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Elementos para a construção de uma

“eclesiologia de baixo”

Elements for the construction of a “low


ecclesiology”

Elementos para la construcción de una "eclesi-


ología desde abajo"

César Marques Lopes

Resumo
O estudo identifica elementos essenciais de uma “eclesiologia de baixo” a
partir do diálogo com teólogos latino-americanos e europeus, entre eles o es-
tudo comunitário da Bíblia num espírito popular e de liberdade.
Palavras-chave: Eclesiologia — teologia latino-americana — eclesiologia
“de baixo”.

Abstract
This study identifies essential elements of a “low ecclesiology” based on di-
alogue with Latin-American and European theologians, and details the com-
munal study of the Bible in a popular and liberating spirit.
Key-words: Ecclesiology — Latin-American — theology — ”low eccleriolo-
gy”.
Resumen
El estudio identifica elementos esenciales de una “eclesiología de abajo” a
partir del diálogo con teólogos latinoamericanos y europeos, entre ellos el
estudio comunitario de la Biblia en un espíritu popular y de libertad.
Palabras clave: eclesiología – teología latinoamericana – eclesiología “de
abajo”.

Revista Caminhando, v. 11, n. 1 [17], p.65-74, 2010 [2ª ed. on-line 2010; 1ª ed. 2006] 65
[Edição original página 72/73]
que o "silêncio obsequioso" em que o
Introdução
ex-frade franciscano folColocado
É possível construir uma "cristologia tenha funcionado como a hierarquia
de baixo". Essa noção foi romana esperava.
fundamental para a própria Quando buscamos literatura
construção, a partir de meados do evangélica e protestante sobre o
século passado, do que hoje tema, em meio aos inúmeros títulos
podemos considerar como uma e manuais que apresentam receitas
teologia latino-americana. A pretensamente "infalíveis" para o
motivação de se buscar as crescimento desenfreado de igrejas
implicações que a obra de Cristo teria locais, a dificuldade de se encontrar
sobre a vida do ser humano em todas uma contribuição contextualizada,
as suas dimensões, inclusive política que tenha esse aspecto de ser "de
e social, provocou uma verdadeira baixo", faz-se ainda maior.
revolução na forma como se pensava A reflexão que se segue não tem,
e se passou a pensar a cristologia em evidentemente, a pretensão de
nosso continente, tanto no âmbito responder a todos esses problemas e
católico (com a chamada Teologia da necessidades, mas busca apontar
Libertação) quanto no evangelical alguns caminhos a partir dos quais
(com o movimento que ficou seria possível desenvolver uma
conhecido como Missão Integral). "eclesiologia de baixo". Em princípio,
Por diversos motivos, não aparece buscaremos responder a uma per-
claramente uma reflexão de gunta básica: quais seriam algumas
dimensões parecidas na esfera da das características fundamentais
eclesiologia. É claro que temos, no apresentadas por uma reflexão sobre
âmbito católico, a aparição mais o que significa ser igreja na tradição
ocasional de obras como Igreja: teológica latino-americana?10
carisma e poder e Eclesiogênesis,
de Leonardo Boff; também é
evidente que existiu toda uma
articulação em torno das 10
Entendo que uma dessas características mais
Comunidades Eclesiais de Base fundamentais seria a eliminação de uma separação entre a
eclesiologia/pastoral e a mis-siologia. No entanto, como já
explorei essa idéia no artigo "Mobilizando a igreja local para
(CEBs); no entanto, talvez sejamos a missão integral", preferi dedicar o espaço a outros fatores.
Ver BARRO, Antonio Carlos e KOHL, Manfred (orgs.).
obrigados a concordar com o fato de Mi ssã o Int eg ral T ra nsf ormad ora . Londrina: Descober-
ta, 2005.

66 César Marques LOPES. Elementos para a construção de uma "eclesiologia de baixo"


Uma reflexão diferente num sentido acima de tudo

de caráter dinâmico passivo.


