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questões de literatura e gênero

À ESPERA DOS BÁRBAROS


O que os personagens masculinos de Elena
Ferrante têm a nos dizer
Alejandro Chacoff | Edição 137, Fevereiro 2018

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N
os livros de Elena Ferrante, todo mundo
apanha. Um menino joga uma pedra na
cabeça de sua colega de escola, e o
sangue jorra; uma mãe enche a filha de tapas, e
depois ameaça quebrar as suas pernas; um pai
joga a filha pela janela e o vidro estilhaça. Um
mafioso, muito apaixonado, dá um murro na
cara de sua amada durante um funeral, e a deixa
estirada no chão, cuspindo dentes. “Vivíamos
em um mundo em que crianças e adultos
frequentemente se feriam”, diz Elena Greco, a
Lenu, narradora e protagonista dos livros que
formam a saga napolitana de Ferrante. “Sangue
escorria das chagas, que depois supuravam e às
vezes se acabava morrendo.” Nas memórias de
Lenu, a Nápoles do pós-guerra, essa Nápoles de
sua infância, era um lugar perigoso, “cheio de
palavras que matavam: crupe, tétano, tifo
exantemático, gás, guerra”. “Também se podia
morrer de coisas que pareciam normais”, como
ingerir cerejas sem cuspir o caroço ou engolir
chicletes por distração. Antes do fim, contudo,
fosse ele provocado por doença, crime ou
asfixia, imperava a brutalidade. “A vida era
assim e ponto final, crescíamos com a obrigação
de torná-la difícil aos outros antes que os outros
a tornassem difícil para nós.”

A tetralogia napolitana – formada pelos


romances A Amiga Genial, História do Novo
Sobrenome, História de Quem Foge e de Quem
Fica e História da Menina Perdida – tem mais de 1
500 páginas, muitos personagens e reviravoltas,
mas a sua trama central é simples. Lenu –
brilhante, intensa, boa aluna na escola – quer
escapar dessa barbárie, fugir de seu bairro para
a civilização, embora esse desejo seja sempre
difuso e mal articulado: nunca é claro no que
consistiria a fuga e de que modo ela se daria.
Raffaella Cerullo, a Lila, é a sua melhor (e,
muitas vezes, pior) amiga. Lila também é
intensa e brilhante como Lenu, mas o seu
brilhantismo é anárquico, autodidata. Ela rejeita
os estímulos de professores e caçoa das
promessas de uma futura felicidade burguesa
em algum lugar mais civilizado. É uma menina
prodígio niilista, cética diante das instituições e
dos intelectuais grã-finos. O fio narrativo que
conduz os livros é a amizade turbulenta entre
essas duas personagens, contada desde a
primeira infância até a velhice.

Numa leitura reducionista da história, Lenu é a


civilização (aspiracional, estudiosa, cerebral,
mas às vezes sem graça, vaidosa, prolixa), e Lila,
o bairro (atávica, caoticamente talentosa, com
imensa facilidade para o improviso; mas
destrutiva, cruel, recalcada com o requinte dos
outros). Lenu nunca consegue se livrar da
sensação de ser menos do que Lila (menos
bonita, menos interessante, menos inteligente);
atrelada a essa sensação está o medo de não
conseguir escapar de suas origens. O bairro (ou
seja, Lila) a repele e a seduz – a casa é, afinal, o
centro onde acontecem aquelas três ou quatro
coisas importantes na vida de alguém, como diz
um poema de W. H. Auden. Ferrante aborda
esses temas fundacionais de civilização e
barbárie, casa e exílio, num formato
folhetinesco, descrevendo as reviravoltas da
amizade entre Lenu e Lila e as subtramas
melodramáticas dos muitos personagens ao
redor. Essa infusão de temas imemoriais com
técnicas narrativas do melodrama diz algo sobre
a hibridez peculiar da escrita de Ferrante – ela
que frequentemente parece uma roteirista de
novela que leu e releu não apenas os romances
de Balzac, mas também a Ilíada e a Eneida.

