969 Vol XII p. 196.

36
i
I
I
I
è transforma numa satisfação substitutiva, e, como tal, numa forma de sofrer. Não é nosso
0 interesse realizar um aprofundamento sobre este tópico, mas o deixamos apontado como
0 uma das dificuldades que Freud - e todo analista - tem de enfrentar.
0
A elaboração produzida ao longo da análise exerce, segundo Freud, uma ação que
0
i modifica a neurose, diferenciando-se claramente de qualquer outra terapêutica baseada na
» sugestão. O trabalho analítico é um processo penoso, que coloca à prova tanto o desejo de
9 cura do analisante quanto o desejo do analista.
9 Por último, nos referimos ao texto intitulado “Observações sobre o amor de
9
transferência”42, no qual Freud examina o amor passional a serviço da resistência. Trata-se
9
9 de um amor autêntico, produzido pelo dispositivo analítico, que surge desde seu início,
9 apresentando-se como uma ligação carinhosa que não se opõe ao tratamento - ao contrário,
9 o favorece. Mas, em determinado momento, esse amor pode tornar-se exigente,
9 apaixonado, demandando ao analista reciprocidade, colocando de lado o tratamento. O
amor-paixão, endereçado ao analista, é uma resistência de transferência, que obedece ao

9 mecanismo da repetição.
Em relação a esta situação, Freud aprecia que é fundamental a resposta do analista, e
o desfecho da mesma depende desta. Neste sentido, considera que o tratamento deve
ocorrer sob abstinência, tanto do analisante como do analista. A abstinência coincide com
m uma ausência de satisfação, que permite reenviar o analisante às associações, e
fundamentalmente promover a experiência de castração (tomamos este termo no sentido da
“impossibilidade de fazer um”). Voltaremos sobre este ponto a partir do Nome-do-Pai, na
parte III da tese.
Observamos que a dimensão do amor se apresenta desde o início da análise,
sofrendo uma intensificação quando este se coloca a serviço da manutenção do recalque,
isto é, do não querer saber sobre o inconsciente.
A seguir, nos perguntamos quais foram as consequências para a transferência, a
99 partir da segunda divisão pulsional, apresentada em 1920, na qual se introduziu a pulsão de
morte.
*
*

41 FREUD, S. Id. p. 198.


42 FREUD, S. (1914-15) “Observações sobre o amor de transferência” in: Ob. Completas, Imago Ed. RJ 1969
* Vol XII.

37

0
n
1 *
I
r
i
i
i A repetição, como dissemos anteriormente, é definida no texto “Recordar, repetir e
§ elaborar”(1914) como uma forma de “recordar em ato” (Agieren), sem o sujeito saber o
que repete. Trata-se de um recordar paradoxal, na medida em que não implica nenhuma
»
lembrança. O que se repete é algo que nunca foi esquecido, porque nunca foi consciente.
O inconsciente insiste, e a única via que encontra para se apresentar, quando as associações
m se interrompem, é “ repetir em ato” vivências sexuais infantis, que deixaram suas marcas na
vida do sujeito.
m Neste ponto, o “recordar em ato” se articula à resistência de transferência, enquanto
que o recordar discursivo é possibilitado pela transferência positiva. Percebemos
claramente que o Agieren coloca um limite ao recordar, que obedece à “compulsão à
repetição”.
Em 1920, no texto “Além do Principio do prazer ”, Freud diferenciará a repetição
simbólica, cujo paradigma é a brincadeira do “Ford- Dd\ onde se produz, em ato, uma
repetição, promovida pela substituição de representações (que implica a perda de uma
satisfação mítica). Este momento coincide com a entrada da criança na linguagem.
Os sonhos das neuroses traumáticas, o brincar das crianças, a repetição em ato na
transferência e os sonhos de angústia não passam desapercebidos ao espírito observador e
atento de Freud, como fatos que se contrapõem à primazia do princípio do prazer.
O fragmento de vida real apresentado em 1914, se articula no texto “Além do
principio do prazer ” ao “não ligado”, isto é, à pulsão de morte que insiste na repetição
simbólica.
Assim, o “recordar em ato” se relaciona diretamente com a fixação da pulsão, sendo
este um resto da operação de recalque primário. Este recalque coincide com a entrada do
ser humano na linguagem, e tem como resultado, por um lado, o surgimento do sujeito
(efeito da cadeia de representações); e, por outro um resto que se articula ao lugar onde a
pulsão se fixa. Examinaremos esses aspectos na parte III da tese, à luz da teoria de J.
Lacan.
Todos os fatos mencionados anteriormente apresentam um fracasso na tentativa de
ligar as cargas libidinais. Com a introdução da pulsão de morte podemos distinguir, na
repetição, aquilo que funciona como sua causa (o “não ligado”, que tende à dispersão), e a
repetição simbólica, que abre à dimensão da articulação de representações. Entendemos que

38

a
a
I
»
§
»

I é justamente o que não se liga, o que se dispersa, que provoca um movimento contrário
§ (que é de ligar-se). Aquilo que resta, aquilo que fracassa na tentativa de ligar, de articular,
»
funciona como causa que promove novas repetições.
»
A pulsão de morte apresenta como aspecto relevante sua tendência a retornar a um
* estado anterior, e o caminho que escolhe é a decomposição dos elementos em partículas. Já
i» a pulsão de vida tende a produzir união, a promover articulações, formando novas unidades.
Freud considera que a compulsão à repetição possui um estatuto mais originário e
elementar - o que lhe outorga um caráter mais demoníaco.
A compulsão à repetição só faz retornos àquelas marcas mnêmicas que se
encontram em estado livre, e que não têm capacidade de entrar no processo secundário.
Nos momentos em que, na transferência, são revividos os fragmentos da vida real, a
compulsão à repetição se desliga da transferência simbólica, responsável pelo recordar,
numa via discursiva, e se apresenta fixada ao Id. Isto pode ser articulado ao que J. Lacan
denomina como o registro real da transferência, Neste sentido, a transferência introduz
tanto o registro simbólico (articulação de representações), como o real (fixação ao Id) e o
imaginário (dimensão amorosa e sugestiva), todos produzidos pelo funcionamento da
linguagem e do inconsciente.

A transferência e o narcisismo

m
m A transferência é, fundamentalmente, um testemunho da existência do inconsciente.
m O analista é uma formação do inconsciente, está situado como uma representação que
m recebe as cargas libidinais, transformando-se em parte da economia psíquica do analisante.

m Perguntamos: qual é a modificação que se processa na concepção da transferência, à


luz da noção de narcisismo? Esta construção, surgida no ano 1914-15, tem como base que
& “o eu pode ser tomado como objeto libidinal”. Esta idéia colocou uma objeção à primeira
* divisão pulsional, que separava as pulsões de auto-conservação e do eu das pulsões sexuais,
m e que seria substituída em 1920, pela segunda divisão: Pulsões de Vida vs. Pulsões de
*
Morte.
* Freud, de posse da teoria do narcisismo, explica a causa da neurose a partir de uma
frustração, que provoca a retirada da libido dos objetos, mantendo a carga libidinal intacta,
*
*
* 39
*

£
í
9
9
I
I e tomando como substituto o objeto da fantasia. O objeto da fantasia permite conservar o
» enlace com a realidade, servindo de suporte à continuidade da cadeia de representações.
Não ocorre o mesmo na psicose. Frente à frustração, a carga é retirada dos objetos,
e, ao não encontrar o suporte da fantasia para manter as cargas de objeto, só lhe resta um
9
último recurso: depositar-se no eu. Essa libido depositada no eu transforma-o num objeto.
9
m Mas o problema está na dificuldade que essa carga encontra para retornar aos objetos,
» devido à ausência da fantasia.
O depósito da libido no eu provoca vários fenômenos psicóticos, entre os quais
m citamos a sensação de fim do mundo, a fragmentação do corpo. De forma secundária,
m
m surge um caminho de retorno da libido aos objetos, cujo nome é o delírio. Trata-se de uma
construção que cumpre uma função semelhante à da fantasia, isto é, servir de suporte para
que seja possível a articulação ou a cadeia de representações. O que aproxima o delírio dá
fantasia é sua função de suporte da cadeia de representações, através de uma significação.
Mas existem diferenças, entre as quais, indicamos:

*9 - A fantasia é inconsciente - o delírio se constrói como um saber consciente.


- O delírio constrói um objeto que é produto de uma operação de decomposição do eu.
- No delírio, preserva-se a posição narcisista do eu, quer dizer, o objeto que se desdobra do
eu toma a outra parte do eu como objeto, seja de perseguição, de traição ou de amor.
- A fantasia é produto da operação de recalque, produzindo-se uma separação entre o eu e o
objeto, isto é, as cargas de objeto não ficam prejudicadas.
- A fantasia é uma significação articulada ao Édipo-castração. O delírio inventa outra
significação, fora do Edipo.
Assim, podemos inferir que o delírio é uma formação secundária, que surge na
ausência da fantasia. Portanto, o delírio pode ser abordado como uma suplência, noção que
será retomada, segundo as elaborações de J. Lacan.
A presença da fantasia na neurose, como suporte da cadeia, outorga ao analista não
só o lugar de representação; surge também como um substituto dos objetos fantasiados.
Como compreender o lugar do analista, a partir desta problemática dos objetos na
psicose? Foi justamente o estatuto de objeto que levou Freud a afirmar a inexistência da
transferência na demência precoce, e, nos casos de paranóia, uma impossibilidade de

40

n
i
»

» influência terapêutica. Para encaminhar a resposta, realizaremos uma reflexão em tomo do


lugar ocupado pelo Dr. Flechsig no delírio de D. P. Schreber.
Dr. Flechsig ganha um espaço destacado nas Memórias de D. P. Schreber, na
medida em que é situado como o destinatário da carta aberta que antecede a escrita do livro.
Segundo Freud, Dr. Flechsig pertence a uma série, composta pelo pai, pelo irmão e por
Deus, podendo, cada um deles, ser substituído entre si. Todos são efeitos de um
mecanismo denominado “decomposição”, que os transforma em duplos do eu de Schreber.
Freud considera que esse processo de decomposição é caraterístico da psicose,
diferenciando-o do mecanismo de condensação, responsável pela formação de substitutos
nas neuroses. A escolha de Dr. Flechsig é articulada por Freud da seguinte forma:

“O sentimento amistoso do paciente com o médico bem se pode ter devido a um


processo de transferência...o paciente lembrou-se de seu irmão ou de seu pai
ante a causa ativadora da enfermidade foi o aparecimento de uma fantasia
feminina de desejo que tomou por objeto a figura do médico.’*43

“A fantasia que despertou uma oposição tão violenta no paciente, tinha assim
suas raízes num anseio, intensificado até um tom erótico, pelo pai e pelo irmão.
Este sentimento na medida em que se referia ao irmão, passou por um processo
de transferência para o médico, Flechsig...,>w

Dr. Flechsig foi o médico que o atendeu na primeira doença, obtendo um certo
sucesso no tratamento. Este fato provocou uma forte afeição por parte de D. P. Schreber e
sua esposa. O lugar do médico, seguindo a articulação freudiana, obedece ao processo de
deslocamento por transferência, que, neste caso, sofre uma inversão: o amor se transforma
em ódio. A explicação para esta inversão se sustenta na concepção de Freud sobre a causa
da paranóia, isto é, o impulso homossexual. Esta idéia foi retomada por muitos analistas,
mas J. Lacan promoveu uma discussão em torno da mesma, questionando-a, conforme já
comentamos .
Dr. Flechsig ganha o lugar de perseguidor, de “assassino de almas”, mas,
encontramos na carta aberta outro lugar que denominamos do destinatário, a quem lhe é

43 FREUD, S. (1911) “Notas psicanalílicas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia”, Imago
Ed. RJ 1969. Vol XII. p.67.

41
i
§
»
»
» solicitado confirmar se ocorreram verdadeiramente as experiências que D. P Schreber diz
» ter experimentado. Esse lugar do “destinatário” se distingue do lugar do perseguidor, e
aponta para uma diferença. Há uma distinção entre ambos, a partir da qual discutiremos um
possível manejo da transferência na paranóia.

m r
A transferência e a disposição libidinal
r
A disposição na paranóia encontra uma articulação na teoria a partir de uma fixação
ao narcisismo. O paranóico, ao enfrentar desilusões ou fracassos nas relações sociais, sofre
uma intensificação geral da libido, que encontra no eu um porto seguro onde ancorar-se,
transformando-o em um objeto sexual. No caso da esquizofrenia, a fixação se produz no
auto-erotismo.
Todo o processo que ocorre na psicose, descrito por Freud no Caso Schreber,
denominado “repressão por desligamento da libido”, produz-se de uma maneira silenciosa,
diferenciando-se do caminho da cura (que se dá de maneira ruidosa, através do delírio);
construção que, como já dissemos, tem por função promover o retorno da libido aos
objetos.
O primeiro tempo do mecanismo da psicose, isto é, o retorno da libido sobre o eu,
ocasiona uma modificação da libido. A partir deste processo, trata-se da libido narcisista.
Encontramos no texto sobre “0 Ego e o Id”(1925), uma interrogação sobre essa
modificação e os possíveis destinos das pulsões. Este destino da libido (narcisista) tem
como resultado uma dissociação pulsional.
No mesmo ano, no texto “A negativa”, Freud explica o fenômeno do negativismo
dos psicóticos como o efeito da dissociação pulsional, onde comparece uma pulsão de
morte desligada da pulsão de vida. Retomaremos este tópico a partir do conceito de objeto
“a”, tal como irrompe na psicose, na sua dimensão de “mais de gozar”.
O delírio de perseguição nos oferece uma pista sobre a ruptura das amarras entre o
amor e o ódio, apresentando uma primazia deste último, resultado da dissociação das
pulsões, acompanhado da caraterística sempre presente: “comparecer desde fora”. No caso,
é o outro (perseguidor) que odeia primeiro.

44FREUD, S. Id p.70.

42
I
»

» O caso de D. P. Schreber, e a leitura de suas memórias, nos orientam para a


» possibilidade de pensar na especificidade da transferência na psicose, e seu manejo. Esta
via é dada pela construção delirante, responsável pela criação de uma nova realidade;
através de uma significação que suporta a cadeia de representações. O processo de
transferência ocorre através da decomposição do eu, responsável pela produção do outro
(parceiro) do delírio.
O caminho de retomo da libido aos objetos só é possível graças à construção
delirante. O delírio aparece de forma secundária, numa tentativa de permitir a possibilidade
de movimento para a libido acumulada no eu.
Situamos os elementos, até aqui apresentados, que consideramos fundamentais
para entender a formulação freudiana, em tomo do funcionamento da libido e seu lugar no
grupo das parafrenias (termo proposto por S. Freud, que designa os quadros clínicos em que
os fenômenos da paranóia surgem acompanhados dos fenômenos da esquizofrenia):

1. Retirada violenta da libido e depósito no eu.


2. Ausência de fantasia.
3. Obstrução do caminho de retorno da libido aos objetos.
4. Delírio como tentativa de resolução do problema da libido retraída e estancada no eu.

No Capítulo VII do texto “O Inconsciente ”45, Freud cita um texto de KarI Abraham
que é de capital importância para a teoria da psicose, e que teve conseqüências importantes
para as formulações sobre a transferência. No mesmo, é explicitado que a caraterística
fundamental da demência precoce de Kraepelin ( esquizofrenia de Bleuler ) é a antítese do
eu e do objeto. Este problema só é encontrado na esquizofrenia, faltando nas neuroses de
transferência.
Citamos aqui o psicanalista Karl Abraham, pioneiro da psicanálise, que, em seu
artigo intitulado “As diferenças psicosexuais entre a histeria e a demência precoce”,
formula a idéia de que a primeira forma de vida libidinal é auto-erótica, sendo modificada
posteriormente pela transferência da libido aos objetos.

45 FREUD, S. (1915) “O Inconsciente” in Obras Completas, Imago Ed. RJ. 1969. Vol XIV.

43
m
Essa orientação de Abraham propunha situar os tipos clínicos numa série, que
correspondia a uma fase do desenvolvimento da libido. A demência precoce era provocada
m por uma fixação ao auto-erotismo, a neurose era fixada a uma fase posterior, onde havería
relações de objeto. Transcrevemos a seguir o quadro de Karl Abraham:

m Estádios de organização da Estádios evolutivos das Pontos de fixação prevalentes


libido ligações objetais nos distúrbios psicopáticos
VI. Estádio de acabamento Ligação ao objeto Normalidade
(pós-ambivalente)
Genital
V . Estádio genital primá­ Ligação ao objeto com Histeria
rio (fálico) exclusão genital
IV. Estádio sádico-anal ligação objetai parcial Neurose obsessiva
secundário
III. Estádio sádico-anal Ligação objetai parcial
primano com incorporação Paranóia e paranoidia
II. Estádio oral tardio Narcisismo. Incorporação Grupo maníaco-depressivo
(canibalismo) total do objeto
I. Estádio oral primário Auto-erotismo (a-objeta Diversas formas de esquizofrenia
(estádio de amamenta­ pré-ambivalente) (estupor)
ção)

Essa elaboração funcionou como uma tese, que teve (e tem, até os dias de hoje)
conseqüências, determinando um fechamento à possibilidade de extrair novos ensinamentos
•*
* da experiência clínica. A mesma decretou a inexistência da transferência na demência
precoce, encontrando como justificativa plausível a libido auto-erótica.
* A “Retirada da libido dos objetos” transformou-se num obstáculo intransponível
*
para pensar a produção de transferência, dando origem a uma contra-indicação do método
*
da psicanálise, para.os sujeitos inseridos numa estrutura psicótica.
*
Todos os fatos clínicos que questionavam a premissa da inexistência da
X*
transferência na demência precoce, tais como os fenômenos de negativismo, a facilidade


44
X*


íl»

0
«d

de sugestionabilidade, ou as intensas paixões que os pacientes internados nos hospitais


psiquiátricos manifestavam em relação a seus médicos, eram explicados como uma falta de
m relação com a realidade, ou, no caso das paixões, como contaminadas pelo auto-erotismo.
m Freud afirma que a capacidade de transferência utilizada no trabalho terapêutico
exige que a carga de objeto não se encontre prejudicada.
Nos casos de demência, a carga de objeto é suprimida, reconstituindo, como já
dissemos anteriormente, o estado de auto-erotismo, carente de objeto. Na medida em que
esse processo se aprofunda e se estende, surge uma repulsa e um desinteresse pelo mundo
exterior, que explica a incapacidade de transferência.
A ausência de investimento libidinal nos objetos, considerada como essencial na
demência precoce, é a hipótese central que sustenta a ausência de transferência. Esta
elaboração tornou inteligível um determinado funcionamento da economia libidinal na
psicose, e, por outro lado, provocou um fechamento aos dados que a observação clínica de
pacientes oferecia, retardando a possibilidade de a psicanálise vir a conceituar e avançar no
terreno da transferência na psicose.
A demência não se compõe unicamente dos fenômenos provocados pelo
desligamento da libido dos objetos, agregando-se àqueles fenômenos que tem uma função
de restituição, de construir novos enlaces, abrindo um novo caminho para que a libido
possa se deslocar do eu, e ser depositada em novos objetos. Consideramos, com Freud, que
a construção delirante é responsável pela criação de uma nova realidade.
Além da falta de transferência nos dementes, Freud identifica outra diferença em
relação aos neuróticos: enquanto, nos primeiros, não há necessidade de produzir um saber
inconsciente, nos outros (neuróticos) há sintomas que permitem a interpretação.
Mas, atendo-se ao quadro construído por Abraham, observamos que o ponto em que
se apresenta a paranóia (no qual incluímos o delírio de perseguição, de ciúmes e a
erotomania), se encontra articulado a uma “ligação objetai parcial, com incorporação”.
* Como entender essa parcialidade com incorporação? Que estatuto dar a esse objeto que
surge delimitado pela via da construção delirante? A primeira idéia que nos ocorre é que a
*
parcialidade nos avisa sobre o funcionamento do não todo - o delírio sempre é uma
* edificação (significação) parcial da realidade, onde se recortam objetos que fazem série,
* todos estes desprendidos do eu do sujeito. Este processo nos aponta uma saída para a libido,
*

* 45
*

n
1*
«I
*

m
m mas, apoiada nestas representações, retoma o eu como seu objeto. Em outras palavras, o
delírio inventa um caminho, um disfarce, e, a partir dos duplos do eu, o eu é situado como
objeto. Portanto, no caso da paranóia, se apresenta uma relação de objeto parcial, o que
indica um prejuízo para a carga objetai, mas abre a possibilidade para pensar uma
transferência articulada ao delírio, isto é, uma transferência delirante. Resta indagar o que
seria possível esperar de uma transferência neste moldes.
Surge, no texto freudiano46 acima citado, uma questão a ser elucidada, que diz
respeito às relações entre o eu, o objeto e a consciência. Para construir uma explicação
sobre este tema, Freud se detêm nas modificações da linguagem, que surgem nos estados
iniciais da esquizofrenia, que passaremos a assinalar:
1. Surge uma expressão verbal “altiva”.
2. As frases têm sua estrutura desorganizada, o que resulta na falta de sentido.
3. Aparecem alusões aos órgãos e suas enervações.
4. A relação entre o recalcado e a substituição apresenta singularidades.
As palavras, na esquizofrenia, ficam submetidas ao processo primário, condensando-
se e deslocando-se suas cargas de uma representação para outra. Em relação à
singularidade exposta quanto à substituição, Freud afirma que há um predomínio do que se
deve fazer com as palavras, sobre o que se deve fazer com as coisas. A substituição na
esquizofrenia não opera pela coincidência entre os elementos palavras e coisas. O que está
interrompido nestes casos são os investimentos dos objetos, mantendo-se os investimentos
das imagens verbais. A representação na consciência surge da sobrecarga imposta pela
imagem da coisa e sua conexão com a representação verbal.
Na esquizofrenia, as modificações na linguagem obedecem ao investimento na
representação verbal, o que não pertence ao trabalho do recalque, e sim constitui uma
* primeira tentativa de cura, aspirando recobrar o objeto perdido. Esta tentativa é
alucinatória e encontra seu caminho na parte verbal do objeto. Podemos dizer,
* parafraseando Freud, que o esquizofrênico toma as palavras (verbo) como se fossem
coisas. A representações verbais são simples restos mnêmicos verbais que se originam em
percepções acústicas. Estas ganham o estatuto de objeto provocando o fenômeno
*
* alucinatório, que surge de maneira predominante na esquizofrenia.

* 46 FREUD, S. (1915) “O inconsciente”, in: Ob. Completas, Imago Ed. RJ 1969 Vol XIV.

a
* 46
*
*
m
©
ü

9 '
m Desta forma, a palavra é essencialmente um resto mnêmico da palavra ouvida47. No !

caso da alucinação, a carga psíquica passa por completo ao sistema perceptivo,


m abandonando as cargas do sistema mnêmico (representação de coisa), Este tema será
&

m retomado na parte III da tese a partir da contribuição de J. Lacan, utilizando a diferenciação

m entre significante, significação e significado.


m Na conferência XXVI, intitulada “A teoria da libido e o narcisismo”, Freud
comenta:
m
“...na demência precoce, a libido, em seus esforços por alcançar novamente os
objetos (isto é as representações dos objetos), de fato agarra-se a alguma coisa
desses objetos, que, por assim dizer seria, no entanto, apenas suas sombras -
quero dizer, as representações verbais pertencentes ao objetos.’*48

Tanto neste texto como em outros Freud destaca que, no fenômeno da alucinação,
predomina a relação de palavra sobre a relação de coisa. É desta forma que surge a
representação verbal desligada de todo e qualquer investimento objetai (representação de
coisa). Assim, a alucinação é resultado da regressão da libido, sem carga de objeto, que se
refugia no que encontra disponível, isto é, na representação verbal.
Na mesma conferência, Freud explicita que, nas neuroses narcisistas, a resistência
resulta invencível, razão pela qual os métodos técnicos da psicanálise precisam ser
substituídos por outros. O problema da transferência coloca um obstáculo para a psicanálise
neste tipo de caso.
Retomemos algumas indicações da Conferência XXVII (1915-16), “A
transferência”, que nos parecem pertinentes para a continuidade de nossa pesquisa:

“...Existem,..., outras formas de doença nas quais malgrado as condições sejam


as mesmas, nossa conduta terapêutica jamais obtêm êxito. Nelas também tem-se
verificado que houve um conflito básico entre o ego e a libido, que acarretou a
repressão - embora esse fato possa necessitar de uma descrição topográfica
*
diferente...Não conseguimos remover uma única resistência ou suprimir uma
0 única repressão. Esses pacientes, paranóicos, melancólicos, sofredores de

*
47 FREUD, S. (1925) uO Ego e o Id”, in: Obras Completas, Imago Ed, RJ. 1969, Vol XIX.
48 FREUd! S. (1915-16) Conferência XXVI “A Teoria da libido e o narcisismo”, in: Ob. Completas, Imago

Ed. RJ 1969. Vol XVI. p. 492.


*
47
1*
*
*

. $
*

* demência precoce, permanecem de um modo geral, intocados e impenetráveis ao


tratamento psicanalítico.”49

m Freud diz que não conseguiu levantar a resistência nem suprimir uma repressão
(meta do tratamento proposto para as neuroses), razão pela qual considera que os
paranóicos, os melancólicos e os dementes precoces são refratários ao trabalho
psicanalítico. Não se trata de falta de inteligência, nem de carência de forças instintivas,
nem da ausência de consciência da enfermidade (o que aparece claramente nos
melancólicos). A resposta é “ausência ou falta de transferência”.

“A observação mostra que aqueles que sofrem de neuroses narcisistas não têm
capacidade para a transferência ou apenas possuem traços insuficientes da
mesma. Eles rejeitam o médico, não com hostilidade, mas com indiferença. Por
esse motivo não podem ser influenciados pelo médico; o que este lhes diz,
deixa-os frios, não os impressiona; consequentemente, o mecanismo de cura que
efetuamos com outras pessoas - a revivescência do conflito patogênico e a
superação da resistência devido à regressão - neles não pode ser executado.
Permanecem como são. Amiúde, já empreenderam tentativas de recuperação,
por sua própria conta, que conduziram a resultados patológicos, isto não
»50
podemos modificar de forma alguma.

A ausência de investimentos objetais e a fixação ao narcisismo oferecem uma


explicação bastante consistente, que impede que todas as manifestações de fenômenos
apresentados por sujeitos psicóticos possam ser pensadas como transferências. Entendemos
que esta articulação deve ser levada a sério; não podemos descartar que há algo de
verdadeiro na posição freudiana. Tudo gira em torno do problema da libido narcisista, e do
lugar do objeto na paranóia, na demência e na melancolia. Esta elaboração, depreendida de
t* uma observação clínica, sugere que não há possibilidade de tratar o paranóico, nem o
esquizofrênico, nem o melancólico, com o método inventado para as neuroses. Este fato
nos motiva a trabalhar, no sentido de extrair a especificidade do laço que os sujeitos
psicóticos estabelecem, e o que nos é possível, enquanto analistas, esperar e oferecer em
*
termos de tratamento. Neste trabalho não abarcaremos todas as possibilidades. Como já

49 FREUD, S. (1915-16) Conferência XXVII “A transferência”, in: Ob. Completas, Imago Ed. RJ. 1969 Vol
XVI p. 511.
*
*
48

A
n
©
*

f» dissemos, nos limitaremos a pensar a transferência nos casos de paranóia e, dentro destes,
Ml examinaremos um caso de erotomania.
m No caminho de retorno da libido aos objetos, tanto a alucinação quanto o delírio,
m
m nos apontam uma via para pensar a transferência. De toda forma, manteremos a dificuldade

m apontada por S. Freud (isto é, a falta de carga objetai, a antítese do eu e do objeto que a
psicose apresenta), como algo que nos impulsiona a trabalhar para dar conta do que
concerne ao tratamento da psicose, e de como é possível operar a partir do laço que os
m sujeitos paranóicos estabelecem.
m
O destinatário na psicose: um exame da carta aberta51 de Daniel
Paul Schreber

Depois de termos apresentado algumas elaborações de Freud em torno do caso de


D. P. Schreber, nos ocuparemos da carta aberta, endereçada ao Dr. Flechsig, com o intuito
de discutirmos a transferência e sua relação com o parceiro do delírio.
A carta possui claramente um destinatário (Dr. Flechsig), um pedido e um remetente
(D. P. Schreber), quem assina a carta (colocando, embaixo de seu nome, seu cargo na Corte
de Apelação). Sublinhamos seu primeiro pedido:

“... que o submeta a um exame benévolo”52.

Esta frase ganha maior sentido ao ser relacionada com a possibilidade de que as
citações de Flechsig pudessem ferir sua suscetibilidade. Mesmo sob este risco, Schreber
não cede, e continua privilegiando seu trabalho e sua correlativa compreensão. Não se trata
de algo de ordem pessoal, nos diz Schreber, e sim de um lugar, que o nome de Flechsig
ocupa na sua produção delirante, e que visa promover o conhecimento da verdade dentro do
campo religioso. As palavras de Schreber são bastante eloqüentes, ao indicar que o nome
Flechsig está na origem das circunstâncias às quais se refere. O “exame benévolo”,
*
*

50 FREUD, S. Conferência XXVII "A transferência”, in: Ob. Completas, Iniago Ed. RJ. 1969 Vol XVI p. 520.
* 51 SCHREBER, D. P. "Memórias de um doente dos ner\>os'\ RJ. Ed. Paz e Terra, 1995.
52 SCHREBER, D. P. ob. c/7, p. 25.
*
49

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evidentemente, não está dirigido ao Flechsig, fixado no lugar de perseguidor e “assassino
m de almas”, e sim ao Flechsig - destinatário, efeito de um desdobramento de sua figura.
ü As “almas provadas” exercem uma influência nociva sobre sua pessoa, e são as
m vozes que acusam Flechsig de ser o autor dos danos que lhe foram causados. Essa posição
m de Flechsig, enquanto perseguidor, entra em contradição com as caraterísticas positivas que
m Schreber atribui ao seu médico. Apresenta-se para Schreber, segundo ele nos comunica,
um enigma que exige uma resolução. O conflito se estabelece entre as excelentes
m caraterísticas do médico, e a função que ocupa em sua articulação delirante. A tentativa de
solução do enigma é exprimida no seguinte parágrafo:
■»
“...a princípio, quero crer, apenas com finalidade terapêutica, que o senhor
manteve com meus nervos, mesmo à distância53, uma relação hipnótica,
sugestiva ou como quiser denominá-la. Através dessa relação o senhor, por
interesse científico, pode ter prosseguido durante um tempo a relação comigo até
que a coisa se lhe tomou, por assim dizer, estranha, o que lhe teria dado a
oportunidade de romper a relação.”54
R# Schreber nos comunica que os danos causados pelo médico na própria relação estão
ligados ao desvio das finalidades terapêuticas para o interesse científico. A finalidade
terapêutica é prejudicada pela entrada em cena da pesquisa, do homem de ciências,
colocando Schreber no lugar de “objeto de investigação e de estudo”.
0* O lugar de objeto de estudo é justamente oposto à direção que o processo da análise
deve tomar, que é de promover a produção de um sujeito. Podemos acrescentar que a
função do delírio é justamente a de produzir uma separação entre o sujeito e seu objeto,
através da articulação de um texto que gera novas significações. Mesmo assim, esta pode
* vir a fracassar, pelo fato de que o delírio comporta um paradoxo, mantendo, como vimos
«* anteriormente, a posição narcisista do sujeito. Por tal razão, um texto delirante sem o
p» acolhimento do destinatário, corre o risco de transformar-se em puras letras sem sentido.
Na medida em que o delírio é ouvido, acolhido, abre-se a possibilidade de ser
apoiado na sua tentativa de cura, que, através de um significação congelada, inventa uma
* certeza, que suporta as articulações entre as representações. Pensamos que a única maneira
*

53 O itálico consta no texto de Schreber.


* 54 SCHREBER, D. P. ob. cit. p. 26.
*
50

a
m
v
Ü
pela qual o delírio pode levar a cabo sua função de cura, depende de que sua significação
a» funcione como uma verdadeira proporção matemática, de forma tal que sustente a
i» articulação das representações. Essa significação delirante promove uma certa barreira para
m a posição narcisista, delimitando um lugar para o parceiro, e, no caso de Schreber, surge a
m dimensão do destinatário, ao qual se dirige um pedido. Retomaremos este ponto, que
consideramos de capital importância em nosso trabalho de investigação, levando em conta
o manejo do tempo e do espaço na construção do delírio.
m A leitura da carta de Schreber nos indica que ele precisa de uma resposta por parte
de Flechsig. Assim, fica na espera desta palavra, para aliviar o laço que o liga ao médico e

para abrir outro canal. Schreber, em sua carta, comunica uma construção que explica o ato
(assassinato de alma) de Flechsig, como um processo acontecido sem que ele (Flechsig)
tivesse consciência, tratando-se de algo sobrenatural. Uma parte dos nervos de Flechsig
saiu do seu corpo e, subindo ao céu, transformou-se em “alma provada”. A alma separada
de Flechsig teve impulsos de auto-afirmação e sede de poder, razão pela qual prejudicou
Schreber, mantendo uma influência sobre sua pessoa.
Fica evidente que o enigma se resolve separando o mal do bem; Flechsig preserva,
por um lado, sua honorabilidade, e a “alma provada” é a responsável pelo mal. Mesmo
assim, essa operação da separação, efeito de um desdobramento, não ocorre sem um resto
fixo, que insiste. Schreber recrimina Flechsig, afirmando que...

“... não pode resistir à tentação de usar ao mesmo tempo como objeto de
experimentos científicos... »55
* De fato, Schreber continua insistindo na tentação do médico, que, evidentemente, é
situada como a causa que coloca em risco o trabalho do delírio. A solução do enigma

* aponta para um lugar diferente para Flechsig, necessário, a nosso ver, para sua própria
estabilidade. Esta estabilidade depende de uma resposta, a qual sabemos que, neste caso,
não houve.
* Tomamos a idéia de Schreber como uma indicação para pensarmos sobre o lugar do
analista na transferência, especialmente neste caso em que se apresenta como negativa. A
*
manobra do analista deve se opor a qualquer assimilação do sujeito e objeto - maldita e
A
A 55 SCHREBER, D. P. ob. cit. p. 26.

* 51

a
a
*
*

mortífera coincidência, que faz com que se apague qualquer diferença entre ambos. Toda
esta operação deve estar orientada pela construção delirante, cuja tarefa primordial é o
retomo da libido aos objetos.
Examinemos o seguinte parágrafo:

“...Até se poderia levantar a seguinte questão: se talvez todo falatório de alguém


que cometeu um assassinato de alma não possa ser remetido ao fato de que às
almas (raios) parece totalmente inadmissível que o sistema nervoso de uma
pessoa possa ser influenciado pelo de outra, a ponto de aprisionar sua força de
vontade, como ocorre na hipnose; e, para caraterizar de maneira mais forte essa
inadmissibilidade, as almas, seguindo sua própria tendência a se expressar por
hipérbole e, na falta de outra expressão disponível, se utilizaram da expressão
corrente “assassinato de alma”.56

Trata-se de algo inadmissível e, portanto, rejeitado, o que acarreta uma certa


impossibilidade (na falta de outra expressão disponível) na linguagem, razão que leva à
utilização da hipérbole: figura que exagera a verdade das coisas.
Próximos do final da carta, encontramos que o pedido inicial de Schreber
m transforma-se numa imploração. O que ele implora, e, por quê?
Schreber quer saber, em primeiro lugar, se houve uma relação hipnótica durante sua
internação, ou seja, se existiu uma influência sobre seu sistema nervoso.
Em segundo lugar, se Flechsig testemunhou uma comunicação de vozes de origem
m sobrenatural.
Em terceiro e último lugar, Schreber pergunta se Flechsig teve visões ou impressões
parecidas com as que ele relata em suas “Memórias”.
O apelo se dirige ao interesse científico de Flechsig, e a seu compromisso com a
verdade.
A imploração de Schreber nos ensina sobre a importância da resposta do
K*
destinatário para o sucesso do delírio, no desempenho da função que lhe corresponde.
Lembremos que, ao mesmo tempo, lhe compete devolver a libido aos objetos, produzindo
um descolamento entre o eu e o objeto. O destinatário tem por função firmar essa
*
* 56 SCHREBER, D. P. ob. cit. p. 26.

