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democracia-racial-barreiras-a-serem-vencidas
Publicado em NOVA ESCOLA 30 de Agosto | 2023

Educação Antirracista

Formação de professores
e o mito da democracia
racial: barreiras a serem
vencidas
Esses dois aspectos representam desafios para a
implementação da Educação para as Relações Étnico-
Raciais (ERER) nas escolas. Porém, há caminhos para mudar
cenário
Lavini Castro

O contato dos alunos com elementos culturais e históricos africanos e afro-


brasileiros nas escolas permite condições de entender melhor a sociedade,
promovendo relações mais respeitosas. Foto: Tete Silva/NOVA ESCOLA
Por meio da Pesquisa do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica
(Saeb), realizada em 2021 e lançada neste ano, ficou constatado que apenas
50,1% das escolas públicas do Brasil tinham projetos para combater o racismo.
Esse dado é bem alarmante, levando em conta, principalmente, que há mais de
20 anos existe a Lei nº 10.639/2003, que regulamenta a obrigatoriedade do
ensino de histórias e culturas africanas e afro-brasileiras em nossas escolas e
constitui-se como um pilar importante na luta antirracista.
Com tanto tempo de legislação garantindo o direito de se aprender sobre
nossas origens africanas e indígenas, constatarmos essa falta de avanço no
conhecimento sobre a pluralidade histórico-cultural que compõe a realidade
brasileira é assustador. E levanta algumas perguntas: por que os conteúdos e
princípios da referida lei não são aplicados? Por que não aprendemos sobre
histórias de resistência afro-brasileira e sobre diversidade cultural afroindígena
nas escolas?
Antes de apontar dois entraves para a aplicação desses conteúdos - um da
ordem estrutural e outro de ordem pessoal - é importante contextualizar o
assunto com dados do “Sumário Executivo Percepções sobre o Racismo no
Brasil”, lançado em julho de 2023, por iniciativa do Peregum junto com o
Projeto SETA, que identificou, em uma amostragem de 2 mil pessoas, alguns
números interessantes sobre a percepção de pessoas afro-brasileiras em
relação ao racismo. Vejamos:
44% dos respondentes consideram que a raça/cor/etnia é o principal fator
gerador de desigualdades no Brasil;
92% dos entrevistados estão confortáveis em se afirmar afro-brasileiros;
81% dos respondentes afirmaram ser o Brasil um país racista;
69% das pessoas consideram que o tema mais importante a ser estudado
dentro das escolas é o racismo.
Porém, quando questionada sobre a forma como os conteúdos sobre a Lei nº
10.639/2003 foram abordados, a maioria dos respondentes afirmou que a
maneira da abordagem foi pouco ou nada adequada como podemos observar
na tabela a seguir:
O mesmo sentimento ocorre em se tratando da abordagem sobre as histórias e
culturas afro-brasileiras. Apesar dos índices estatísticos sofrerem leve queda,
mantém-se um padrão de entendimento de que os conteúdos não estão sendo
bem abordados:

O que os dados nos revelam?