A mãe de Lenu é dona de casa; o pai é contínuo


na prefeitura. A narradora também vê nos dois
um lembrete constante de suas origens. A mãe,
uma mulher raivosa e violenta, sempre crítica
das aspirações intelectuais da filha, tem um
problema nas pernas que a faz mancar; Lenu
passa a vida atenta aos menores sinais de
qualquer dor em suas próprias pernas. O serviço
público do pai não é visto com orgulho. Pelo
contrário: quando evoca a repulsa que sente por
malandragens e negociatas napolitanas, é
justamente dele que ela lembra.

A terra das duas amigas não é terra incognita. No


imaginário de quem consome cultura, o sul da
Itália tem um status desproporcional ao seu
tamanho no mapa. Os Corleone e os Soprano
emigraram dos mesmos arredores, assim como
as suas imitações mais baratas; e ainda que não
esteja sempre presente como locação, o território
existe como ideia fixa no gênero de livros e
filmes sobre a máfia. Na saga, o bairro é
dominado por Marcello e Michele Solara, dois
irmãos mafiosos incontornáveis que fazem
agiotagem, cobram taxas dos moradores,
extorquem quem se atreve a desafiá-los.
Quando o pai e o irmão de Lila decidem fabricar
um novo par de sapatos com base nos desenhos
da filha, são forçados a aceitar a presença dos
irmãos no empreendimento. E quando Lila se
casa com Stefano Carracci, herdeiro da
charcutaria do bairro, os Solara forçam a barra
para terem mais influência nos negócios do
salsicheiro. Em diferentes momentos da história,
tanto Marcello quanto Michele se apaixonam
por Lila; como não conseguem possuí-la, tentam
comprá-la, seja oferecendo dinheiro para os
negócios do pai e do irmão, seja forçando a
presença em reuniões da família.

Os irmãos Solara espancam esposas e amantes;


surram pessoas em público. Certa noite,
enquanto comemoram o Ano-Novo na varanda,
trocam os fogos de artifício por balas de
revólver. Sentem um prazer imenso em ostentar
o poder que possuem; Michele com o seu jeito
“irônico” e gozador, Marcello fazendo o papel
de machão mais quieto. Dirigindo a esmo pelo
bairro num Millecento, parecem simbolizar tudo
que Lenu mais rejeita: o deleite do pequeno
poder, a autossatisfação tosca e vulgar dos
incivilizados, aqueles que acham que o bairro é
o mundo, e o mundo é o bairro.

O
motif da saga napolitana – a ânsia de
fugir da província para a metrópole; a
dicotomia entre civilização e barbárie –
não reverbera só em Lenu e Lila. Os
personagens masculinos da saga também
podem ser divididos, grosso modo, entre os
homens do bairro (os irmãos Solara, o
salsicheiro Stefano Carracci, Antonio, Enzo), os
homens da urbe (Franco Mari, Pietro Airota), e
os homens do bairro que, assim como Lenu,
flertam com a urbe (o militante comunista
Pasquale, o “poeta-ferroviário” Donato
Sarratore, e o seu filho, Nino). Dois desses
homens – Nino Sarratore e Pietro Airota –
recebem um tratamento mais profundo ao longo
da trama, e não é gratuito que ambos estejam
mais na órbita da urbe do que do bairro.

Nino Sarratore é o amor de infância de Lenu.


Filho de um casamento fracassado entre uma
dona de casa traída e um poeta medíocre, é tido
como aluno brilhante na escola. Pálido, muito
magro e taciturno, caminha sozinho pelo bairro
e lê muito. Despreza as vulgaridades dos locais
e nunca disfarça esse desprezo. Lenu se
apaixona por ele desde cedo, observando-o a
distância. E mesmo quando ela começa a
namorar o mecânico Antonio, um menino do
bairro bonzinho mas sem grandes ambições, é
em Nino que continua a pensar.