52

:
©
*
*

separação, oferecendo uma acolhida que não feche a abertura a novas significações e
permita uma retomada das vacilações e oscilações, que atravessam o terreno do sentido.
Cabe assinalar que, no texto da carta, a transferência negativa de Schreber em
relação a seu médico Flechsig, ao qual outorga o lugar de “assassino de almas”, não
comparece de uma maneira definitiva e absoluta, e apresenta a possibilidade de movimento,
ou seja, de outro lugar para o médico.
Entretanto, Flechsig era um médico e não um psicanalista, o que o impossibilitou de
dar continuidade ao acompanhamento da construção iniciada por Schreber, e materializada
nas suas “Memórias”. Pensamos que este foi um dos elementos que colaboraram para seu
fim trágico. Estamos nos referindo a seu último surto e sua internação, ocorridos após a
doença de sua esposa. Consideramos que, além do nome Flechsig, a esposa de Schreber
desempenhou um lugar fundamental no acolhimento e acompanhamento do seu delírio.
O lugar do hipnotizador, do sugestionador e do homem de ciência não convém ao
discurso delirante, nos diz Schreber, na medida em que os mesmos vão na direção de
afirmar a posição de objeto, da qual o sujeito psicótico, na sua produção, tenta se separar.
Para esclarecermos este tema, nos parece importante lembrar que, na hipnose, o
hipnotizador ocupa o lugar do ideal do eu, tomando o eu do hipnotizado como seu objeto de
manipulação.
A leitura da carta de Schreber nos permite extrair os seguintes elementos:
1. A importância da resposta ou acolhimento da construção delirante, para o sujeito
psicótico, no sentido de assegurar a função que compete ao delírio.
2. Não se trata de qualquer recepção que assegure o sucesso do delírio. O homem de
ciências ou o hipnotizador não são boas direções.
3. O delírio evidencia quais são os caminhos possíveis para a intervenção do analista.
4. O delírio é o campo fértil para a constituição da transferência delirante.
Chegando neste ponto de nossa elaboração, acreditamos que podemos afirmar que o
* delírio enquanto uma nova realidade, apoiada numa significação, oferece à transferência
um campo fértil, onde esta pode surgir. O analista tem que realizar toda a manobra da
transferência apontando para a separação entre o eu e o objeto, se opondo a qualquer
* tentativa ou convite de ocupar um lugar de saber, cujo representante, na carta de Schreber,
* é o homem de ciências.
*
*
* 53

*
*>
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m
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O delírio e a transferência
m
Se o delírio é uma via para a transferência na paranóia, precisamos entender
m
claramente em que consiste sua lógica, e com que elementos é construído. Temos
apresentado, ao longo de nosso trabalho, vários destes aspectos, mas pretendemos fazer
neste ponto uma breve síntese que nos oriente no próximo capítulo, quando retomaremos
este tema, a partir das elaborações propostas por J. Lacan.
Em várias oportunidades, nos detivemos comentando a importância que tem o
delírio na obra de Freud, como um fenômeno de restituição, que inventa uma nova trilha e
cria uma realidade modificada. Este canal é uma “solução de continuidade”, uma maneira
de encobrir o “buraco” deixado entre o eu e o mundo externo. Tanto a neurose quanto a
psicose têm uma etiologia em comum, isto é, uma “privação” em relação aos desejos
infantis. A diferença radica na posição do sujeito para enfrentar essa privação, e esta
diferença se origina numa diversidade tópica no desenlace do conflito.
No caso da psicose, gera-se o delírio, que substitui a realidade anterior. Na neurose
e na psicose há, por um lado, perda de realidade, e por outro a substituição da mesma. A
existência da fantasia na neurose é um recurso que viabiliza a conexão entre as
representações, e que se encontra subordinado à articulação do complexo de Édipo ao
complexo de castração, inventando uma significação em torno do falo.
Frente à carência da fantasia, o delírio se incumbe de construir uma outra
significação (isto quer dizer que não se desprende do complexo de Édipo), que serve de
orientação para o sujeito em sua existência. A partir desta significação, o sujeito encontra

,*
um lugar no mundo.
Examinemos com atenção o desenvolvimento que Freud realiza no texto “A perda
*» da realidade na neurose e na psicose”(1924). Há dois tempos no trabalho da psicose. O
primeiro consiste no desligamento da libido dos objetos, e o depósito da libido no eu. O
*
segundo tem o caráter de reparação, compensando a perda da realidade, mas não limitando
*
simplesmente o eu, como opera na neurose, e sim utilizando um meio diferente. Esse meio

* escolhido na psicose é muito mais radical e isto se evidencia na inauguração de uma


significação sem precedentes.

54

i a
a
%

“...outro caminho muito mais independiente, isto é por meio da criação de uma
nova realidade exenta dos motivos de disgosto que a anterior oferecia.”57

O segundo tempo se coloca a serviço do Id, que não se deixa dominar pela
realidade. Enquanto, na neurose, se evita o fragmento de realidade que incomoda, na
psicose este fragmento é elaborado e transformado.
Perguntamo-nos com que elementos se realiza essa elaboração, ou, de que o sujeito
se serve para realizá-la. A matéria prima da construção delirante se constituí a partir das
cristalizações das marcas mnêmicas. Essas marcas (representações) se conectam através
dos mecanismos propostos por Freud, (negação - projeção), formando juízos ou
pressupostos. Para a manutenção desses postulados é necessário o fechamento de novas
percepções, que possam questionar sua verdade. Assim, a fixidez do juízo é sustentada
pela barreira levantada contra a entrada de elementos novos, que possam alterar esse
estado. As únicas percepções admitidas são aquelas que não contrariam a realidade
delirante, e estas não são outras senão alucinações.
A nova realidade traz de volta à cena o objeto, mas de forma singular. Esse
objeto, na maioria dos casos, funciona como um duplo do eu, produzido pela
decomposição, mecanismo predominante na construção do delírio.
Sandor Ferenczi, também discípulo de Freud e pioneiro da psicanálise, nos diz, no
seu texto “Transferência e Introjeção”58, que o paranóico se entrega a uma busca ou procura
de objetos parecida com a do neurótico, mas sua finalidade é “colar” nestes objetos a libido
que lhe incomoda. O neurótico distribui seu amor e seu ódio no mundo, enquanto que, para
o paranóico, o mundo gira em tomo dele, fazendo-o sentir-se espiado, amado, ou traído.
Se produz uma “contração do ego”, onde o eu vira objeto do outro, operação que
reproduz a posição narcisista do sujeito. O resultado do trabalho delirante apresenta um
objeto bastante distinto daquele que surge na neurose, pelas seguintes razões:
1. O outro (parceiro) que surge no delírio é uma prolongação do eu.
2. A significação delirante é fixa e aparece descoberta, sem véu.
3. O outro do delírio (perseguidor, traidor, amante) submete o eu como um objeto de
manipulação, ou seja, o objeto aparece do lado do eu do sujeito.

57 FREUD, S. (1925) “A perda da realidade na neurose e na psicose ”in: Ob. Completas, Imago Ed., RJ 1969.

55
%
*
*

*» 4. Há um fechamento à entrada de percepções novas, que possam ocasionar um perigo para


a preservação da significação delirante.
Interessa-nos destacar o termo utilizado por Ferenczi, para falar da relação com os
objetos: verbo “colar”, que designa o ponto onde o eu do sujeito se transforma em objeto,
apagando suas diferenças. Este se manifesta nos pontos de certeza do delírio; onde a
significação não remete a outra, a não ser a ela própria.
Através do mecanismo de negação apresentado por Freud no Caso Schreber59, no
capítulo 2, surge o outro (duplo do eu) fora, enquanto perseguidor, amante ou traidor, que
constrange o eu do sujeito, transformado-o numa vítima. Segundo Freud, o mecanismo de
negar pode operar sobre o sujeito da frase, sobre o verbo ou sobre o complemento. Cada
caso tem por resultado diferentes delírios. Mas, em toda construção delirante se manifesta a
posição narcisista do sujeito, isto é, o outro (parceiro do delírio) toma o eu como objeto,
fazendo-o causa dos maiores abusos, seja pela via do amor ou do ódio.
De saída, o delírio tem por função se opor a qualquer assimilação do sujeito ao
objeto, mas, na chegada, se constata uma certa impossibilidade, intrínseca à posição
narcisista do sujeito que apresenta a estrutura da paranóia.
Será possível esperar que, ao longo do tratamento, o sujeito paranóico invente ou
re-invente o delírio, de forma tal que estabilize sua relação com o mundo, de uma maneira
duradoura?

O Analista e seu lugar no tratamento da psicose

Constatada a inversão da posição do sujeito psicótico, nos perguntamos: qual é o lugar


possível para o analista? Fica evidente que somente podemos pensár na transferência do
sujeito psicótico através da única via que encontramos, na psicose, para construir uma
realidade: o delírio. Este trabalho é espontâneo em muitos casos de psicose, quer dizer, o
sujeito não precisa de nosso auxílio para construí-lo. Mas existem outros casos, que nos
procuram, nos quais se faz necessária a intervenção no tratamento para conseguir tal fim.

58 FERENCZI, S. “Transferência e Introjcção”, in: Obras Completas, Livraria Martins Fontes Ed., São Paulo,
Ira Edição, 1991.
59 FREUD, S. (1911) “Notas psicanalíticas sobre uin relato autobiográfico de uin caso de paranóia” in: Ob.
Completas, Ed. Imago, RJ 1969 Vol XII.

56
%

O delírio repete a posição narcisista do sujeito, com o agravante de que, na maioria


dos casos, a significação construída não encontra interlocutores interessados em manter um
diálogo a esse respeito. A inversão do lugar do objeto, a fixidez da significação e a
impossibilidade de estabelecer uma relação com seus outros próximos, a partir da
constelação delirante, podem acarretar o fracasso da tentativa do delírio. É neste ponto que
o analista pode se inserir para conduzir o tratamento, enquanto fiador da continuidade e da
vigência da construção delirante. Na medida em que a função do analista comporta um
vazio de ideais e de identificações, consideramos que ela oferece condições especiais para
a construção do delírio e sua comunicação, sem este ficar submetido a críticas ou
prescrições.
O analista, com sua presença, pode vir a se transformar num endereço bastante
conveniente para as elaborações delirantes do analisante, outorgando-lhes um valor de
verdade e, ao mesmo tempo, testemunhando sua existência, e sua importância na vida do
sujeito. Em outras palavras, pensamos que a função do analista, ao introduzir um vazio na
significação e acolher o delírio como uma formação que detém a verdade do sujeito, é
conveniente ao sucesso do próprio delírio. Assim, o lugar do analista pode servir para que a
construção delirante chegue a um bom porto, na sua tentativa de reatar os laços com a
realidade, restabelecendo uma particular oscilação entre o sujeito e seu objeto.
Para finalizar nosso percurso de leitura na obra de Freud, pelo menos
temporariamente, nos referiremos a alguns comentários encontrados na sua
“Autobiografia”, que transcrevemos a seguir:

“Os pacientes mentais, em geral, não têm a capacidade de formar uma


transferência positiva, de modo que o principal instrumento da técnica analítica é
inaplicável aos mesmos. A transferência amiúde não se acha tão inteiramente
ausente, mas pode ser utilizada até certo ponto, havendo a análise alcançado
innegáveis êxitos com depressões cíclicas, ligeiras modificações paranóicas e
esquizofrenias parciais. Pelo menos tem constituído beneficio para a ciência o
fato de que, em muitos casos, o diagnóstico possa oscilar por tempo bastante
longo entre o assumir a prescrição de uma psiconeurose ou de uma demência
precoce, pois as tentativas terapêuticas iniciadas em tais casos resultaram em
valiosas descobertas antes que tivessem que ser interrompidas. Mas a principal
consideração nesse sentido é que muitas coisas que nas neuroses tiveram de ser

57
%

«t
«I
buscadas nas profundidades são encontradas nas psicoses na superfície, visíveis
a todos. »60

Em todas estas citações, podemos verificar que Freud não exclui radicalmente a
transferência em todos os casos de psicose. Estas nos indicam que, quando o diagnóstico
fenomenológico não funcionou como um preconceito para impedir o trabalho, houve
importantes descobertas relativas ao funcionamento, e alguns resultados terapêuticos. É
evidente que a singularidade da transferência e o particular funcionamento do inconsciente
na psicose, obriga tanto o analista a realizar modificações na manobra, como também
coloca em xeque a interpretação. Desta forma, o dispositivo associação livre - interpretação
é claramente questionado pela psicose. Freud, com sua genialidade, produziu um alicerce
teórico fundamental para a abordagem da psicose, e deixou em aberto para o futuro sua
articulação com o tratamento.
Encontramos entre os trabalhos de seus discípulos, vários desenvolvimentos a este
respeito, e nos deteremos num artigo de S. Ferenczi, sobre o tratamento da paranóia, para
comentar algumas de suas afirmações. Para atingir este propósito nos basearemos no texto
intitulado “Paranóia”, no qual menciona algumas diretrizes sobre a técnica da análise de
paranóicos.

1. Não se deve discutir com o paranóico.

2. Deve-se, sem dúvida, com certas precauções, aceitar mesmo suas idéias
delirantes, ou seja, tratá-las como possibilidades.

3. Pode-se obter uns laivos de transferência por alguma lisonja (em particular,
comentários elogiosos sobre a inteligência). Todo paranóico é megalômano.

4. A melhor interpretação de seus sonhos é o próprio paranóico quem faz. Ele é,


em geral, um bom intérprete dos sonhos (falta de censura).

60 FREUD, S. (1925) “Estudo Autobiográfico” in: Ob. Completas, Imago Ed. RJ 1969. Vol XX p.76.

58
%
*
*


* 5. É difícil levá-lo a dar mais, pela discussão, do que aquilo que ele mesmo se propõe
a dar. Mas condescendente (quando está de bom humor) no jogo futil com as idéias
que lhe acodem (é assim que ele concebe a análise). Aliás, é no decorrer dessas
tentativas que se fica sabendo o mais importante; mas não é fácil conseguir que se
atenha a isso. Se observa-se que ele está ficando excessivamente inquieto, é preferível
deixar então que volte a associar segundo o seu método.

6. O paranóico mostra-se acabrunhado se tem a audácia de lhe mostrar seu


“inconsciente”; não havería nada que lhe fosse "inconsciente”, ele se conhece
perfeitamente bem. De fato, ele se conhece muito melhor do que os não-
paranóicos; o que não proteja; é - lhe totalmente acessível.”61

A indicação de “não discutir com o paranóico” alerta ao analista para que evite
situar-se numa posição de questionar ou de tentar sugestionar o paciente, muito pelo
contrário, ele deve levar as idéias delirantes a sério como uma possibilidade de
recuperação do enlace com a realidade.
A interpretação delirante tende a obturar qualquer equívoco e impedir o
surgimento de dúvidas, ou seja, ela se apresenta como uma cristalização de uma
significação, que oferece uma orientação para o sujeito na sua realidade. Deixá-lo
associar segundo seu método, não é outra coisa -segundo nossa interpretação- senão a
aceitação do funcionamento imposto pelo delírio. S. Ferenczi nos indica claramente
como as idéias delirantes não são formações do inconsciente, e que, portanto, não
devem ser interpretadas. Sua orientação é precisa: deixar-se guiar pelo lugar que
ocupamos na transferência, aceitando a estrutura na qual o analisante está inserido,
respeitando as limitações que esta impõe. Assim podemos inferir que o analista deve se
oferecer como um instrumento que permita a produção de um sentido, de uma
interpretação que viabilize uma diferença entre o sujeito e o objeto, sempre avisado do
paradoxo que o delírio apresenta :
1. promover o retomo da libido aos objetos.
2. reprodução da posição narcisista do sujeito.

61 FERENCZI, S. (1922) “ Paranóia” in: Obras Completas, Livraria Martins Fontes Editora Ltda., São Paulo,
Ira Edição, 1991.

59
%
*
%

* A posição Freudiana: seus limites e seus alcances em relação à


transferência na psicose

As conclusões que se seguem servirão para darmos prosseguimento ao nosso


trabalho. Consideramos que estas são provisórias, mas necessárias para continuarmos.

1. Freud nega a existência da transferência neurótica nas psicoses.


2. Na nossa leitura da obra freudiana, inferimos que a transferência na psicose segue o
caminho imposto pela construção delirante, respeitando as mesmas leis.
3. Na medida em que a posição narcisista do delirante é mantida, se produz
na transferência uma inversão na relação sujeito/objeto. O eu se transforma em
objeto do outro. Isto se apresenta na conformação do delírio.
4. O delírio apresenta um paradoxo: retorno da libido aos objetos, mantendo o eu como
objeto (posição narcisista).
5. A inversão (o eu tomado como objeto) obriga o analista a modificar a manobra de
transferência, tendo sempre em vista promover a maior distância possível entre o
sujeito e o objeto.
6. A lógica na qual o delírio se apóia é a lógica dos opostos, onde há uma escolha entre
um ou o outro, havendo uma tendência a se fixar numa posição, que não é
alterável. Isto se traduz por uma ausência de dialética, ponto que retomaremos na
parte III da tese.
7. A psicose obriga a produzir uma modificação no dispositivo “associação livre —
interpretação”.

Entre as principais causas que levaram a decidir pela inexistência de transferência na


demência precoce, situamos a tese de Karl Abraham, que decretou que a relação dos
pacientes psicóticos (dementes precoces) se funda numa antítese radical entre o eu e o
objeto. Por outro lado, a destruição das cargas de objeto impediam de pensar qual é o
estatuto do objeto em jogo na psicose.

60
*
%
m
Mas, como já observamos em relação à paranóia, mantêm-se cargas de objeto
parciais, segundo a afirmação do mesmo autor, abrindo uma possibilidade para pensar o
lugar do analista. Em relação a isto, consideramos que S. Ferenczi aposta num trabalho de
análise, para o paranóico.
Hoje, passado muito tempo destas elaborações, é impossível continuar a negar a
existência de um laço dos pacientes psicóticos, tanto para com seus médicos, como para
com seus analistas, mas, por outro lado, denominá-lo transferência é uma decisão de
ordem conceituai. Encontramos, ao longo da história da psicanálise, autores que utilizaram
diferentes expressões para marcar a singularidade da transferência na psicose. Retomamos
a expressão “transferência delirante”62, que nos parece interessante, para nomear a
transferência que surge delimitada por uma estrutura de delírio.

62 Expressão introduzida pela psicanalista LITTLE, M. in:“Sobre la transferencia delirante”(1958)


International Journal of Psychoanalisis.

61

v
%
%
*

TERCEIRA PARTE

JACQUES LACAN E SUAS ELABORAÇÕES SOBRE A


PSICOSE
III. 1. a ESTRUTURA DA PSICOSE: SUA CAUSA E SEUS EFEITOS

Abordaremos, a seguir, as principais elaborações de J. Lacan em tomo da psicose,


sua estrutura, sua causa e seus efeitos, com o objetivo de apresentar a leitura que nos
orienta na clínica. Consideramos que a teoria, através de seus conceitos, incide diretamente
na clínica, e esta nos coloca à prova, apresentando-se numa relação que podemos
denominar circular: da clínica à teoria, da teoria à clínica. As articulações que constam
neste capítulo são fundamentais na delimitação de um campo de indagação sobre lugar do
analista no laço que os sujeitos psicóticos constituem; incluindo as possibilidades e as

E* dificuldades que se apresentam para pensarmos no tratamento. Em outras palavras, o que


nos guia neste trabalho se exprime numa primeira pergunta, que se desdobra numa segunda:


rí 1. Qual é o lugar que a estrutura da psicose destina para o analista?
2. O que é possível esperar em termos de tratamento, a partir desse lugar?

Da significação ao signijicante

ft A teoria sobre a psicose corresponde aos anos 50, quando Jacques Lacan inaugura

Tt uma nova abordagem, cuja orientação se desloca da significação ao significante , título

« K escolhido para este tópico, a partir do qual demarcaremos sua estrutura. O passo de J.
Lacan, que denominamos “da significação ao significante”, consiste na retirada das
psicoses do registro da compreensão, no qual a ênfase está dada no estatuto do significante,
¥L a partir do qual constrói uma articulação para a causa da psicose e seu mecanismo psíquico.
J. Lacan utiliza como suporte fundamental as ferramentas da Linguística Moderna
de Ferdinand de Saussure e R. Jakobson. Munido desses instrumentos, retoma os textos
freudianos e as “Memórias de Daniel Paul Schreber”.

63 O termo significante é extraído da linguística de F. De Saussure. Resulta da operação que J. Lacan realiza
sobre o signo lingüístico definido pela relação biunívoca entre significado e significante. O esquema proposto
por F. Saussure coloca o significado acima de uma barra e embaixo o significante, ambos envolvidos por um
elipse. J. Lacan declara a primazia do significante, colocando-o acima da barra, e escrevendo-o com S
maiusculo. O significado fica embaixo da barra, escrito com s minúsculo. A manutenção da barra exprime a
manutenção de duas ordens. A partir dessa modificação, o significante passa a nada significar, e se transforma
em condição da significação. Sua função é representar o sujeito para outro significante.

63

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%

*e
«i Encontramos, na letra de J. Lacan, um psicanalista preocupado em clarear e retirar
os preconceitos que tinham se infiltrado no campo da psicanálise, e que privilegiavam o
narcisismo e o ego em detrimento do inconsciente. Sua contribuição e legado nos
permitem, no dias de hoje, circunscrever de maneira mais precisa a invenção da psicanálise.
A causa da psicose é situada claramente no registro da linguagem, abrindo uma via
possível para seu tratamento no mesmo terreno. Toda esta concepção é apresentada no
Seminário livro 3, “As psicoses ”(1955-56)04 e no escrito posterior, (1958) “De una
cuestión preliminar a todo tratamiento posible de la psicosis”65, e se circunscreve
fundamentalmente em torno da paranóia.
São diferenciadas três dimensões, a partir das quais se ordena a estrutura da
psicose, sua causa, seu mecanismo e seus efeitos (cujos nomes são simbólico, imaginário e
real). Estas são consideradas categorias, na medida em que encontram o fundamento ná
estrutura do aparelho psíquico proposto por S. Freud.
O imaginário surge pela primeira vez no texto “O estádio do espelho” de 1936, não
publicado. Suas caraterísticas são a continuidade e a consistência, isto é, aquilo que une e
que coincide com o registro do eu (constituído à imagem e semelhança do outro),
articulando-se no eixo da significação. O registro imaginário surge sustentado pelo
simbólico, do que podemos depreender que é impossível uma imagem se conectar com
outra imagem sem estar ancorada pelo significante.
O simbólico emerge como “matriz simbólica” e “redução simbólica”, na nova
versão do “Estádio do espelho como formador da função do eu” (1949). Inicialmente a
noção de simbólico foi tomada de um texto de Claude Levi-Strauss dedicado a Ferdinand
de Saussure, “A eficácia Simbólica”. Nas primeiras elaborações lacanianas, inspiradas em
Hegel, o símbolo era definido como a “morte da coisa”. A partir do escrito “A carta
roubada“, o simbólico ganha outro estatuto, e se constitui como cadeia significante66. Desta
forma, a dimensão simbólica se situa além de toda e qualquer compreensão.
O real, nos anos 50, surge como aquilo que excede aos outros registros, está situado
justamente no limite da experiência da análise. Posteriormente, o real sofrerá várias

64 LACAN, J. (1955-56) Seminário livro 3 "As psicoses ”, Jorge Zaliar Ed. RJ 1988.
65 LACAN, J. (1958) “De una cuestión preliminar a todo tratamiento posible de la psicosis”, in: Escritos 2.
Siglo XXI Ed., Méjico, 1993.

64
■N
Nl
NI
modificações até chegar a sua última definição, isto é, o impossível (em termos lógicos) da
relação sexual. O real é considerado por J. Lacan, desde o início, como fundamental para
se entender o fenômeno psicótico e sua evolução.
No Seminário Livro 3 “As psicoses”61, são apresentados os três registros de forma
articulada, ao longo do qual se afirma que tudo gira e depende do que ocorre no simbólico.
Observamos que, nestas elaborações, o simbólico ganha uma primazia em relação aos
outros registros.
Nesta época, J. Lacan escreve com todas as letras que a loucura é vivida no registro
da linguagem, e, portanto, é nesse registro que devem ser abordados os fenômenos da
psicose: alucinação e delírio. Todo seu esforço visa a construção de uma estrutura para a
psicose, que dê conta de suas particularidades. Estas articulações produziram conseqüências
importantes, dentre as quais destacamos a retirada da psicose de uma abordagem
continuista da neurose, e a identificação de um determinado funcionamento do significante
na estrutura, elucidando, assim, a problemática específica da psicose.
A noção de estrutura utilizada por J. Lacan no Seminário livro 3, “Aspsicoses”, se
define por um certo número de coordenadas e se constitui como um grupo de elementos
que formam um conjunto co-variante. Esta definição se ancora na estrutura do significante.
O termo “conjunto” exclui a possibilidade de totalidade e dá início a uma dimensão que se
desenvolverá no seus maternas e construções topológicas. O “co-variante” introduz a
conjectura que se relaciona a um certo cálculo de probabilidades, a partir do qual se pode
pensar a cadeia significante e sua insistência. O conjunto co-variante pode ser considerado
como um sistema correlativo de elementos significantes, onde cada um toma seu lugar
sincrônica e diacronicamente em relação aos outros; concepção que indica que o
significante nada significa.
Assim, J. Lacan estabelece a diferença entre as estruturas neurótica e psicótica a
partir da presença ou ausência de uma determinada ordenação, ou lei significante. Seguindo
esta orientação, a estrutura da psicose é concebida a partir do que se revela no próprio
discurso do delirante, no qual se apreende uma articulação particular entre os registros
real, simbólico e imaginário. Em outras palavras, esta teoria situa a psicose como uma

66 Trata-se da estrutura sincrônica do material da linguagem, onde cada elemento adquire seu exato emprego
por ser diferente dos outros; princípio de distribuição e de regulação dos elementos da língua.
67 LACAN, J. Seminário Livro 3, “Aspsicoses”, Jorge Zaliar Ed. RJ. 1988.

65

i
Ni

estrutura que se carateriza por uma relação específica do sujeito com a linguagem -mais
precisamente com o significante.
J. Lacan escolhe o mecanismo denominado Verwerfung (rejeição) no texto freudiano
sobre “A negativa”, e o utiliza para delimitar um campo distinto daquele determinado pela
r® Bejahung (afirmação). Desta forma a Verwerfung é situada na base da paranóia:
p*
**
“...Na relação do sujeito com o símbolo, há a possibilidade de uma Verwerfung
primitiva, ou seja, que alguma coisa não seja simbolizada vai se manifestar no
p? real” “... - o que teria sido submetido à Bejahung, à simbolização primitiva, terá
p? diversos destinos, o qual cai sob a Verwerfung primitiva terá outro.”68
F?
F? São duas operações, dois destinos, Bejahung (afirmação) ou Verwerfung (rejeição),
que permitem distinguir e ordenar as duas estruturas: neurose e psicose. Observamos, nas
r? palavras de J. Lacan, que o determinante de sua elaboração em relação à estrutura é o que
f* acontece no registro simbólico.
J. Lacan retoma a Verwerfung freudiana para construir uma articulação em relação
ao problema da causa na psicose, que denomina como Foraclusão do Nome-do-Pai. Para
?í entendermos a causa da psicose, realizaremos duas tarefas prévias: na primeira,
K introduziremos o esquema L, contemporâneo do Seminário livro 3, no sentido de apreender

rt a relação entre os registros simbólico e imaginário, e na segunda nos ocuparemos do

r* Nome-do -Pai, onde examinaremos sua função.

O esquema L
Esse esquema surge no Seminário livro 2, capítulo XIX69, retomado posteriormente
no Seminário livro 3 e no escrito “De una cuestión preliminar...”, de forma simplificada.
É um esquema que indica um momento importante na obra, cuja espacialidade deve
ser tomada no sentido topológico, onde se introduzem relações de lugar, de interposição, de
sucessão e de seqüência70. O esquema permite distinguir claramente o registro do Sujeito e
o registro do eu. Compõe-se de quatro elementos, isto é: Sujeito, a’ (outro), a (eu), e A
(Outro). O eixo simbólico está dado pela relação entre o Sujeito e o Outro. Esse Outro,

68LACAN, J.(1955-56) Seminário livro 3 “Aspsicoses”, Jorge Zahar Ed. R.J. 1988.
69LACAN, J.( 1954-54) Seminário livro 2 “O eu na teoria de Freudena técnica da psicanálise”, Jorge Zahar
Ed. RJ 1987.

66


lugar da linguagem, é absoluto, na medida em que é capaz de fundar a existência do
Sujeito. O Outro é o antecedente lógico do Sujeito.
Relembramos que, nessa concepção, o sujeito faz sua entrada pelo caminho da
palavra, percorrendo o mesmo circuito a cada vez que fala, dirigindo-se ao Outro
P* enquanto absoluto. A relação entre o Sujeito e o Outro é regida pela dialética denominada
por J. Lacan de inter-subjetividade, termo mantido até o ano de 1960-61, no qual ministrou
o Seminário sobre “A transferência”71. O esquema L tem como função dar suporte à
formalização da dialética inter-subjetiva. Mais adiante, veremos como a transferência se
opõe à noção de intersubjetividade que implica a relação entre dois sujeitos.
O Esquema L:

(Es) S ------►-
v\

(Yo [moi]) a

A relação entre o Sujeito e o Outro se dá por um desvio pelos dois eus, ou seja, a’ e
a, e suas relações imaginárias, O Sujeito recebe do Outro sua mensagem de forma
invertida ( ver setas no esquema). O eixo imaginário está dado pela relação entre a’—a, e
se refere ao estádio do espelho. O eu se conforma a partir do outro imaginário, em outras
palavras, sua forma se realiza à imagem e semelhança do outro.

“...o eu é esse mestre que o sujeito encontra num outro, e que se instaura em sua
função de domínio no cerne de si mesmo... o outro está sempre prestes a retomar
seu lugar de domínio em relação a ele, que nele há um*eu que sempre é em parte
estranho a ele, senhor implantado nele acima do conjunto de suas tendências, de
seus comportamentos, de seus instintos, de suas pulsões...”72

70 LACAN, J. (1956-57) Seminário livro 4 UA relação de objeto ”, Jorge Zaliar Ed. RJ. 1994. -
71 LACAN, J. (1960-61) Seminário livro 8 “A transferência', Jorge Zaliar Ed. RJ 1992.
72 LACAN, J. (1955-56) Seminário livro 3 “As psicoses”, Jorge Zaliar Ed, RJ, 1988. pag. 111.

67
i

Essa relação comporta uma alienação mortífera, que se exprime da seguinte forma:
“Eu ou o outro”. Ou seja, implica numa relação de exclusão. Portanto, a relação imaginária
está regida por uma instabilidade fundamental. É preciso a intervenção de outra ordem, que
p* impede a colisão e o rompimento dessa tensão introduzida pela relação de exclusão. Essa
outra ordem se funda no Nome-do-Pai. Marcamos que, em relação à ordem simbólica, J.
Lacan diz que

r*

“...deve ser concebida como alguma coisa de superposto...”73

A idéia de superposição nos interessa, na medida em que indica um acréscimo,


produzido por um trabalho a posleriori. Encontramos aí um índice que abre para a
dimensão da suplência do Nome-do-Pai, o que J. Lacan desenvolverá anos mais tarde, a
partir de James Joyce. Isto permitirá que afastemo-nos de uma concepção da psicosé
apoiada numa carência, que apresenta sua estrutura em termos deficitários, tendo como
foco um ideal. Nos parece mais pertinente considerar a estrutura da psicose como uma
resposta, ou uma forma de se posicionar frente à falta no Outro.
A relação simbólica exerce a função de suportar a relação imaginária sob a forma
de mediação e de pacificação. Isto ocorre somente a partir da entrada da palavra na sua
função de pacto e reconhecimento.

n
r*
-!
Observando as setas, podemos identificar três tipos de relações:
1. O Sujeito se dirige ao outro (alter ego) e só recebe dele a imagem de si mesmo. (S—a’—a).
2. A seta que relaciona o Outro com o a (eu) indica que o Outro simbólico está além do
outro e que reconhece a imagem que é o eu.
3. A linha que parte do Outro para o Sujeito afirma a fundação do Sujeito pelo simbólico.
O funcionamento do esquema implica numa triplicidade, na qual o eu do sujeito fala
para um outro (do sujeito em terceira pessoa).

73 LACAN, J. Id. p. 114. (o sublinhado é de nossa autoria).

68
O Pai e a metáfora

Cabe lembrar que a noção de Pai surge desde os primeiros trabalhos de S. Freud,
sob diversas formas: o pai sedutor, o pai rival, o pai amado, o pai odiado, o pai da fantasia,

p* o pai da horda primitiva. Em todas as formulações, apreendemos a importância do pai na


construção da realidade.
J. Lacan retoma a pergunta freudiana “o que é um pai?”, e avança, identificando
i com mais clareza qual é sua função na estrutura. É a propósito de sua leitura do caso do
\
Presidente D. P. Schreber, que surge o Nome-do-Pai, no Seminário sobre “As psicoses
Sua elaboração aparece posteriormente, no escrito “De una cuestión preliminar a todo
tratamiento de la psicosis”74, contemporâneo ao ditado do Seminário 5, “As formações

I do inconsciente”15.
1 É importante lembrar que Freud apresenta o complexo paterno no centro de sua
análise do caso Schreber. Os primeiros trabalhos em torno deste problema foram
levantados por Niederland76, mas consideramos que a grande transformação foi produzida
1
por J. Lacan, na medida em que situou o pai como um significante.
O Nome-do-Pai é identificado com o Pai simbólico, e definido como um
significante não representado em nenhuma parte e, portanto, inacessível, o que introduz
«
uma necessidade lógica que resulta numa construção mítica.
O mito é apresentado por S. Freud no texto “Totem e Tabu”77, onde o Pai surge

45 como autor da Lei, a partir do assassinato do Pai da Horda primitiva, momento no qual o
sujeito se liga à Lei. A culpa pelo assassinato do Pai da Horda introduz a dimensão da Lei
e da Dívida, e, por conseqüência, o acesso às mulheres.

“...el padre Simbólico en cuanto que significa esa ley es por cierto el Padre muerto.”78

74 LACAN, J. “De una cuestión preliminar a todo tratamiento de la psicosis” in: Escritos 2, Siglo XXI Ed.
Méjico 1993.
75 LACAN, J. (1957-58) Seminário livro 5 “Asformações do inconsciente", Jorge Zahar Ed. J, 1999.
76 NIEDERLAND, W. G. “El Padre de Schreber” in “Los casos de Sigmund Freud ", Ed. Nueva Vision,
Bs. As. 1984.
77 FREUD, S. “Totem e Tabu” in: Ob. Completas, Iinago Ed. R.J. 1969.
78 LACAN, J. (1958) ”De una cuestión preliminar a todo tratamiento posible de la Psicosis”, in: Escritos 2,
Siglo XXI Ed. Méjico, 1993.