Juntos, os fatores acima cooperaram
Já foi exaustivamente discutido o fato
para que tenhamos herdado do
de que nossas concepções teológicas
mundo norte-atlântico uma
atuais são muito influenciadas pelo
eclesiologia generalista e abstrata,
mundo positivista no qual a Teologia
mas, ao mesmo tempo, hermética,
Sistemática a partir do século XVIII
pré-determinada, exclusivista e com
esteve inserida e buscou sua
uma forte tendência em estudar a
afirmação. Como resultado, as
Igreja como um fim, como uma
diversas "disciplinas" teológicas en-
entidade independente, e não como
contram-se, de maneira geral, "isola-
um meio. Certamente, uma
das" umas das outras, sendo vistas
concepção eclesiológica mais fluida e
como capítulos ou mesmo áreas de
dinâmica é necessária. Concepção
estudo independentes. E pior: essas
como a oferecida por Jürgen
"disciplinas" tendem a ser desligadas
Moltmann11:
da realidade e com pretensões
universais. Também é mais do que A Igreja, como a comunidade de
pecadores justificados, a comunhão dos
conhecida a tendência, verificada no
libertados por Cristo, que experimentam a
fazer teológico, que isolava a salvação e vivem em ação de graças, está
a caminho de realizar o sentido da
comunidade da fé da reflexão
história de Cristo. Com seus olhos fixos em
sistematizada em busca de uma Cristo, ela vive no Espírito Santo e, assim,
ela mesma é o começo e penhor do futuro
pretensa objetividade. Por fim,
da nova criação.
podemos alinhar a essas duas Howard Snyder também utiliza uma
características anteriores um fator linguagem interessante que passa
que perpassa nossas igrejas por um "é" determinante, mas insere
evangélicas latino-americanas em um aspecto fundamental de
geral: a noção fundamentalista de dinâmica: "a igreja (...) é o povo que
que a Igreja é uma Deus está formando e por meio do
[Edição original página 73/74]

comunidade de pessoas "mais santas


que os outros mortais", e que deve
lutar pela sua santidade, afastando-
se do "mundo", marcando-se por ser 11
MOLTMANN, Jürgen. T he Chu rch i n th e P ower of th e
Spi ri t. New York: Harper & How, 1977, p. 33, ênfase
acrescentada.

Revista Caminhando, v. 11, n. 1 [17], p.65-74, 2010 [2ª ed. on-line 2010; 1ª ed. 2006] 67
qual ele tem agido na história"12 dos escritos de Philip Jacob Spe-ner,
(2000, p. 261). um dos pioneiros deste riquíssimo
Dessa maneira, entendo que um pon- movimento do século XVII13:
to de partida fundamental para se re-
Lendo as escrituras junto e dis-
fletir a respeito da doutrina da Igreja
cutindo fraternalmente o sentido de
é a percepção da sua característica
cada verso, serão capazes de nele
dinâmica: ela não é, mas busca ser;
discernir seu significado e utilidade
Deus não construiu uma igreja, mas
para todos... Então tudo o que for
está formando-a continuamente.
exposto, na medida em que acordam
Nossa doutrina da Igreja não pode
com o Espírito Santo, nas Escrituras,
construir fronteiras ou limites que
deve ser e-xaminado pelos outros
definam de forma estática e mani-
irmãos (especialmente os pastores) e
queísta o que ela é ou não é (ou
aplicado, para a edificação de todos
quem faz parte dela ou não), mas
os que freqüentam a reunião. Tudo
precisa buscar uma articulação flexí-
deve ser preparado, levando-se em
vel com as outras áreas da Teologia,
conta a glória de Deus, o crescimento
com as outras ciências e com as ne-
espiritual dos participantes e também
cessidades da sociedade em que está
suas limitações.
inserida.
Além dessa óbvia exortação à leitura
comunitária das Escrituras, Spener
Uma reflexão marcada pe-
ainda nos oferece duas grandes con-
la leitura comunitária das
Escrituras tribuições para a construção de prin-
A idéia de uma leitura bíblica comuni- cípios referentes a como fazer esta
tária não é nova. Muito pelo contrá- leitura. A primeira é o fato de que

rio, ela vem sido discutida dentro de aumentar o papel do "leigo" na leitu-

diversas tradições cristãs por muito ra da Escritura não significa extin-

tempo. É interessante observar que


ela está presente no nascimento do
pietismo, movimento que traz gran-
des influências sobre a tradição pro-
testante histórica brasileira, através

13
Spener, Philip J. Pi a d esi deri a. Um clássico do pietismo
12
SNYDER, Howard. A comuni da de d o R ei . São Paulo: protestante. São Bernardo do Campo: Imprensa Metodista,
ABU, 2004, p. 261. 1985, p. 58.