O contato ocasional entre os dois tem sempre


uma aura platônica. A certa altura, durante o
ginásio, Nino propõe que Lenu contribua, com
um artigo, para uma revistinha que ele edita.
Quando ela entrega o texto, Nino se assusta. “A
professora Galiani estava certa” diz. “Você
escreve melhor que eu.” A frase enche Lenu de
alegria, e reforça a imagem de nobreza que Nino
evoca nela. No casamento de sua melhor amiga
com o salsicheiro do bairro, ela o encontra outra
vez. Ele aparece na festa sem gravata e com a
camisa desarrumada, e os dois começam a
conversar sobre política. “Eu estava encantada
com a maneira como Nino me falava: sem
nenhuma subalternidade. Expunha-me seu
futuro, as ideias que embasariam a sua
construção. […] Ele sim, me teria livrado de
minha mãe, ele, que não queria outra coisa
senão livrar-se do pai.” Quando os irmãos
Solara entram no salão da festa, Nino sai
imediatamente, e Lenu nota o seu desprezo
pelos mafiosos. A cena a seduz. “Naquela
sequência o filho de Sarratore – ele que crescera
nos edifícios do bairro velho justamente como
nós, que me parecera muito assustado quando
tratara de superar Alfonso nas disputas
escolares – parecia já de todo estranho à escala
de valores em cujo vértice despontavam os
Solara. Era uma hierarquia que visivelmente não
lhe interessava, que talvez nem sequer
entendesse mais.”

O amor de Lenu por Nino, como todo amor


adolescente, tem uma essência narcísica. Em sua
ambição intelectual, em seu desprezo pelos
modos do bairro, nos conflitos com o pai, Nino
se parece muito com a protagonista. Ela vê nele
quase um espelho de si mesma: alguém
talentoso e curioso demais para ser contido no
bairro. Nino e Lenu são dois deslocados; e em
meio às frivolidades e à ostentação provinciana
da festança de Lila e Stefano, parecem perfeitos
um para o outro, justamente por causa desse
deslocamento mútuo – um pouco como o senhor
Darcy e Elizabeth Bennet em Orgulho e
Preconceito. Lenu deixa o casamento decidida a
abandonar o namorado e a tentar algo com
Nino. Mas os dois se distanciam e, tempos
depois, quando se reencontram numa viagem de
veraneio à praia de Ischia, é por Lila – a melhor
amiga de Lenu e em certo sentido o seu oposto –
que Nino se apaixona.

A
escrita de Ferrante não é apenas híbrida –
existe nela uma tensão contraditória. O
instinto de narradora folhetinesca,
enamorada do artifício, batalha constantemente
com outro instinto mais contemporâneo: o de
mostrar a realidade em sua “crueza” narrativa,
cheia de deformidades e lacunas gratuitas,
distante das soluções formais clássicas do
romance e do conto. A saga napolitana é feita de
inúmeros conflitos romanescos que incham
como bexigas até o ponto de tensão máxima,
mas no fim não estouram: desinflam e
ricocheteiam de um lado ao outro da sala, com
essa feiura disforme e anticlimática que é típica
da realidade. Nesses momentos, a saga de
Ferrante lembra um pouco a série Minha Luta,
de Karl Ove Knausgård – os dois projetos
buscam, embora em intensidades e formas
diferentes, uma autenticidade antiartifício.

Fosse uma tradicional roteirista de novelas, por


exemplo, Ferrante exploraria narrativamente a
traição de Lila, que “rouba” o amor da vida de
Lenu; e um embate melodramático seguiria.
Mas não é o que acontece. Após o choque inicial
da traição, Lenu se compadece da amiga, cujo
casamento com o salsicheiro Stefano passara da
fase inicial feliz para um misto de tédio
existencial e violência doméstica. A melhor
amiga e Nino, por sua vez, procrastinam: se
encontram às escondidas no bairro, sempre
adiando o momento de fuga, e Lenu vira uma
cúmplice dos dois. Quando finalmente se
juntam, a paixão de Lila e Nino – tão bem
descrita, tão palpável naqueles dias de veraneio
na costa – esmorece depois de 23 dias, quando
os primeiros atritos surgem entre o novo casal.
Lila está grávida, e Nino, já inseguro por ter
agido num impulso de veraneio, volta para a
casa dos seus pais. Lila, por sua vez, retorna aos
braços do marido. Stefano Carracci não
consegue admitir para si mesmo que chegou a
ser abandonado, e começa a trair a esposa; e
assim ele e Lila seguem por um bom tempo num
casamento faz de conta, até que o salsicheiro
decide enfim trocá-la pela amante.

