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N
os livros de Elena Ferrante, todo mundo
apanha. Um menino joga uma pedra na
cabeça de sua colega de escola, e o
sangue jorra; uma mãe enche a filha de tapas, e
depois ameaça quebrar as suas pernas; um pai
joga a filha pela janela e o vidro estilhaça. Um
mafioso, muito apaixonado, dá um murro na
cara de sua amada durante um funeral, e a deixa
estirada no chão, cuspindo dentes. “Vivíamos
em um mundo em que crianças e adultos
frequentemente se feriam”, diz Elena Greco, a
Lenu, narradora e protagonista dos livros que
formam a saga napolitana de Ferrante. “Sangue
escorria das chagas, que depois supuravam e às
vezes se acabava morrendo.” Nas memórias de
Lenu, a Nápoles do pós-guerra, essa Nápoles de
sua infância, era um lugar perigoso, “cheio de
palavras que matavam: crupe, tétano, tifo
exantemático, gás, guerra”. “Também se podia
morrer de coisas que pareciam normais”, como
ingerir cerejas sem cuspir o caroço ou engolir
chicletes por distração. Antes do fim, contudo,
fosse ele provocado por doença, crime ou
asfixia, imperava a brutalidade. “A vida era
assim e ponto final, crescíamos com a obrigação
de torná-la difícil aos outros antes que os outros
a tornassem difícil para nós.”
O
motif da saga napolitana – a ânsia de
fugir da província para a metrópole; a
dicotomia entre civilização e barbárie –
não reverbera só em Lenu e Lila. Os
personagens masculinos da saga também
podem ser divididos, grosso modo, entre os
homens do bairro (os irmãos Solara, o
salsicheiro Stefano Carracci, Antonio, Enzo), os
homens da urbe (Franco Mari, Pietro Airota), e
os homens do bairro que, assim como Lenu,
flertam com a urbe (o militante comunista
Pasquale, o “poeta-ferroviário” Donato
Sarratore, e o seu filho, Nino). Dois desses
homens – Nino Sarratore e Pietro Airota –
recebem um tratamento mais profundo ao longo
da trama, e não é gratuito que ambos estejam
mais na órbita da urbe do que do bairro.
A
escrita de Ferrante não é apenas híbrida –
existe nela uma tensão contraditória. O
instinto de narradora folhetinesca,
enamorada do artifício, batalha constantemente
com outro instinto mais contemporâneo: o de
mostrar a realidade em sua “crueza” narrativa,
cheia de deformidades e lacunas gratuitas,
distante das soluções formais clássicas do
romance e do conto. A saga napolitana é feita de
inúmeros conflitos romanescos que incham
como bexigas até o ponto de tensão máxima,
mas no fim não estouram: desinflam e
ricocheteiam de um lado ao outro da sala, com
essa feiura disforme e anticlimática que é típica
da realidade. Nesses momentos, a saga de
Ferrante lembra um pouco a série Minha Luta,
de Karl Ove Knausgård – os dois projetos
buscam, embora em intensidades e formas
diferentes, uma autenticidade antiartifício.
O
caso entre a melhor amiga e o seu amor
de infância tem certo efeito libertador
para Lenu. Ela foca nos estudos e
consegue entrar na prestigiosa Escola Normal,
em Pisa, e finalmente vai embora de sua cidade.
Em Pisa, encontra um mundo novo, de seres
educadíssimos, cultos de nascença. “Aprendi a
controlar a voz e os gestos. Assimilei uma série
de regras e comportamentos escritos e não
escritos. Submeti ao mais estrito controle o
sotaque napolitano. Consegui demonstrar que
era competente e digna de estima, mas sem
nunca assumir ares esnobes, fazendo autoironia
sobre minha ignorância, fingindo-me surpresa
com meus bons resultados.” Essas frases podem
dar a impressão de certo autoflagelo, mas o
teatro autoconsciente da reinvenção é na
verdade algo muito prazeroso: qualquer pessoa
que já tenha saído do interior para estudar na
capital reconhecerá nessas passagens a alegria
trêmula que o exílio provoca. Em Pisa, Lenu
admite encontrar “o paraíso na terra: um espaço
todo meu, uma cama só para mim, uma
escrivaninha, uma cadeira, livros, livros e livros,
uma cidade em tudo diferente do bairro e de
Nápoles, cercada apenas por gente que estudava
e era propensa a discutir o que estudava”.
A
entrada de Lenu na literatura é um ponto
de inflexão na saga. Num primeiro
momento, a publicação do romance
representa tudo que a protagonista sempre quis:
acesso ao mundo glamoroso dos Airota e da
elite intelectual italiana; resenhas e
reconhecimento artístico; algum dinheiro, até.
Para quem sempre quis escapar da violência do
bairro, parece o apogeu. O início do casamento
de Lenu e Pietro é de fato uma espécie de idílio.
Pietro é um homem gentil e responsável,
embora sem grandes arroubos de paixão, e os
dois levam uma vida feliz e plácida. Dividem o
espaço de trabalho; têm duas filhas; ele
consegue uma cátedra em Florença e se destaca
no mundo acadêmico, enquanto ela trabalha
num segundo livro.
P
assada a fase inicial de idílio modesto, o
casamento de Lenu e Pietro se arrasta
entre suspiros de tédio. Pietro só pensa
em suas aulas, e não cuida direito das crianças.
O sexo entre os dois é insosso. “Entrava em mim
com investidas calculadas, violentas, tanto que o
prazer inicial se atenuou aos poucos, vencido
pela insistência monótona e pela dor que sentia
no ventre”, Lenu descreve. “Ele se cobriu de
suor pelo demorado esforço, talvez pelo
sofrimento, e ao ver seu rosto e o pescoço
banhados, ao tocar suas costas empapadas, o
desejo sumiu inteiramente.” Depois ela emenda:
“Eu não sabia como me comportar; acariciava-o,
sussurrava-lhe palavras de amor e torcia para
que parasse. Quando explodiu num rugido e
desabou finalmente exausto, me senti contente,
apesar de dolorida e insatisfeita.”
N
ino Sarratore e Pietro Airota são
diferentes, mas circulam nos mesmos
meios, conhecem as mesmas pessoas,
dividem a mesma escala de valores. Pietro é
acadêmico cabeçudo, Nino ensaísta e militante
político. Os dois são burgueses de esquerda.
Nino admira o “Airota pai” imensamente e, por
um tempo, tem uma relação cordial com Pietro,
com muitas trocas de ideias. É só depois que a
disputa por Lenu se acirra que ele começa a
desdenhar das opiniões do Airota filho,
considerando-o “um professorzinho desprovido
de imaginação, superestimado apenas pelo
sobrenome que tem e por sua obtusa militância
no Partido Comunista”.