68 César Marques LOPES. Elementos para a construção de uma "eclesiologia de baixo"


[Edição original página 74/75] em terras brasileiras, assim descreve
a relação entre a realidade vivida e o
guir o papel dos "especialistas". É texto no contexto das comunidades5:
claro que deve haver uma contribui-
Com as CEBs instaura-se uma nova
ção ativa daqueles que têm uma hermenêutica bíblica, propiciadora de uma
maior vivência eclesial, daqueles que leitura libertadora da Palavra de Deus.
Trata-se de uma interpretação dinamizada
tiveram acesso ao estudo de fontes pela opção em favor dos pobres, que tra-
privilegiadas e de regras exegéticas. duz uma íntima ligação da Palavra com a
vida do povo. A leitura bíblica vem enri-
Mais uma vez, o que parece distorcer quecida pelo contexto da comunidade e
a leitura comunitária das Escrituras é pelo pré-texto da realidade. O resultado é
sempre novidadei-ro e mobilizador. Os
o monopólio que os mesmos exer- problemas reais que afetam a vida do povo
cem com relação a essa atividade. ganham uma nova

Em segundo lugar, não se exclui, [Edição original página 74/75]

também, a necessidade de uma pre-


iluminação pela Palavra, que lida em co-
paração, de uma intencionalidade munidade, suscita sentido e orientação na
nesse exercício. O estímulo à partici- caminhada.14

pação de diversas pessoas e a uma


maior liberdade no momento de in-
Existe uma enorme discussão a res-
terpretar o texto não deve ser visto
peito da validade ou do sucesso da
como um convite à improvisação e à
experiência das CEBs, mas não se
falta de critério. Deve haver um pla-
pode negar a sua importância na
nejamento de atividades, de forma
busca por uma hermenêutica que
que seja possível haver "edificação
possa colocar os "leigos" numa posi-
de todos os que freqüentam a reuni-
ção mais destacada dentro do pro-
ão" e "o crescimento espiritual dos
cesso de leitura comunitária da Escri-
participantes".
tura. Aprendemos com este processo
Essa leitura comunitária também foi
dois princípios importantes: o primei-
mais recentemente reafirmada pelo
ro, é que "os problemas reais que a-
movimento das Comunidades Eclesi-
fetam a vida do povo" devem mesmo
ais de Base (CEBs) nos setores da I-
greja Católica da América Latina mais
ligados à Teologia da Libertação. 14
Vale aqui a menção à bela metáfora do já mencionado
Faustino Teixeira, grande Carlos Mesters, que compara a Bíblia com um livro de re-
tratos de uma família - o povo de Deus de hoje pode ver
nas Escrituras os retratos dos seus antepassados, viven-
incentivador do movimento das CEBs ciando situações muito parecidas com as que vivemos
hoje, situações de alegria, de esperança, e também de
medo e perigo.

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ser iluminados pela Palavra. A tradicionais protestantes brasileiras.
releitura das Escrituras deve obriga- Servem para nos mostrar que, ape-
toriamente levar em conta os pro- sar de existir certo ar utópico nesta
blemas que a comunidade enfrenta. idéia, uma eclesio-logia que valorize
Se, pelo menos, os problemas que a tal leitura comunitária pode ser per-
afligem forem abordados na perspec- seguida como um projeto viável e re-
tiva da Palavra, a inserção da mesma alizável.
no contexto do povo (que Teixeira
chama, junto com Carlos Mesters e Uma reflexão
outros biblis-tas católicos latino-
cujo sujeito é o povo
americanos, de pré-texto) já vai ser
Como conseqüência da concepção de
mais significativa do que a vaga
uma leitura bíblica comunitária vem a
"construção de princípios éticos cris-
pergunta: o povo de Deus é sujeito
tãos" à qual a leitura no protestantis-
ou objeto da Teologia? É comum en-
mo tradicional se dedica. Em segundo
contrarmos nos seminários uma certa
lugar, a Bíblia passa a ser este livro
"hierarquização" dentro da concepção
fami-Iiar6 em que o povo de hoje
que se tem da Igreja enquanto co-
pode ver o seu próprio reflexo. Ou
munidade de reflexão teológica: no
seja, situar a Bíblia no contexto de
topo, existiriam os "doutores e mes-
hoje não significa retirá-la do seu
tres", pessoas detentoras do saber
contexto original, mas construir pon-
teológico, as quais seriam as respon-
tes entre este e aquele. A Bíblia será
sáveis por todo o pensar da Igreja;
certamente mais relevante para o
haveria, dentro desta pirâmide, um
nosso contexto quando percebermos
grupo intermediário de pastores e lí-
que as vidas descritas dentro de suas
deres, os quais não seriam assim tão
páginas não são as de "super-
"eficientes" no pensar, mas que são
proprietários de diplomas de cursos
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homens", mas de pessoas como nós, de Teologia ou de liderança.