Procrastinação, falta de decisão, covardias


mútuas: esses pequenos dramas têm o sabor
morno e pastoso da realidade. É uma bagunça
sem páthos. A construção da paixão de Lenu por
Nino, à maneira de Jane Austen, é a bexiga
enchendo; os dramas repetitivos e banais do
caso entre Lila e Nino é a bexiga ricocheteando.
A prosa de Ferrante – seca e imperturbável,
magistralmente traduzida por Maurício Santana
Dias nas edições brasileiras – gera a impressão
de uma neutralidade constante, mas é notável a
fluidez com que ela mistura métodos e muda de
marcha, passando, às vezes no intervalo de uma
ou duas frases, de construções romanescas para
um caos fragmentário. É como se a própria
autora não se decidisse entre o tom aspiracional
de Lenu e o profundo ceticismo de Lila.

O
caso entre a melhor amiga e o seu amor
de infância tem certo efeito libertador
para Lenu. Ela foca nos estudos e
consegue entrar na prestigiosa Escola Normal,
em Pisa, e finalmente vai embora de sua cidade.
Em Pisa, encontra um mundo novo, de seres
educadíssimos, cultos de nascença. “Aprendi a
controlar a voz e os gestos. Assimilei uma série
de regras e comportamentos escritos e não
escritos. Submeti ao mais estrito controle o
sotaque napolitano. Consegui demonstrar que
era competente e digna de estima, mas sem
nunca assumir ares esnobes, fazendo autoironia
sobre minha ignorância, fingindo-me surpresa
com meus bons resultados.” Essas frases podem
dar a impressão de certo autoflagelo, mas o
teatro autoconsciente da reinvenção é na
verdade algo muito prazeroso: qualquer pessoa
que já tenha saído do interior para estudar na
capital reconhecerá nessas passagens a alegria
trêmula que o exílio provoca. Em Pisa, Lenu
admite encontrar “o paraíso na terra: um espaço
todo meu, uma cama só para mim, uma
escrivaninha, uma cadeira, livros, livros e livros,
uma cidade em tudo diferente do bairro e de
Nápoles, cercada apenas por gente que estudava
e era propensa a discutir o que estudava”.

Um desses estudiosos é um menino tímido e


desajeitado, de óculos e pés tortos, com “uma
juba embaraçada de cabelos pretíssimos”, que
certo dia se aproxima e puxa conversa. Seu
nome é Pietro Airota, e embora Lenu não se
sinta particularmente atraída por ele, os dois
começam a se ver com frequência; fazem
caminhadas, vão às aulas e estudam juntos. No
fim, é a ambição intelectual e a inteligência de
Pietro que acabam por atrair Lenu. “Ele me
surpreendeu: assim como eu, já tinha começado
a trabalhar na tese, assim como eu, a estava
fazendo em literatura latina.” Assim como eu: o
Pietro da juventude, como o Nino da infância,
representa um ideal civilizatório abstrato que a
protagonista tem para si mesma (uma das coisas
que mais a fascina é o desejo que Pietro tem de
publicar a sua tese em formato de livro). Os dois
começam a namorar e, pela boca de outros
alunos, Lenu logo descobre que o sobrenome
Airota é famoso – Pietro é filho de um professor
muito conhecido de Gênova e de Adele Airota,
uma editora de livros influente.

Para Lenu, a família de intelectuais aristocratas é


tão fascinante que não seria exagerado dizer que
ela se apaixona mais por eles do que pelo
próprio namorado. As conversas de geopolítica
na mesa do almoço, o jeito calmo e ponderado
de discutir arte e outros temas graves: a
narradora confessa que o medo de perder Pietro
é indissociável do medo de perder os Airota.

Os dois decidem se casar. Um dia, arrebatada


por memórias, Lenu escreve “de um jato só” um
monte de páginas sobre uma experiência sexual
que teve certa vez numa praia. Dá o caderninho
manuscrito a Pietro de presente, uma única
cópia. Um tempo passa sem que o marido
mencione o caderninho, até que um dia Lenu
recebe uma ligação surpresa de sua sogra, a
editora Adele Airota. Pietro passara o caderno
para a mãe em segredo. Adele parabeniza Lenu
pelo texto (cita “um mistério da escrita que só os
livros de verdade têm”). Depois lhe informa que
uma editora em Milão irá publicar o romance.