69
Partindo desta afirmação, especificamos que a lei que interessa à psicanálise não é
a lei jurídica e sim aquela que é introduzida pela ordem da linguagem, e que se articula na
fala do sujeito, da qual dependem e ganham letra e conteúdo todas as outras leis que os
homens inventam para viver na civilização. O Édipo apresentado por Freud explicita que
é a lei simbólica que viabiliza a identidade sexual, razão pela qual é elevado à condição
F* de necessário para o ser falante, mas, ao mesmo tempo, contingente, na medida em que
:
F* pode ou não ocorrer.
F? Freud descobre uma dissemetria dos sexos frente à castração, interpretada por J.
■i
Lacan como uma dissemetria signifícante, produto da falta de simbolização do sexo
feminino. Tudo gira em torno do falo: ser ou não ser, ter ou não ter, a partir do qual o
ü
sujeito se situa perante à diferença sexual.
i
J. Lacan explica a função do pai no complexo de Édipo através da construção dá
1
metáfora paterna, na qual o Nome-do-Pai, enquanto suporte da lei simbólica, ganha um
■1 lugar fundamental na articulação teórica, o que permite explicar o modo como o pai se
faz portador da lei. Nesta elaboração, o pai é um signifícante que surge no lugar do
Outro. Trata-se exatamente de um signifícante (NP) que substitui o signifícante materno
!
(DM) introduzido pela simbolização primordial. Esta metáfora se situa no inconsciente.
i
Desta forma, J. Lacan consegue retirar o pai de uma concepção apenas
imaginária. A função do pai não é simplesmente conseqüência de uma forma cultural,
da presença ou ausência do pai da realidade, é fundamentalmente uma necessidade

-í lógica da cadeia signifícante. A metáfora79 paterna apresenta uma elaboração mais


precisa e concisa do complexo de Édipo articulado ao complexo de castração,
demonstrando, através de uma formula matematizada (materna), a relação entre o pai e a
mãe. Em outros termos, a metáfora paterna apresenta uma operação signifícante.

79 A significação se estrutura, de acordo com J. Lacan, segundo duas leis da linguagem, denominadas de
metáfora e metonímia. Ambas foram introduzidas no Capítulo XVII e XVIII do Seminário livro 3, após a
leitura de um texto de R. Jakobson sobre as afasias. A metonímia está no início do que faz possível a
metáfora. A metáfora supõe similitude, similaridade que permite a identificação, funcionando pela
substituição signifícante. A metonímia está situada nas relações de contigüidadc, de linearidade e de
coordenação sintática, indicando a conexão do signifícante com o signifícante. Sua fórmula é: f(S...S’) S= S
(-) s.

70

k w.
Fórmula da Metáfora Paterna:

F® NP DM NP-----> Outro
F® DM significado ao sujeito Falo

F® Esta fórmula, como observamos, se compõe de duas frações, e de quatro termos. O
significante Nome-do-Pai (NP) substitui outro significante, denominado Desejo da Mãe


(DM). O Desejo Materno é um significante que funciona de forma binária, indicando o ir-
e- vir da mãe, isto é, sua presença e sua ausência, o que se apresenta como um enigma para
Ff a criança. O resultado da operação de substituição é a inscrição do significante Nome-do-
Ff Pai no lugar do Outro (A)80, outorgando ao enigma do Desejo da Mãe ( “não sei quê”, “não
r?
r? sei o que causa o desejo”, “não sei que gozo há nisso”) uma significação dada pelo falo.

F? A fração DM/significado ao sujeito da metáfora indica o enigma da criança e aponta para


1 o gozo, inerente à sua posição de assujeitamento ao Desejo materno. O gozo se refere ao ponto no
qual se produz o pacto entre o ser vivo e a linguagem. Assim, este gozo é efeito da dependência
ff de um Outro, encarnado pela mãe, regido por uma estrutura de oposição significante. O gozo não
t? é idêntico à satisfação, mas se refere à distribuição do prazer/desprazer no corpo.
Tf A função do Nome-do-Pai introduz uma interdição ao gozo, extraindo-o para fora

1
do corpo e condensando-o fora, num lugar que, a partir do Seminário livro 10 “A
í angiistià”,81 J. Lacan denominará objeto “a”. O resultado da metáfora indica que o
“Significado ao sujeito”, lugar do enigma e de gozo, é significantizado ou simbolizado
pelo falo. A metáfora paterna é uma forma de apresentar a instauração da lei (interdição do
incesto-gozo) através da substituição significante, permitindo situar o surgimento do sujeito
no Outro a partir da significação do falo.
No Seminário Livro 5, J. Lacan avança as suas formulações, e o falo, que aparece
inicialmente como significado (na metáfora paterna) passa a ser considerado um
significante. Um ano antes, no Seminário 4 “A relação de objeto ”, J. Lacan define o falo
como o objeto imaginário, sobre o qual opera a castração, introduzindo a dívida simbólica

80A letra A corresponde à álgebra lacaniana e designa o lugar do Outro (Autre). É definido como o tesouro
dos significantes, lugar da verificação da verdade e do reconhecimento da palavra. E o lugar que existe para
todos fora do corpo, e cuja topologia é a do inconsciente. É nesta instância que se coloca, para o sujeito, a
questão sobre sua existência, o sexo e a morte.

71
para o sujeito. Neste contexto, o falo está na base de todos os objetos do desejo,
funcionando como o denominador comum de todos os significados. Esta leitura promove
ao falo o estatuto de significante, transformação que aparece explicada no escrito
“Significação do falo”, onde encontramos a seguinte definição:

“...es el significante destinado a designar en su conjunto los efectos dei


significado, en cuanto el significante los condiciona por su presencia de
significante.”82

Nesta articulação, o falo surge claramente enquanto o significante que designa o


conjunto dos significados, do que depreendemos que há dois conjuntos: aquele que engloba
os significados e outro, que se refere aos significantes. O termo “designar” implica a ação
de nomear, portanto essa é a função do falo, enquanto significante destacado do conjunto
dos significantes. Posteriormente examinaremos, no caso da paranóia, outra possibilidade
de realizar esta operação através do significante ideal.
No texto citado, J. Lacan dá uma precisão maior à função do falo, dizendo que:

“El falo como significante da la razón dei deseo ( en la acepción en que el


término es empleado como “media y extrema razón” de la división
armónica).83

O termo “razão” é utilizado em termos matemáticos, diferenciando-se claramente da


causa. A razão é equivalente a uma proporção entendida como justa medida, que se
explicita na divisão exata, sem resto. Portanto, uma “média e extrema razão” implica numa
razão comum, isto é, num denominador comum para ambos os sexos, que gera e oferece a
“ilusão” da relação sexual sem resto entre os seres falantes. 84
Sintetizando, podemos dizer que o Nome-do-Pai, enquanto suporte da lei simbólica,
tem como função inscrever a lei que interdita o gozo através do jogo dos significantes,
dentre os quais destaca um (denominado falo) que introduz no lugar do Outro o desejo e
sua dialética. Portanto, é o Pai que se apresenta como condição de possibilidade de um

81 LACAN, J. (1963) Seminário livro 10 "A angústia” inédito.


82 LACAN, J. “La significación dei falo”, in: Escritos 2, Siglo XXI Ed. Méjico, 1993.
83 LACAN, J. ob. cit. nota anterior, p. 286.
84
LACAN, J. (1963) Seminário livro 10 “A angústia”, inédito.

72
funcionamento do Outro, no qual designa o falo como significante do desejo que articula o
enigma do Desejo da Mãe.
J. Lacan situará posteriormente o falo como significante do gozo85 (O), sendo
aquele que faz barreira, que cifra o gozo, resultado da operação da introdução do Nome-do-
Pai. Assim, temos, por um lado, o falo como significante do desejo, isto é, como aquele que
articula o desejo, e também como significante do gozo, regulador do gozo, regido por uma
lógica de atribuição (ter-não ter).
Dissemos que a inscrição do significante do pai se opera num lugar denominado
Outro (A). Mas, como pensar esse lugar, na teorização de J. Lacan?
O lugar do Outro na álgebra lacaniana sofre modificações, na medida em que J.
Lacan realiza seu trabalho de elaboração. E inicialmente considerado como o lugar da fala,
do tesouro dos significantes, um lugar absoluto, fiindante do sujeito. Na elaboração de J.
Lacan (até o Seminário livro 4), tanto a ordem da sexualidade como o desejo, pertenciam
ao registro do imaginário e da significação. Mas, a partir do Seminário Livro 5 (e no
escrito “La significación dei falo”86, como já apresentamos) o falo é definido como o
significante do desejo, o que acarreta uma transformação no Outro, na medida em que
inscreve o desejo nesse lugar, produzindo-se uma divisão, que tem por resultado um Outro
barrado (A). Mas, para que esta operação seja possível são exigidas mínimas condições,
que evidentemente não são outras que as discursivas: a mãe deve aceitar a palavra do Pai na
promulgação da Lei.
Há uma primeira simbolização, como já dissemos, que é dada para todo ser falante e
ilustrada através do temário imaginário falo-mãe-criança, no qual a criança depende do
desejo da mãe. Neste temário, a criança está submetida à lei da mãe. Esta é designada por
Freud no seu texto “Além do Principio do Prazer”, no exemplo do Fort-Da, experiência que
obedece à oposição significante (+ presença - ausência). Isto implica na idéia que
nenhum significante se significa por si mesmo, Portanto, a lógica que rege essa
simbolização é binária.

“É uma lei não controlada. Reside simplesmente, ao menos para o sujeito, no


fato de que alguma coisa em seu desejo é completamente dependente de alguma

85 LACAN, J. (1963) Seminário livro 10 “A angústia", inédito.


86 LACAN, J. (1958) “La significación dei falo”, in Escritos, Siglo XXI Ed, Méjico, 1993.

73
outra coisa, que sem dúvida já se articula como tal, e que é realmente da ordem
da lei, só que essa lei está toda ela, no sujeito, no sujeito que a sustenta, isto é no
bem-querer, ou no mal-querer da mãe, na mãe boa ou má... É na medida em que
existem as primeiras simbolizações, constituídas pelo par significante do fort-da,
que o primeiro sujeito é a mãe”87.

Como entender uma lei “não controlada”? O Outro primordial, encarnado na mãe,
toma-se um agente simbólico que precipita a entrada da criança na linguagem88. Esse
encontro entre a natureza e a ordem da linguagem produz a perda do objeto instintual,
adequado e harmonioso, dando lugar ao surgimento do objeto parcial pulsional. A
necessidade se transforma em demanda, devido à introdução da discontinuidade
significante.
J. Lacan elabora os diferentes registros da falta de objeto (privação-frustração-
desejo), no Seminário livro 4, “A relação de objeto »89, especificando a noção de
“frustração”, de dano imaginário, como responsável pela delimitação do objeto pulsional
(frustração de gozo que incide sobre um objeto real -seio) e do objeto de amor-dons
(frustração de amor articulada à presença e ausência da mãe, tomada como signo de amor).
Esta operação permite deslindar duas dimensões do objeto, o objeto da pulsão parcial e do
amor.

rf No Seminário livro 5, J. Lacan acrescenta que a “frustração do gozo” atinge a


demanda e se vincula a uma satisfação em relação ao objeto, lugar onde será colocado
posteriormente o objeto “a”. Por outro lado, a frustração de amor se refere a um objeto que
não tem valor de gozo, é um puro nada, e seu valor depende do signo de amor do Outro.
Colocamos, a seguir, o quadro das duas vertentes da frustração:

87 LACAN, J. (1957-58) Seminário Livro 5 “Asformações dolnsconsciente”, Jorge Zahar Ed. RJ. 1999 p.
195.
88 Desde o texto “Projeto de uma teoria para neurólogos”, S. Freud situa o desamparo inicial e a dependência

da criança em relação ao Outro como fonte de todos os motivos morais.


89 LACAN, J. (1956-57) Seminário livro 4 “A relação de objeto ", Jorge Zahar Ed., RJ 1994.

74

%
[| '
Ação Objeto Agente

(I) de gozo Real Outro simbólico


(seio) (mãe)
Frustração
(dano imagi

P
r*
nário)
(II) de amor Simbólico
(don)
Outro real
(mãe como poder)


O objeto pulsional fica, na elaboração de J. Lacan, no registro do imaginário durante
algum tempo, equiparado ao denominado objeto parcial, enquanto o objeto de amor (dons)
! ocupa nas séries de K. Abraham o lugar do objeto total ou a pessoa total90. A vertente da
frustração de amor é responsável pelo acesso à realidade humana. Os dons do Outro são
objetos simbólicos, índices de sua potência e manifestação de uma lei - poder real - que não
está incluída no pacto. Os dons promovem o intercâmbio, a circulação, e por esta razão a

45 frustração de amor dá acesso à realidade simbólica, por ser precisamente fundada na


anulação do gozo do objeto, equivalente à perda da naturalidade do objeto. O objeto se
45 transforma em um “nada” simbólico, que é igual ao signo da boa ou da má vontade do
45 Outro, que encarna um poder no real. Portanto, o signo da presença do Outro domina sobre
45
45 a satisfação, sendo este o ponto de âncora da identificação com o significante do ideal,
primeira marca do Outro onipotente.
Assim, os objetos imaginários, tomados do próprio corpo e articulados pelo estádio
do espelho, são transformados em dons. O seio, as fezes e o falo se introduzem no circuito
inaugurado pela cadeia de dons. A frustração se articula em dois pontos no Outro: o
primeiro se refere à impossibilidade da estrutura de responder à demanda, e o segundo ao
enigma que suscita o “ir e vir “da mãe.

90 Ver quadro de K. Abraham apresentado na segunda parte de nosso trabalho.

75
Mas, a frustração, sofrida como um dano imaginário, não é suficiente para o
surgimento do sujeito: é necessária uma operação simbólica que se denomina castração, a
partir da qual é possível responder ao enigma do desejo materno através do falo.
p» O objeto simbólico, o falo como simbólico, deve deixar seu lugar ao falo
imaginário, que se traduz por uma significação fálica. Esse passo implica na
desidentificação do ser do sujeito com o falo simbólico. Para deslindar o enigma do desejo
materno podem surgir duas respostas que dependem do falo, uma articulada pela metonímia
do desejo de falo da mãe,91 onde o corpo = falo; e a outra pela via da metáfora, onde a
criança pode ser para sua mãe a metáfora de amor pelo pai. No primeiro caso, a criança
não é portadora de falo, senão identificada em sua totalidade metonímica: corpo=falo.
Neste último caso a metáfora paterna não opera, deixando a criança presa à metonímia
desejante de sua mãe.
O falo se vincula primordialmente ao ser do sujeito em sua relação com o desejo do
Outro. Desta forma, observamos que o sujeito deve competir com o falo para se situar
como objeto do desejo do Outro.
A criança, no primeiro momento, ocupa nesta lógica o lugar de “assujeito”,
dependente do capricho do Outro materno. É determinante para o futuro da criança que a
mãe funde e dê lugar ao pai, como mediador daquilo que está para além da lei de seu
capricho. Assim, o Nome-do-Pai surge ligado à enunciação da lei, uma lei que priva a mãe
do objeto de seu desejo. Em outras palavras, o Pai libera a criança de ficar à mercê do
capricho do Outro.
O Nome-do-Pai, enquanto significante, provoca uma alteração neste estado
K primordial do funcionamento do Outro, fazendo cair a primeira norma que obedecia a seu

K capricho, introduzindo uma divagem no campo que o designa como lugar da linguagem, e
lugar da lei que rege a articulação significante. Como resultado desta operação, surge Outro
barrado, isto é “deserto de gozo”. Em outras palavras, podemos dizer, esvaziado de gozo.

91 A metonímia, definida como conexão ou deslizamento significante, se apoia na leitura de R. Jakobson, Mas
há outra definição, no sentido mais tradicional, que diz que é essa relação causai de conexão da parte com o
todo. É a partir desta definição que se entende o objeto parcial incluindo uma das dimensões do falo. A
metonímia passa a ser o desejo, inseparável da demanda.

76
Isto nos permite afirmar que o Outro da primeira simbolização, dado para todo ser
falante, não é suficiente, e precisa de uma outra operação que possibilite ao sujeito ser
representado pelo significante.
Em termos lógicos, podemos dizer que o pai permite o agrupamento a três (ternário
simbólico), operando uma combinatória sobre a cadeia do inconsciente. A lógica binária
introduzida pelo Outro primordial ou prévio não basta para o comparecimento do sujeito. É
necessária a introdução de uma casa vazia, para permitir o agrupamento a três. O número
três, nos diz J. Lacan92, baseado nas elaborações de Frege (lógico matemático alemão), não
é deduzível da simples experiência. Trata-se de uma construção que implica a entrada da
dialética.
O Nome-do-Pai responde à necessidade de um “ponto de basta”93 na ordem
simbólica, que detém o deslizamento da significação (metonímia), promovendo uma
retroação que se traduz por uma significação fálica.
Célula elementar do gráfico apresentado no escrito “Subversión dei sujeito y
dialéctica dei deseo”94, incluindo o Nome do Pai e a significação fálica.

“O pai é, no Outro, o significante que representa a existência do lugar da cadeia


como lei. Ele se coloca, acima desta.”95

92 LACAN, J. (1956-57) Seminário livro 4 “A relação de objeto ", Jorge Zaliar Ed. RJ, 1994.
93 LACAN, J. (1960) “Subversión dei sujeto e dialéctica dei deseo” in Escritos 2, Siglo XXI Ed, Méjico,
1993.
94 Idem.
95 LACAN, J. (1958) Seminário Livro 5 “Asformações do inconsciente, Jorge Zaliar Ed. R. J. 1999. p. 202.

77
Para ilustrar o lugar do Pai como “significante da lei”, J. Lacan utiliza a seguinte
escrita no Seminário livro 5, ”Asformações do inconsciente ”96.

S
S S S S S S S
ssssssss

O resultado dessa operação é a entrada do sujeito na ordem simbólica propriamente


dita, que permite um funcionamento velado do inconsciente. As questões que se colocam
no nível do Outro, relativas ao sexo e à existência, são barradas pelo muro da linguagem e
só chegam notícias destas através de um saber que se apresenta nas formações do
inconsciente (lapsos, sonhos, chistes), que exigem decifração.
O esquema que permite articular a metáfora do Pai é apresentado no escrito “De una
cuestión preliminar...”.97 É interessante incluí-lo, na medida em que nos permitirá re-
discutir os termos apresentados até este momento.

Esquema R
O esquema denominado R inclui o esquema L, produzindo-se uma ampliação deste
último ao contemplarmos que a relação entre o Sujeito e o Outro se dá através da fantasia,
que funciona como articulação do campo da realidade, realidade esta que vela o real. Cabe
ressaltar que o esquema L não é abolido - pelo contrário -, constitui a célula do esquema R.
Compõe-se de dois triângulos: o primeiro delimitado pelas letras cp i m (campo do
Imaginário) e o segundo M I P (campo do simbólico), ambos reunidos por uma faixa
moebiana cujos vértices são i M m I. Como já dissemos, o esquema L forma parte do
esquema R e o reconhecemos pelas letras S a’ a e A . O Sujeito aparece representado pelo
falo imaginário (cp); a letra a (outro) coincide com o vértice que é denominado por M,
representando o lugar do Outro primordial, que representa uma primeira simbolização dada
pela operação de ausência da mãe.

LACAN, J. ob. cit.


LACAN, J. ob. cit.
V
O vértice I, lugar do Ideal do eu, coincide com o lugar do a (eu do sujeito); e o
vértice denominado P indica o Nome do Pai, que se situa no lugar do Outro. No ano de
1966, J. Lacan acrescenta uma nota de rodapé, afirmando que a faixa da realidade é uma

r* banda de Moebius, situação que modificará o funcionamento do esquema, transformando-


o. A partir disto, este não é mais uma figura plana, e sim um plano projetivo. Com a união
dos pontos antipodais da faixa da realidade ( Mi MI ) obtemos uma relação entre os dois
triângulos (imaginário e simbólico), através de uma faixa moebiana. É preciso esclarecer
que a presença da banda introduz no esquema a “não orientabilidade”, tornando o objeto
“a” não especularizável. Mas, antes de entrarmos nesta questão, retomemos a relação dos
lugares que o esquema especifica.
J. Lacan postula que a relação entre a mãe e o filho é dependente de um terceiro
termo, que denomina falo imaginário (p. O falo é o objeto capaz de preencher a falta da
mãe enquanto ser desejante. O triângulo que constitui o campo do imaginário fundamenta
a lógica do desejo no Édipo, colocando a funcionar os elementos imaginários ligados a
uma falta no Outro. É o desejo da mãe que introduz a falta enquanto lugar terceiro, na
relação com o filho. Desde um primeiro momento, J. Lacan enfatiza a importância da
linguagem na fundação do sujeito e na constituição do campo da realidade.

7*
«
Anteriormente, mencionamos a dialética do estádio do espelho, que introduz a
conformação da imagem do eu à semelhança do outro, graças à sanção que o Outro opera
K enquanto instância simbólica. Assim, a alienação do eu na imagem do outro se realiza
« graças à instância simbólica. O ponto i constitui um limite da realidade, a partir do qual
pode produzir-se a diferença fora-dentro. O ponto m, assim como o i, são termos que
pertencem à relação narcisista, isto é, o eu e sua imagem especular.
O ponto representado por M, conforme já colocamos, aponta o lugar do Outro
primordial, lugar da simbolização primordial, da inscrição da oposição significante indicada
pela seqüência + e -, regido por uma lógica que, anteriormente, denominamos de “tudo ou
nada”( mais precisamente, lógica binária).
O segundo triângulo (Simbólico) M I P está marcado pela entrada da função
paterna, que exige uma reconsideração da identificação fálica. O pai se manifesta como
alguém com quem a criança concorre em relação ao amor da mãe. Assim, o pai mobiliza o
desejo materno, e, enquanto tal, denuncia a impossibilidade de a criança vir a ocupar o

79
lugar de falo da mãe. Esse pai, enquanto quarto elemento, provoca vários deslocamentos
da criança, que são decisivos para a lógica edípica, a qual Lacan descreve como “ser o ou
m
m

não ser o falo”. A oscilação do falo se reflete no deslocamento, tanto do lado da criança,
como também do lado da mãe. A criança precisa fazer por si mesma um deslocamento
necessário que a liberte do domínio imaginário articulado até esse momento.
O ponto I, lugar do Ideal do eu, implica algo do sujeito que a criança deve ser. Esta
instância está referida à função do Pai. Para tal fim, é preciso que a mãe realize uma

T* operação de intermediação signifícante, mostrando-se dependente do pai e não da criança,


e, concomitantemente, o pai deve colocar-se como aquele que dita a lei à mãe.
A partir destas correlações, a criança experimenta a dialética do ter ou não ter o
falo. Isto pressupõe que a criança renunciou a identificar-se com o falo e aceitou o pai
enquanto portador do falo, e que, portanto, pode doá-lo à sua mãe, por ela não possuí-lo.
-! Todos esses movimentos deixam suas marcas na construção da estrutura do sujeito,

TÍ incidindo em sua posição perante o Outro.


r» É a introdução da metáfora do Nome-do-Pai que possibilita todos estes
Ví deslocamentos, e a letra P no esquema representa a inscrição do falo simbólico (O), no
lugar do Outro. Trata se de uma duplicação do lugar do Outro em M e P que provoca uma
divagem e possibilita pensar que o mesmo funciona tanto como o lugar do signifícante
(M) quanto como o lugar da lei do signifícante (P). Essa lei introduz uma articulação
dialética que permite o “ponto de basta”.

VL No esquema R, os vértices (p e P são os pontos que determinam os deslocamentos


da criança e sua mãe. O esquema R mostra, de maneira bastante elucidativa, como a
metáfora paterna e seu correlato (a significação fálica) enquadram o campo da realidade
(lugar da fantasia), localizado na faixa i I M m, que permite ao sujeito um velamento do
real.
Ao analisar o acréscimo feito por Lacan ao esquema R, em sua nota de rodapé de
1966, dizemos que a faixa il Mm, transformada numa banda de Moebius, enquanto
superfície unilátera, nos faz pensar que se pode circular desde o simbólico ao imaginário
passando pelo real de maneira contínua.

80

fl f
{; ' ©
Darmon98 escreve que é pelo corte exercido pela banda de Moebius que o real
constitui a fronteira entre o Imaginário e o Simbólico, separando-os e reencontrando-os
sobre a mesma borda. Resulta que os triângulos do Imaginário e Simbólico formam um

i disco apoiado numa banda de Moebius. Constatamos que a banda de Mobius, topologia do
campo da realidade, articulado pela fantasia ( Soa), garante a relação entre o campo do
Imaginário e do Simbólico.
Esquema R:

M
Vs-
I
y
i & ir <
i
i
i à
I5P
mlfíí

I
w r
A
P

Darmon" nos diz que, somente a partir da topologia do plano projetivo, se pode
sustentar o paradoxo contido na idéia de que o campo do imaginário e do simbólico são
M
P reunidos (V) e separados (A) pelo corte que é a banda Moebius. Temos aqui as duas
: operações que regimentam as relações entre o Sujeito e o objeto, na fantasia.

i , A foraclusão do Nome-do-Pai
Ü Depois de termos estabelecido a função do pai na estrutura, estamos em condições
de nos perguntar: quais são as conseqüências para o funcionamento de uma estrutura
organizada em torno do “não” ao Nome-do-Pai?
A expressão “foraclusão do Nome-do-Pai” é uma invenção de J. Lacan, baseada na
1 Verwerfung freudiana; operação que rege a estrutura da psicose e que consiste na falta da
m inscrição do Nome-do -Pai no lugar do Outro.
j
2 98 Darmon, M. “Les schemasR et I" in: Essaissur la topologie lacanienne, Paris, 1990.
99 ldem.

81

fji
%
11!
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•>
Segundo A. Quinet100, foraclusão não é uma tradução do termo francês forclusion
(utilizado por J. Lacan para explicitar a operação da psicose), e sim uma interpretação, já
que seu equivalente em português, nos termos jurídicos, é presprição.
Forclusion é extraído do vocabulário jurídico francês, e significa que um processo
forclos é inexistente quando terminou o prazo legal de apelação. Essa noção significa a
perda de um direito de exercer uma lei. Um ato que não se realiza dentro do prazo
estipulado, e tem como conseqüência o arquivamento do processo.
Na gramática francesa a forclusion é uma forma de negação. No estudo realizado
por Damourette e Pichon, “Des mots à la pensée. Essai de Grammaire de la Langue
Française”, encontramos a observação de que a língua francesa possui uma negação em
dois pedaços.: ne-pas, ne-jamais,ne rien. A primeira parte é considerada discordancial, e se
utiliza nas orações que tem verbos que imprimem o temor, a precaução e o impedimento.
A segunda parte da negação se aplica aos fatos aos quais o locutor não contempla como
fazendo parte da realidade. Esses fatos são de algum modo foracluídos , por isso é utilizado
o termo de foraclusão101.
A foraclusão do Nome-do-Pai não é observável, a não ser por suas conseqüências. É
por esta razão que J. A Miller 102 a situa como transfenomênica, ou seja, como aquilo que
está para além dos fenômenos. Mas a foraclusão, enquanto ausência do signifícante Pai
(NPO) no simbólico incide no registro imaginário, reduzindo-o à sua estrutura elementar
denominada estádio do espelho. Cabe lembrar que o “estádio do espelho” é uma construção
lógica que responde pela formação do eu à imagem do semelhante, resultando na matriz
imaginária. A constituição do eu surge a partir da imagem do semelhante, do seu duplo
especular, o que dá a este seu carater paranóico, na medida em que um eu nunca está só,
quer dizer, sempre está acompanhado de seu duplo. Esta dimensão imaginária é observável
e legível na estrutura da psicose, quando se produz uma...

“...Verdadeira reação em cadeia ao nível imaginário... entra em outro tipo de


mediação simbólica por um formigamento, por uma proliferação imaginária, nos
quais se introduz, de maneira deformada, e profundamente a-simbólica, o sinal

100 QUINET, A. “Teoria e Clinica da psicose ", Editora Forense Universitária, R.J. 1997. p. 15.
101KAUFMANN, P Dicionário enciclopédico de psicanálise: O legado de Freud Lacan, Jorge Zahar Ed.
R.J. 1996.
102 Miller, J.A. “Maternas I”, Ed Manatial, BsAs, 1987.

82
1
%

central de uma mediação possível....A relação do sujeito com o mundo é uma


relação em espelho. O mundo do sujeito vai se compor essencialmente da
relação com esse ser que é para ele o outro... »103

Assim, o Outro não funciona como a instância onde se dá a confissão da fala, lugar
da verdade, nem como o lugar do pacto e da pacificação, ficando reduzido a um outro
imaginário, que toma o sujeito como seu objeto de gozo. Este tipo de funcionamento
acarreta fenômenos de transitivismo, de rivalidade, de agressão e de paixão amorosa.
O inconsciente se apresenta a céu aberto, quer dizer, sem véu, manifestando-se no
sujeito como aquele que fala o tempo todo, que sabe tudo, em alguns casos comentando
antecipadamente suas ações, e procedendo pela via do insulto e da injúria. O sujeito
psicótico dá testemunhos de ser habitado e tomado como objeto pelo Outro da linguagem.
O discurso apresenta um funcionamento particular da linguagem, que se traduz pela
presença de significações fixas, de fenômenos alucinatórios e delirantes. Isto ocorre devido
a uma disjunção, uma dissociação dos eixos da metáfora e da metonímia, deixando o campo
livre para essa última, que prolifera nas alusões e no subentendido. O retomo do
significante foracluído do simbólico emerge num outro registro, que é denominado real.
Assim, o mundo sofre profundas modificações, o que provoca graves dificuldades
para o sujeito vir a responder em situações que exigem um compromisso simbólico.
A função do inconsciente se manifesta no denominado retomo do significante foracluído,
que encontra a via alucinátoria, a partir do que o sujeito tenta construir uma significação delirante.
O sujeito psicótico fica submetido a uma posição de objeto do Outro absoluto, que
reina e governa a seu capricho, acarretando-lhe um gozo desmesurado, que toma seu corpo
(despedaçando-lhe, nos casos de esquizofrenia), ou localizando-se no Outro (encarnado nos
perseguidores, traidores e amantes na paranóia). Esse Outro pode ser comparado ao Pai
primitivo da Horda, isto é, um pai gozador, fora da lei da castração.
Nesta elaboração, J. Lacan deixa bem claro que há uma estrutura que rege a psicose,
e que esta obedece a um funcionamento do significante, que se manifesta no discurso do
delirante, onde o sujeito surge na posição de objeto de gozo do Outro.
As alucinações e os delírios são diferentes tentativas de recompor a ausência da lei do
significante, responsável pela articulação metáforica. Desenvolveremos esse aspecto no tópico

103 LACAN, J. (1955-56) Seminário Livro 3 “Aspsicoses”, Jorge Zahar Ed. R.J. 1988. pag 104.

83
%

s
intitulado “O delírio: uma solução elegante - a paranóia”. O sujeito, de posse da lógica binária da
simbolização primordial, articulada à presença e ausência do Outro absoluto, sem barra, e preso à
dialética do espelho, tenta suprir a ausência do signifícante Nome-do-Pai. Desta forma, podemos
afirmar que Daniel Paul Schreber e todos os sujeitos inseridos numa estrutura psicótica têm como
tarefa realizar uma construção “suplementar”, que permita um funcionamento discursivo.

O discurso alucinatório

No caso da psicose uma particularidade se apresenta, especialmente no fenômeno


alucinatório -fenômeno de linguagem-, onde o sujeito fala literalmente com seu eu: há um
terceiro que fala, comenta, ordena, insulta. Esses fenômenos ocorrem de formas variadas
(vozes, olhares, intuições), mas o que têm em comum é o fato de que sempre comparecem
do exterior, possuem o caráter de imposição e deixam o sujeito perplexo. Surge assim um
signifícante no real, fora da cadeia que não representa o sujeito para outro signifícante.
Seguindo a orientação de J. Lacan, no Seminário livro 3, “Aspsicoses”, na psicose
o esquema L sofre uma alteração ao retirar o vértice do Outro. O Outro é excluído,
enquanto detentor do signifícante da lei (Nome-do-Pai). Entendemos que essa exclusão não
implica numa não existência do Outro; este está ali, absoluto, consistente e sem barra.
„104
J. Lacan, no escrito “De una cuestión preliminar... , explica esse funcionamento do
Outro de forma distinta, não situando-o como excluído e sim como uma não duplicação do Outro.
105
Nessa estrutura, o sujeito fala sob a forma da alusão e não do reconhecimento106. Os
fenômenos psicóticos se constituem no eixo imaginário (a5—a), promovendo uma restituição ou
compensação, que são respostas fora da articulação Édipo-castração. Eis o esquema da alusão107:

s a’

104 LACAN, J. ob cit.


105 A alusão é a virtude própria da metonímia.
106 Este reconhecimento é simbólico, proveniente do Outro, e nos evoca a dimensão do testemunho.
107 Este esquema não se encontra presente na obra de Lacan. O mesmo foi construído por outros analistas, a

partir de suas indicações. Nos baseamos, para pensar este esquema, no trabalho de AND RE, S. intitulado “La
strucure psychotique etV ècrif publicada in: Quarto N° VIII, École de la Cause Freudienne,Bruxelas, 1982.

84

U ©
?N
PS
PS Na medida em que o Outro está excluído (Seminário livro 3) ou não duplicado (“De
una cuestión preliminar...”), o que é falado é dito, e surge desde o outro imaginário. A
mensagem que se recebe do outro imaginário é a mensagem do sujeito que o Outro não
reconhece. Lembremos aqui que é o signifícante do Nome-do-Pai o responsável pela
introdução do “ponto de basta”, que cria o campo de significação, produzindo a articulação
da cadeia de significantes. O ponto de basta é um ponto de convergência que permite situar
dois movimentos: o tempo retroativo e o progressivo no discurso. Em relação ao tema do
tempo na psicose, verificamos na nossa experiência que, na alucinação, se apresenta uma
-*
ruptura entre o tempo progressivo (sucessão) e aquilo que retorna (retroativo), tendo como
resultado um funcionamento que denominamos “antecipação”.
A foraclusão do Nome-do Pai revela um buraco na estrutura simbólica (NPO) que
tem efeitos sobre a estrutura imaginária (OO), dissolvendo-a e reduzindo-a a sua estrutura
elementar, isto é, o estádio do espelho. A estrutura da alusão explicita a inoperância do
Outro, trazendo por conseqüência a confusão entre o eu e o outro, assim como uma
incidência do registro do imaginário, na tentativa de suprir a ausência do simbólico.
No Seminário livro 3, J. Lacan organiza as alucinações a partir da problemática da
significação. As alucinações são conseqüência do vazio no lugar da significação, provocado
pela foraclusão do Nome-do-Pai. Vejamos:
1. Neologismos, definidos como uma palavra plena, maciça, carregada de uma
significação obscura, sem articulação.
2. Ritornelos, palavras que se comportam com uma significação vazia, reduzidas a
um puro som.
3. Frases interrompidas, que indicam uma significação em suspenso.
A significação se apresenta ora vazia, ora enigmática, ora obscura; enfim, em todos
estes casos, é explicada por uma dissociação do eixo do signifícante e do significado
(ausência de ponto de basta). Assim surge um significação pronta, proveniente de um
Outro, subjetivado (alguém fala) ou não (barulhos, sons, etc), que petrifica o sujeito,
destinando-lhe o lugar de objeto (do qual se fala, ou a quem se insulta, ou a quem se
ordena, entre outros). Produz-se uma significação enigmática frente à qual o sujeito fica
perplexo.