Nosso entusiasmo, enquanto professores antirracistas com os resultados
transmitidos nas tabelas, é a percepção de uma tomada de consciência sobre a
noção de pertencimento racial, por parte dos afro-brasileiros entrevistados,
bem como a noção sobre um ensino pouco ou nada adequado a respeito da
Educação para as Relações Étnico-Raciais (ERER). O que mais nós, professores,
podemos observar apoiados nessa pesquisa?
A ERER e a formação dos professores
O primeiro ponto a ser destacado é a nítida ausência de formação de
professores para a Educação para as Relações Étnico-Raciais (ERER), pois o
ensino sobre conteúdos, princípios e valores sobre histórias e culturas africanas
e afro-brasileiras ainda não está adequado. Isso significa dizer que planejar
uma aula com tais conteúdos demanda formação de professores para a
educação das relações étnico-raciais como forma de dar conta de lacunas,
ausências e silenciamentos sobre temas que venham a promover o
protagonismo histórico e cultural dos afro-brasileiros e indígenas.
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Ora, professores, se o problema é a nossa formação, precisamos organizar a
aprendizagem. Simples assim. Muitos de nós vão dizer que não foram
formados para ensinar sobre determinados assuntos e, por isso, não se sentem
aptos para inserir essas temáticas em suas práticas. Todavia, por que não
aprender junto dos nossos alunos sobre novos conteúdos? Somos excelentes
pesquisadores, pois somos o profissional intelectual mediador do saber
escolar. Nossa essência não é a transmissão, mas a mediação entre um saber
acadêmico e um saber significativo que transita no chão da escola.
Desse modo, devemos pensar que, se em nossa época de estudantes não
tivemos a oportunidade de ter uma educação antirracista, voltada para as
relações raciais, temos não só o dever de ensinar, decretado nas Leis nº
10.639/2003 e nº 11.645/2008, mas o direito de construir junto de nossos
alunos um espaço de aprendizagem coletiva por meio de metodologias que
envolvam pesquisas, reflexões e apresentação de discursos que façam valer a
diversidade.
Raça, racismo e desigualdade social
Outro ponto importante e mais estrutural é a necessidade de abordar o
conteúdo de raça e racismo relacionando-o com a questão da
desigualdade social. No Brasil, ainda é comum afirmar a existência do racismo
sem apontar o racista, ou de acreditar que todos os grupos raciais vivem em
harmonia e que o problema é somente socioeconômico e não racial. Esse é um
grande desafio: entender que não há democracia racial, mas um mito que
perdura historicamente.
Você já deve ter se deparado com a seguinte realidade: “naquela vizinhança tem
racismo”, “naquela escola já teve caso de racismo”, mas não na escola em que
você trabalha ou no seu bairro. Temos sempre a percepção de que, nos casos
de racismo, somos capazes de apontar a vítima e não o algoz. Um outro detalhe
é o racismo ser confundido como um problema pessoal e patológico,
dificilmente entendido como algo estrutural. Para ser um problema estrutural é
preciso afirmar que a sociedade brasileira é racista e, nesse caso, precisamos
repensar as relações raciais.
Entendeu, professor?! O racismo é velado, mascarado e facilmente confundido
com uma má interpretação, em que não se quis dizer aquilo que se disse, ou
seja, a vítima é que entendeu errado, e assim o racismo vai sobrevivendo.
Vamos mudar?
Por isso, precisamos apostar em atitudes antirracistas. Porém, elas requerem
uma grande mudança. Estaríamos dispostos a mudar? Certa vez, o professor
Sidney Barreto Nogueira disse em um vídeo: “… mudança requer força de
vontade, requer constância,...” Esse vídeo mexeu muito comigo e com o que eu
acredito que seja o agir antirracista em sala de aula.
Para agir em sala de aula e promover uma abordagem mais adequada das
histórias e culturas africanas e afro-brasileiras precisamos não só da mudança
estrutural, com cursos de formação sobre a ERER, como precisamos do
posicionamento, da força de vontade dos educadores em querer aprender para
ensinar, em querer abrir espaço de conscientização em sua sala de aula para
abordar de forma significativa os conteúdos propostos na ERER. Devemos
pensar se nossas ações pedagógicas são, de fato, assertivas no combate ao
racismo ou se evidenciam mesmo a valorização das histórias e culturas afro-
brasileiras considerando o contexto dos nossos alunos.
Uma grande hipótese é de que a ERER, ao promover contato dos alunos com
elementos culturais e históricos africanos e afro-brasileiros nas escolas, permite
condições de entender o lugar dos alunos negros na dinâmica, não só escolar
como social, para empreender status de pertencimento e, assim, cobrar por
suas demandas históricas junto ao poder público. É certo que a alteração da
estrutura socioeconômica de nosso país não ocorrerá única e exclusivamente
pela aplicação dos princípios da Lei nº 10.639/2003, mas uma educação que
promova o acesso ao conhecimento de valor positivo das histórias e culturas
dos grupos que promoveram o desenvolvimento dessa sociedade, porém são
discriminados, auxilia-os a perceber suas contribuições histórica e cultural.
Portanto, professor, entenda seu lugar na atuação de uma educação
antirracista. Um lugar em que se deve criar espaços de conscientização por
meio de aulas que apresentem reflexões sobre raça e racismo, aulas que
promovam novas discussões sobre as contribuições dos afro-brasileiros e
indígenas, procurando sempre a projeção de representações positivas sobre o
universo afro-brasileiro. Fazendo isso, caro colega, você permitirá interações
dos alunos com novos conteúdos, ou conteúdos de valor promovendo a
conexão nas aulas que passarão a ser mais atrativas, pois os estudantes
poderão se enxergar por meio dos fatos narrados, provocando entusiasmo ao
se perceberem nas aulas como sujeitos históricos e culturais.
A possibilidade do enfoque na ERER, possibilita a transgressão do espaço
escolar para práticas pedagógicas mais autênticas no combate ao racismo e a
promoção de uma educação mais plural. A essa altura podemos esperançar,
como nos faz refletir a filosofia paulofreiriana (FREIRE, 1992), ações mais
pontuais dos professores no repensar da cultura escolar que tem se
apresentado ainda um tanto fechada em si mesma para o diálogo com a
diversidade, para uma nova cultura escolar que venha a dialogar e a aprender
com diferentes culturas de povos que contribuíram e continuam a contribuir
para o desenvolvimento de nossa sociedade, como nos sinalizou a professora
Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva.

Lavini Castro é educadora antirracista. Doutoranda em História Comparada


pelo PPGHC/UFRJ. Mestre em Relações Étnico-Raciais pelo PPRE/CEFET-RJ.
Historiadora pela UFRJ. Professora de História do Ensino Fundamental e Ensino
Médio das redes pública e particular do estado do Rio de Janeiro. Idealizadora e
coordenadora da Rede de Professores Antirracistas. Ganhadora do Prêmio Sim
à Igualdade Racial do ID_BR em 2021.

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