A
entrada de Lenu na literatura é um ponto
de inflexão na saga. Num primeiro
momento, a publicação do romance
representa tudo que a protagonista sempre quis:
acesso ao mundo glamoroso dos Airota e da
elite intelectual italiana; resenhas e
reconhecimento artístico; algum dinheiro, até.
Para quem sempre quis escapar da violência do
bairro, parece o apogeu. O início do casamento
de Lenu e Pietro é de fato uma espécie de idílio.
Pietro é um homem gentil e responsável,
embora sem grandes arroubos de paixão, e os
dois levam uma vida feliz e plácida. Dividem o
espaço de trabalho; têm duas filhas; ele
consegue uma cátedra em Florença e se destaca
no mundo acadêmico, enquanto ela trabalha
num segundo livro.

Mas se traz êxtase, a escrita do primeiro


romance também gera uma perda de inocência
em Lenu. Assim como a própria Ferrante oscila
entre um estilo romanesco e outro mais cortante
e cru, a protagonista, ao tornar-se escritora, tem
um ganho de autoconsciência, e começa a
questionar algumas premissas anteriores. A
consciência da escrita coincide com a entrada de
Lenu na vida adulta. E o amadurecimento,
assim na vida como na escrita, sempre traz
consigo mais ceticismo e ambiguidade. O
resultado é a perda de algumas ilusões, e uma
visão mais complicada da moralidade e dos
desejos.

A transformação se nota sobretudo na mudança


gradual da aura dos dois principais personagens
masculinos dos livros. Até certo ponto da
história, tanto Nino quanto Pietro evocam
admiração, em parte porque o leitor tem acesso
à visão um pouco romantizada da jovem Lenu.
Nino é charmoso, articulado, inteligente, se
rebela contra o pai canalha, tem ideias políticas
interessantes. Pietro é sério, estudioso, discreto,
nunca ostenta o sobrenome que tem. Ambos
parecem o oposto dos irmãos Solara e do
salsicheiro Stefano, os machões violentos e
vulgares do bairro. Mas basta que Lenu atinja o
cume da montanha civilizatória para que essa
oposição – tão demarcada no começo da saga –
comece a parecer menos nítida.

P
assada a fase inicial de idílio modesto, o
casamento de Lenu e Pietro se arrasta
entre suspiros de tédio. Pietro só pensa
em suas aulas, e não cuida direito das crianças.
O sexo entre os dois é insosso. “Entrava em mim
com investidas calculadas, violentas, tanto que o
prazer inicial se atenuou aos poucos, vencido
pela insistência monótona e pela dor que sentia
no ventre”, Lenu descreve. “Ele se cobriu de
suor pelo demorado esforço, talvez pelo
sofrimento, e ao ver seu rosto e o pescoço
banhados, ao tocar suas costas empapadas, o
desejo sumiu inteiramente.” Depois ela emenda:
“Eu não sabia como me comportar; acariciava-o,
sussurrava-lhe palavras de amor e torcia para
que parasse. Quando explodiu num rugido e
desabou finalmente exausto, me senti contente,
apesar de dolorida e insatisfeita.”

Frequentemente, Pietro goza e escapa direto


para a sua escrivaninha, para trabalhar. O seu
desleixo com a casa começa a irritar Lenu.
Quando ela decide, com a ajuda da sogra,
contratar uma empregada sem avisá-lo, ele a
confronta. “Não quero escravas em minha casa”,
diz, ao que a sua própria mãe rebate: “Não é
uma escrava, é uma assalariada.”

Encorajada pela sogra, Lenu discute com o


marido:

“Então você quer que a escrava seja eu?”

“Quero que você seja mãe, não escrava.”

“Eu lavo e passo suas roupas, limpo a casa,


cozinho para você, lhe dei uma filha, cuido dela
com mil dificuldades, estou exausta.”

“E quem a obriga a isso? Por acaso eu já lhe pedi


alguma coisa?”