85

: rs
Dois anos mais tarde, no escrito “De una cuestión preliminar...”108, J. Lacan retoma
a concepção psiquiátrica do fenômeno alucinatório, realizando uma crítica rigorosa, onde

r* diz que o sujeito (percipiens) não é sem divisão, e que o objeto percebido (perceptum) não
é unívoco. Na sua leitura, a alucinação é sempre verbal, independente da produção de

£ palavras ou vozes.
Encontramos, no mesmo texto, uma modificação na elaboração da alucinação,
causada pela primazia do significante, que J. Lacan estabelece no escrito “La instancia de la
letra en el inconsciente o la razón desde Freud”109. A alucinação é pensada como a presença
de um significante muito particular, que se encontra inibido em sua função de articulação.
Assim, J. Lacan reagrupa as alucinações em:
1. Fenômenos de código (neologismos-fenômenos de vazio de significação- intuições).
2. Fenômenos de mensagem (mensagens interrompidas).
Na alucinação, surge uma face desencadeada do significante, que introduz uma certa
inércia, uma cristalização. O confronto do sujeito psicótico com o fenômeno alucinatório
indica um encontro com um ponto roto da cadeia, onde não há nenhuma intermediação de
saber ( considerando o saber como significantes articulados). A ausência de articulação
significante faz comparecer uma dimensão de pura alienação, sem separação.
:
Em relação a isto, J. Lacan diz, no Seminário livro 3n(\ que o psicótico é mártir do
inconsciente, na medida em que funciona a céu aberto. Como podemos pensar um
inconsciente sem véu? J. Lacan define o inconsciente como o discurso do Outro,
estruturado como uma linguagem. Qual é sua particularidade na psicose? O inconsciente
na psicose está aí, mas não funciona pela via das formações do inconsciente. Surge
precisamente no retorno do significante foracluído, isto é, no significante no real, fora da
cadeia. Mas o “inconsciente a ceú aberto” não é sinônimo de saber, já que o saber
corresponde justamente ao oposto, na medida em que depende da articulação significante.
Dissemos que o significante surge desencadeado, desarticulado, tendo perdido sua
materialidade imaterial (dada pela articulação), transformado numa letra, que olha, que fala,
que espeta e penetra. Podemos correlacionar esta definição com a idéia freudiana de que as

108
LACAN, J. ob. cit.
109 LACAN, J. (1956) “La instancia de la letra o la razón desde Freud”. in: Escritos /, Mejico, Siglo XXI Ed.
1975. pag. 473.
no LACAN, J. ob.cit.

86

©
palavras são tratadas como coisas. As palavras se materializam, transformando-se em
coisas. Desta forma, o significante surge como letra111, idêntica a si mesma, sem o
estabelecimento de relações, produzindo um curto-circuito no funcionamento do simbólico.
Nesse ponto, o simbólico se transforma em real. Esse retorno do significante no real tem
como efeito o surgimento de um gozo que denominamos mortífero. Para J. Lacan, trata-se
do retomo do significante Nome-do-Pai, foracluído do simbólico.

“...O sujeito (no discurso alucinatório) está ali, visado,...já que o Outro não está
presente no delírio, mas num aquém, numa espécie de além interior. »112

O sujeito é visado pelo significante no real, surge designado por uma letra, a partir
do que podemos dizer que comparece letrificado. Entendemos que o Outro, situado num
aquém, faz referência a um Outro absoluto e sem barra.
Interessa-nos retomar a expressão “sujeito de gozo”, utilizada por J. Lacan na
apresentação da tradução francesa das Memórias de D. P. Schreber113, na medida em que
esta indica a posição do sujeito na paranóia e aponta justamente para a paridade entre o
sujeito e o objeto “a”. Esse sujeito assimilado ao objeto “a” realiza a dimensão real do
objeto, sendo reduzido a uma pura letra, sem vestes, sem articulação.
Consideramos contraditório sustentar que ali haveria verdadeiramente um sujeito,
tal como é definido por J. Lacan (“sujeito é o que representa um significante para outro
significante”), situando-o justamente na articulação entre significantes, o que implica numa
separação e diferença do objeto. Mas, por outro lado, é impossível negar a existência de um
sujeito, ainda que surja preso a um significante, no seu estatuto de letra, isto é, como uma
pura identidade. Sem esta concepção, consideramos que não seria possível pensar num
tratamento para a psicose.

111 Estamos tomando aqui como referência os trabalhos de J. Lacan dos anos 70. Nesta época, a linguagem é
considerada como aparelho de gozo. O significante introduz o gozo. Desta maneira, podemos pensar que a
letra é uma dimensão do significanle que implica o objeto. A partir disto podemos pensar o significante
como condensador de gozo. Remetemos o leitor ao trabalho “Considerações sobre a letra: a psicose em
questão” de Ana Beatriz Freire, in: Psicologia: Reflexão e Crítica V. 12 N 3, UFRGS, Porto Alegre, 1999. O
gozo se apresenta de uma forma desenfreada, mortífera, por não contar com o significante falo.
112 LACAN, J. (1955-56) O Seminário Livro 3 “Aspsicoses”,. ob..cií.

113 LACAN, J. (1966) “Apresentação da tradução francesa das Memórias do presidente Schreber” in: Falo,
Revista Bras. do Campo Freudiano N° 1, Fator Ed., Salvador, Julho 1987.

87
O objeto “a”, inventado por J. Lacan, surge inicialmente no Seminário livro 10, “A
angústia »»114, e continua a ser construído no Seminário livro 11115, no ano seguinte. Não
corresponde a nenhum objeto do mundo, mas pode surgir no nível imaginário, coberto pela
imagem, como o seio, o olhar, as fezes, a voz. Todos esses objetos se constituem como

1^ restos da operação de inserção do sujeito na linguagem.


Destacamos no objeto “a” seu valor de letra, que serve como ponto de articulação dos
três registros (real, simbólico e imaginário no nó borromeano116). O objeto “a” é um ser de
ficção e depende da articulação signifícante. Esse objeto nos permite pensar em duas
vertentes: a causa do desejo que divide o sujeito, e a função denominada como “mais de
i gozar”,117 que remete à dimensão da pulsão. O objeto “a” apresenta uma comunhão
1
topológica entre desejo e pulsão.
A expressão “sujeito do gozo”, utilizada por J. Lacan, nos indica que há um sujeito
na paranóia, que surge correlacionado a um gozo, efeito de sua posição de objeto do Outro.
fr O objeto “a” surge do lado do sujeito.
rf A alucinação é um efeito da foraclusão do Nome-do-Pai, onde o signifícante que
retorna no real é reduzido a uma pura letra, que grita, espeta, fede e aprisiona o sujeito.
Essa experiência é aterrorizadora porque confronta o sujeito psicótico com um puro vazio,
no qual sofre a ameaça de desaparecer como sujeito dividido, entre um signifícante e outro
signifícante. Esta experiência acarreta um gozo que se traduz pela vivência de um mal-estar
extremado, no qual o sujeito se confronta com sua própria abolição. Orientados por S.
Freud, pensamos que esse gozo é inerente ao surgimento da pulsão de morte, sem baliza
nem barreiras, que o puxa para uma pura dispersão. Os relatos de pacientes que alucinam
nos permitem dizer que a alucinação apresenta um gozo que denominamos mortífero, onde
o real desvelado designa um sujeito petrificado, trazendo à tona o risco de ser abolido.
Tanto no dito de Freud (“as palavras são tratadas como coisas”) quanto na
afirmação de J. Lacan (“o signifícante que perdeu sua materialidade imaterial”), fica claro
que a alucinação comporta algo impossível de simbolizar. Assim, o signifícante se reduz a

114 LACAN, J. (1963) Seminário livro 10 “A angústia”, inédito.


115 LACAN, J. (1964) Seminário livro 11 “Os quatro conceitos Fundamentais da psicanálise”, Jorge Zaliar
Ed. RJ. 1990.
1,6 figura topológica introduzida por J. Lacan nos anos 70 que permite pensar as relações entre os registros
Real Simbólico e Imaginário. No próximo ponto retomaremos o tema.
117 LACAN, J. (1969-70) O Seminário Livro 17 “O a\>esso da psicanálise ”, Jorge Zahar Ed, RJ, 1992.

88
o

INi)
IN*
sua pura materialidade de letra. Mas esse significante desencadeado não é um significante
qualquer, ele nos remete à história do sujeito, e implica a tentativa fracassada e reiterada
de realizar uma simbolização.
Portanto, o fenômeno alucinatório apresenta uma alusão maciça ao ser do sujeito, à
T*
SP* sua substância de objeto “a” do Outro; isto encontra sua explicação na carência da

SP» representação produzida por sua impossibilidade de articulação.

Formas de estabilização na psicose


Interessa-nos destacar o trabalho de Helen Deutsch, sobre as personalidades “como
se” , para pensar a estrutura da psicose antes do desencadeamento. Estes sujeitos
apresentam uma estabilização que se apoia nas imitações do outro, exigindo a presença
constante do outro ou do grupo ao qual pertencem. Trata-se, segundo a autora, de uma:

“... sombra fantasmagórica de una situación edípica ...forma vacía en lo que


respecta a emociones y personas reales119,

Segundo J. Lacan, o sujeito na psicose conta com uma imagem fora da dialética
triangular, que, pela via de alienação especular, oferece ao sujeito um ponto de enlace.
Temos, assim, o esquema da alusão, onde se produz uma relação de rivalidade,
agressividade e temor, que se restringe a um plano imaginário e dual.

“...Essa verdadeira disposição primitiva do significante será preciso que o sujeito


dela se encarregue e assuma sua compensação,..., por uma série de identificações
puramente conformistas a um personagem que lhe darão o sentimento do que é
preciso fazer para ser um homem «120

1,8 A autora comenta, no seu trabalho intitulado “Algumas formas de trastomo emocional y su relacion con la
esquizofrenia” que a expressão “como se” não tem nenhuma relação com o sistema de “Ficçoes” de Vaihinger
e a filosofia do “Como se”. O uso do termo é uma tentativa de entender a maneira de sentir e o modo de vida
de algumas pessoas que provocam no espectador uma impressão de que toda sua relação com a vida apresenta
uma caraterística descrita como falta de autenticidade, embora lhe pareça “como se” fosse completa ou
normal.
1,9 DEUTSCH, H “Algunas formas de trastomo emocional y su relacion con la esquizofrenia” in:
Psicoanálisis de las neurosis, Paidós, Bs. As. 1969.
120 LACAN, J. (1955-56) Seminário livro 3 “Aspsicoses", ob. cit.

89
INi Nesse ponto, J. Lacan deixa bem claro o trabalho que toca ao sujeito; é ele que tem
p* que assumir a tarefa de compensar ou de suprir, a partir de uma “disposição primitiva do
SN» significante”. Entendemos essa disposição como a oposição significante sem a introdução
SN* da dialética.
P» Recorremos ao texto sobre “Algunas formas de trastomo emocional y su relación

p* con la esquizofrenia” de Helen Deutsch, que nos servirá para preparar nossa discussão em

T» tomo da transferência na psicose, em sua dimensão imaginária.

P» “...El psicoanálisis revela que en el indivíduo “como si” ya no se trata de una


r
represión, sino de una verdadera pérdida de carga objetai. La relación
m aparentemente normal con el mundo corresponde a Ia naturaleza imitativa dei
•;r nino y expresa una identifícación con el medio, una imitación que trae como
resultado una adaptación aparentemente buena ai mundo de la realidad, a pesar
dc la falta de carga objetai... «121
m
W
Parece-nos bastante precisa a idéia de que se trata de uma imitação, que, por um
lado, permite uma relação particular com o mundo, e, por outro, mantém a falta de carga

objetai. Em outras palavras, há um trabalho de re-acomodação dentro da mesma estrutura.
Lembremos que S. Freud (1914-15) elabora o problema da psicose a partir da teoria do
m narcisismo, como sendo um desligamento libidinal dos objetos.
J. Lacan diz que esses sujeitos jamais entram no jogo dos significantes, a não ser

#2 f
por esse recurso que H. Deutsch aponta como imitação, ao qual acrescenta “imitação
exterior”. Exterior a quê? Exterior à dialética do sujeito122, que implica dois tempos, o de
alienação ao significante e o de separação do significante. No jogo denominado de
imitação, o que surge é uma alienação sem separação, produzindo-se uma cola, que
funciona como uma identificação apoiada num registro predominantemente imaginário.
Poderiamos pensar numa cola (alienação) que serve para o sujeito encontrar um nome, um
lugar.

li “...Otras consecuencias de esa relación con la vida son una actitud


& completamente pasiva frente al medio, con una facilidad muy plástica para
■J percibir senales dei mundo exterior y adaptar la propia conducta a ellas....
I
121 DEUTSCH, H. ob. cit.
122 LACAN, J. (1964) Seminário livro II “Os quatro conceitos fundamentais", Jorge Zahar Ed, RJ. 1990.

ü 90

a
\L
li!
í f*.
Cualquier objeto sirve como puente para la identificación...se ligam con gran
facilidad a grupos sociales, éticos y religiosos, tratan mediante ese recurso de dar
contenido y realidad a su vacío interior y establecer por medio de la
identificación la validez de sus existência... Una segunda carateristica...es su
;í sugestionabilidad...debe atribuirse a su pasividad y a una identificación de tipo
autómata...Otra caraterística ...consiste en que las tendências agresivas están casi
completametamente enmascaradas por la pasividad, lo cual Ies confíere un aire
de bondad negativa...que, sin embargo, se convierte facilmente en maldad.123
7™ A passividade mencionada é correlativa a esta pura alienação imaginária, e nos
remete à lógica binária sem dialética. Nesse ponto, o sujeito se cola na imagem do outro,
sem distância, nem relação, e se transforma no personagem. Esse tipo de recurso encontra
seu limite, quando o sujeito é convocado a responder sobre algo novo (que exija o
funcionamento do significante), e frente ao qual não encontra resposta assimilável no outro.
O funcionamento denominado “como se” nos ajuda a entender uma das formas
como pode se organizar a realidade para o sujeito psicótico antes do surto. Inclusive
podemos dizer que, em alguns casos, a vida inteira do sujeito se passa organizada a partir
destas identificações imaginárias, que J.Lacan denomina de “bengalas imaginárias”124.
Por outro lado, a descrição de H. Deutch nos parece preciosa, nos sentido de
entendermos como determinados sujeitos se situam frente ao analista, buscando justamente
um ponto de cola, uma identificação imaginária, como um recurso de proteção frente à
pouca distância que há entre o sujeito e o objeto. Neste tempo do trabalho, o analista pode
vir a funcionar como um ponto de sustentação da realidade do sujeito.

Sobre o desencadeamento na psicose

Neste tópico, realizaremos uma breve apresentação, na qual nos propomos a definir
o desencadeamento e identificar sua causa e seus efeitos. O termo desencadeamento é
introduzido por J. Lacan, no Seminário livro 3 , e no escrito De una cuestion
•;!Ü
123 DEUTSCH, H. ob. cit.
124 LACAN J. (1955-56) Seminário livro 3 “Aspsicoses”, ob. cit.
125 LACAN, J. ob. cit.
ij.
91

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o
preliminar... «126 , para se referir ao momento do surto psicótico. Já observamos, no tópico
anterior, que alguns sujeitos psicóticos organizam sua existência pendurados numa
identificação imaginária com uma pessoa próxima que funciona como seu duplo especular.
^5 Encontramos inúmeros casos que evidenciam essa situação através da relação mãe-
!P» filha, marido - mulher, duas amigas, onde se produz uma estabilidade baseada no par

IP» imaginário que se exprime no esquema L, através do eixo a—a’.


rm O desencadeamento consiste numa ruptura da realidade, provocada, segundo J.

p» Lacan, pelo surgimento de um elemento colocado numa posição terceira frente ao par
■i imaginário. Este elemento é designado por J. Lacan como Um Pai, diferente do pai
i simbólico, um pai que se apresenta no real e que exige e força um compromisso simbólico.
Há desencadeamentos produzidos após a morte de um dos elementos do par (por exemplo,
mãe-filha); em outros casos, a separação de cônjuges, de irmãos, ou frente às exigências de
ocupar um lugar na partilha sexual ( no primeiro encontro amoroso) e na vida profissional.
A impossibilidade de realizar um compromisso simbólico (dado pela estrutura da
psicose: ausência do Nome-do-pai) frente à uma situação nova (entrada do terceiro) tem
como efeito a queda da identificação imaginária, provocando um buraco no imaginário.
Isto se denomina “dissolução do imaginário” e corresponde, no relato dos pacientes, à
vivência de fim de mundo.
Portanto, podemos dizer que o desencadeamento tem como causa estrutural a
foraclusão do Nome-do-Pai, mas somente se realiza a partir do encontro com Um pai. O
resultado desse encontro precipita a queda da identificação imaginária, produzindo-se a
dissolução do imaginário.
A partir deste momento, o sujeito psicótico tem como tarefa reconstruir seu mundo,
encontrar através de um sentido singular, um restabelecimento da cadeia significante, que
promova uma nova articulação dos três registros: real, simbólico e imaginário.
Encontramos o delírio como um caminho, que, a modo de remendo, faz uma nova ponte, lá
onde as articulações se romperam.
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126 LACAN, J. ob. cit.

é 92

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* i
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' O delírio: uma “solução elegante »127-A paranóia

Este tema nos interessa pois servirá para pensarmos a transferência, especialmente no
caso do paciente George, tal como se estruturou ao longo do tratamento. Por essa razão,
nos ocuparemos do delírio, tendo como referência as seguintes perguntas:

1. Qual é a relação entre o sujeito e o Outro no delírio?


2. Que objeto se constitui no delírio?
3. Qual a diferença entre um delírio e uma metáfora delirante?

1 Nosso título coloca, de saída, a idéia de uma solução. Solução é sempre a resposta a
um problema. Trata-se de uma solução para a resistência (já apresentada) à articulação que
comporta o significante na estrutura da psicose.
Encontramos, no livro sobre A Interpretação dos sonhos (1900)12 , que S. Freud
observa que o delírio, assim como os outros produtos psíquicos (sonhos, sintomas, atos
$
falhos), é passível de ser interpretado. Nessa primeira concepção, observamos uma certa
equivalência entre o delírio e as outras formações substitutivas.

ü O delírio contém algo da verdade do sujeito, sendo isto o que constitui a fonte de
certeza do sujeito - é o que nos diz Freud no texto sobre “Os sonhos e o delírio na
“Gradiva” de Jensen129. Essa verdade é articulada ao inconsciente. Mas é só a partir dos
„130
textos sobre o Presidente Schreber e sobre a “Introdução ao narcisismo que o delírio
ganha maior precisão.
A partir desses trabalhos, o delírio se transforma numa formação restitutiva, cuja
função é devolver ao sujeito sua relação com os objetos. Entendemos que a dita função é
I
Jj
127 Expressão utilizada por J. Lacan no escrito “De uma questão preliniinar..”(l958) que nos pareceu
interessante para o título, na medida em que o termo elegância, em português, define alguém que possui o
atributo ou a qualidade de ser bem proporcionado. O delírio, segundo nossa concepção, apontará para a
J construção de uma proporção, uma metáfora.
128 FREUD, S. (1900) ”A interpretação dos sonhos" in Ob. Completas, Imago Ed. RJ 1969.
129 FREUD, S.(1907) ”0 delírio e os sonhos na “Gradiva” de W. Jensen” in: Obras Completas, Imago Ed.RJ.
1969.
ú 130 FREUD, S (1914-15) “Introdução ao narcisismo” in: Ob. Completas, Imago Ed. RJ 1969.

93

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uma tentativa de restabelecer uma articulação entre as representações, a partir da qual o
sujeito possa encontrar uma certa estabilidade em sua relação com o mundo.
J. Lacan trabalha, no Seminário livro 3J3i e no escrito “De una cuestiòn
preliminar... «132 , a construção delirante a partir do significante:

“Assim como todo discurso, um delírio deve ser julgado em primeiro lugar
como um campo de significação que organizou um certo significante... «133

O que quer dizer “certo significante”? Pensamos que se trata do significante que
surge no real, significante exterior ao sujeito, na medida em que não o representa. É a letra
li que comporta o lugar onde o gozo se fixa. O delírio é um campo de significação, que
f'i oferece a esse significante a possibilidade de se reatar aos outros, gerando assim um
!
ir discurso. Mas, quais são suas caraterísticas?

■p®
“...Delírio se apresenta articulado e em aparência acessível às leis de coerência
do discurso, Esse discurso, que emergiu no eu, se revela irredutível, não
manejável, não curável... «134

“Em aparência acessível as leis da coerência do discurso”, mas nem tanto, porque
ií! padece de uma verdade idêntica a si mesma, de uma certeza, que, enquanto tal, não abre à
dimensão interpretativa, não abre a uma outra substituição. A interpretação delirante se
ÉS apóia numa fixação, num congelamento da significação. A interpretação é e se basta,
eliminando qualquer diferença que possa vir a se apresentar. Solução para um certo
significante, que dá um contorno através de uma nova significação, designando o sujeito
no lugar do objeto do Outro. Qual seria a diferença entre o delírio e a alucinação?
Em primeiro lugar, dissemos que a alucinação apresenta o significante no real, uma
Ei letra que se apresenta radicalmente vinda de fora. No delírio se tece uma cadeia, uma
J articulação significante, produzindo uma singular significação, que não altera a posição
estrutural do sujeito, o objeto está do lado do sujeito. Esta significação localiza e
Jj
circunscreve um gozo no Outro: “O outro me ama, me fere, me persegue, e faz de mim um
ill
:jj puro objeto, onde está minha consistência, meu ser.” A interpretação delirante serve para
T il
■ '■LM 131 LACAN, J. ob. cit.
132 LACAN, J. ob. cit.
133 LACAN, J. ob. cit p. 141
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94

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íl : ©
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I

lu delimitar um campo de gozo, onde tudo gira em tomo de uma paridade entre o sujeito e o
I. objeto.
II, J. Lacan diz que o psicótico é mártir do inconsciente, do qual dá um testemunho em
Kl aberto. Assim, o Outro enquanto iugar do inconsciente goza do sujeito enquanto objeto
“a”. Desta maneira, o sujeito surge fixado, imobilizado numa verdade absoluta, da qual
nada sabe. Desta forma, o delírio é um trabalho de contorno, que se produz através de uma
significação.
Entretanto, indagamos: o que é uma significação? Significação é efeito de
articulação signifícante. O significante enquanto tal nada significa, mas é condição de toda
significação. Está regida segundo os eixos da metáfora e da metonímia. Mas, no caso da
T? significação delirante, nos perguntamos: qual é sua particularidade? É uma nova
significação que não remete a outra, se traduz por algo que não se parece com nada.
Portanto, é uma significação inefável, isto é, indizível, que se congela, se petrifica.

“...O delírio é legível, mas é transcrito num outro registro...Ele é legível, mas
sem saída...o recalcado na psicose se sabemos ler Freud, reaparece num outro
lugar, em altero, no imaginário, e, aí com efeito sem máscara... ”135

É uma significação que promove uma articulação dos três registros: o imaginário

Sí (regido pelas leis de contigüidade e semelhança), suportado numa lógica binária (Outro
primordial), operando um certo velamento do real. Mas é uma significação que não abre
M
para a dimensão do equívoco, portanto, não abre para a interpretação, tal como a
concebemos em psicanálise. Em outras palavras, o delírio não é interpretável, não chama a
outra interpretação, trata-se de uma interpretação elevada ao estatuto de certeza. E, neste
sentido, não é interessante o analista situar-se de forma a concorrer com a interpretação
delirante, somente lhe resta acolhê-la e aceitá-la como verdadeira.
Nessas condições, o delírio reata a cadeia e promove, a partir dessa articulação, uma
distância entre o sujeito e o objeto. Essa distância é um tanto precária e, em alguns casos,
fracassa na tentativa de domesticar o gozo mortífero, o que acarreta a presença do objeto
A * coincidindo com o sujeito.

A
0A
A. 134 LACAN, J. ob. cit.
*
135 LACAN, J. id
0*
gt* 95
01 A
A
A

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Podemos dizer que se promove uma substituição significante regida pelo registro
imaginário e um simbólico regido pela lógica binária. O Outro, reduzido a um outro
(semelhante), surge como um perseguidor, como o amante ou o traidor, e o sujeito é

m reduzido ao eu, tomado como objeto pelo outro. O delírio não modifica a particularidade
do funcionamento do significante da psicose, só oferece um suplemento, para que suijam
cadeias e que assim o sujeito possa encontrar um significante que o represente. O delírio,
enquanto significação, implica uma barreira que protege o sujeito de cair nas garras do
p» gozo mortífero. Contorno e barreira: duas expressões para dizermos da função da cadeia
que se reata no delírio.
Porém, significação implica em que um significante surja no lugar de outro, e isto se
denomina metáfora. Para marcar sua diferença, J. Lacan a denomina “metáfora delirante”
T» (o adjetivo delirante quer dizer fora da norma edípica).

T® Na metáfora delirante, o sujeito psicótico fabrica um substituto para o lugar Lei (no
caso Schreber denominada Ordem do Mundo), e destaca um significante para substituir o
falo. O falo é substituído por outro significante denominado Ideal (primeira marca do Outro
onipotente). É o significante Ideal (no caso do presidente D. P. Schreber = mulher de
Deus) que, destacado do tesouro dos significantes, organiza e fixa uma significação que
permite ao sujeito se distanciar do objeto. A metáfora delirante tem como função
contrabalançar a posição do sujeito do gozo, introduzir uma mínima oscilação, uma mínima
diferença, a partir de uma proporção inventada.
Lembremos as palavras de Freud, quando define o delírio como tentativa de reatar
os laços com a realidade, para dizer que a metáfora pode ser pensada como um delírio bem
sucedido. Nem todo delírio se constitui como uma metáfora delirante. Utilizaremos o
esquema I, inventado por J. Lacan para pensar a topologia da construção delirante.

“...Em relação à cadeia do delírio o sujeito nos parece ao mesmo tempo agente e
»I36
paciente. O delírio tanto mais sofrido por ele quanto mais ele não organiza...

A noção de agente comporta a idéia de uma atividade, o que dá uma orientação para o
tratamento: manter essa vertente, para diminuir os efeitos onde o sujeito se reduz a um puro

136 LACAN, J. (1955-56) Seminário livro 3 “Aspsicoses”, ob. cií.

96

i ^
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*
I
s
i
e Orientados por S. Freud, no texto sobre o narcisismo, lembramos algo que dissemos
anteriormente, mas que retormaremos para dar um outro encaminhamento. Nesta
elaboração, o delírio é situado como um produto psíquico que funciona compensando a
©
falta de enlaces provocada pela a ausência do objeto fantasiado. Esta afirmação nos
permitiría perguntar sobre o estatuto da metáfora delirante? Podemos pensar a construção
©
delirante como equivalente da fantasia? Em que sentido?
A fórmula da fantasia, inventada por J. Lacan, articula dois termos: o sujeito dividido e o
objeto “a” ($<>a). Essa articulação se produz a partir da operação da castração, ou seja, da
inclusão da lei do signifícante. A fantasia promove a diferença entre o sujeito e o objeto,
©
m articulando-os através de duas operações: a alienação, que se baseia na operação matemática de
reunião (V ), e a separação, suportada na operação matemática de interseção ( A )140.
Não podemos afirmar que ambas as construções sejam idênticas, já que ambas
surgem regidas por distintas operações. A primeira vista, nos parece que somente podemos
0 considerá-las eqüivalentes quanto à sua função. Assim, o delírio, transformado numa
0 metáfora delirante, isto é, tendo construído uma verdadeira proporção, restaura uma certa
oscilação entre o sujeito e o objeto.

0 A função do objeto pode ser pensada como o complemento à referência negativa do sujeito,
na medida em que pode vir a encarnar o que falta ao sujeito.141 Como já observamos, na psicose,
P o objeto “a” surge não como complemento e sim como aquilo que se assimila ao sujeito - está ali,
0 não falta. Essa irrupção do objeto no campo da realidade (voz e olhar) é explicada pela falta de
0 extração do objeto. O objeto é extraído do campo pela operação da castração, que toma o objeto
0
0 perdido (a/cp). Por essa razão é difícil pensar em como o sujeito pode vir a pedi-lo. Assim, o

0 sujeito na psicose se apresenta, se oferece ao Outro, como o objeto a. Essa afirmação é outra
0 forma dizer o que S. Freud formula como “desligamento da libido dos objetos e depósito da
0 libido no eu”, tomando-o como objeto.
0 Quanto à equivalência entre metáfora delirante e fantasia, encontramos que ambas são
0
0 significações fixas que orientam a vida do sujeito. Significações fixas que organizam o campo do

0 gozo. A fantasia, efeito da castração, surge velada, inconsciente, e só pode ser construída a partir

l
l 140 As operações de alienação e separação encontram-seamplamente desenvolvidas por J. Lacan, no
Seminário livro 11 “Os quatro conceitosfundamentais da psicanálise", no capítulo “O sujeito e o Outro (I),

i.
Jorge ZaharEd, 3ra edição, 1988.p. 194.
141 MILLER, J. A. “Clinique Ironique" in: Rev. Le causefreudienne N° 23,Paris, Navarin, 1993.

98

f
9
da fala do paciente em análise. O delírio é uma significação consciente que dá sentido e lugar ao
sujeito na sua relação com o Outro. De qualquer forma, mesmo com suas diferenças, ambos têm
como função promover uma articulação do sujeito com o objeto. No caso da metáfora delirante,
&
mantém-se a posição narcisista, e, pela via do imaginário surge um suplemento (signifícante
Ideal) que permite uma distância entre o sujeito e o objeto.
©
© Retomamos o que já dissemos anteriormente sobre o encontro com o analista, encontro que
© promove a fala, e esse falar implica a articulação de significantes, implica a atividade, o que de
entrada pode oferecer um certo antídoto para a posição de absoluta passividade - de ser o objeto
do Outro. É bastante freqüente que os pacientes nos comuniquem o efeito de uma certa
pacificação, em relação à irrupção de um gozo mortificante, correlativo ao esmagamento ou
©
abolição do sujeito, gozado pelo Outro. Até aqui, temos clareza de que uma das funções do
© analista, na psicose, é construir uma barreira ao gozo do Outro.
©
O delírio e sua topologia: esquema I
e Interessa-nos manusear o esquema I, por ser justamente a partir deste que poderemos pensar a
topologia do delírio. Este esquema, apresentado por J. Lacan no escrito “De una cuestión preliminar
a todo tratamiento de la psicosis”142, no ano 1958, resulta da transformação do esquema R, e tem

0 por função explicitar a estrutura do sujeito psicótico numa estabilização delirante.


Como já dissemos, para J. Lacan a causa da psicose está localizada na falta de inscrição do
0 signifícante Nome-do-Pai no lugar do Outro (simbólico), o que ocasiona um remanejamento do
0 registro imaginário, que se traduz por uma regressão tópica ao estádio do espelho.
0 Na ausência de inscrição do signifícante Nome-do-Pai, os vértices <p e P se
0
0 convertem em buracos, que se refletem nas linhas im e MI, encurvando-as e

0 transformando o plano projetivo num plano hiperbólico Constatamos, nesta operação,


0 uma mudança topológica do esquema R.
0 Como pensarmos a topologia do esquema I ? Neste ponto, as orientações dadas por
0 Darmon143 nos ajudarão a pensar, em termos topológicos, a transformação do esquema.
0
0 Todas as transformações que constituem a construção delirante oferecem uma

0 “solução elegante”144 para o caos provocado pelo desencadeamento psicótico, onde o eu/

0
0 142 LACAN, J. .ob. cit.
143 DARMON, M “Essais sur la topologie Lacanienne”, Paris, Edicion d’Ia Associação Freudienne, 1990.
0 144 Expressão utilizada por J. Lacan. Ver nota 123.
0 99

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sujeito foi assimilado pelo objeto. Esse momento é indicado pela convergência nos pontos
a’ e a, no centro do esquema.
O esquema I nos indica que o sujeito psicótico trabalha a partir dos elementos que
dispõe, distanciando o eu do outro (a’—a), assim como também reatando os laços entre os

três registros: simbólico, real e imaginário. Considerando o delírio como uma significação
$ que comporta uma mensagem, é fundamental perceber o lugar para onde este discurso se
endereça. Prova disto é dada pela importância que ocupa seu médico, sua mulher e o
s» leitor de suas Memórias, para Schreber. Pensamos que este lugar para onde o delírio se
endereça é fundamental, no sentido de poder permitir, se bem acolhido, que este se
m transforme numa metáfora delirante.
©
© Isto se opera da seguinte maneira: o sujeito psicótico reconstrói o campo da
© realidade, fabricando um substituto para o falo ((p) através da relação entre i - m, e na
relação I - M constrói a instância que impõe a lei, substituindo o Nome-do-Pai. As linhas
© que delimitamos diferenciam claramente dois campos: Imaginário e Simbólico.
Esquema I:

0 (se dirigo a nosotros) 0

I I floco transoxuallBtn [j|j

0
0

0
0
*
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*
*
*
Examinemos a transformação do esquema R em esquema I. A foraclusão do Nome-do-
Pai produz um buraco no nível do Simbólico, assim como também do lado do Imaginário. Como
/
dissemos anteriormente, esses buracos encurvam as linhas im e Mi, enviando as mesmas para o
*
infinito, e, por conseguinte, os quatro pontos de referência do sujeito (i, m, M, I).
*

100

W>
©
No sentido de apreender a topologia do esquema I, Darmon propõe identificar os
pontos do esquema R num disco, representando desta forma o esquema projetivo. A borda
do disco constitui uma representação do infinito pelos pontos de fuga. Identificando os
I» pontos i m e M I na borda do disco e unindo esses pontos, temos, como resultado, retas.
Mas, se esse diagrama é observado com um olhar hiperbólico, a representação do infinito
desaparece. Isto se deve ao fato de que o infinito está presente sem precisar de
representantes. Sem essa representação do infinito os pontos situados i m M I não se
m constituem como vértices.
Verificamos que o tratamento do infinito no esquema I, ao estar inserido no plano
hiperbólico, provoca na construção delirante uma especificidade, tanto em relação ao
©
tempo quanto ao espaço. Ambos se infinitizam.
A faixa de Moebius do esquema R, transforma-se em retas assíntotas, onde é
© possível marcar os limites outorgados pelas mesmas. A ausência da banda de Moebius faz
do Esquema I um plano hiperbólico orientado.
e Encontramos, no texto de Darmon, uma série de operações para dar conta da
transformação do esquema R em I, mas não é nosso interesse repetir aqui todos os passos
0
que ele realiza, e sim remarcar as conseqüências que acarreta, no delírio, essa
transformação operada no tempo e no espaço, representada pela sua inserção no espaço
0 hiperbólico.
Tanto S. Freud como J. Lacan, apoiados no caso Schreber, nos dão indicações para
pensarmos essas conseqüências. No nível da intuição, o Deus de Schreber introduz um
hiperespaço que se exprime nas transmissões que ele próprio recebe, através de fios que,
percorrendo um trajeto parabólico, entram diretamente no seu crânio. O ser de Deus se retira
9 cada vez mais longe no espaço, como também estende-se cada vez mais a medida do tempo.
*
Em síntese, a presença do infinito tem conseqüências importantes na construção da
*
*
nova realidade, na relação entre o eu do sujeito e o outro. A orientabilidade se baseia
numa lógica binária que se expressa pelo “tudo ou nada”, dentro ou fora, exterior ou

i
interior, inserida num movimento assintótico, a partir da introdução do significante Ideal,
que é indicado no lugar do Ideal do eu. Este significante ideal re-ordena a lógica binária,
impedindo a colisão entre o sujeito e o objeto. O ideal traz algo da ordem do irrealizável,
adiado, mas sempre no horizonte. Ocorre que o encontro que implicaria a coincidência

101

$
entre o sujeito e o objeto é adiado infinitamente. Assim, se produz uma separação entre os
pontos m (eu do sujeito) e M (lugar do Outro primordial)145.
É através desta demarcação do ideal que o sujeito psicótico consegue um maior
“jogo de cintura” na sua relação com a linguagem. O esquema I se sustenta numa
proporção, e é ali que se constitui o delírio numa verdadeira suplência (metáfora delirante).
Orientados por J. A Miller146, introduzimos, na leitura do esquema I, a noção de
*> objeto “a”, o do “mais de gozar”, enquanto um gozo complementário da “falta a ser” do
sujeito147. O gozo surge no esquema como prometido, no final do movimento assintótico,
e> sempre diferido, adiado, mas de alguma forma também vivido no presente. Como pensar
©
esse presente? Nos apoiamos no caso Schreber para pensar esta particularidade. No inicio
©
m de seu delírio, Schreber ocupa o lugar de dejeto, situação que se inverte ao encontrar um
© valor a mais, no “mais de gozar” de Deus.
© J. Lacan situa um gozo no nível da imagem, quando Schreber se situa frente ao
m espelho e observa seus seios de mulher. Desta forma, aí se produz um gozo imaginário. J. A
©
Miller propõe reconhecer outro estatuto nesse gozo, como aquele que se condensa como

m ”mais de gozar”. Esse gozo fica circunscrito, fixado a esse olhar, presença do objeto a.