que enfrentam desafios parecidos Existe uma certa tensão entre estes

com os nossos. dois primeiros grupos. IMa opinião

Essas duas experiências históricas de dos pastores e líderes, os "doutores e

leitura comunitária servem para nos mestres" estão absolutamente dis-

estimular na busca de uma forma de tanciados do contexto eclesial e só

viabilizá-la dentro de nossas igrejas propõem idéias irreais e impossíveis

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de serem aplicadas. Já os "doutores e gia. O sujeito da fé é também o
sujeito da reflexão da fé - a teo-
mestres" olham os pastores e líderes logi-a. Como toda a Igreja é crente,
como pessoas limitadas intelectual- assim também toda ela é "teologizan-
te"15.
mente, que só querem saber de "fa-
Qual é o lugar do teólogo nessa con-
zer a igreja crescer", e que, conse-
cepção? O irmão de Clodovis, Leo-
qüentemente, deixam de lado princí-
nardo, nos afirma que:
pios teológicos tão valorizados pelos
A função do teólogo é dupla: por um
primeiros.
lado, é um membro da comunidade
Em meio a essa tensão, fica o "último
que possui uma bagagem rica de co-
estágio" desta pirâmide, que seriam
nhecimentos bíblicos e doutrinários,
os "crentes comuns". Seguindo esse
úteis para ajudar na compreensão da
raciocínio distorcido, eles não teriam
fé dos fiéis, dos problemas por eles
a capacidade de pensar
citados (...) por outro lado, é um
teologicamente, mas deveriam ser
membro da comunidade que ajuda
treinados a receber os ensinos teoló-
a captar as questões relevan-
gicos daqueles que estariam "acima"
deles. A Teologia como um todo, e
[Edição original página 78/79]
também a Eclesiologia, é feita para
eles. tes da realidade (...) sua função é
Na prática, estabelece-se uma "cas- explicitar a fé da comunidade, apro-
ta" especial que teria o direito de e- fundá-la, redizê-la dentro de uma co-
laborar a Teologia que deveria ser dificação atual de tal forma que a fé
seguida pela Igreja. E esta casta co- mantenha seu enraizamento no pas-
loca-se dentro das "academias", re- sado e, ao mesmo tempo, incida so-
fletindo sobre temas teológicos de e- bre as questões vitais do presente16.
levada importância, mas que, às ve- Para avaliar essa relação entre o teó-
zes, realmente dizem pouco para o logo que Leonardo Boff chama, em
cotidiano eclesial. outro momento, de "profissional" e o
Clodovis Boff tem uma concepção in- que podemos chamar de "leigo",
teressante e diferente dessa. Ele en- Moltmann oferece um bom critério:
tende a Igreja como o sujeito da Teo-
logia:

A Igreja é sempre o sujeito pri- 15


Boff, Clodovis. T e o ri a do M ét od o T e ol ógi c o .
mário e geral de todos os carismas, Petrópolis: Vozes, 1996, p. 196, ênfase a-crescentada.
BOFF, Leonardo. E a Ig r ej a s e f ez p ov o . Pe
serviços e missões, inclusive da Teolo- trópolis: Vozes, 1986, p. 107.

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A comunhão de todos os que prevalecer, uma Igreja que é qualita-
crêem exige a diferenciação das tare- tivamente melhor do que qualquer
fas, assim como corresponde à diver- outra instituição que exista no mun-
sidade multicolorida dos dons do Es- do.
pírito. Também no ministério te- Se muitos já eram os fatores pelos
ológico comum a todos os crentes há quais a Igreja se isolava da socieda-
delegações e incumbências especiais. de, aí está outro. Essa pretensa dife-
A teologia acadêmica é uma dessas. rença qualitativa a faz compreender
Entretanto, a comunidade deve poder que, sozinha, pode trabalhar pela re-
identificar-se com suas delegações, construção da dignidade humana
senão surgem estranha-mentos que nesse mundo repleto de caos.
não desoneram, mas causam vexa- Grande engano! Vinte séculos já se
me17. passaram e a igreja cristã ainda se
Nenhuma eclesiologia será verdadei- encontra mergulhada em tensões, di-
ramente dinâmica e inserida, de ma- visões, o mundo está longe de ser
neira capilar, na realidade social, se evangelizado e a dignidade humana
não partir do povo de Deus como um longe de ser resgatada.
todo. Qualquer concepção que exclua É preciso, portanto, inserir a dimen-
as "pessoas comuns" da reflexão e- são da fraqueza e da limitação em
clesiológica corre o sério risco de nossa eclesiologia. Precisamos reco-
permanecer alienada, distante das nhecer que não somos capazes de,
reais necessidades do povo e de verticalmente, realizar a missão em
"causar vexame". direção às pessoas perdidas. Pelo
contrário, necessitamos delas. Ne-
Uma reflexão realizada em cessitamos que Deus as utilize da
fraqueza
mesma forma como nos utiliza.
O povo evangélico se acostumou a
Uma percepção fundamental é a de
utilizar uma linguagem militar, triun-
que a Igreja, tanto quanto qualquer
falis-ta, suprematista para falar sobre
outra instituição, é um agente histó-
a Igreja. Acostumou-se a pensar na
rico marcado pela característica mais
Igreja vencedora, na Igreja contra a
básica de tais agentes: ela é limitada
qual as portas do inferno não vão
e marcada pelo bem e pelo mal, por
sinais do Reino e do anti-Reino. É o
que Paul Tillich afirma:

72 César Marques LOPES. Elementos para a construção de uma "eclesiologia de baixo"


Na história, existe uma contínua mis- rio reconhecer as limitações do agen-
tura de bem e mal, em cada grupo, em
cada agência que promove o processo his-
te histórico que denominamos Igreja
tórico, em cada período, em cada atualiza- e buscar discernir os aspectos do
ção histórica. A Igreja... representa o Rei-
Reino de Deus que possam estar pre-
no de Deus na história. Ela mesma não é o
Reino, mas seu agente, sua antecipação, sentes em diferentes agentes de nos-
sua realização fragmentária. A Igreja luta
sa sociedade. Nosso papel, a partir
nessa história; e, como representa o Reino
de Deus, pode ser distorcida, mas não eli- disso, é apoiá-los, sempre que tais
minada.
agentes busquem a restauração da
dignidade humana.
[Edição original página 77/78]
Uma eclesiologia baseada na fraque-
za não vê sentido em fortalecer as
Uma outra conseqüência pode ser
fronteiras entre o que é igreja e o
destacada das afirmações acima: as-
que não é, porque reconhece a pers-
sim como a Igreja é marcada pelo
pectiva fundamental que adotamos
bem e também pelo mal, outros a-
desde o primeiro momento: a igreja
gentes históricos também o são. Ou
é o instrumento e o Reino de Deus é
seja, podem existir elementos do
o alvo. O papel da igreja é um bus-
Reino de Deus no meio de outros a-
car-ser, permanente e constante-
gentes históricos! Numa obra já
mente, sinal desse Reino.
mencionada anteriormente, Igreja:
carisma e poder, Leonardo Boff faz
a mesma afirmação, só que de ma-
neira ainda mais explícita: "portado- Considerações finais
res do Reino são todos os homens,
Nessa tarefa de apontar caminhos
instituições e práticas que se orien-
que uma "eclesiologia de baixo" po-
tam pelos ideais éticos intencionados
deria ou deveria percorrer, mencio-
pelo Jesus histórico. A Igreja é um
namos quatro tópicos, indicando que
portador qualificado e oficial, mas
essa reflexão deve ser: de caráter di-
não exclusivo"18.
nâmico, marcada por uma leitura bí-
É a partir disso que podemos propor
blica comunitária, realizada a partir
que uma eclesiologia dinâmica preci-
do povo de Deus como sujeito e rea-
sa se basear na fraqueza: é necessá-
lizada em fraqueza.
É importante perceber que esses tó-
picos não foram escolhidos ao acaso.
18
BOFF, Leonardo. Ig rej a: carisma e poder -ensaios de
uma eclesiologia militante. São Paulo: Ática, 2004, p. 38. Pelo contrário, eles trazem em si uma

Revista Caminhando, v. 11, n. 1 [17], p.65-74, 2010 [2ª ed. on-line 2010; 1ª ed. 2006] 73
característica fundamental: são todos
marcados pela horizontalidade, ou
seja, pela eliminação de falsas distin-
ções conceituais valorativas que qua-
lifiquem quaisquer desses quatro a-
gentes como melhores ou piores: o/a
pastor/a, o/a teólogo/a, o povo de
Deus e o "povo do mundo". Utili-
zando uma linguagem bem evangeli-
cal, todos são o povo que Deus pre-
tende alcançar e, paradoxalmente,
pretende usar para alcançar; todos
são objetos e sujeitos da misericórdia
divina; todos são chamados a fazer
crescer a assembléia dos que se reú-
nem em nome de Deus, a ecclesia,
até que ela alcance toda a ordem das
coisas criadas, a oikumene.

74 César Marques LOPES. Elementos para a construção de uma "eclesiologia de baixo"

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