0 Assim, cada vez fica mais claro como o delírio pode ser uma via para o tratamento
de algumas psicoses, na medida em que aponta para uma reconstrução da realidade na qual
0 podem vir a se alojar o sujeito e o objeto.
Para finalizar, retomamos algumas das idéias que consideramos importantes, nesta
construção:
1. A demarcação do Ideal do Eu enquanto significante ideal, cuja função é ordenar a
batería significante, ancorada numa lógica binária. O ideal introduz um tempo e um
* movimento assintótico, protegendo o sujeito de sua assimilação ao objeto.
*

9
9
9 145 MILLER, J. A. introduz, no texto "Um suplemento topológico a “De una cuestión preliminar...” a
9 fórmula: MOin, para escrever a distância entre m-M. Esse losango indica tanto a operação de reunião como
9 de interseção, em termos matemáticos, com o que podemos interpretar as duas operações propostas para a
produção do sujeito: alienação e separação.
9 f46 MILLER, J. A, Id
9 147 É através do corte da cadeia significante que se verifica a estrutura do sujeito como discontinuidade no
real. Assim o sujeito se constitui se subtraindo do Outro (conjunto dos significantes), descompletando-lhe
9 pelo fato que se conta aí como falta.
9 102
2. Surge uma proporção a partir dos quatro signifícantes em tensão que organizam o
campo da realidade. Uma proporção inserida num espaço hiperbólico, que introduz a
infínitização como um recurso para separar o sujeito do objeto, o eu do outro (mOM).
3. A construção da realidade promove um velamento do objeto “a” na sua
dimensão real, mas não é totalmente eficaz nesta função, devido ao fato de que o objeto não
é extraído148 do campo da realidade.
* 4. A metáfora delirante é uma solução bem sofisticada, que permite ao sujeito
m encontrar um nome para esse gozo, delimitando-o.

m III. 2. SOBRE AS SUPLÊNCIAS


m
©
m Poderiamos considerar a metáfora delirante como um suplência que permite a
0 restauração de uma diferença entre o sujeito e o objeto? Esta pergunta tem sido
m parcialmente respondida, mas continua em aberto, exigindo uma maior precisão.
Para continuar nosso trabalho, nos serviremos das articulações que correspondem

* aos seminários “RSI” e “O Sinthoma”, ditados por J. Lacan nos anos 1975 e 1976,
respectivamente. Não as abarcaremos em toda sua extensão, e sim realizaremos um recorte
0
0 que obedece, precisamente, a nosso interesse de encontrar suportes que permitam pensar se
é possível a entrada do analista - operada pela transferência delirante como uma suplência
0 que denominamos de “provisória”-, no sentido de abrir um campo propício para a
0 construção de uma suplência que possa prescindir da presença do analista.
0 Situamos a metáfora como uma proporção, termo que tomamos no sentido
0
0 matemático, isto é, como uma medida comum, que organiza um campo de significação que

0 estabiliza a relação entre significante e significado, através da suplência da lei paterna por
0 um lado, e, por outro, dando lugar a uma suplência do falo.
0.
0
0
0 148 A extração do objeto “a” comporta a operação de castração, que podemos escrever da seguinte forma: a/cp
No caso da psicose, o falo em ausência é suprido na metáfora delirante pelo significante ideal, não possuindo
a mesma possibilidade do falo, isto é, de inscrever a falta do objeto no Outro.

103

m
%

fc
Demarcaremos alguns elementos sobre a noção de suplência para encaminhar a
questão que nos ocupa, a partir dos quais, deixaremos preparado o caminho da discussão
*
que será retomada na apresentação do caso George.
*
A primeira notícia que encontramos da suplência está no escrito “De um cuestión
preliminar...”, onde J. Lacan se refere ao Presidente Schreber:
*
* ”...logró suplir el vacio bruscamente vislumbrado de la Verwerjung
inaugural. »I49

Mas esta idéia só foi desenvolvida anos mas tarde, a propósito do nó borromeano150.
©
Consideramos o nó borromeano como uma escrita topológica que pode nos permitir
m
m entender o texto de J. Lacan, e, íundamentalmente, nos ajudar a escutar os pacientes, e, a
© posteriori, construir um caso.
J. Lacan faz um uso particular do nó borromeano, ao enunciar que não se trata de um
m modelo, nem de uma ilustração, e sim de uma forma de apresentar a estrutura a partir do
© real, do simbólico e do imaginário, isto, é dos três registros que propõe para a estrutura do
sujeito. A medida comum entre os três registros é sua amarração borromenana (fig. 1).
Essa amarração consiste em que, cortando qualquer um de seus elos, todos se desligam.
0
Inicialmente, J. Lacan afirma que seu nó é de três elos (RSI), diferenciando-se de S.
Freud, que propõe Inconsciente/Precon./ Consciente, e Id/Ego/Superego, de um lado, e de
outro, um quarto denominado “realidade psíquica” ou o “complexo de Edipo”. Esta
afirmação é substituída no Seminário livro 23, “O Sinthoma ”, onde J. Lacan concorda com
S. Freud de que é necessário o quarto elo, considerando que o nó de três se apresenta
inviável para suportar a estrutura do sujeito na psicanálise. Veremos a quê obedece essa
*
transformação.
*
A suplência é o quarto elo do nó, solução necessária para todo ser falante para fazer
9 frente a uma falha estrutural (apontado no nó de três elos) que abre para a dispersão151, isto
9 é, a separação dos registros (real, simbólico, imaginário). Solução que possibilita manter
9
9
9 149 LACAN, J.ob.cit.
150 Define-se por uma certa maneira de nodular elos. É por um abuso de linguagem que se denomina nó
borromeano para designar a nodulação borromenana de três elos. trata-se de uma cadeia borromeana.
151 Em termos matemáticos essa dispersão não se manifesta no nó de três, a não ser cortando-se um elo
9 qualquer.
9
9
\
104

9e
$
Si
s

Si juntos os três registros, e ao mesmo tempo diferenciá-los claramente. Essa falha é
elaborada por J. A. Miller a partir da foraclusão generalizada152, que se traduz pelo “não há
%
relação sexual” ou “a mulher não existe”. No nó de três elos, o foracluído é a amarração
%
% borromeana, que obriga ao sujeito a suprir, a construir um suplemento.
Lembremos que para J. Lacan a foraclusão, nos anos 50, se desenvolveu em torno de
um significante, denominado Nome-do-Pai. Assim, a foraclusão foi tomada como o
mecanismo fundador da psicose. A estrutura da psicose se erige a partir do “não” ao Pai.
Essa articulação foi construída tendo como modelo a neurose, e, é por essa razão que
r* a solução do delírio é apresentada no esquema 1 deduzida do esquema R. Em relação ao
sintoma, também pode se pensar o mesmo. O sintoma, enquanto formação do inconsciente,
é tomado como metáfora, e os fenômenos psicóticos são articulados ao significante real,

P? desarticulados, fora da cadeia, produzidos pela carência do efeito metafórico. Nestes

F? termos, a carência (a ausência do Nome-do-Pai) acarreta uma estrutura psicótica. Isto

P? outorgou à estrutura da psicose um caráter deficitário, situando-a como uma estrutura


P5 defeituosa em relação ao modelo neurótico.
r? A idéia de uma foraclusão generalizada abrange todos os seres falantes, sendo
inerente e explicita à inconsistência da estrutura, e se escreve S(/(). A partir dessa noção, a

K solução neurótica é re-situada, afastando-se do lugar de modelo, de paradigma, em relação

K ao qual são pensadas as outras estruturas. A psicose se produz como uma solução
específica frente à falha estrutural e se traduz pelo “não” ao Pai. Entendemos que essa nova
elaboração consegue situar de maneira positiva a estrutura da psicose e da neurose,
definidas a partir da resposta que o sujeito dá à falha estrutural.
Atualmente, encontramos em Colete Soler 153, bem como em outros analistas, a idéia de
uma teoria generalizada do sintoma, teoria que vale tanto para a neurose como para a psicose; e
uma restringida, isto é, a metáfora neurótica, através da função do Nome-do-Pai. O interessante
disto é que, enquanto para a neurose se pode fazer uma teoria restringida, para a psicose isto não é
possível devido à singularidade de cada caso, exigindo o trabalho de se verificar um a um como
se produz a suplência que mantém nodulados os três registros

152 MILLER, J. A. Forclusión generalizada in: “Los signos dei gozo ” Mcmanlial Ed. BsAs 1996.
Esta expressão foi introduzida por J. A Miller para indicar a falha radical inerente a toda estrutura.
153 SOLER, C. “L’expérience énigmatique du psychotique, de Schreber à Joyce”in: Le Cause Freudienne, N°
23, Paris, Navarin, 1993.

105

j Q
Lembremos que, em 1963, J. Lacan passa o Nome-do-Pai154 do singular ao plural,
indicando assim que há mais de um Nome para o Pai. No Seminário livro 22, RSI, se refere
%
% a este momento dizendo:

% “...não é por nada que chamava isso de “Os Nomes do Pai” e não o “Nome-do-
Pai”, eu tinha algumas idéias das suplências que o campo toma, o discurso
analítico que faz com essa estréia, por Freud dos Nomes do Pai, é porque essa

■!> suplência é indispensável que ela tem vez: nosso imaginário, nosso simbólico,
nosso real estão talvez para cada um de nós ainda num estado de suficiente

fm dissociação para que só o Nome-do-Pai faça nó borromeano e mantenha tudo

fm isso junto, faça nó a partir do simbólico, do imaginário e do real. »155

O nó borromeano de três elos articula os três registros: no real, sustenta a ex­


istência, o simbólico é essencialmente o furo, e o imaginário é o suporte da consistência.
Em relação ao real, J. Lacan afirma que:

“...por existir fora do imaginário e do simbólico, ele se choca, atua muito


especialmente nesse algo que é da ordem da limitação dos dois outros, a partir
do momento em que ele lhes é borromeanamente nodulado, lhe resistem. Isto
quer dizer que o real só tem ex-sistência...ao encontrar o estancamento do
simbólico e do imaginário. »>156

Mas insistimos em perguntar: qual é a necessidade de passar do nó de três e propor


um quarta consistência (elo), indicadora da suplência na estrutura? Esse nó de três elos,
enquanto cadeia borromeana mínima, padece de um problema, é simétrico. Os três registros
assim amarrados apresentam uma homogeneidade que impede sua distinção.
J. Lacan diz, no Seminário O Sinihoma:

“ ...os três círculos do nó borromeano são, a título de círculo, todos três


«157
equivalentes -quero dizer são constituídos de algo que se reproduz nos três.

154 LACAN, J. Seminário ”OsNomes do Pai”, inédito, 1963.


155 LACAN, J. Seminário livro 22 RSI, inédito, 11-02-75.
156 LACAN, J. Seminário livro 23, O Sinihoma, inédito 16-12-76.
157 LACAN, J. Seminário livro 23 “O sinihoma ", inédito.

106
%

%
%
O que se reproduz é o Um. São três uns. Cada elo comporta a consistência na
%
%
corda, o furo no centro e fora a existência. A diferença está na sua articulação. J. Lacan
% ensaia colori-los ou numerá-los para produzir a diferença. Mas isto não resolve o problema.
% O recurso final que J. Lacan constrói se localiza no Seminário livro 23, “O
Sinthomd\ Este consiste em ser o quarto elo, que introduz a dessimetria, diferenciando
assim os registros. Antes de chegar ao quarto, Lacan resiste e ensaia duplicar cada elo,
solução que abandona.
No Seminário livro 22, RSI, encontramos a função da nomeação, função do pai, que
permite passar do Nome-do-Pai ao pai do nome, ou ao pai como aquele que nomeia. O dar-
nome, função de nomear, surge articulado inicialmente ao Simbólico Mas J. Lacan afirma
que pode existir a nomeação real e a imaginária, articulando-as à angústia e à inibição,
respectivamente. O sintoma é articulado ao simbólico.
No Seminário livro 23 “O Siníhoma”, J. Lacan deixa de lado a angústia e a
inibição para continuar a pensar o sintoma. O Sintoma se transforma no Sinthoma,
introduzindo-lhe um “h” que coincide com a função de suplemento que o simbólico precisa
(introdução da dialética) para dar nome às coisas, índice de toda diferença.
Em outras palavras, a necessidade de incluir o quarto elo para pensar a estrutura do
sujeito obedece à função de nomeação, que tem por resultado distinguir um elo de outro. A
suplência no simbólico está dada pelo Nome-do-Pai na neurose, mas essa será uma das
modalidades, podendo existir outras.
O Nome-do-Pai - Sinthoma mantém unido de maneira borromeana os três elos,
sendo mais um elo, mais uma corda que, como sintoma, se amarra no simbólico. Se
estabelece um enlace privilegiado entre o sinthoma, identificado pela letra Z e simbólico,
que implica a renovação do estatuto do simbólico (fig. 2). Desta forma, o sinthoma
especifica o inconsciente e singulariza o sujeito.158 Podemos pensar que esta renovação do
simbólico é uma outra forma de situar a operação de duplicação do Outro, apresentada por
J. Lacan, no escrito “De una cuestión preliminar...”.159

158 SKRIABINE, P. “La clinica dei nudo borromeano” in: Loucura: Clinicay suplência, AEOLIA, DOR, S.L
Ed. Madrid, 1994.
159
LACAN, J. ob. cit.

107
N
*
%
O sinthoma-Nome-do-Pai vem a “suprir” aquilo que responde à falha da estrutura
%
S(A). J. Lacan apresenta outras formas de suplências, entre as quais destacamos o nó de
%
Joyce que mantém unidos os três elos, mas de uma forma não borromeana.
O nó de trevo (fig. 3) é o nó proposto para a paranóia, onde os três registros se
encontram em continuidade. O surto pode se escrever como a ruptura do nó. O nó de trevo

■*> pode ser considerado como o resultado da construção delirante. A pontas rompidas se
emendam, se colam e se transformam no nó de trevo. Neste caso, é através de um elo que
m se configuram os três campos, real simbólico e imaginário Vemos que, além de colar as
m pontas, há um trabalho de fazer um nó, a partir do qual se delimitaram os três campos.
Todo o problema do trabalho com sujeitos psicóticos gira em torno da possibilidade
de encontrar algo que cumpra a função de nomear, promovendo assim uma estabilização na
psicose. Até onde chegamos, consideramos que isto se produz por uma construção qué
permite o reatamento da cadeia significante, abrindo uma distância entre o sujeito e o
objeto. Assim, o sujeito pode, através de metáfora delirante, construir uma suplência para a
lei e para o falo. Essa metáfora é, na verdade, uma ficção que se desprende de um
signifícante que elevado à condição de ideal, situa a dimensão de realização no futuro e,
portanto, algo ausente no presente, ordena a cadeia signifícante, localizando e delimitando
o surgimento do gozo.
A segunda questão levantada neste tópico (e que se refere à entrada do analista e sua
função, pela via de uma transferência delirante), será retomada 11a parte IV desta tese.

Nó borromeano de três elos (fig. 1)

108
\

s
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Nó borromeano de 4 elos (fíg. 2)
*

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m Nó de trevo (fíg. 3)

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109

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% QUARTA PARTE

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m
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m TRABALHANDO SOBRE O TEMA DA

*
TRANSFERÊNCIA NA PSICOSE E SOBRE O LUGAR
& PARA O ANALISTA NO TRATAMENTO
&

&

110
%

%>
IV. 1. INTRODUÇÃO
%
% Consideramos importante lembrar que o conceito é, antes de mais nada, uma
%
formalização. E, como toda formalização, não deve transformar-se numa “camisa de
força”, e sim deve nos servir para nos guiar na clínica. Portanto, utilizaremos o conceito
m como um mapa que poderá provisoriamente nos orientar, como àquele que chega a uma
m
m cidade desconhecida.
m A concepção de Freud sobre a transferência não pode nos auxiliar no tratamento da
psicose, na medida em que esta foi construída e concebida, como observamos na parte II
m desta investigação, dentro dos parâmetros do campo da neurose.
m Constatamos, através de nosso estudo e de nossa clínica, que o principal problema
m na estrutura da psicose gira em torno do lugar do objeto. Este se apresenta numa
coincidência, numa paridade com o eu, o que produz uma inversão no seu comparecimento.
& Desta forma, podemos dizer que, na psicose, lá onde se espera que surja o sujeito,
encontramos o objeto. O mecanismo de foraclusão do Nome-do-Pai, que rege a estrutura da
psicose, é responsável pelos transtornos ou distúrbios de linguagem, que fazem surgir o
signifícante desencadeado que designa ao sujeito o lugar de um objeto preso a um gozo
desregrado, desenfreado.

£
*
A inversão do lugar do objeto, efeito da estrutura, nos obriga a repensar no estatuto
do laço que os sujeitos psicóticos estabelecem, suas possiblidades e sua operatividade em
termos de tratamento.
-Ç A seguir, e para efeito de organização do tema, retomaremos algumas citações da
A obra de J. Lacan sobre três tópicos: o tratamento, a transferência, o delírio e a manobra de


*
transferência.

Sobre o tratamento da psicose:

A No Seminário livro ,3 "As psicoses", J. Lacan diz que as contra-indicações da


A análise se colocam a partir de um caso, onde se desencadeou a psicose depois de algumas
A
A 111

©
sessões de análise, que descreve como “um pouco quentes”. Há outra indicação, aliás,
muito pessimista, onde afirma que, aceitando-se um pré-psicótico em análise, este surtará.
Entretanto, na Abertura da Seção Clínica, encontramos uma orientação que diz: o analista
“não deve recuar diante da psicose”160.
Os dois primeiros comentários apresentam uma posição bastante desencorajadora,
que se opõem ao último, mas, levemos em conta que há um espaço de vinte anos de
trabalho entre ambos. Entendemos que J. Lacan chama a atenção do analista, no sentido de
que não é possível estar desatento ao funcionamento da estrutura da psicose, para tratá-la.
Essa é uma questão preliminar a todo tratamento, na qual situamos a questão de precisar o
que denominamos transferência, quando nos encontramos no domínio da psicose. É
impossível para um analista conduzir o tratamento de um sujeito psicótico baseando-se nos
pressupostos extraídos da neurose.
As duas observações de J. Lacan ilustram a divisão que há entre os analistas, no
que se refere ao tratamento da psicose. Temos, por um lado, aqueles que descartam toda e
qualquer possibilidade, e, outros (entre os quais nos encontramos), que fazem uma aposta
na clínica, tentando avançar em torno da pergunta: o que a psicanálise pode oferecer aos
sujeitos psicóticos?

Sobre o delírio e transferência:


Não encontramos, na obra de J. Lacan, nenhum texto dedicado ao tema da
transferência na psicose, e os comentários são raros. A seguir, recortaremos alguns
parágrafos que se referem ao assunto. A primeira citação é em torno da relação de
Schreber com Flechsig e outros personagens masculinos:

“...uma transferência que não deve, sem dúvida, ser tomada inteiramente no
sentido em que entendemos comumente, mas é alguma coisa dessa ordem,
ligada de maneira singular àqueles que tiveram que cuidar dele. 5>161

“O delírio pode ser considerado como uma perturbação da relação com o outro,
e ele está portanto ligado ao mecanismo transferenciai. Mas, quis mostrar-lhes

160 LACAN, J. (1977) “Abertura da Seção Clínica” in: 1 Rev. Psicoanálisis, Com. Papel, Montevideo. p. 9.
161 LACAR J. (1955-56) Seminário livro 3 “Aspsicoses” Jorge Zahar Ed, RJ 1988. pág. 41.

112
que ele se aclarava em todos os seus fenômenos, e creio mesmo poder dizer em
sua dinâmica, em referência às funções e à estrutura da fala. Também aí, trata-
se de liberar esse mecanismo transferenciai de não sei que confusas relações de
objeto. »I62

No primeiro parágrafo ele afirma que há transferência na psicose, mas que esta não
pode ser tomada como o que comumente se entende como tal, isto é, a transferência na
neurose. No segundo, oferece uma direção para trilhar, e que afirma que o mecanismo da
transferência inerente ao delírio deve ser retomado a partir da estrutura da fala, para liberá-
lo das confusões existentes na época (em torno das relações de objeto, que eram reduzidas
ao registro imaginário). J. Lacan aponta para o lugar do Outro, como a instância simbólica
por excelência, da qual dependem as relações de objeto. Nos anos 50, esta noção da relação
de objeto estava articulada ao narcisismo, e colocada no primeiro plano das elaborações
analíticas.163 No intuito de elucidar o problema, J. Lacan utiliza os registros real, imaginário
e simbólico para ordenar as categorias da falta, situando a privação, a frustração e a
castração. Nesta leitura, o acento está colocado na falta do objeto. Desta forma, podemos
delimitar os seguintes eixos, para avançar no tema da transferência na estrutura da psicose:
- A relação entre o sujeito e o Outro (vertente simbólica).
- A relação do semelhante com o semelhante, cuja matriz é o estádio do espelho (vertente
imaginária).
- O objeto “a”, objeto que Lacan coloca ao nível da causa, (vertente real).
Essa distinção segundo os três registros nos permitirá situar com mais clareza o problema
do lugar do objeto na transferência do sujeito psicótico, e cernir, com mais precisão, o lugar
do analista na direção do tratamento.

Sobre a manobra de transferência


Encontramos ao final do escrito “De una cuestión preliminar...”164 uma observação
que merece atenção:

162 LACAN,, J. (1955-56) Seminário livro 3 “Aspsicoses” Jorge Zahar Ed. RJ 1988. pág. 349.
163 Ver comentário de LACAN, J. no Seminário livro 1, “Os escritos técnicos de Freud”, p. 130.
164 LACAN, J. ob. cit.

113
“Dejaremos aqui por ahora esta cuestión preliminar a todo tratamiento posible
de la psicosis, que introduce, como se ve, la concepción que hay que formarse de
la maniobra, en este tratamiento, de Ia transferência. Decir lo que en este terreno
podemos hacer seria prematuro, porque seria ir ahora “más allá de Freud”, y la
cuestión de superar a Freud ni se plantea siquiera cuando el psicoanálisis de
después ha vuelto, como hemos dicho, a la etapa de antes. Es por lo menos lo
que nos aparta de todo otro objeto que el de restaurar el acceso de la experiencia
que Freud descubrió. Pues utilizar Ia técnica que él instituyó, fuera de la
experiencia a la que se aplica, es tan estúpido como echar los bofes en el remo
cuando el navio está en a la arena. »165

Desta forma, entendemos que não há como conceber a manobra de transferência sem
considerar a estrutura na qual se insere o sujeito. A metáfora do navio na areia, apresentada por
J. Lacan, indica claramente que o analista precisa saber, antes de mais nada, em que lugar está
situado. Portanto, reafirmamos nossa posição, de que não é possível transportar o conceito de
transferência - tal como foi construído inicialmente, isto é, articulado ao campo da neurose -,
para o campo da psicose, sem distinguir sua particularidade.
A orientação que seguimos visa relacionar a concepção de transferência e sua manobra
à estrutura da fala; orientação que serve para todo analista, no sentido de se deixar guiar pela
fala do sujeito, a partir da qual pode encontrar as possibilidades de operar. Em outras palavras,
o lugar do analista depende estreitamente da estrutura onde o sujeito se insere.

IV.2. TRANSFERÊNCIA E ESTRUTURA DA FALA NA PSICOSE

No capítulo anterior, discorremos de maneira bastante vasta em tomo da estrutura


da psicose, articulada à Verwerfung do Nome-do Pai. Esta tese situa a causa da psicose na
foraclusão do signifícante da lei, significante responsável pela introdução da castração no
registro simbólico. Esta operação organiza uma estrutura na qual se manifesta um gozo não
significantizado, que tem como caraterística a falta de regra, de medida.
Desta forma, o psicótico, inserido na linguagem como todo ser falante, preso a um
Outro sem barra, não conta com a lei que regimenta o gozo, pela vertente do falo; razão pela

165 LACAN, J. Escritos 2, Siglo XXI Ed. Madrid, 1993, p.564.

114
qual se vê às voltas com a necessidade imperiosa de realizar um trabalho suplementar, que
coloque um limite ao gozo desenfreado, que dele se apodera tomando-o como um objeto.
Observamos anteriormente que, nos fenômenos alucinátorios, o retorno do
foracluído surge como um significante no real, que faz alusão maciça ao ser do sujeito, e a
sua substância do “a” do Outro. A alucinação visa o sujeito, mas não o representa, na
medida em que se apresenta como um significante desencadeado. No fenômeno do delírio,
há uma tentativa de construir uma metáfora delirante, de forma tal que o sujeito não seja
abandonado, largado na posição de “a” que lhe destina a alucinação. A construção delirante
inventa uma nova significação, a partir de um significante (S2) que reata a cadeia.
Dissemos também que é através da metáfora delirante que se atinge uma restauração da
separação entre o sujeito e o objeto. Esta reparação, baseada numa proporção, funciona
como um suplemento que barra o gozo desregulado. A metáfora delirante é um adendo, uni
acréscimo, que tende, através de um significante ideal, regular a relação entre significante e
significado.
Nos anos 50-60, J. Lacan constrói um grafo para entender a dialética do desejo.
Inicialmente, utiliza esse grafo para representar a técnica do Wilz 166 (tirada espirituosa). É
justamente o Witz, que nos apresenta de que forma o significante joga e ganha, antes que o
sujeito perceba.

“Con su flash, lo que ilumina es la división dei sujeto consigo mismo”.167

Retomaremos a célula do grafo do desejo para pensarmos na estrutura da fala na


psicose, o que nos servirá de ponte para precisar as particularidades que surgem na
transferência, quando inserida numa estrutura psicótica.
Temos o primeiro vetor, que pode ser descrito como a sucessão de significantes: S,
S\ S”...S. Esta cadeia de sucessão obedece à diacronia, e-se produz numa lógica temporal
progressiva. O segundo vetor vai na direção oposta e implica a sincronia, na qual um
significante é escolhido em detrimento de outro, inaugurando-se o tempo retroativo.
O primeiro corte de ambos vetores é denominado por J. Lacan como o lugar do
Outro. Tudo depende do que acontece nesse ponto. Temos ali o lugar do tesouro do

166 LACAN, J. (1957-58) Seminário livro 5 “Asformações do inconsciente”, Jorge Zaliar Ed. RJ 1998.
167 LACAN, J. (1964) “Posición dei inconciente” in: Escritos 2, Siglo XXI Ed, Méjico, 1993. p. 819.

115
significante, que não deve ser tomado como um código, porque nele não há
correspondência biunívoca de um signo com algo. Mas, devemos observar que, mesmo não
sendo um código, funciona no lugar do código. Trata-se da reunião sincrônica e enumerável
de signifícantes, onde cada um se sustenta pelo princípio de oposição ao outro. É aí que se
ratifica a mensagem, e se reconhece a dimensão do para-além, no qual se situa o verdadeiro
desejo. Na segunda interseção encontramos a mensagem: s(A), isto é, a significação que
chega ao sujeito sempre de forma invertida, proveniente do Outro. Este lugar se constitui
como a pontuação, onde a significação surge como um produto acabado.

Grafo 1.

Vimos que o significante foracluído na psicose é o Nome-do-Pai. Na psicose falta


esse significante da lei no Outro. Esta falta faz com que o sujeito psicótico tenha como
tarefa suprir esse significante.
No Seminário livro 5, “As formações do inconsciente ”, J. Lacan, seguindo sua
própria recomendação (de não se recusar a aprender o que se demonstra como estrutura
numa fala), modifica a célula do grafo, a partir da foraclusão do Nome-do-Pai. Isto serve
para entendermos os dois fenômenos alucinatórios: mensagens de código e código de
mensagens, no caso Schreber. Diz J. Lacan, no escrito “Subversión dei sujeito e dialética
dei deseo”:

116
“Mensajes de código y código de mensaje se distinguem como formas puras en
el sujeto de la psicosis, el que se basta por ese Outro prévio. »I68

Essas formas puras se produzem porque os elos entre código e mensagem se


encontram dissociados ou rompidos, efeito da ausência do Nome-do-Pai (responsável pela
inclusão da lei do significante). O Outro prévio é justamente o Outro sem barra.
A conexão entre o lugar do Outro (A) e a mensagem s(A) fica destruída. Se supre
através do imaginário, que se dirige do Outro (A) pela via do eu ideal ao eu. A modificação
da célula fundamental do grafo do desejo nos permite pensar numa resposta que se
antecipa, substituindo a estrutura de retroação do grafo por uma estrutura de antecipação
(avanl-coup). Isto introduz a noção de um tempo diferente.

Grafo 1 (modificado na psicose) 169

r \ • • •
MJ A

Este funcionamento do tempo “avant coup”, surge pontualmente nas alucinações.


Em alguns sujeitos psicóticos este funcionamento é permanente. Lembramos de uma
paciente, que nos comunicou que ouvia permanentemente anteciparem-se, na forma de
ordens, as ações que ela realizava: “vai comer”, “vai lavar pratos”, “vai dormir”. Neste
caso, a mensagem era entendida, mas o sujeito ficava perplexo, obedecendo como um
autômato. No delírio também se produz uma antecipação, no sentido de que o sujeito

168LACAN, J. “Subversión dei sujeito y dialética dei deseo” in: Escritos 2, Siglo XXI Ed. Méjico, 1993. p.
786.
169 LACAN, J. (1957-58) Seminário livro 5 "Asformações do inconsciente", Jorge Zahar Ed. RJ 1999. p. 160.

117
percebe a interpretação como imposta. É uma resposta que comparece antecipadamente,
sem dar lugar a uma interrogação que permita uma vacilação, ou uma resignificação.
O trabalho de restituição, ao qual todo sujeito psicótico se dedica, ganha outro
estatuto, como vimos no tópico sobre “Suplências”, a partir da pluralização do Nome-do-
Pai, através da qual J. Lacan dá enfase à sua função de nomear. Inicialmente, o Nome-do-
Pai ocupou o lugar de pedra angular da teoria para diferenciar as estruturas. A pluralização
do Nome-do-Pai abriu possibilidades para se pensar no tratamento da psicose, dando ênfase
à função de nomeação do signifícante, permitindo pensar que qualquer signifícante, sob
determinadas condições, pode vir a desempenhar essa função. Surgem assim outras
formas, além do Pai do Édipo, que permitem uma nomeação. Os Nomes do Pai não apagam
as diferenças estruturais, mas, em todo caso, nos possibilitam entender os diferentes tipos
de estabilizações na psicose.
Não é suficiente ter o Nome-do-Pai, nos diz J. Lacan; o sujeito há de se servir dele,
como um instrumento: instrumento de nomeação. Dentre as suplências nos ocupamos de
entender como se dá a transformação do delírio em metáfora delirante, cuja função não é
outra que restaurar a relação entre signifícante e significado. Entendemos que esta
ordenação se opera através do signifícante Ideal, que, destacado na bateria signifícante,
fabrica um nome que barra o gozo desregrado e mortífero.

IV. 3. A ELABORAÇÃO DO SUJEITO SUPOSTO SABER

A noção de transferência foi objeto de estudo e elaboração desde o início da obra de


J. Lacan. Apresentamos, a seguir, algumas considerações que permitiram distinguir os
diferentes tempos em que o tema foi tratado.
Destacamos como primeiro tempo aquele que se inicia no texto “Función y campo de la
,170
palavra y dei lenguaje en psicoanálisis’ , e que vai até o escrito intitulado “La dirección de la

LACAN, J. (1953) “Función y campo de la palabra y dei lenguaje en psicoanálisis” in: Escritos 7, Siglo
170

XXI Ed. Méjico, 1981.

118
cura y los princípios de su poder”171, onde J. Lacan elabora a transferência no marco do ser. A
transferência não é considerada apenas uma repetição do vivido; como a presença do passado
que se opera em ato, esta apresenta algo de novo, isto é, a inclusão do analista. Cabe lembrar que,
nesta época, J. Lacan define o sujeito como “falta a ser”, desenvolvendo-se na busca da verdade,
razão que nos permite dizer que a transferência é a atribuição outorgada ao analista, e que
corresponde ao ser que falta ao sujeito. Em outras palavras, o ser surge no horizonte, situado do
lado do analista. No escrito “Función y campo da palabra y dei lenguaje...”172 encontramos um
comentário, no qual J. Lacan diz que pode ocorrer, no início da análise, um erro subjetivo, que
pode ser traduzido por: “o analista sabe”. Este fenômeno ocorre no registro imaginário e implica
a imposição de saber ao analista.
O amor, dimensão fundamental da transferência, é articulado como uma paixão do ser,
que implica supor, no Outro, o ser que falta ao sujeito. Toda esta concepção estava suportada na
noção de inter-subjetividade, que pressupunha a relação entre dois sujeitos (diálogo analítico).
A partir das elaborações contidas no Seminário livro 8, “A transferência”173,
encontramos uma retificação da noção teórica de transferência, situando uma disparidade
entre o sujeito e o objeto, que contraria a concepção de inter-subjetividade. O objeto tem
como função estancar o deslizamento infinito dos significantes, e faz do sujeito algo único,
insubstituível. É o objeto que dá a dignidade do sujeito. Neste seminário, J. Lacan
diferencia claramente a transferência do automatismo de repetição, reafirmando que há algo
novo na transferência, que se refere à inclusão do analista. Isto permite não engolfar o
fenômeno da transferência com a possibilidade geral da repetição que rege o inconsciente.
Assim, a transferência, situada no cerne da experiência analítica, apresenta um sujeito
ímpar, promovido pelo objeto.
Encontramos no Seminário livro 6, “El deseo y la inierprelación 99]
” 74, uma nova
maneira de precisar o inconsciente (que, até aí, se situava em torno da falta a ser),
articulando-o como um saber não sabido. Isto prepara o campo para a nova concepção da
transferência. Devemos lembrar outro ponto, que se refere a uma nova definição do sujeito,

171 LACAN, J. “La dirección de la cura y los princípios de su poder” in: Escritos 2, Siglo XXI Ed, Méjico,
1981.
172 LACAN, J. ob. cit.
173 LACAN, J. ob. cit.

119
e que surge pela primeira vez no Seminário livro 9, “A identificação >*175 . Ali, o sujeito é
definido pelo que representa um significante para outro significante, isto é, o sujeito é
produzido no intervalo significante. Tanto a noção de “saber não sabido” quanto a nova
definição do sujeito foram possibilitadoras de uma nova articulação da transferência. Este
momento de elaboração da transferência coincide com a construção do Sujeito suposto
Saber. Todos os fenômenos de transferência são ordenados a partir do saber.
Para apresentar a noção de Sujeito suposto Saber, tomaremos como referência, em
primeiro lugar, o Seminário livro 11, onde J. Lacan tece uma série de considerações em
tomo dos fundamentos e alicerces da psicanálise. A idéia de retomar este conceito tem por
objetivo questionar se esta nova articulação permite ou não ordenar os fenômenos que se
apresentam no campo da transferência na psicose. Esta questão servirá como eixo ou
esqueleto das elaborações que se seguem.
J. Lacan situa o desejo de Freud como a função de Sujeito suposto Saber, dizendo
que este se encontra no cerne de toda relação que o analista estabelece com a causa
analítica. O Sujeito suposto Saber não é uma definição da transferência, trata-se do pivô, da
mola da transferência, e que se desprende como uma veia, como um canal da fala que o
sujeito endereça ao analista. A palavra “veia” quer dizer, no sentido figurado, via de
comunicação, via de transporte, estrada. Isto é, surge no dispositivo que se inaugura a partir
do encontro entre um analisante e um analista.
O SsS não coincide nem com o analista nem com o analisante, mas depende desse
encontro, é algo que se descortina a partir da fala. Quando dizemos que “depende”, nos
referimos fundamentalmente à posição do analista, que incita e convida a falar tudo o que
ocorre ao analisante. A conseqüência desta demanda de “falar” instaura um Outro que sabe
o que isso quer dizer.
O conceito de Sujeito suposto Saber se opõe de maneira clara e radical a qualquer
resto da anterior concepção intersubjetiva da transferência. Não se trata de dois sujeitos, e
sim de um sujeito produzido pela fala. Este sujeito não supõe nada, ele é suposto pelo

174 LACAN, J. (1958) Seminário livro 6, ”Eldeseoysu interpretación,> inédito. (É o sonho apresentado por
S. Freud no texto “Sobre os dois princípios do funcionamento mental”; "o pai estava morto, e ele não o
sabia”, é o que permite a J. Lacan articular o inconsciente como um saber não sabido).
175 LACAN, J. (1961-62) Seminário livro 9 “A identificação”, inédito.

120
signifícante. Assim, o sujeito se reduz à função de corte, que se apresenta na sessão
analítica pelos buracos do sentido, pelas interrupções do discurso, pelo equívoco.

“Allí donde estava en este mismo momento, allí donde por poco estaba, entre
esa extinción que luce todavia y esa eclosión que se estrella, Yo (Je) puedo venir
al ser desapareciendo desde mi dicho. »176

Este sujeito aponta justamente o lugar onde “se diz mais do que se sabe”, abrindo o
campo da interpretação. É o próprio ato do analista que promove essa diferença entre o
saber sabido e o saber não sabido. Operação que inaugura, no caso da neurose, a dimensão
do inconsciente, enquanto saber não sabido, saber cifrado. Essa veia, isto é, o sujeito
suposto saber, é depreendida da fala do analisante, que obedece à regra da associação livre.
Vale a pena citarmos as palavras de J. Lacan:

“El sujeto es propiamente aquel a quien comprometemos, no a decirlo todo, que


es lo que le décimos para complacerlo - no se puede decirlo todo - sino a decir
necedades, ahí esta el asunto. »177

A regra fundamental produz a impossibilidade inerente à estrutura do inconsciente:


não há signifícante que englobe ou possa dizer tudo; em outras palavras: “não é possível
dizer tudo”. A “associação livre” gera uma fala descompromissada com o senso comum,
que obriga à coerência, e visa introduzir na fala aquilo que é da ordem da tolice, aquilo que
costuma ser colocado à margem, aquilo que é extraído do discurso corrente.
J. Lacan observa que o sujeito que interessa à psicanálise é aquele que surge na
enunciação que se denuncia, no enunciado que cai, na ignorância que se dissipa e na
ocasião que se perde. O que resta aí, nesse ponto, é a marca do que é preciso para o ser cair.
O inconsciente em psicanálise tem como pressuposto inicial o sujeito cartesiano: “penso,
logo sou”. É neste pressuposto que o inconsciente introduz uma fenda, “entre o pensar e o
ser”, pela via de uma negação: “sou onde não penso”, ou “penso onde não sou”.
Constatamos, assim, a dimensão de corte que o inconsciente suscita.

176 LACAN, J.(1960) “Subversión de sujeto y dialética dei deseo”, in: Escritos 2, Siglo XXI Ed. Méjico,
1993. p.781.
177 LACAN, J. (1972-73) Seminário libro 20 “Aún", Ed Paidós, Barcelona-Bs As, 1981. p. 31.

121
Nestas afirmações, o sujeito surge como a “falta a ser”, isto é, como efeito do
esvaziamento da consistência do ser. Essa falta, esse esvaziamento, pode ser referido a
operação de negativização que a linguagem produz sobre o ser vivo. Lá, onde comparece
essa falha, encontramos a dimensão do ser, ou seja, a causa do sujeito, causa que J. Lacan
denomina de objeto “a”178.
Assim, o SsS estabelece o campo da interpretação, articulado na sua estrutura de
enigma, de equívoco179. Esta interpretação se localiza no intervalo da cadeia signifícante,
isto é, S1-S2, se suportando na operação da separação, onde se produz uma queda do
sentido, que se constitui como um enigma.
O analista suporta, com seu desejo, a crença no inconsciente. Portanto, a
transferência depende, por um lado, da posição do sujeito em sua relação com o saber e,
por outro, da resposta do analista.
J. Lacan constrói um algoritmo para o SsS180, propondo que um signifícante (S) se
dirige a um signifícante qualquer (Sq), separado pela barra, que tem como denominador, o s
que representa o sujeito situado como efeito ou resultado da articulação signifícante:

S------>Sq
s (Sl, S2,....Sn)

Detenhamo-nos na parte superior do algoritmo: o que representa esse primeiro


signifícante? Pensamos que se trata do signifícante que se refere ao sintoma, que faz com
que alguém se dirija a um analista. O signifícante qualquer, na verdade, não é qualquer um,
e sim um qualquer, entre muitos, que indica o lugar do analista e que promove um
deslocamento, uma articulação signifícante. Encontramos na parte superior do algoritmo a
estrutura básica do signifícante, isto é, sua estruturação binária: Sl e S2.
No andar inferior, isto é, no denominador da equação, encontramos o sujeito (s) como
efeito de significação da cadeia signifícante. O sujeito, enquanto significação, está no lugar de
referente. O efeito de significação, isto é, o sujeito, depende do saber ainda latente, do lugar do
discurso do Outro, ou seja, do lugar da cadeia de signifícante inconsciente, e é situado numa

178 Introduzimos a noção de objeto “a” na parte III da tese.


179 LACAN, J. (1972) L ’Eourdity inédito.
180 LACAN, J (1967) ”Proposição sobre o psicanalista da Escola”, in: Letra Freudiana Ano 1 N° 0.

122
relação terceira que o junta ao par signifícante-significado. O “ainda latente” pressupõe outro
tempo, o futuro do pretérito composto, que pode se traduzir pela seguinte expressão: “teria sido
sendo”. O algoritmo pode ser também escrito da seguinte forma:

S—Sq
s($

E na situação analítica - onde, a partir de uma demanda, o analista responde com


outra demanda (“fale”) -, que se estabelece um discurso no qual se introduz um
significante, denominado por J. Lacan como “constituinte ternário”.
Até aqui, dissemos que a articulação de S e Sq promove o sujeito do significante,
isto é, um sujeito correlativo da cadeia inconsciente de signifícantes.
Decorrente da instalação do SsS, surge o amor de transferência. Assim, o amor se
/
dirige ao saber, especificamente aquele a quem se supõe tê-lo. E importante lembrar que este
conceito, o SsS, é transfenomênico, quer dizer, não se esgota num fenômeno: é da ordem da
estrutura. A crença, que implica em imputar um saber ao analista, pode comparecer ou surgir
de forma oposta, como uma desconfiança ou dúvida em relação a este saber do analista.
Produz-se, assim, uma relação estreita entre o saber e o amor. E interessante lembrar que, no
Seminário livro l18\ J. Lacan nomeia o amor como a mola imaginária da transferência. Mas, é
a partir do Seminário livro 11 182 que ele liga o amor (mola da transferência imaginária) ao
Sujeito suposto Saber (pivô-estrutura da transferência)
A psicanálise, a partir de sua experiência, postula que se pode constituir um saber
sobre a verdade183. Desde Freud, a verdade que interessa à psicanálise é aquela que se liga
ao inconsciente, isto é, aquilo que se encontra na diferença entre o que se quer dizer e o que
se diz. O dispositivo analítico coloca em causa essa verdade, possibilitando que ela seja dita
sempre parcialmente, denunciando o impossível da estrutura do inconsciente.

181 LACAN, J. (1953-54) Seminário livro 1 “Os escritos técnicos de Freud”, Zahar Ed. RJ. 1979.

182 LACAN, J. ob. cit.


183 A relação entre a palavra e a verdade foi inaugurada no ocidente pela tradição judaico-cristã. A partir
desta, a palavra passou a ter a função de revelação. A psicanálise retoma esta vertente, dando à palavra o
estatuto de ato, que se relaciona com a verdade do sujeito. A verdade comporta a impossibilidade de ser toda
dita. Citamos aqui um texto de S. Freud, (1906) “El psicoanalisis y el diagnóstico de los hechos en los

123
Mas, qual é o princípio que sustenta a regra da psicanálise, que dá lugar ao SsS? A
associação livre implica em acreditar que tudo tem uma causa, ou, que nada é sem causa.
Ela se baseia no “Princípio da Razão Suficiente” de Leibnitz, que estabelece que, para todo
fato, existe uma razão que o causa. Disto se depreende a idéia de que o Outro existe, de que
o Outro sabe o que isso quer dizer. Mas é preciso que o saber apresente uma fissura - eis,
aí, as formações do inconsciente, para que seja possível o sujeito se dispor a buscar. O que
busca o sujeito? Reencontrar o objeto perdido, produto de sua inserção na linguagem. O
neurótico busca esse objeto através da articulação significante (saber).
Mas, o que produz esse saber?

“Es por una homologia184 tal que va a tomar su relieve lo que es función dei
saber y Io que es su producción. La producción dei saber, en tanto que saber se
distingue de Ia verdad por ser medio de producción y no solamente trabajo. Lo
que produce ei saber es Io que yo designo bajo ei nombre de objeto “a”. Y
este “a” es lo que viene a sustituir la hiancia que se designa en el impase de la
relación sexual. Allí está Io que viene a redoblar la división dei sujeto dandole
lo que hasta allí no era aprehensible de ningúm modo, pues lo propio de la
castración es que nada puede enunciaria, porque su causa está ausente. En
su lugar viene el objeto “a” como causa substituída a eso que es, radicalmente la
falia dei sujeto. «185

Assim, o saber é, por um lado, trabalho, e por outro, meio de produção - cujo
produto é a causa do desejo - isto é, o objeto “a”. A verdade está do lado do produzido, do
lado da causa, isto é, do objeto “a”. Mas a verdade se localiza na fenda do saber, e por isto
só pode ser dita através de meias-verdades.
186
J. Lacan afirma que os neuróticos são privilegiados pela experiência do saber:
eles buscam saber. E, de fato, nossa experiência nos indica que não há muita dificuldade em
incitá-los a depositar, neste Outro, um suposto Saber. É pela via do significante que os

neuróticos buscam o objeto perdido, o objeto “a”, e é o Sujeito suposto Saber que o produz.

procedimientos judiciales"” in: Ob Completas, Vol II, que nos parece muito rico, na medida em que
diferencia o valor da verdade para o neurótico, verdade que se liga ao inconsciente.
184 Aqui J. Lacan faz alusão a diferença entre os meios de produção e o produto, no capitalismo.
185 LACAN, J.(l968-69) Seminário livro 16“De un Otro al otro", inédito, aula de 04-06-69.
186 LACAN, J. Jd

124
O saber latente, o “saber não sabido” que a psicanálise nos anuncia, tem como
suporte o signifícante como tal, e se ordena como moldura do saber. Mas, para produzir o
“saber não sabido”, cabe ao analista ocupar a função que lhe corresponde. Essa função se
traduz por um vazio de saber187, de ideais, que propicia um discurso, no qual o sujeito
escreve com suas letras a falta que o constitui. Essa idéia de função como um vazio nos
remete a Fregue188, que define a função como um vazio de argumento.
Portanto, o analista deve saber que nada sabe sobre o saber inconsciente do seu
analisante, mas, por outro lado, tem que oferecer as condições necessárias para que isto se
realize. Para tal fim, é necessário que o analista acredite na existência do inconsciente,
posição decorrente de sua própria análise.
O campo do inconsciente se opera no registro do signifícante, e, como tal, implica
em que um signifícante represente o sujeito para outro signifícante. Essa é a estrutura dé
todas as formações do inconsciente, de onde surge um gozo cifrado. O sonho, enquanto
formação do inconsciente, não nos introduz nenhuma experiência insondável do ser - há
algo que se lê no que ele diz, e podemos avançar mais ainda se retomamos os equívocos e
as dúvidas que se apresentam no seu texto.
Vimos, até aqui, que o Sujeito suposto Saber se configura pela relação estabelecida
entre sujeito e saber, relação que se dá através de um suposto. O sujeito do signifícante,
por um lado, e, por outro, um saber que produz o objeto “a”, entram em conexão através de
um suposto. Como entender esta idéia de suposição?
Encontramos, no dicionário de língua portuguesa, a seguinte definição: ato ou efeito
de supor; conjectura, hipótese; alegação. O “ato de supor” implica “fazer presumir como
necessário”. Desta forma, podemos afirmar que o sujeito presume como necessária a
existência do saber, saber inconsciente. Portanto, aqui, trata-se do sujeito, correlativo da
existência da cadeia do inconsciente, do discurso do Outro.
Assim, temos, de um lado, um sujeito dividido ($) e do outro um saber que produz o
objeto “a”, estando unidos por um laço de suposição, condição necessária para o sujeito
neurótico fazer sua travessia fantasmática ($o a).

187 Esta posição foi relacionada por J. Lacan no Seminário livro 1 com a docta ignorância de V. da Cusa.
188 FREGE matemático bastante referido por J. Lacan, ao longo de suas elaborações.

125
Depois de termos apresentado a elaboração lacaniana sobre o Sujeito suposto Saber,
estamos em condições de circunscrever a problemática da transferência na psicose.
E possível nos servirmos do Sujeito suposto Saber para ordenarmos os fenômenos
da transferência na psicose? Poderiamos depreender da fala do sujeito psicótico o Sujeito
suposto Saber?
Para abordarmos essa possibilidade precisaremos fazer dois desvios. No primeiro,
indagaremos sobre o lugar do sujeito na psicose, e, no segundo, sobre o saber e seu estatuto
na psicose. A partir daí questionaremos: qual é o laço que os coordena?
Temos percebido, ao longo das leituras de vários autores lacanianos, que há uma
certa confusão entre o Sujeito suposto Saber (SsS) enquanto conceito estrutural e o
fenômeno da atribuição de saber que o sujeito pode depositar no seu analista. Consideramos
importante acentuar que não há coincidência entre ambos. O último é da ordem do efeito,
podendo ou não ocorrer, ao longo de uma análise.

IV. 4. SOBRE O SUJEITO E O SABER NA PSICOSE: QUAL SERIA


SEU ENLACE?

A estrutura da psicose se exprime através dos fenômenos alucinatórios e delirantes.


Esses não compartilham da mesma estrutura que as formações do inconsciente. Enquanto
essas formações (sonhos, chistes, lapsos, sintomas), são regidas pela substituição
significante, a alucinação e a construção delirante obedecem à foraclusão do significante.
Todos os fenômenos da psicose são tentativas de restabelecer a cadeia rompida de
significantes. No primeiro caso (alucinação), o significante foracluído retorna, insiste, pela
via do real, exigindo um trabalho secundário de ligação. Trata-se do delírio, que tece uma
trama, uma tapeçaria, para acolher esse significante enigmático. Em termos da estrutura da
cadeia, o delírio é uma tentativa de construir um S2. Observamos que a trama delirante
constitui um saber - saber que possui, na sua articulação, uma consistência fechada em
bloco. Produz-se uma significação que não remete à outra, assentada num ponto de certeza.
O saber delirante coincide com a verdade do sujeito, rejeitando toda e qualquer
indicação de falha, de equívoco ou de diferença.

126
No caso da paranóia, a construção do delírio inventa uma significação, através da
qual interpreta as intenções do Outro. Esse Outro (parceiro do delírio) tem um atributo
essencial: sua periculosidade para o sujeito, na medida em que lhe designa uma posição
passiva. Isto acarreta um padecimento extremado do lado do sujeito. A posição de D. P.
Schreber perante Deus leva J. Lacan a perguntar:

“A temática, que medimos com a paciência que exige onde devemos fazê-la ouvir, na
polaridade,..., do sujeito do gozo ao sujeito que o significante representa para um
significante sempre outro, não será mesmo isso o que vai nos permitir uma definição
mais precisa da paranóia como identificando o gozo nesse lugar do Outro como tal? »l 89

É interessante destacar, nesta citação, a expressão “polaridade”, na medida em que


nos remete à propriedade que tem o imã ou a agulha magnética - de sempre voltar para um
ponto fixo no horizonte. O ponto, ao qual o sujeito tende a voltar na paranóia, é justamente
aquele no qual o Outro goza dele, como objeto. O delírio ensaia um afastamento desse
lugar, nem sempre bem sucedido. O ponto de maior coincidência ou ocupação do sujeito
pelo objeto pode ser pensado como a “morte ou abolição do sujeito”.
Questionamos aqui qual é o estatuto do saber na estrutura da psicose, e qual é o
enlace que podemos propor para o sujeito. Dissemos anteriormente que o saber se apresenta
fechado ao sujeito, excluindo-lhe no seu interior. Esta conformação significante tende a
eliminar todo ponto de hiância, provocando o surgimento do sujeito num ponto exterior,
numa posição objetivada. Portanto, se produz um saber que fala dele, sem que ele encontre
condições de se inserir aí. Neste caso, J. Lacan diz que o sujeito é...

“...um testemunho,...verdadeiramente objetivado «190

Assim o sujeito surge num ponto exterior ao saber, no qual tende a se fixar, impedindo-lhe
de restaurar o sentido do qual ele dá testemunho. J. Lacan diz que o sujeito psicótico é um mártir do
inconsciente. Ele sofre por causa de seu saber, que se assenta numa certeza, que o expulsa da
cadeia, trazendo como conseqüência fenômenos que acarretam a presença de um gozo desmedido.
O sujeito está aí, perplexo, imobilizado, sem nada poder fazer, a não ser descrever essa situação. O

189 LACAN, J. (1966)“Apresentação da tradução francesa das memórias de D. P. Schreber”, Ed Fator,


Salvador, 1987.
190 LACAN, J. (1955-56) Seminário livro 3 “Aspsicoses”, Jorge Zahar Ed. R.J. 1988 p. 94.

127
foto do sujeito se dispor a felar sobre isto para alguém, promove - de saída - uma distância em
relação à experiência vivida (sofrida), na qual é tomado como objeto. O “falar” abre uma dimensão
de atividade, atividade significante, que pode fazê-lo comprometer-se a encontrar outras vias de
encadeamento significante, que permitam a barragem do gozo desmedido. Em relação ao saber
produzido no delírio, J. Lacan fez o seguinte comentário:

“O delírio é,...legível, mas ...é transcrito num outro registro....ele é legível, mas
sem saída...o recalcado na psicose, se sabemos ler Freud, reaparece num outro
lugar, in altero, no imaginário, e, aí com efeito sem máscara.. »19l

Nesta citação encontramos a idéia de que o saber que se produz no delírio é legível, quer
dizer, há uma possibilidade de lê-lo, mas, surgindo imerso no registro imaginário, não é possível
sua interpretação. A expressão “sem saída” pode ser entendida como um “sem furo”, sem
abertura à dimensão do sujeito dividido. O delírio se apresenta como uma verdade quase
teorizada, nos diz J. Lacan, ao que acrescentamos: está situada radicalmente fora do sujeito. Para
entendermos o ponto de certeza que veicula a construção delirante, nos remetemos ao Seminário
livro 11, onde J. Lacan relaciona a certeza com a holófrase do significante:

“Essa solidez, esse apanhar a cadeia significante primitiva em massa, é o que proíbe a
abertura dialética que se manifesta no fenômeno da crença. No fundo da própria
paranóia,..., reina esse fenômeno de Unglauben. Não é não crer nisso, mas a ausência
de um dos termos da crença, do termo em que se designa a divisão do sujeito. «192

A certeza resulta da cola significante, da ausência de hiância, que não permite a dialética.
Como efeito, comparece, neste lugar, um sujeito designado fora, não representado por um significante
para outro significante. Se configura, neste ponto, uma objeção à produção de um sujeito dividido.
A expressão “sujeito do gozo”, proposta por J. Lacan para pensar a localização do saber
no Outro, na paranóia, é efeito de um saber fechado a qualquer dialética. Assim, referindo-se aos
termos da cadeia significante, propostos por J. Lacan, o sujeito se reduz pontualmente a um Sl, o
que indica a presença do ser. Esta posição do sujeito, que é a marca da estrutura do sujeito na
psicose, impede uma abertura ao campo da interpretação, à enunciação inconsciente. Assim,

191 LACAN, J. ob. cit. 124


192 LACAN, J. (1964) Seminário livro 11 "Os quatro conceitosfundamentais da psicanálise*\ Jorge Zahar
Ed, RJ., 1990. p.225.

128
verificamos que o caminho da interpretação parte do sujeito delirante, e tem, como foco, o Outro.
Lembremos a indicação técnica de S. Ferenczi, citada na parte II:

“A melhor interpretação de seus sonhos é o próprio paranóico que a faz. Ele é,


em geral, um bom interprete dos sonhos (falta censura)”.193

A falta de censura, apontada por Ferenczi, nos dá a indicação de que nos


encontramos na presença de um saber que rejeita o equívoco.
A paranóia apresenta uma localização, uma identificação do saber-gozo no Outro.
Lembremos que esse Outro obedece a uma lógica binária, tema que já foi bastante
elucidado na parte III.
A relação entre saber e gozo194 se afirma com muita clareza nas experiências
psicóticas. A linguagem é, a partir das contribuições de J. Lacan, um aparelho que produz
gozo. A modalidade de sua presença depende da estrutura na qual o sujeito se insere. Por um
lado, encontramos o gozo cifrado nas formações do inconsciente da neurose, e, por outro, na
psicose um gozo dilacerante e desregulado, efeito do retomo do significante no real.
No desenvolvimento realizado aqui, situamos um saber fechado no Outro, e, como
efeito, um sujeito exterior, isto é, reduzido a objeto. Qual o enlace que propomos para
ambos? Poderiamos afirmar que o que se depreende da fala do sujeito psicótico é o Sujeito
suposto Saber?
Até onde nossos estudos e nossa clínica nos permitem pensar, podemos dizer que
não é sustentável situarmos uma relação de “suposição”, já que este laço implica uma
crença, e, como verificamos, o saber, na psicose, se funda numa certeza.
Portanto, de maneira provisória, dizemos que o que se depreende da fala do sujeito
psicótico é um “Sujeito certeza de Saber”. Será que poderiamos considerar que o “Sujeito
certeza de Saber” funciona como o pivô da transferência na psicose, e que, a partir dele,
ordenam-se os fenômenos da transferência na psicose? Dentre estes fenômenos estão o
amor, a resistência, a repetição e a sugestão.

193 FERENCZI, S. (1922) “Paranóia” in: Ob. Completas, Livraria Martins Fontes Ed., São Paulo, 1991.
194 A relação entre saber e gozo é elaborada por J. Lacan no Seminário livro 20. uAún”. A partir daí, o
significante é situado no nível da substância do gozo. O significante é causa de gozo, razão pela qual, sem
significante, não há condição de gozar de um corpo. O significante é causa do sujeito (falta a ser) na sua
vertente de articulação, e causa do gozo na sua vertente de fixação.

129
O sujeito psicótico se dirige a nós, em muitos casos, como um último recurso, uma
última esperança. Abre-se aí a dimensão de uma espera, introduzindo um tempo futuro e
um destinatário. Algo o sujeito espera a partir de nossa intervenção. Examinemos três
situações de pedido inicial:
1. Uma paciente veio a mim dizendo que ouvia palavras numa língua estrangeira, mas que
não pertenciam a nenhuma língua conhecida por ela, inclusive porque a única língua que
sabia era o “português”. Estava paralisada, perplexa, e, depois de várias tentativas de
entender o significado destas palavras, tendia a pensar que isto era “obra do diabo”, que
estava sendo possuída por algum espírito. Seu pedido inicial era que eu lhe ajudasse a não
ouvir mais essas palavras.
2. Outro caso que escutei, como supervisora, indicava que o pedido da paciente girava em
torno de colocar limite numa gangue que a perseguia dia e noite, sem descanso, fazendo-à
de objeto dos maiores abusos sofridos no seu corpo. Não sabia a causa de semelhante
perseguição, mas afirmava, sem vacilar em momento algum, que era perseguida. Não se
perguntava pelas razões dos perseguidores. Só sabia que era a perseguida, e não suportava
mais. Seu primeiro apelo era de que a livrassem desse tormento.
3. O paciente George inicialmente veio me ver a pedido de sua esposa, que o considerava
louco. Sobre isto nada tinha a dizer, nem a perguntar. Obedecia, como um autômata, a
ordem de sua mulher, até que em determinado momento faz um pedido: que
intermediássemos a relação com sua esposa, convencendo-a a não se separar dele. Não
podería suportar a vida sem ela.
Examinemos estes pedidos, considerando os seguintes aspectos:
- O que se demanda?
- A quem se demanda?
- Que lugar nos é oferecido?
Eles nos falam de suas experiência alucinatórias, de seus delírios, de seu desespero,
de estarem à beira da loucura. Nos pedem que lhes escutemos, mas esse pedido vem
acompanhado da esperança de uma resolução da situação na qual se encontram. As
demandas são bastante variadas, mas todas solicitam uma intervenção, no sentido de
acolhê-los, de defendê-los, ou de uma intermediação para com o outro que lhes atormenta.
O sujeito se apresenta como objeto de uma operação que o analista deve realizar, e da qual

130
aguarda um resultado. Isto pode acarretar o risco de que o analista seja situado no lugar de
um Outro, de todo saber, transformando o sujeito num objeto a ser gozado. Estas demandas
podem ser pensadas a partir do lugar do destinatário do discurso do sujeito psicótico, de
modo diferente, mas diretamente relacionado, ao lugar de “parceiro” do delírio.
Ao pedido inicial, respondemos com um convite a falar, a nos comunicar o que lhe
ocorria. Esta é a primeira manobra do analista, no sentido de esvaziar a consistência do
saber do lado do Outro. “Saber” que, como observamos, é muito próximo ao gozo. Nossa
resposta implica numa aposta na atividade significante, que promova uma distância entre o
sujeito e o objeto.
Muitos psicóticos endereçam o pedido de proteção, de intermediação, a outras
figuras que detêm algum poder sobre o cumprimento das leis ou sobre os corpos, entre eles,
citamos, os governantes, os procuradores da República, os juizes, os médicos, os policiais.
Mas o que define o futuro de toda demanda está diretamente ligado ao tipo de resposta
dada. Todas aquelas que reafirmem o lugar de objeto para o sujeito psicótico (seja através
da pesquisa ou da manipulação), não são convenientes, nem permitem uma estabilização
dentro da estrutura. Incluo aqui as recriminações de D. P. Schreber em relação ao
tratamento dispensado por Dr. Flechsig, nas quais ele se lamenta de ter sido objeto de
investigação e de estudo.
Portanto, o traço diferencial é dado pela resposta do analista, que, logicamente,
depende do lugar onde o analista está situado pela estrutura. O analista ouve sem criticar,
sem tentar convencê-lo, nem dirigi-lo. Aceita, com muita paciência, o que lhe é
comunicado, e se deixa guiar pelas palavras de seu analisante.
Como entender o lugar do destinatário?
É no destinatário que se localiza um saber fazer, e até esse ponto a posição não se
distingue da posição do neurótico, mas, com o andar do tratamento, verificamos que esse
saber é atribuído a um Outro absoluto, em relação ao qual o sujeito se situa como objeto
gozado ( traído, perseguido, odiado, amado). Comentamos, anteriormente, que neste ponto
não há abertura ao campo da interpretação no sentido de um deciframento. É um saber
atribuído ao destinatário, mas que não comporta uma banda moebiana, isto é, o interior não
se encontra em continuidade com o exterior. O exterior é oposto ao interior (lembremos que
o espaço topológico do saber se suporta numa lógica binária).

131
A demanda endereçada ao analista se articula radicalmente à foraclusão do
significante. Assim, a transferência inicialmente opera na via predominantemente
imaginária, podendo ser considerada como uma suplência precária, mas que indica uma
abertura para a construção de uma metáfora delirante, a partir de um significante ideal.
O lugar do outro, enquanto destinatário que protege, que ama, é um recurso que se
produz como um desdobramento do eu, e que aponta ao lugar da lei, do qual se espera uma
regulação do gozo, que incida sobre o outro - parceiro do delírio.
A proposta de tratamento analítica (“falar sob transferência”) providencia um
antídoto para a posição radical do sujeito posto como objeto. O analista promove ditos por
parte do sujeito, promove atividade significante, o que se sustenta numa aposta no sujeito.
Observamos que esta tarefa do analisante aos poucos começa a produzir seus efeitos; o
sujeito inventa, com seu saber, recursos para se proteger de ser engolido pelo gozo dó
Outro.
O destinatário pode cumprir diversas funções. Entre estas, situamos: o secretário do
alienado (proposto por J. Lacan no Seminário livro 3), testemunha ou depositário de uma
verdade, protetor, defensor, companheiro de travessia. Esse destinatário, em termos da
álgebra lacaniana, pode ser situado, como já mencionamos anteriormente, como uma
redução do Outro ao lugar do outro, como semelhante (vertente imaginária da
transferência). Cabe esclarecer que a dimensão do semelhante introduz uma diferença, isto
é, não se trata do mesmo.195 O destinatário é aquele que é chamado a intervir promovendo
uma barragem, uma proteção frente ao Outro que comparece sem barra, fazendo do sujeito
objeto dos maiores abusos.
Mas há outras ocasiões em que a transferência nos reserva um outro lugar, isto é: do
parceiro do delírio, o Outro absoluto, como no caso do Dr Flechsig, “assassino de almas”;
ou no caso da erotomania, o lugar de amante; ou, no caso do delírio de ciúmes, o lugar de
traidor.
Orientados pelas elaborações de S. Freud e de J. Lacan, consideramos que a
construção da realidade regida pelo delírio se suporta na transferência, que anteriormente
denominamos de “delirante”, porque situa o objeto do lado do sujeito. Essa transferência se
articula fiindamentalmente numa certeza - é ela que enlaça o sujeito ao saber.

195 Ver comentário de P. Soury, sobre este aspecto, no Seminário RSI de J. Lacan. ob cit.

132
D. P. Schreber e o paciente George nos ensinaram que quando o analista ganha esse
lugar, pode se abrir, lateralmente, uma possibilidade de manobra. Pensamos que, nesses
casos, nem sempre a interrupção do tratamento é a única saída. A manobra consiste em se
apoiar na via do destinatário, para promover uma operação de redução dos efeitos do
Outro-gozador, parceiro do delírio. Esta operação permite ao analisante retomar sua fala e
assim continuar a tentar encontrar uma solução, pela via do signifícante. Este ato do
analista reencaminha o trabalho do sujeito psicótico, o que pode vir a produzir uma
metáfora, suportada numa proporção.
Disto se depreende uma hipótese, que necessitaria de mais experiência clínica para
ser confirmada, e que diz: somente nos casos onde o analista coloca em conexão o
destinatário com o parceiro do delírio é possível abrir o caminho para a construção de uma
metáfora delirante (suplência), que funcione a tal ponto que o analisante possa abrir mão da
presença do analista. Esta hipótese, como dissemos, necessitaria de mais experiência para
ser confirmada, mas aponta para um possível fim para o tratamento da psicose, no sentido
de não ser mais necessária a presença do analista, para sustentar o sujeito.
Assim, todo o trabalho da análise gira em torno de esvaziar o saber que tende a se
tornar “todo”, e que é atribuído ao Outro, apostando na produção de um recurso
signifícante que permita um afastamento desse ponto de coincidência entre o sujeito e o
objeto “a”. Trata-se, ao longo da análise, de produzir um Nome, que sirva para barrar o
gozo dilacerante que invade e penetra o sujeito.

IV. 5. SOBRE O AMOR E A SEXUALIDADE NA PSICOSE

O amor foi um dos primeiros fenômenos que se apresentaram a S. Freud na sua


clínica com as histéricas. Que amor é esse? Esse amor é verdadeiro, autêntico, provocado
pela situação analítica. Mas, em alguns casos, este toma o caráter do amor-paixão,
obstáculo que coloca em risco a continuidade do tratamento. Freud considera que o amor
de transferência, efeito da análise, se intensifica (transformando-se em paixão, o que exige
reciprocidade), quando se coloca a serviço da resistência, detendo o trabalho associativo.

133
Essa paixão irrompe como algo vindo de fora da cena analítica. Para ilustrar esta situação,
Freud utiliza a seguinte metáfora:

“La escena cambia totalmente, como si una súbita realidade hubiese venido a
interrumpir el desarrollo de una comedia, como cuando en medio de una
representación teatral surge la voz de ‘fúego’”.196

Esta paixão, que toma como objeto o analista, surge aos olhos de um leigo como
algo vindo de fora, produto do acaso, e que não tem relação com o tratamento. Esse real,
situado pelo analisante como algo exterior ao tratamento, deve se reintroduzido pela
manobra do analista, transformando-se em motivo de novas associações. Esse amor é uma
forma de repetição na transferência, que se coloca a serviço da manutenção do recalque. A
resposta e a habilidade do analista, com uma boa dose de paciência, podem permitir que
esse “fora”, cause novas associações.
No artigo citado, S. Freud é muito claro ao afirmar que o trabalho do analista se dá a
partir da abstinência de qualquer satisfação, tanto para o paciente, como para o analista. E
a abstinência que introduz o que é mais primoroso da função do analista, ocupando o lugar
de um vazio, que permite a ordenação discursiva do inconsciente.
Todo analista que não recua frente à psicose, mais cedo ou mais tarde é
surpreendido pelo amor vivenciado na psicose. O amor faz parte da vida dos psicóticos,
assim como da dos neuróticos. Mas, trata-se do mesmo amor? Como articular este amor?
Qual é seu lugar no tratamento?
O amor pode comparecer na vertente da amizade, o que traz como conseqüência a
colaboração por parte do sujeito, ao seu tratamento. Mas pode ser que, de repente, sejamos
surpreendidos pelo surgimento de uma paixão avassaladora. De Clérambault descreveu de
maneira brilhante e bastante exaustiva as erotomanias. Qual é a via erotômana do amor?
O aspecto mais importante deste amor é que ele parte da convicção do sujeito de
ser amado, a partir da qual o sujeito pode começar a amar. Estabelece-se assim, um amor
que articula um sujeito a um objeto, sendo que, no coração do delírio, há uma coincidência
- que denominaremos por enquanto de mortífera, e que esclareceremos em breve -, na qual
o sujeito é o objeto do amor.

134
Lembremos de duas caraterísticas assinaladas por De Clérambault, que
consideramos importantes para avançar na apresentação da questão:
1. Refere-se à fonte da paixão. Trata-se do Orgulho sexual, e não de Eros.
2. Refere-se à presença do platonismo.
O orgulho sexual nos envia imediatamente à noção freudiana do narcisismo. Trata-
se de uma paixão que inventa um semblante de objeto, mas que, no cerne do delírio, lá está
o sujeito coincidindo com objeto. “ É o outro que me ama”, e a partir disto “Eu o amo”. A
primeira parte do enunciado produz uma significação fixa, coordenada por uma certeza.
Essa certeza não apresenta dialética, não sendo alterada por nenhuma informação que
contradiga tal afirmação. Tendo em conta o instrumento oferecido por J. Lacan, (no
estádio do espelho), percebemos que a matriz que organiza essa certeza se articula a uma.
posição que coloca em relação especular o “eu ou o outro”, suportado numa lógica binária.
Essa relação especular introduz a morte - ou abolição - de um dos termos. Portanto, a
realização dessa paixão pode ser equivalente à morte. No caso, essa paixão se apresenta
articulada à pulsão de morte. Lembremos o que citamos em relação à dissociação pulsional
apontada por S. Freud, ocasionada pela retração da libido no eu. Paixão que traz, no seu
âmago, a marca de sua própria morte.
Passemos a refletir sobre o platonismo. A presença deste aspecto mantém a paixão
no campo dos afetos e das idéias, não exigindo o encontro sexual. Consideramos que o
platonismo é um recurso da maior valia, que protege o sujeito da exigência da ordem fálica,
o que podería acarretar em sua abolição enquanto sujeito.
Percebemos que, nos casos de erotomania, a convicção de ser amado se mantém
incólume a qualquer elemento que possa desmenti-la. A idéia “ Outro me ama” inventa
uma realidade na qual o sujeito se agarra com unhas e dentes, eliminando qualquer
obstáculo que aí se interponha. Freud nos diz que o psicótico ama seu delírio como a si
mesmo, porque na verdade não há diferença: o delírio é o que o constitui como um sujeito-
objeto do Outro.

196 FREUD, S. “Observaciones sobre el amor transferêncial”, in: Ob. Completas, Biblioteca Nueva Ed. 1976.
p.1690.

135
Parece-nos que fomos claros, em relação à morte do sujeito. Esta consistiría no
ponto máximo de coincidência entre o sujeito e o objeto “a”, na sua dimensão real de “mais
de gozar”.
Interessa-nos examinar de perto aquelas situações nas quais o analista é tomado
como parceiro no delírio erotômano. De saída, podemos perceber que este não é um lugar
muito cômodo, assim como não o é o lugar do perseguidor, que D. P. Schreber outorga ao
Dr. Flechsig.
Será que há alguma possibilidade de manejo neste tipo de caso, para que o
tratamento não seja interrompido?
Mas, antes de contemplarmos esta situação, queremos fazer referência a uma
indicação de J. Lacan, em relação ao amor na psicose, que, a princípio, nos soou bastante,
enigmática:

“A relação extática com o Outro é uma questão que não data de ontem, mas, por
ter sido deixada na sombra durante alguns séculos, ela merece de nós, analistas,
que lidamos todo o tempo com ele, que nós a retomemos. Fazia-se na Idade
Média a diferença entre o que se chamava a teoria física e a teoria extática do
amor. Colocava-se assim a questão da relação do sujeito com o Outro absoluto.
Digamos que, para compreender as psicoses, devemos fazer recobrir-se em
nosso esquema a relação amorosa com o Outro enquanto radicalmente Outro ,
com a situação em espelho, de tudo o que é da ordem do imaginário, do animus
e da anima197, que se situa segundo os sexos num lugar ou em outro. A que se
deve a diferença entre alguém que é psicótico e alguém que não o é? Ele se deve
a isto: para o psicótico uma relação é possível abolindo-o como sujeito,
enquanto, ela admite uma heterogeneidade radical do Outro. Mas esse amor é
também um amor morto. >»198

Em primeiro lugar, procedemos realizando a operação proposta por J. Lacan no


esquema L, recobrindo o eixo imaginário com o eixo simbólico. O efeito deste
recobrimento produz, por um lado, a redução do Outro (simbólico) a um outro (imaginário),
e, por outro, o sujeito é abolido (segundo J. Lacan), podendo-se dizer que se vê reduzido ao

197 Animus corresponde ao grego íhymós. Designa o princípio pensante e se opõe a corpus, por um lado, e a
anima, por outro. Vê-se que animus, princípio superior, é masculino; anima, que lhe é submetida, é feminino.
( ERNOUT, A. et MEILLET, A. “Diclionaraire Etymologique de la langue Latine").
198 LACAN, J. (1955-56) Seminário livro 3 ,4Aspsicoses’\ Jorge Zahar Ed, RJ 1988. p.287.

136
eu. O recobrimento se ilustra nas diferentes fórmulas gramaticais propostas por Freud no
caso Schreber (perseguição, ciúmes e erotomania).

O esquema L e sua transformação no recobrimento dos eixos, na paranóia:

♦ Sa\ Aa

O abade Pierre Rousselot199 nos apresenta, na sua tese intitulada “Pour Vhistoire du
problème de I 'amour au Moyen Age ”200, que o amor na Idade Média girava em tomo da
seguinte pergunta: o homem ama naturalmente a Deus mais do que a si mesmo? Duas
respostas surgem - a primeira denominada como concepção física do amor e a segunda é a
concepção extática.
São Tomás de Aquino foi quem se ocupou de retomar as teses sobre o amor e amizade de
Aristótoles201. O amor e a amizade fazem parte das virtudes que, segundo Aristóteles, são o
caminho para atingir o Supremo Bem. O homem naturalmente procura seu Bem.
Essa concepção é retomada por São Tomás, e diz que o homem depende de Deus e
que, portanto, deve amá-lo. O amor físico se refere à natureza, quer dizer, se trata do amor
natural. Tenhamos em conta que Deus, na Idade Média, era considerado o princípio e o fim
de todas as coisas.
Assim, o homem ama a Deus sobre todas as coisas, porque dele depende
absolutamente tudo, e nada há sem ele. O amor a Deus não entra em contradição com o
amor a si mesmo, porque Deus quer antes de tudo o bem do homem. Isto quer dizer que
Deus é o Bem. O amor a si mesmo e o amor a Deus entram numa relação de continuidade,
ou seja, é um amor derivado do outro.

199 Sugerimos, ao leitor que tenha um interesse maior sobre este assunto, o trabalho que consta no livro
“Teoria e Clínica da psicose”, de Antonio Quinet, Forense Universitária, Rj. 1997.
200 Tese defendida no ano 1908. Encontra-se na Bibliothéque de la Faculte de Médicine, Paris.
201 Ver Ética a Nicômaco.

137
A outra teoria vigente na Idade Média era a concepção extática do amor. Esta não
atingiu um grau completo de sistematização. O amor extático implica um amor que elimina
a razão. Esta concepção do amor é retomada por de J. Lacan para pensar o estatuto do
amor místico, no Seminário livro 20 “Aún >,202 . Extático provém da palavra êxtase, que
significa “arrebatamento do espírito, enlevo”. No amor extático não há nada de natural, é
algo justamente contra a natureza. Há uma separação entre o homem e o Deus. O amor a si
mesmo, egoísta, se encontra em contradição com o amor a Deus.
Nesta concepção, há algo da ordem de uma desarmonia, de um aniquilamento e da
morte, do lado do sujeito, para atingir o amor de Deus. Este amor obriga a que cada um se
desprenda de si mesmo, se aniquile, para vivê-lo. Mas, em contrapartida, oferece àquele
que se disponha a despojar-se de si mesmo, o gozo de Deus, ou gozar em Deus. Os místicos,
(entre eles cito Santa Teresa de Ávila203 e San Juan de Ia Cruz) nos comunicam, através de
seu escritos, a vivência da possessão espiritual do amor de Deus, que se atinge através da
mortificação do sujeito. Para encontrar esse gozo, o sujeito deve se abolir, e deixar-se
possuir como parte de Deus.
Essa última teoria nos indica uma impossibilidade de manutenção da razão para gozar
em Deus (Outro Absoluto). Encontramos esse ponto da abolição do sujeito e sua transformação
em objeto do Outro, nas diferentes formas de paranóia. A diferença apontada por J. Lacan é
que o gozo dos místicos vem acompanhado de alegria, diferentemente da vivência do gozo na
psicose: retomo do significante foracluído. No caso da psicose, não surge o apelo ao “tu”, que
implica um funcionamento da lei do significante no Outro.
A teoria do amor extático nos aproxima de um amor que se consuma pela abolição
do sujeito. Este seria o ponto que nos reenvia ao tema das erotomanias.
Examinemos o caso do homem erotômano. Este sujeito escolhe uma mulher que é
elevada à dignidade de deusa, original, um ideal de perfeição e, frente ao qual, ele se situa
como o objeto único e sacrificial (e ao mesmo tempo seu duplo). Esta situação demonstra a
relação de mistura que há entre o sujeito e o Outro. O Outro (Mulher Ideal) é colocado
como a exceção que somente pode ser sustentada a partir de que o sujeito se situe como seu
objeto-duplo. A presença freqüente do platonismo, nestes tipos de delírios, provoca uma

202 J ob. Clt.


203 SANTA TERESA DE JESUS, “Livro da vida", Ed. Paulinas, São Paulo, 1983.

138
separação entre o amor e o gozo, o que pode ser expressado da seguinte forma: “Ela me
ama, mas não me goza”. Desta forma, o platonismo surge como um recurso que elide o
gozo, circunscrevendo-o no Outro, sob a forma de amor que dele emana.
Assim, nos casos de erotomania, o amor pode servir como uma espécie de proteção,
de barreira, ou, em outros, como uma companhia que pode compensar o gozo que retoma
do real. Para concluir, podemos dizer que o que faz sinal no amor (na psicose) é justamente
sua relação com gozo, que lhe imprime essa dimensão mortificante.
Qual a incidência que tem a foraclusão no Nome-do-Pai na sexualidade? Para responder,
nos serviremos do caso de D. P. Schreber, onde sua problemática pode ser articulada à
impossibilidade de ser o falo que falta à sua mãe, razão que lhe envia a “...ser a mulher que falta
aos homens”204. Todo o delírio schreberiano aponta para sua transformação em mulher, solução,
que encontra uma razão na equivalência proposta por Emst Jones: girl=phallus. J. Lacan
denomina esta posição do sujeito psicótico de empuxo-à-mulher, que pode ser explicado através
das fórmulas da sexuação. A carência do significante falo na estrutura da psicose tem, como
efeitos que o sujeito se situe do lado da mulher.
Transcrevemos a seguir as fórmulas da sexuação205 propostas por J. Lacan, para
entender melhor a saída da psicose frente à divisão dos sexos:

3x Ox 3x Ox

Vx Ox "Vx Ox

$ S(A)

A
O

204 LACAN, J. (1958) “De una cuestión preliminar a todo tratamienlo de la psicosis” in: Escritos 2, Siglo XXI
Ed, Méjico, 1993.
205 LACAN, J. (1972-73) Seminário livro 20 “Aún”, Ed. paidós, Bs. As. 1981 . p. 95.

139
O homem está situado do lado da função universal do falo, cuja proposição diz que
todos os seres estão inscritos na função fálica, com exceção de um, que diz não à função
fálica, e que constitui o universal do conjunto dos homens. Do lado das mulheres, isto não
se configura por não produzir-se a exceção, condição para a formação do conjunto
universal.
A ausência da função fálica na estrutura da psicose impede a utilização das
proposições onde esta é afirmada, o que tem com resultado a inexistência do conjunto
universal de todos os homens.
Desta maneira, somente podemos nos servir - para pensar a questão do sexo na
psicose - das proposições onde a função fálica é negada. A primeira é formulada da
seguinte maneira: há um que diz não à função fálica (lugar que pode ser identificado ao Pai.
gozador da horda primeva). E, do lado da mulher, aquela que diz: A mulher não existe, isto
quer dizer que elas, as mulheres, se contam uma a uma. Assim, o que define a posição
feminina por excelência é sua inscrição parcial na função fálica, ou seja, nem tudo é fálico.
Isto incide sobre seu gozo, no sentido de abrir uma dimensão enigmática, sobre a qual os
místicos nos dão provas (experiência do êxtase). Trata-se de um gozo não coordenado pelo
falo.
No caso da estrutura da psicose, o encontro com Um Pai, signifícante situado em
posição terceira, provoca um efeito de empuxo-à-mulher, inserido num futuro infinito.
Como podemos entender isto? Dissemos que a relação que o sujeito tece com o Outro é da
ordem da mistura, onde o que existe é situado do lado do Outro divino (no caso Schreber)
[1], onde também podemos inserir aí a Mulher Ideal [1], no caso da erotomania de um
homem, e a não existência [0] do lado do sujeito, restando-lhe ser o objeto sacrificial,
servil do Outro.
Portanto, podemos entender que a rejeição do Nome-do-pai força o sujeito a se
situar como o objeto que falta ao Outro. Essa relação entre o Outro, enquanto existente [1] e
o sujeito designado pelo [0] tem como resultado a infinitização do trabalho do delírio, que
206
pode se escrever da seguinte forma: 1/0 = <»

206 QUINET, A. “Teoria e clinica da psicose ”, Ed. Forense Universitária, R.J. 1997. p. 88.

140
Assim, o laço entre o sujeito e o Outro é um trabalho jamais totalmente concluído,
que localiza no futuro assintótico207, representado por J. Lacan no seu esquema I, através
das retas assintóticas.

IV. 6. O ANALISTA E A MANOBRA DE TRANSFERÊNCIA

A manobra de transferência nos coloca no âmago da direção do tratamento da


psicose. Desde sua origem, a manobra de transferência foi concebida como a operação que
o analista realiza no sentido de permitir a continuidade do tratamento. Esta operação é
realizada pelo analista, cada vez que se detém no trabalho associativo do analisante, ponto
no qual comparece a repetição em ato.
Vimos, nas elaborações de S. Freud, que a manobra no tratamento da neurose se
articula ao campo da interpretação: decifrar, adivinhar, entre outras operações. Toda
manobra do analista aponta para a produção do saber não sabido, isto é, a produção do
inconsciente.
Temos repetido incessantemente a pergunta: Como pensarmos numa transferência
articulada à foraclusão? Podemos afirmar, sem dúvidas, que esta não se estrutura pela via
da metáfora; portanto, esta transferência não pode ser considerada como uma formação do
inconsciente.
A transferência na psicose é uma função do inconsciente, de um inconsciente que se
constitui como um saber sem ciframento e exterior ao sujeito. Esta se articula
fundamentalmente por uma via, que, seguindo Freud, denominamos deslocamento.
O delírio, enquanto tentativa de cura, constrói uma significação, que pressupõe um
mecanismo de transferência. O Outro sem barra, parceiro do delírio, surge como um
desdobramento do eu do sujeito, suportado numa lógica binária. No cerne da construção
delirante, encontramos reproduzida a posição da estrutura da psicose, isto é, o sujeito
coincidindo com o objeto. Portanto, a transferência que o psicótico nos endereça, e o lugar
que esta nos destina, obedece a esta particularidade. Devido a isto propusemos o termo

207 Este tempo foi demarcado inicialmente por Freud na sua leitura do caso Schreber.

141
Sujeito certeza de Saber, como pivô da transferência na psicose, a partir do qual se
articulam os fenômenos da repetição, do amor e da sugestão.
Muitos autores indicam uma ausência de repetição, com os quais concordamos em
parte: o que não se dá é a repetição simbólica, mas surge uma repetição no real, justamente
no ponto onde convergem o sujeito e o objeto.
A transferência introduz uma inversão na cena analítica, tanto no que se refere à
interpretação, quanto ao campo do amor, podendo, em alguns casos, comparecer como uma
erotomania. O sujeito psicótico porta o objeto, e, portanto, é assim que se oferece na
transferência: como objeto do Outro. O delírio é uma interpretação do sujeito, mas não
comporta outra, não se abre à enunciação, trata-se de um saber que obtura qualquer fenda.
É desta maneira que entendemos o comentário que realiza J. Lacan no Seminário livro 5,.
“Aspsicoses”208, onde diz que o delírio não tem saída, não tem cura. Não tem abertura à
dimensão do equívoco. Este se produz como uma significação nova que tende a fixar a
relação entre significado e significante.
S. Freud nos alerta, desde o início, para o fato de que a técnica da psicanálise era
inviável para o tratamento da psicose. Idéia com a qual concordamos, e que implica que
devemos nos ajustar às condições que a estrutura nos oferece, para podermos operar.
Encontramos o campo fechado à interpretação, regido por uma rejeição ao
significante que introduz a lei no Outro. Rejeição que produz o retorno do significante por
uma via não simbólica, isto é, pela via do real. Frente a este estado de coisas, o que seria
possível para o analista?
O analista, na medida em que é solicitado como destinatário de uma demanda de
tratamento, responde suportado no seu desejo, acolhendo os dizeres de seu analisante (ou
futuro analisante) com uma aposta, que não é outra senão de sustentar e apoiar a tentativa
de cura que o paciente ensaia.
Em termos mais amplos, consideramos a manobra do analista, como toda e
qualquer intervenção que promova a comunicação de pensamentos, idéias e associações por
parte do analisante. Entre as quais destacamos, em primeiro lugar - e como condição
indispensável - oferecer ao analisante uma escuta atenta, precisa, interessada e
fundamentalmente paciente. Sem pressa para conseguir uma resolução, deixar que a

208 LACAN, J. ob. cit.

142
pressão, exercida pelo gozo sem limites, se transforme em causa de trabalho. Incluímos aí
também a aceitação do lugar que lhe é atribuído pela transferência, a partir do qual poderá
decidir sobre a manobra específica.
Tomando os lugares propostos na álgebra lacaniana, situamos onde o analista pode
comparecer:
- No lugar do Outro, lugar do parceiro do delírio, no qual se apresenta o gozo do
Outro, transformando o sujeito no seu objeto.
- No lugar do ideal, lugar que aponta algum funcionamento de uma diferença
signifícante.
- No lugar do semelhante, onde o outro pode ser situado como “secretário do
alienado”, de testemunha, de companheiro, de um amigo com o qual se compartilham as.
desgraças.
Estes lugares não são estanques, ou seja, o analista pode ser deslocado de um a
outro, dependendo do momento do tratamento. E é justamente isto que faz possível sua
operação. Mas, também pode ocorrer, em alguns casos, que o analista seja fixado numa
desta posições de maneira mais radical.
O ponto crucial que pode precipitar a transferência a uma passagem ao ato ou a um
desencadeamento é quando o analista é fixado no primeiro lugar, lugar do Outro do saber
completo, lugar do gozador. Neste ponto, faz-se imprescindível a manobra do analista, no
sentido de promover um esvaziamento do saber, o que acarreta uma barragem no gozo do
Outro. Este ato do analista se serve dos outros lugares possíveis (ideal- semelhante) para
promover um deslocamento. As considerações sobre esta manobra serão retomadas no
próximo tópico, a partir do caso clínico. O analista, através dessa manobra, se opõe
decididamente a ocupar o lugar (lugar do Outro gozador) que lhe é oferecido, sabendo que
este coloca em risco o sujeito.
Toda essa tarefa por parte do analista tem como função suportar e sustentar, como
dissemos anteriormente, a tentativa de cura do psicótico, ou seja, o trabalho que este
precisa fazer, no sentido de construir uma suplência do signifícante da lei.
Acompanhamos o sujeito psicótico no seu trabalho, sempre atentos ao momento em
que se faz necessária a introdução da manobra de transferência, que visa a redução do
saber-gozo, afastando, assim, o sujeito de sua própria abolição.

143
A manobra opera sobre o “calcanhar de Aquiles” da transferência na psicose. Ponto
mortífero que a estrutura apresenta, isto é, o sujeito, como objeto do Outro sem barra,
exige por parte do analista uma grande habilidade, mas sobretudo uma grande
disponibilidade e capacidade de suportar a transferência delirante, Esta capacidade
somente pode ser sustentada a partir do desejo do analista.

IV- 7. UMA PSICOSE PASSIONAL SOB TRANSFERÊNCIA

Nota introdutória
Depois de termos discutido a particularidade da transferência na psicose
apresentaremos o caso George, onde utilizaremos o pronome na primeira pessoa do
singular, considerando que não é possível manter a primeira pessoa do plural usada ao
longo desta tese, por tratar-se de um caso que conduzimos, e sobre o qual nos
responsabilizamos.

Caso George: Um homem em excesso

A introdução do caso George209 neste trabalho contempla vários aspectos, entre os


quais destaco:
1. Precisar as articulações apresentadas na tese.
2. Transmitir uma experiência clínica que ensina e prova a existência da
transferência na psicose, apresentando-se sob a modalidade delirante.
3. Articular a manobra do analista.
O tratamento de George foi um árduo e difícil trabalho, tanto para ele como para
mim, exigindo muita paciência e ao mesmo tempo o atravessamento de várias fronteiras.
Este caso me obrigou a ampliar meus horizontes, dados, até esse momento, pela estrutura
neurótica, e a deixar-me ensinar pela experiência enigmática da psicose.
Sua duração deu-se por cerca de dez anos, fazendo, no presente momento,
aproximadamente três anos que não tenho notícias dele.

209 A escolha do nome George obedece a várias razões. Por um lado, visa proteger a identidade do analisante,
mantendo a sílaba “ge”, que terá, como veremos no desenvolvimento do caso, uma importância; e, por outro,
contemplar a introdução de uma nova língua, que neste caso foi o “inglês”.

144
Enfrentei inúmeras dificuldades, e em vários momentos, estive a ponto de desistir.
A insistência de George, a minha determinação e a firme aposta na psicanálise permitiram
que o tratamento não fosse interrompido de maneira indevida ou imprópria. O maior
obstáculo girou em tomo do lugar que a transferência me designou: parceira do delírio.
Situação da transferência que me obrigou a aprender, junto com George, a manobra
adequada que permitisse a continuidade do trabalho analítico.
Espero que, com a apresentação deste caso, eu possa auxiliar de alguma maneira a
todos aqueles analistas que se encontram em situações semelhantes, assim como que eu
coloque meu grão de areia no tema da transferência na psicose, e sua manobra. Isto só
poderá ser verificado a posteriori.
Que lugar havia para o analista? Sabia que um lugar estava a minha espera, mas.
não sabia qual, e só me restava aceitar ou recusar. Dei início a uma travessia sem saber
exatamente qual seria o destino. O início do tratamento foi marcado pelo desespero de
George, seu pedido de uma intervenção, ao que respondí com a proposta (ancorada no
desejo de analista) de ouvi-lo e pagar por isso.
Este caso foi construído a partir do material das anotações das sessões realizadas
durante o tratamento e das cartas enviadas pelo analisante, no tempo em que não podia
comparecer às sessões.

Sobre a demanda

George compareceu ao meu consultório a pedido de sua esposa, com a qual se


encontrava vivendo uma crise matrimonial. Na primeira entrevista me disse que estava ali
por causa de sua mulher. Era ela quem o tinha enviado, por considerá-lo louco, paranóico,
e que precisava de tratamento. Na época tinha trinta e três anos. Foi obediente ao mandado
de sua esposa, não sabendo dizer muito sobre isso. Não estava acostumado a falar muito.
Pedi-lhe que me dissesse o que estava ocorrendo, ao que respondeu que perdia o
controle e que quebrava as coisas em casa. Não aceitava que sua mulher fosse embora.
Pensava que era impossível viver sem ela, com a qual tinha casado muito jovem. Desta
união nasceram duas filhas.
Relatou-me que o casamento ocorreu contra a vontade de sua mãe, que o
considerava muito novo e sem condições de manter uma casa. Lembrava que, frente à

145
negativa de sua mãe e sua irmã, subiu numa árvore, na qual ficou vários dias, se
alimentando de frutas, só descendo para fazer suas necessidades. A mãe manifestou a idéia
de interná-lo, considerando que não estava “bem da cabeça”. Finalmente houve uma
aceitação por parte da mãe e ele casou-se com a namorada. Acreditava que sua esposa era a
mulher de sua vida e que somente com ela seria feliz.
Ao longo das primeiras entrevistas, foi comunicando, com bastante dificuldade, que
se sentia “influenciado” pelas pessoas, a ponto de se sentir “submetido”. Sentia uma falta
de referências, não sabia o que era certo e o que era errado, e esta dúvida o atormentava,
invadindo todos os seus pensamentos, sem descanso.
Quando a crise no casamento se encaminhava de maneira cada vez mais clara na
direção de uma separação, George começou a ficar muito desesperado. Sentia-se incapaz
de enfrentar a vida sozinho. Foi neste momento que me fez o pedido de intermediar a
relação com sua esposa, tentando convencê-la de que ele iria mudar. À sua demanda,
respondí com uma negativa, oferecendo a possibilidade de pensar ali, durante as sessões,
em qual poderia ser a solução.
Seu desespero ia aumentando ao constatar que sua esposa não o queria mais.
Passarei a demarcar alguns aspectos que se apresentaram nas primeiras entrevistas e que
chamaram minha atenção:
- Sua maneira de falar. Realizava sua comunicação seguida de uma pergunta: certo
ou errado? Frente ao meu silêncio ou ao convite de continuar a falar, se mostrava muito
agressivo, me dizendo que ali parava, e se despedia sempre de uma maneira abrupta, sem
aceitar nenhuma intervenção de minha parte.
- A falta de referências vinha acompanhada de algo que denominava “sofrer de
influências” das palavras que ouvia.
Sua vida se dividia claramente em dois tempos: o primeiro era o tempo de trabalho,
no qual ficava fora da cidade, ocupando a função de operário especializado numa firma
estrangeira. Seu cargo, segundo ele, estava aquém de sua formação profissional
(engenheiro). O outro tempo era, inicialmente, em casa, junto a sua esposa e filhas.
Posteriormente passou a morar sozinho.
Sua agressividade era bastante intensa desde o início do tratamento, e irrompia a
cada vez que eu não respondia como ele imaginava. Nos primeiros encontros não suspeitei

146
de uma estrutura psicótica, mas, na medida em que as entrevistas iam se sucedendo, fui
constatando um funcionamento bastante particular da linguagem, o que me fez duvidar de
sua estrutura, mantendo em suspenso qualquer diagnóstico, esperando que o
desenvolvimento do trabalho me esclarecesse sobre o meu lugar na transferência, e seu
funcionamento discursivo.
Depois da separação de sua esposa, ele começou a apresentar fenômenos que, cada
vez mais, me apontavam para um diagnóstico de psicose. De qualquer maneira, somente
pude confirmá-lo na transferência.
Não tenho indícios suficientes para afirmar que na época prévia ao casamento houve
um desencadeamento, ou se essa experiência relatada (tempo em que ficou em cima de uma
árvore, se alimentando de frutas), consistiu numa desestabilização que encontrou um certo,
contorno através da suplência imaginária exercida por sua mulher. Mas acredito que o
percurso do tratamento nos permite pensar que houve um questionamento da realidade que .
encontrou um recurso no casamento.

O tratamento: seu primeiro período

A construção do caso procede pela via do recorte, delimitando os significantes que


demarcaram os momentos cruciais da construção da metáfora delirante.
George apresentou pouquíssimos elementos de sua história. Cada vez que minhas
intervenções abriam a possibilidade de surgirem lembranças ou se referiam a seu passado,
ele me respondia de forma irritada que seu passado era sem importância, chegando a
afirmar mais de uma vez que:

“Ainda não tinha sido”.

Mas, ao longo do tempo, alguns elementos significantes compareceram. Seu pai,


ainda vivo durante o tratamento, tinha sido muito ausente. Só lembrava que ele tinha várias
amantes. Sua mãe era muito preocupada com a disciplina e o estudo. Tinha uma irmã mais
velha, que levava seu nome (na forma feminina), e um irmão menor. George é um homem
sem história, ou com uma história que, devido ao funcionamento do significante, resiste em
ser escrita.

147
A separação se consumou de maneira bastante complicada. Sua esposa praticamente
o expulsou de sua casa, ao que George respondeu de uma maneira muito violenta, batendo
e quebrando coisas.
A partir deste momento George começou a andar pelas ruas sem destino, passando
horas, até chegar ao esgotamento. Passou a ter certas percepções de que sua pele estava em
processo de transformação, viraria um bicho. Essas percepções o deixavam “subindo pelas
paredes’ >210 e acreditando que estava enlouquecendo. Nessa ocasião, as sessões eram
diárias, e em vários momentos pensava que a única saída seria ser internado. Passou a
comer como um bicho, a andar como um bicho. Não era simplesmente uma sensação, era
uma verdadeira percepção e transformação corporal que se operava. Vociferava
desesperado: “eu estou vendo! você vê?” Ficou descuidado com sua aparência, passou um
longo tempo sem cortar o cabelo e sem fazer a barba. Algo estava acontecendo, e pensava
que isto se devia ao fato de que alguém tinha feito um “trabalho »211 contra ele. Não
suportava muito tempo de sessão, começava falando sobre uma idéia que tinha pensado e se
despedia rapidamente, geralmente um pouco agressivo. Estas interrupções abruptas
geralmente coincidiam com um aumento considerável de impaciência.
Que estatuto tem “virar um bicho? Esta transformação estava lhe tomando por
inteiro. Lembremos que, na véspera do casamento, George se refugiu na copa de uma
árvore, passando a se alimentar de frutas. Nas sessões em que estava preso, designado
como um bicho no fenômeno alucinatório, surgiu uma frase que sua mãe lhe dizia, quando
era pequeno: “Não comas como um bicho”. É o bicho proferido pela mãe que lhe dá esse
lugar, imagem na qual se aliena, sem dialética, ancorada num ponto de certeza que se
apresenta no real do corpo. Durante este período, George era o bicho.
A lembrança comunicada não encontra um ponto de conexão com o que lhe
acontece. Pouco tempo depois, surgiu uma frase que sua mãe repetia: “Quem anda para
trás, é caranguejo”.
O bicho remete ao lugar de George como objeto da mãe. Foi nesse lugar que se
refugiou antes do casamento e é nesse lugar que surge novamente depois da separação.
George sofre de influências, se aliena nas palavras que ouve, passando a agir e a se

210
Expressão utilizada por George.
211 Trabalho se refere, aqui, à realização de uma macumba.

148
comportar como tal. O andar sempre para frente é um recurso para se desviar do buraco que
apresenta o “bicho”, signifícante que denuncia um mecanismo foraclusivo. Entendo essa
relação como uma pura alienação sem separação.
Suas sessões transcorrem em tomo do tema da forte influência que exercem as
palavras que ouve. George diz claramente que está exposto, sem defesa, a tudo o que entra-
e não ao que sai. Trata-se do que retorna de fora, pela via do real.
Por esta razão ele tentava evitar ouvir, se isolando, conversando pouco com seus
colegas de trabalho. Passava seu tempo de trabalho reduzido à sua função, à comida (come
como bicho), a uma cama e a uma roupa que não muda. Passava toda a temporada de
trabalho com a mesma vestimenta. A empresa na qual trabalhava era estrangeira, assim
como seus chefes e patrões.
Explicava que ocupava uma função aquém de sua formação universitária por uma
questão de necessidade. Considerava-se um homem sem sorte, sem escolha, sem dinheiro.
Perguntava: será que o que ocorria a ele era por ser um homem em excesso? Será
que devia ser castrado?212 O excesso era o adjetivo que George utilizava para descrever
suas experiências enigmáticas. A pergunta estava colocada, mas não funcionava como uma
questão que viesse a produzir um saber não sabido.
Em alguns momentos o analisante apresentava um riso inusitado, acompanhado de
gargalhadas, sobre o qual nada explicava. Dava impressão que, nessa hora, ouvia ou
pensava algo que lhe provocava esse efeito, mas sobre o qual nada sabia ou podia me dizer.
Em várias ocasiões, se queixava de que surgiam, no seu pensamento, palavras sem
sentido. Estas apareciam desligadas, sem conexão: o significado era desconhecido para ele.
Frente a estas situações que o deixavam muito perplexo, tinha encontrado uma maneira de
lidar, mas, como me dizia, isso não resolvia os problemas. Elas (as palavras) continuavam a
irromper no seu pensamento. Cada palavra que surgia na sua cabeça, sempre de forma
intempestiva e imposta, era procurada por George no dicionário, na tentativa de apreender
seu significado. Mas, ao encontrá-lo, não era possível enlaçá-lo. Estas experiências
enigmáticas são alucinátorias, tanto por seu caráter imposto como pela dissociação que
apresentam entre mensagem e código.

212 Esta pergunta foi enviada por ele numa carta, nunca falada ao longo das sessões, nem retomada.

149
As sessões repetiam mais ou menos um padrão, no qual o analisante me relatava
fatos ocorridos recentemente, os quais geralmente tinham lhe causado um impacto,
deixando-lhe num estado de perplexidade. Seguiam-se de um pedido de opinião, para
resolver ou entender o que estava lhe acontecendo.
Aprendi que o silêncio não ajudava George a continuar a falar um pouco mais
destas situações. Aos poucos, fui intervindo de uma maneira mais efetiva, conseguindo que
o analisante fosse um pouco além da comunicação inicial. Assim, com muita dificuldade,
ele foi construindo algumas explicações pontuais e breves, que giravam sempre em tomo de
um trabalho de macumba realizado contra ele ou devido à seu “karma” (destino).
Durante este período, o analisante me colocava no lugar de destinatário, e me pedia
uma intervenção que barrasse esse gozo sem limites ligado às suas experiências,
enigmáticas.
Passo a apresentar um sonho, que considero marcante da mudança que houve na
situação transferenciai. O relato é o seguinte:
“Estou frente a uma cama, onde estão minha mãe ou minha mulher. Estou com uma faca na
mão. Você (analista), está atrás de mim e me ordena: mate!”
O sonho suscitou poucas associações, mas o paciente concluiu que tinha que se
separar de sua mulher. No sonho, sou eu quem lhe dá a ordem, ou seja, o paciente realiza
aquilo que lhe ordeno: deve abandonar sua esposa - mãe. No sonho, George surge como
um sujeito que obedece a vontade do Outro.
Inaugurou-se, a partir do sonho, um novo lugar para a analista, que será
interpretado pelo analisante da seguinte maneira: “Mate - Eu o amo”. A ordem de matar era
correlata da convicção de que a analista o amava. Esta interpretação, não comunicada pelo
paciente, e sim foi construída no decorrer do tratamento, durante o qual a transferência
tomou uma vertente erotômana.

O tratamento sob uma transferência erotomaníaca

Poucas sessões depois, George me entregou um presente, acompanhado do seguinte


comentário:

150
“Estou lhe dando esta faca-canivete, que ganhei como prêmio no meu trabalho.
Você deve ficar com ela, porque foi quem me ajudou a realizar minha tarefa.
Sem você não teria conseguido. Não é bom eu ter esta faca comigo”.

A esta entrega se sucederam muitas outras, de diversos objetos, cada um tinha a


função de fixar o gozo desenfreado, que o invadia. Neste caso, a analista ocupava o lugar
do semelhante (outro), produto do desdobramento do eu do sujeito, que podia protegê-lo,
no sentido de evitar a realização de um ato violento (passagem ao ato). Lembremos que
George era bastante violento com sua mulher. Mas, no horizonte da cena analítica,
começava a se delimitar um outro lugar: o parceiro de um delírio erotomaníaco. O
analisante começou a ser muito sedutor, propondo encontros fora do tratamento, sempre
insistindo que “estes não dificultariam em nada a relação terapêutica”213.
Um pouco antes George tinha começado a me escrever cartas, nos períodos em que
passava fora da cidade, trabalhando - e não podia comparecer às sessões. Considero que a
escrita das cartas foi fundamental para a manutenção do trabalho no tratamento. Estas
cartas, que não continham destinatário no papel (somente no envelope) e nem assinatura,
tinham uma função homóloga a de um diário: onde me relatava seus dias, o que lhe
acontecia, sempre enfatizando suas experiências enigmáticas.
Freqüentemente, surgia a sensação de que algum mal poderia lhe acontecer, tendo
ele a impressão de um risco à sua volta, sempre relacionado ao que “entrava na sua
cabeça”. Frente a este estado de coisas, George utilizava o recurso do isolamento, nem
sempre bem sucedido, acompanhado de conversas comigo no seu pensamento.
A transferência tomou um aspecto passional. George me comunicou claramente que
estava apaixonado, e, a partir desse momento, sua vida passou a girar em torno das sessões.
“Venho para lhe ver”, “Penso o dia todo em você”, “Falo com você” , “Você é um fada”,
são algumas das frases que se repetiam com insistência.
Estas comunicações, tomadas em si mesmas, não permitem pensar que se tratava de
uma transferência erotomaníaca, já que observamos (na primeira parte da tese) que, desde
as elaborações de De Clérambault, a erotomania se baseia num postulado inicial, cujo
embrião lógico indica que o sujeito se situa como objeto amado. Portanto, a erotomania se
constrói a partir da certeza de ser amado, de ser alvo do amor do Outro.

2,3 É uma expressão de George.

151
Neste caso, isto não aparecia claramente; mas, estamos orientados pelo comentário
de S. Freud no “Caso do Presidente Schreber” (no qual nos alerta que, em muitos casos,
surge na linguagem do erotômano simplesmente a frase “Eu a amo”). O embrião lógico
tem que ser deduzido. Ao longo do tratamento apresentaram-se os elementos necessários
para deduzir que o embrião lógico estava presente.
Na transferência, eu ocupava o lugar da mulher ideal, e todo o trabalho do
analisante girava em torno de comunicar seu amor, sempre dando indicações que eu devia
mudar e não ser tão rígida, que não aconteceria nada se eu aceitasse seu convite. Queria
saber sobre minha vida, sobre meus gostos, enfim, estava frente a uma resistência muito
poderosa, articulada a um ponto de certeza, efeito da foraclusão do Nome-do-Pai.
George se mostrava apaixonado, e só queria saber disso. Frente às minhas repetidas
negações, ficava bastante nervoso e decepcionado, mas pouco tempo depois voltava a
insistir.
Ocorreu um fato, que situo como contingente. George engravidou uma moça num
encontro sexual. No início, reagiu de maneira muito agressiva e abrupta, mas não duvidou
em reconhecer seu filho e cuidar da moça durante o tempo da gravidez. Insistia em afirmar
que sua decisão fora por uma questão de honra, não tendo nenhuma relação com sua vida
amorosa. Esta moça nada significava para ele.
Desde sua separação o analisante vivia sozinho. Por ocasião desta gravidez, esta
moça se mudou para sua casa. Ele não tinha dúvidas sobre o lugar que eu ocupava na sua
vida, e, repetidamente, me dizia que eu podia ficar tranqüila, pois nada tinha mudado. Suas
comunicações sempre tendiam a explicar-me que devia fazer isto e que não desconfiasse
em relação a seu amor. O fato de morar com essa moça não mudava nossa relação. O
vínculo com essa mulher era de outra ordem. Desta união nasceram dois filhos. Alguns
anos depois, George me recriminaria, alegando que esse casamento não deveria ter
acontecido, e que só ocorreu por minha culpa. Eu deveria ter proibido.
A entrada desta moça foi possibilitadora, apesar das recriminações posteriores do
analisante, da articulação da erotomania a um platonismo, não de maneira absoluta, já que
o sexual volta e meia comparecia, mas no sentido de liberar o amor de um compromisso de
realizar a relação sexual, pelo menos a curto prazo. O platonismo ofereceu um condição

152
para a manobra do analista, liberando-o, parcialmente, de uma passagem ao ato. Digo
parcialmente pois isto não ocorreu de maneira absoluta.
George passou, a partir da transferência erotomaníaca, a “utilizar minha imagem”.
Muitas vezes comentava sobre este fato, sobre o qual nada mais queria revelar. Mas, nesta
fala, sempre surgia uma dimensão alusiva ao sexual. Portanto, minha hipótese era de que
se produzia algo da ordem do gozo sexual no uso de minha imagem. Isto me permite inferir
a localização de um gozo, que a partir desse momento ele podia manejar, assim como
Schreber se colocava frente ao espelho.
Esta transferência, articulada na rede delirante, apresentava na vertente imaginária
vários fenômenos. Por um lado, era situada como ideal (destinatário), por outro, parceira
no delírio (amante) onde surgia o duplo, o igual, “eu sou você”, dimensão na qual.
comparecia o denominado “empuxo à mulher’ ,214 . Observamos aqui como a relação de
mistura entre o Outro e o sujeito ficava em evidência.
Mas também, em outros momentos, irrompia a dimensão mortífera do espelho (Eu
ou você). Cada vez que isto ocorria, George me ameaçava, dizendo:

“Cuidado, eu sou maior que você... Posso lhe machucar... Posso lhe
quebrar...Posso quebrar seu consultório”.

Estas ameaças geralmente eram proferidas frente à minha recusa. Em geral, a


manobra que mais utilizava era intervir desde o do lugar do destinatário-semelhante, a
partir do qual tentava apontar para a invenção de outra solução.
A cada vez que eu era situada no lugar do Outro que goza, que prejudica, eu pedia a
George para pensar na melhor direção ou solução. As vezes ele se indignava, repetindo:
“Como, você não sabe? Você sabe tudo sobre mim!”
Em algumas ocasiões a manobra consistia em admitir que eu podería estar
equivocada, na maneira de conduzir as coisas. Enfim, sempre reduzindo o saber de meu
lado e promovendo a participação de George na possível solução dos problemas que a
transferência colocava. Solicitava seu comparecimento, para que pudesse se
responsabilizar, pelo menos em parte, pelo que estava se passando. A manobra do analista,

214 Este tópico foi introduzido na parte IV.5 deste trabalho sob o titulo “Sobre o amor e a sexualidade na
psicose”.

153
neste caso, se servia do que J. Lacan nos transmite de maneira bem clara: o outro do delírio
é desdobrável, é reduzível.
Entre uma manobra e outra manobra ocorreram várias mudanças, das quais tratarei
no próximo ponto. Mas, antes disto, voltarei ao tema da certeza de ser amado. Houve uma
situação analítica que quase colocou em risco definitivamente o tratamento. É importante
assinalar que eu tinha, permanentemente, a impressão de que o tratamento estava no limite
de uma borda, de um abismo. Esta impressão era causada justamente pelo funcionamento
significante, que abre um buraco na cadeia.
Houve uma ocasião, na qual George percebeu que um outro analisante se despedia
de mim, antes de ele entrar. Esta percepção bastou para que ele ficasse transtornado,
andando de um lado para o outro da sala, pronunciando ameaças e insultos, alegando que.
era inconcebível que eu recebesse outros pacientes. Meu consultório, de repente, tinha se
transformado num “prostíbulo”, onde eu recebia os clientes, um atrás do outro. George
não aceitava que houvesse alguém além dele. Gritava, andava de um lado para o outro,
batia no divã. Como o leitor pode perceber, foi uma sessão muito difícil de se conduzir,
onde fiquei muito amedrontada, e somente consegui concordar com ele quando me disse:

"Desta forma, sendo mais um, não posso mais vir aqui”.

Retirou-se abruptamente, dizendo que não voltaria mais. Neste momento, pensei
que não havia condição de continuar o tratamento. Extraí desta experiência - e de outras,
não tão dramáticas - que George tinha a convicção de ser amado pela analista, e, mais
ainda, de ser o único. Minha escuta atenta, minha disponibilidade para recebê-lo eram
interpretados pelo analisante como sinais de amor. Não era a primeira vez que ele
encontrava pacientes saindo de meu consultório, mas era a primeira vez que o paciente com
quem se cruzava era um homem. Para minha surpresa, alguns dias depois me telefonou
pedindo desculpas, e dizendo:

“Me desculpe pelo acontecido. Preciso voltar às sessões. ”Não posso deixar de
vê-la”.

Concordei (confesso, ainda um pouco assustada) em voltar a recebê-lo. Seu retorno


ocorreu muitos dias depois, devido ao seu trabalho, o que facilitou que eu tivesse algum

154
tempo para me re-situar. Continuou vindo e falando como se nada tivesse acontecido. Este
fato, fato discursivo, encontra uma explicação no que S. Freud aponta como a certeza do
delírio e que comporta um fechamento às percepções que possam vir a questioná-la.
Meu lugar de parceira do delírio tinha, por um lado, a dimensão do amor, mas as
vezes surgia o lado oposto: o ódio, o mal, a vontade de submetê-lo. Duas faces do Outro
regido pela lógica binária. “Me ama, e por tal razão a amo” e a outra “Me odeia, portanto,
megoza, me quer mal”.
Passo a relatar uma sessão onde este ódio se apresentou com bastante intensidade.
George nos disse:

“Não sei se você me considera paranóico, mas eu penso que tudo o que acontece
de ruim comigo, você é a culpada. Aconteceu uma desgraça. Há dias que não
durmo. ...Eu acho que você tem poderes...Relaciono sua reação e o que me
aconteceu...Por isso as vezes não escrevo. As vezes escrevo e digo que se dane.
Você tem muito poder negativo. Eu estou exposto ao que entra. Penso em não
vir mais aqui, para que você não me faça mal.”

Esta faceta da transferência me situa claramente no lugar do Outro gozador.


Novamente, aqui, utilizei a manobra de transferência, apontando para uma redução do
saber do Outro. Assim, foi possível dar mais tempo ao trabalho de construção, que
denomino uma suplência.

A construção de uma suplência

A construção é realmente o termo adequado para falar da operação analítica no


trabalho da psicose. Dissemos que o analista oferece uma escuta atenta, da qual se
depreende sua presença, elemento significante que determina de saída possibilidades para o
sujeito psicótico.
Neste caso, nossa aposta se verifica na insistência em continuar o trabalho, até o
ponto onde George pudesse se despedir. E assim foi feito.
Comentamos que no primeiro período do tratamento sua fala era sempre em tomo
de suas experiências enigmáticas. O “Bicho” foi inicialmente o primeiro significante que
demarcamos como aquele que o designava, como sujeito do gozo do Outro. Dissemos que

155
George comia como um bicho, dormia como tal, vivia identificado a esse lugar. Até o
momento em que começou a se destacar, na sua fala, a idéia de ser um funcionário
internacional, o que rapidamente tomou o lugar de uma solução para seu lugar de
“submetido às palavras”.
“Virar estrangeiro” transformou-se numa meta para o analisante, que a abraçou com
todas as suas forças. Desta forma passou a estudar outra língua (inglês), e começou a ler
livros. Entre os quais, destaco: “Diário de uma viagem ao Brasil”, de Maria Graham. Este
foi o único, entre muitos lidos por George, que me foi posteriormente entregue. Trata-se
neste livro, da história de uma viagem ao Brasil, relatada por uma mulher inglesa que veio
trabalhar como governanta dos filhos do Imperador, especialmente D. Maria da Glória. O
primeiro nome da inglesa coincide com o nome da analista, e o sobrenome acarreta uma.
parcial homofonia com o sobrenome da analista. A estrangeira inglesa é um desdobramento
da analista estrangeira.
Considero que “estrangeiro”, é um significante extraído da transferência, na medida
em que sua analista é uma estrangeira. George devia se transformar num estrangeiro, mas
o seria na sua própria terra. Virar estrangeiro é uma tarefa que afirma sua posição de
exterioridade, que o funcionamento da linguagem lhe outorga. Lembremos que um
estrangeiro é alguém de fora, que pode vir a falar uma outra língua, mas sempre apresentará
uma conotação de exterioridade. Após a leitura deste livro, George disse que era
importante que o livro ficasse comigo, e assim o fiz .
Suas sessões e suas cartas se transformaram na escritura de um verdadeiro diário,
onde, aos poucos, o analisante me comunicava os passos que realizava na direção do
estrangeiro. Este trabalho se produzia, e, enquanto situada como secretário do alienado,
acolhia suas falas e suas histórias. Fez parte deste trabalho a leitura de biografias sobre
caudilhos215 latino-americanos da época da independência. Relatava as histórias desses
homens poderosos, com os quais se identificava, mas, o que mais lhe chamava a atenção
era o poder e a quantidade de amantes que possuíam. A cada leitura, tomava um pouco da
identidade destes homens, que remetiam a uma certa caricatura da figura paterna. Neste
trabalho de “virar estrangeiro”, foi até um país vizinho (com a idéia de uma possível

2,5 Caudilho se define como aquele que dirige um bando armado; capitão chefe de facção ou partido; chefe
militar.

156
mudança, experiência que o fez descartar essa possibilidade, pelo menos nessa época).
Viraria um estrangeiro, na sua própria terra. As cartas começam a apresentar palavras e
frases em inglês, sua nova língua. A língua inglesa escrita era utilizada para as
manifestações amorosas. Durante algum tempo, o analisante me relatou que tinha passado a
se comunicar em inglês com sua irmã.
Posso dizer que o percurso se estabelceu da seguinte forma: do “bicho” ao trabalho
de “virar estrangeiro”. Virar estrangeiro se situou como um ideal a ser alcançado, um ideal
que dava um sentido à sua existência. Este era seu karma, seu destino. Com o desenrolar
do trabalho surgiu outro significante, não tão ideal, mas que se desprendia do estrangeiro:
ser um engenheiro. Lembremos que sua formação acadêmica era exatamente essa. Até esse
período, George não tinha podido se apropriar desse nome, desse título.
Para ser engenheiro batalhou muito, realizou muitas entrevistas, mandou muitos
currículos, demorando a receber algum retorno. Enquanto isto, na medida em que George
não era tão consumido por suas experiências alucinatórias, ia surgindo um reconhecimento
cada vez maior por parte dos seus chefes, sendo-lhe atribuídas funções mais difíceis e
complicadas. Obteve várias promoções, e sua vida laborai começou a melhorar, inclusive
em termos de salário. Teve oportunidade de fazer viagens ao exterior para realizar cursos
de aperfeiçoamento. Mas sua meta mais próxima demorou a chegar. Sempre repetia que
não esquecia de seu ideal de “virar estrangeiro”. A empresa na qual trabalhava o solicitou
para ocupar a função de engenheiro e, a partir daí, George começou a desenvolver esse
trabalho com bastante dificuldade, o que era objeto de suas comunicações nas sessões. Sua
vida familiar não teve o mesmo desfecho: continuava morando com sua nova mulher, mas
sempre de uma maneira bastante isolada, chegando a construir um quarto fora de sua casa
(no quintal) para morar.
Com bastante freqüência, falava de seu amor, do meu lugar de mulher ideal, enfim,
do trabalho realizado, indagando-se sobre as possibilidades que teria a nossa relação. Num
determinado momento, fez uma proposta, a partir de um pensamento que tinha surgido a
propósito de uma história lida no jornal. Tinha se imaginado morto, e sua analista levava
flores no seu enterro. Nessa sessão, enquanto o ouvia, me perguntava - um pouco inquieta,
sem nada lhe dizer sobre qual seria o desfecho para essa transferência, e se somente seria
possível pensar num desfecho tal como George estava imaginando. Peço ao leitor que

157
lembre o apresentado no tópico sobre o amor na psicose, onde a realização do amor
coincide com a abolição do sujeito. Disse ao paciente, naquela oportunidade, que nenhum
de nós sabia quem morrería primeiro. Ao que o analisante, depois de pensar um pouco,
propos o seguinte acordo:

“Quem morrer por último deverá levar flores no enterro.”

George só ficou tranquilo depois que obteve minha concordância, e continuou a vir às
suas sessões durante um longo período. O delírio articulado na transferência continuava a exercer
sua pressão, sem obturar totalmente o trabalho do analisante. Era um laço difícil para ambos, mas,
segundo George, melhor do que nada. Transcrevo uma frase enviada numa carta:

“Ruim com você, pior sem você.”

Sustentei este laço delirante, como disse, aproveitando os diferentes lugares que o
analisante me indicava, como vias possíveis, até o momento em que George precisou, por
motivos de trabalho, mudar-se da cidade. As sessões foram se esparsando. O analisante vinha às
sessões somente uma ou duas vezes cada quinze dias, e suas cartas não eram tão assíduas. Na
época, ía constatando que se produzia um afastamento, e que isto não o prejudicava em nada.
Cada vez que comparecia repetia incessantemente que nada havia mudado, que tudo
continuava do mesmo jeito; e, se referindo ao amor, afirmava que devíamos ficar
tranqüilos. Este continuava sendo o eixo, o centro de sua vida.
Numa dessas sessões, o analisante veio com uma proposta, querendo saber se eu
concordava. Me comunicou o seguinte:

“Penso que nosso encontro só é possível numa outra vida, está escrito que nosso
encontro ocorrerá em outra vida. É este nosso ‘karma’”.

Perguntou-me insistentemente se eu concordava com esta idéia. Indaguei com


muito cuidado um pouco mais sobre esta solução, frente à qual, só me restou aceitar. Essa
idéia inventada por George permitia seu afastamento do tratamento. Precisava de minha
concordância para a manutenção deste amor, que se projetou num futuro assintótico.
Depois dessa comunicação, George não marcou mais sessões, e se despediu de uma
maneira muito afetuosa. Alguns meses depois me telefonou, pedindo uma sessão, na qual

158
me disse que estava muito bem, e trouxe uma caixa de bombons de presente, acompanhada
da seguinte frase:

“Engraçado, parece que venho a visitar a minha amante”.

Nesta oportunidade, me comunicou algumas experiências enigmáticas que tinha


vivido, e, por fim depois de tê-lo ouvido, me disse que tudo continuava do mesmo jeito em
relação a mim, tal como tínhamos combinado. Despediu-se e nunca mais tive notícias dele.

Uma solução
Delimitamos um caminho onde destacamos os seguintes significantes: Bicho — virar,
estrangeiro - nova língua - realização amorosa, Todos estes, produzidos sob uma
transferência delirante.
Consideramos que “virar estrangeiro” aponta, por um lado, para um signifícante
ideal, e, por outro, para uma tarefa, um trabalho. Estrangeiro é um signifícante extraído da
transferência. O estrangeiro é alguém que possui uma relação com uma língua que não lhe
pertence totalmente. É alguém subtraído de um língua, ou alguém que se insere - mas não
totalmente, sempre deixando uma diferença. George tem como tarefa aprender outra língua,
na qual se introduz como um estranho.
É importante ressaltar que George continua sendo um sujeito psicótico. O retomo do
signifícante foracluído se dá pela via do real, mas conta, a partir de seu trabalho de suplência, com
um recurso que fixa o gozo, que o limita pela via de uma significação singular, inventada por ele.
Do lado da suplência imaginária, situamos o bicho e o estrangeiro amado. Do lado
do simbólico, temos a mulher que o ama e o odeia (articulada numa lógica binária) e no
lugar do ideal do eu, a inserção como estrangeiro numa nova língua, situando o fim desta
tarefa, que coincide com o encontro e a realização do amor, num futuro assintótico.
Podemos utilizar o esquema I e colocar os signifícantes que se encontram numa
relação de proporção, limitando o gozo desenfreado e estabilizando o sujeito, sem a
necessidade da presença da analista.

Do lado da suplência imaginária :


- Bicho (objeto do Outro) no lugar do eu ideal

159
- Amado e gozado como estrangeiro (um nome do gozo) no lugar do eu- Dimensão do
duplo.
Na vertente do imaginário situamos, por um lado, em i, o bicho, posição que revela seu
lugar de objeto “a” do Outro, provocando o surgimento de um gozo que se traduz por sua
transformação corporal. Por outro lado, no ponto m, surge um eu, amado e gozado pela
mulher ideal. Neste lugar surge um gozo que se fixa a uma outra imagem, que indica o
lugar do duplo (relação de mistura), mas que também se dirige ao lugar do Ideal, o que
implica um trabalho a se realizar. Portanto, entendemos que se opera uma articulação entre
o bicho e o objeto amado-estrangeiro.

Do lado da suplência simbólica:


- A mulher Ideal o ama. A mulher o odeia - o submete- no lugar do M.
- Entrada numa nova língua como estrangeiro. Encontro amoroso— no lugar do Ideal do eu.
Encontramos, na vertente simbólica o lugar da mulher Ideal, que podemos denominar
de Dama (analista -ama) situada no lugar de M, articulada à lógica da simbolização primordial,
isto é, aquilo que denominamos ao longo do trabalho de lógica binária.
A nova língua é delimitada no lugar do eu ideal, que, ao ser colocada no horizonte,
permite o destaque do significante “estrangeiro”. A esperança de entrada numa nova língua
e a realização do amor, pontos que pensamos como sendo coincidentes, fazem com que
George não fique condenado a um destino de desgraça, termo utilizado por ele para dizer
sobre sua posição de bicho, objeto “a” do Outro.
A solução de George implica um adiamento no tempo, inventando uma outra vida,
outra encarnação. Futuro que insere uma distância entre os significantes, protegendo-o da
cola ao objeto “a”. Virar estrangeiro, se introduzir numa nova língua, é um Ideal a alcançar,
sempre no horizonte, assim como o encontro com a mulher ideal ( analista.).
A nova realidade se constrói numa superfície bilátera, quer dizer, o dentro e fora
não se encontram em continuidade, o que implica na possibilidade de um novo surgimento
do objeto “a” sem véu.
Houve, nesta experiência de trabalho, uma fixação do gozo (através do nome), que
promoveu uma distância entre os significantes destacados, permitindo uma estabilização
entre o significado e o signifícante.

160
George encontra um nome para seu gozo: estrangeiro. É importante marcar que o
nome de George, e a palavra estrangeiro repetem a sílaba “ge”, letra que fixa, circunscreve
um gozo. A repetição da sílaba “ge” saltou à nossa vista, no momento em que construíamos
o caso. Esta singularidade nos permite perguntar se esta letra terá sido a condição de
produzir a amarração do novo nó, que articula os três registros.
Nos parece bastante plausível pensar que o “ge” é a cola que unifica os elos do real,
simbólico e imaginário, formando-se assim, o nó de trevo. Não pretendemos aprofundar
este ponto, mas deixamos assinalada esta idéia em torno da coincidência produzida pelo
encontro do significante estran”ge”iro na transferência, fato fundamental para promover a
nova amarração encontrada por George. Para finalizar, lembraremos as palavras que D. P.
Schreber endereça ao Dr. Flechsig, na sua carta aberta:

“Não tenho dúvidas de que seu nome desempenha um papel essencial... »216

Trata-se de um nome, em ambos casos (Schreber e George), nome que desempenha


uma função determinante na regulação do gozo.

Esquema I do caso George:

11bicho lllllll lllllll I a


>

1 Â
& Po
/

Va rir nova llnqua |

Realização
do amor

216 SCHREBER, D. P. "Memórias de um doente dos nervos”, Paz e terra, São Paulo, 1995. p. 25.

161
CONSIDERAÇÕES FINAIS

O curso de um rio, seu discurso- rio chega


raramente a se reatar de vez; um rio precisa
de muito fio de água para refazer o fio
antigo que o fez. Salvo a grandiloqüência
de uma cheia lhe impondo interina outra
linguagem, um rio precisa de muita água em
fios para que todos os poços se enfrasem: se
reatando, de um para outro poço, em frases
curtas, então frase a frase, até a sentença de
discurso único em que se tem voz a seca ele
combate.

João Cabral de Melo Neto


Antologia Poética

162
Começamos este trabalho de considerações finais, situados entre uma pressa por
concluir, e deixar que estas letras circulem, que possam ser lidas, e com uma certa
dificuldade de nos separar do texto. Enfim, entre um movimento e outro, nos dispomos a
retomar as questões que deram início a esta tese e examinar até onde conseguimos chegar.
Recortamos, para nossa pesquisa dentro do vasto campo da psicose, as denominadas
psicoses delirantes, cuja caraterística fundamental é a construção de sistemas delirantes.
Partimos de uma experiência com pacientes psicóticos, que nos ensinou que é
possível pensar a transferência na psicose, na medida em que esta pode ocorrer, e, mais
ainda, que esta pode propiciar um tratamento para a psicose. Nossa tentativa, ao longo
desta tese, visou elucidar as particularidades dessa transferência e sua possível manobra por
parte do analista.
A primeira pergunta se refere a quais são os indicadores que nos permitem
considerar como transferência o laço estabelecido por sujeitos psicóticos com o analista.
Deixamos claro que a transferência, enquanto conceito construído no contexto da
neurose, exige, para ser inserido no campo da psicose, uma exame muito minucioso das
implicações do funcionamento deste campo sobre a transferência.
Observamos que a posição freudiana, tingida de um certo pessimismo e
desconfiança em relação à presença e à utilização da transferência na psicose, obedecia, por
um lado, à impossibilidade de definir o laço estabelecido por psicóticos - tal qual a
transferência na neurose -, e, por outro, às dificuldades de manejo nos casos em que esta se
apresentava. Concordamos com S. Freud que o laço dos psicóticos não é homólogo à
transferência, isto é, não pode ser considerado como uma formação do inconsciente a
serviço do recalque. Entretanto, é a letra de S. Freud que abre e indica caminhos para
pensarmos nesta problemática.
A experiência clínica insiste e nos convoca a avançar, a dar mais um passo, e a
tentar produzir articulações em relação ao laço dos psicóticos com o analista.
Ao considerarmos a transferência no sentido mais amplo, como a relação do sujeito
com o outro, encontramos, na função que compete ao delírio (de reatar os laços com a
realidade), um caminho para pensarmos suas especificidades no terreno da psicose.
A construção delirante surge suportada num mecanismo de transferência que opera
pela via da decomposição, nos diz S. Freud. O outro do delírio se delimita a partir de um

163
desdobramento do eu, que toma o eu do sujeito como seu objeto. Todos os outros são
produzidos como duplos do eu, com os quais se estabelece uma relação de “cola” - termo
proposto por S. Ferenczi. Assim, essa transferência ocorre graças a um mecanismo de
deslocamento. Esta particularidade, ou seja, a constituição de um outro, produzido por
decomposição, nos permitiu propor a utilização da expressão “transferência delirante”, para
designar a transferência articulada na rede do delírio.
O delírio, e sua função de devolver a libido aos objetos, nos orientou para
pensarmos no lugar do analista, tendo em conta a particular coincidência entre o eu e o
objeto. Seguindo esta orientação, colocamos o delírio como uma via para elaborar os
aspectos da transferência na psicose. Destacamos, nas elaborações de De Clérambault, a
problemática do objeto e da lógica do delírio, assim como o trabalho de S. Freud, onde.
inventa uma gramática que opera sobre o funcionamento libidinal na psicose. No caso do
delírio erotômano, surge um outro que ama primeiro.
A carta de D. P. Schreber foi de grande auxílio para encaminhar os lugares possíveis
para o analista. O delírio é definido como uma tentativa de cura, de uma auto-cura
questionável, na medida em que apresenta a particularidade de ser endereçado para algumas
pessoas, geralmente para pedir algum tipo de intervenção (juizes, médicos, altos
funcionários, reis, entre outros). Observamos a importância que Schreber dá a Flechsig, a
sua mulher e ao leitor. A função do destinatário ficou assim delimitada como um lugar onde
o analista pode estar situado, além do lugar de parceiro do delírio.
Assim, a posição narcisista do psicótico, apontada por S. Freud, produz duas
inversões. Na primeira, seu eu é situado como objeto do outro, e na segunda, o sujeito
delirante é quem interpreta, fechando-se a qualquer intervenção que implique um
questionamento da certeza veiculada na sua interpretação. Portanto, concordamos com S.
Freud sobre a necessidade de fazer ajustes no dispositivo inventado para a neurose, para
tratar os sujeitos psicóticos. Em primeiro lugar, consideramos que o analista deve abrir mão
da interpretação, evitando qualquer confronto com as interpretações apresentadas pelo
delirante, deixando-se guiar e levando ao pé da letra o que o sujeito propõe.
A proposta de J. Lacan para pensar a psicose - sua causa, mecanismo e efeitos -, foi
retomada na terceira parte de nossa tese de maneira bastante detalhada, a partir da qual
avançamos em torno do tema da transferência. Conseguimos elucidar de modo rigoroso o

164
funcionamento da linguagem na psicose, a partir do mecanismo foraclusão do Nome-do-
Pai. A rejeição do significante do Nome-do-Pai acarreta uma regressão tópica ao estádio
do espelho, que produz inúmeros efeitos no nível da linguagem, da imagem do eu e da
relação com o outro. Situamos o significante Nome-do-Pai como uma necessidade lógica
da cadeia significante. Sua rejeição provoca um retorno deste significante no real, forçando
a realizar um trabalho que permite ao sujeito psicótico contrabalançar sua posição de objeto
“a” do Outro.
O sujeito inserido numa estrutura psicótica se encontra habitado pela linguagem,
apresenta fenômenos que implicam a ruptura entre o código e a mensagem, efeito da
presença de um Outro prévio, regido por uma lógica binária, sem dialética moebiana.
Examinamos a particularidade do funcionamento da linguagem, nos fenômenos
alucinatórios, implicando o surgimento do significante na sua vertente desencadeada, que,
transformado numa letra, introduz a consistência do ser, promovendo um gozo desregrado e •
mortífero.
Entendemos, assim, que compete a cada sujeito psicótico realizar o trabalho de
reatar a cadeia significante, cuja função é acolher o significante que surge no real, e
encontrar um lugar que permita situá-lo como um sujeito, dando um sentido a sua
existência. Este trabalho da psicose, possibilitado a partir das elaborações em torno da
pluralização do Nome-do-Pai (onde a ênfase está dada na função de nomear), pode ser
denominado de suplência. Afirmamos que a suplência é uma noção chave, na medida em
que nos autoriza a pensar numa direção de tratamento na psicose. Nesta articulação, um
outro significante pode vir a suprir o significante Nome-do-Pai.
Em outras palavras: se há tratamento possível, pensamos que este deve apoiar e
sustentar a tentativa de construção de um recurso suplementar, que permita ao sujeito
psicótico habitar a linguagem, e não somente ser habitado por ela.
Observamos que a construção delirante delimita um Outro sem barra, onde se
localiza o gozo, Outro que, reduzido a um outro imaginário, toma o sujeito-eu como seu
objeto. Essa redução do Outro ao outro, e do sujeito ao eu ganha uma inteligibilidade a
partir do nó de trevo, no qual os três registros são amarrados, estabelecendo uma
continuidade entre si. Esta nova amarração permite delimitar os três campos: real,

165
simbólico e imaginário. A relação mistura, indicada por J. Lacan entre o sujeito e o Outro,
encontra uma elucidação na continuidade dos elos, apresentado través do nó de trevo.
A solução schreberiana, apresentada no esquema I (que foi objeto de nosso estudo),
nos permitiu entrever a possibilidade de um delírio se transformar numa metáfora delirante.
Esta transformação se dá através do destaque de um significante ideal, que permite um
funcionamento do Outro, que traz uma estabilidade e uma certa oscilação entre o sujeito e o
objeto. Assim, entendemos que a metáfora delirante consiste numa verdadeira proporção
matemática. Entretanto, é importante assinalar que a construção de uma metáfora delirante-
suplência não implica numa migração de uma estrutura psicótica para uma estrutura
neurótica. Há uma permanência da estrutura, mas a invenção da metáfora provoca uma
nova ordenação, que repercute numa barragem do gozo, enviando-o, por um lado, para o
infinito, e por outro, articulando-o a uma imagem no presente.
O caso George nos ensinou muito sobre a transferência, especialmente quando esta .
se articula numa vertente erotomaníaca. Sua sofisticada solução no fim do tratamento nos
alerta para uma possível separação do analista. O gozo é também infinitizado pela via da
introdução do significante ideal, que inventa um futuro assintótico (remanejamento do
tempo), situando a realização final numa outra vida, outra encarnação. O gozo surge no
presente, articulado a uma imagem que toma a via do duplo do eu (George diz que usa a
minha imagem).
Neste trabalho, propusemos e justificamos o Sujeito certeza de Saber como o pivô
que articula os fenômenos que se apresentam na transferência no campo da psicose, tanto
no que se refere ao amor, quanto ao saber, especialmente pela coincidência entre sujeito e
objeto (marca radical da estrutura, a partir da qual deve se pensar a manobra do analista).
Até o presente momento, podemos dizer que, no caso das psicoses delirantes, o
lugar possível para o analista obedece à construção delirante, que ordenamos a partir dos
seguintes eixos:
-Outro- onde situamos o parceiro do delírio.
-outro- semelhante, secretário do alienado, amigo, companheiro.
-Ideal- destinatário, do qual se espera alguma intervenção.
Todos estes lugares se depreendem da construção delirante, que, apoiada numa
simbolização primordial, tenta uma compensação pela via imaginária, através de um

166
mecanismo metonímico de deslizamento, onde surge um outro significante (S2), que
produz um reatamento da cadeia significante. Esta cadeia recorta uma realidade,
promovendo uma significação que acolhe o significante desencadeado. É necessário dizer
que consideramos o delírio um campo fértil para a produção de uma metáfora delirante, que
exige uma proporção, que mantenha os significantes sob certa tensão, promovendo
distância entre o eu (m) e o Outro primordial (M). Escrevemos essa relação como mOM, no
exame do esquema I.
O analista é deslocado nos lugares delimitados pela rede delirante, mas, em alguns
casos, como Schreber ou George, se produz uma determinada fixação em um lugar, que é o
do Outro (perseguidor—Mulher Ideal). Isto exige um hábil manejo ou manobra, no sentido
de permitir que o lugar do ideal possa servir como uma proteção, que barre pontualmente, a
cada vez que isto tende a se realizar. Trata-se de barrar o Outro, manobra fundamental do
analista que viabiliza o trabalho de invenção de recursos suplementares por parte do sujeito.
Esta manobra pode ser pensada como uma suplência, que denominamos provisória e
pontual, na medida em que depende da presença do analista.
Assim, consideramos que a manobra do analista, em termo abrangentes deve se
opor a toda e qualquer tentativa de assimilação do sujeito-eu pelo objeto. Para realizar esta
tarefa, o analista pode se servir dos desdobramentos que sofre o Outro-outro na construção
delirante. O tratamento, percorrendo esta via, se transforma num campo fértil para operar
uma construção que possa prescindir do analista.
O caso George nos ensina sobre essa possibilidade, que não pode ser generalizada, e
que deve ser encontrada e produzida singularmente por cada sujeito psicótico. Este aspecto
é fundamental, no sentido de que não há caminhos prontos - serão inventados passo a
passo, com cada sujeito que nos procure.
O analista surge, delimitado pelos lugares que situamos anteriormente, como
semelhante, acolhendo os dizeres do sujeito, como aquele que acredita na teoria ou
proposta inventada por ele, como aquele que pode intervir, como um protetor, como
perseguidor, como amante. O analista conta com sua manobra para permitir que a
interpretação delirante prossiga no sentido de encontrar uma proporção, isto é, uma medida
comum, que engendre uma infínitização do gozo e a possibilidade de se apropriar deste
através do gozo da imagem.

167
O lugar do duplo, várias vezes apresentado por George (“eu sou você”), nos indica
uma relação mortífera com o outro, tingida de uma certa mistura, que aponta a continuidade
entre real, simbólico e imaginário. Pensamos que, no caso apresentado, tanto nas linhas
escritas, quanto nas entrelinhas, surge a manobra do analista como possibilitadora, na
medida em que abre um ponto lá onde a estrutura tende a um fechamento - e que
denominamos como a coincidência do sujeito com o objeto “a”.
Portanto, a operação do analista consiste em apoiar e sustentar o trabalho
suplementar que compete a cada sujeito psicótico. Trabalho suplementar que implica na
construção de uma certa armação significante que lhe permita habitar a linguagem.
O analista, abdicando de encarnar qualquer ideal, pode escutar a letra e levá-la a
sério, transformando-se num bom instrumento para acolher o trabalho, que, como dissemos,,
compete a todo sujeito inserido numa psicose.
Consideramos que a transferência na psicose, trazendo no seu âmago a inversão na .
posição do objeto, exige por parte do analista abrir mão de qualquer tentativa de
interpretação e suportar a dificuldade de ser situado, em muitos momentos, no lugar do
Outro absoluto. Lugar do horror tanto para o analista quanto para o sujeito. Essa dimensão
do horror, efeito da presença do real, acompanha passo a passo o tratamento da psicose.
Para responder a isto, o analista conta com seu desejo, depreendido de sua própria
experiência do inconsciente, e com sua manobra. Trabalho de paciência, de tempo, de
poder suportar, em muitos momentos, encontrar-se à beira de um abismo, de abrir mão de
ocupar um lugar de saber, de tecer e tecer junto com o sujeito até onde este possa chegar.
O caso George nos ensinou sobre a possibilidade da suplência e, fundamentalmente,
nos possibilitou tecer elaborações em torno do que pode oferecer análise a um sujeito
psicótico. Para finalizar, afirmamos que o analista pode oferecer-se como destinatário para
realizar um trabalho de amarração, de enlace, de nó.

168
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