Essas desavenças mundanas, muito típicas de


qualquer casal daquele (e talvez ainda deste)
tempo, não condenam Pietro, exatamente – mas
inserem uma dose pesada de ambiguidade no
personagem. E Ferrante transmite bem o senso
de tédio profundo que Pietro inspira a cada
briguinha, a cada palestra condescendente que
dá sobre os ritos báquicos e seus demais temas
de pesquisa. Não chega a ser surpreendente que
Lenu se torne uma espécie de Emma Bovary,
presa num limbo matrimonial do qual lhe falta
empuxe suficiente para escapar. Entediada e
irrequieta, ela flerta com outros homens em
jantares, às vezes na frente do marido. Espera,
vagamente, que algo aconteça.

Eis que Nino Sarratore ressurge na história,


Lenu afinal trai Pietro, e começa a ter um caso
com o seu amor de infância. Nino está no
segundo casamento e tem mais de um filho;
ainda assim insiste para que Lenu deixe o
marido. Quando Lenu avisa a Pietro que irá
deixá-lo, o marido cai em desespero. Chora, se
enfurece, arremessa uma mesa de vidro na
parede e acorda as filhas com seus gritos. Lenu
tenta dizer às filhas que o pai e a mãe ainda se
gostam, mas ele a desmente, e diz às crianças
que “é a mãe de vocês que decidiu ir embora”, e
que “ela já não gosta mais de mim”. As
resistências de Pietro fazem Lenu se lembrar das
resistências do mecânico Antonio, o seu
primeiro namoradinho do bairro, e ela reflete
que talvez “tenha atribuído um peso excessivo
ao uso cultivado da razão, às boas leituras, à
língua bem governada, à filiação política”.
Diante do abandono, conclui, “talvez sejamos
todos iguais”.

N
ino Sarratore e Pietro Airota são
diferentes, mas circulam nos mesmos
meios, conhecem as mesmas pessoas,
dividem a mesma escala de valores. Pietro é
acadêmico cabeçudo, Nino ensaísta e militante
político. Os dois são burgueses de esquerda.
Nino admira o “Airota pai” imensamente e, por
um tempo, tem uma relação cordial com Pietro,
com muitas trocas de ideias. É só depois que a
disputa por Lenu se acirra que ele começa a
desdenhar das opiniões do Airota filho,
considerando-o “um professorzinho desprovido
de imaginação, superestimado apenas pelo
sobrenome que tem e por sua obtusa militância
no Partido Comunista”.

Karl Ove Knausgård, com honestidade


tipicamente brutal, argumenta num de seus
livros recentes que os seus escritos íntimos
ecoam em tantas pessoas não porque sejam
universais, mas porque o perfil do leitor de
ficção atual é muito uniforme. Quem se
interessa por literatura, segundo Knausgård, faz
parte de um nicho particular da classe média e
classe média-alta letrada, com pouquíssimas
variações. É uma generalização indigesta, talvez
um pouco dolorosa; mas não me parece muito
distante da realidade. Como Nino, como Pietro,
eu também sou um burguês de esquerda, por
assim dizer – e muitos dos meus amigos e
conhecidos que se interessam por literatura
também.

Essa coincidência identitária entre alguns dos


prováveis leitoresda saga napolitana – refiro-me
aos leitores homens – e os dois
principais personagens do sexo masculino
obviamente não escapa a Ferrante, uma escritora
bastante manipuladora, no melhor sentido da
palavra. Nino Sarratore e Pietro Airota se
tornam, aos poucos, cavalos de Troia
existenciais para o leitor masculino. É fácil se
reconhecer nesses personagens no começo da
saga. Os seus anseios e paixões, os
posicionamentos políticos, os instintos
republicanos, o rigor e a curiosidade intelectual:
tudo isso é familiar. Um determinado leitor
pode se identificar mais com a sobriedade
discreta de Pietro, outro com a astúcia social e as
opiniões engajadas de Nino – outro, ainda, com
uma mistura dos dois. Mas quando esses
mesmos homens caírem do pedestal erguido
pela jovem Lenu, mais à frente na trama, o
leitor, se for honesto, se verá forçado a
considerar também os seus próprios defeitos e
falhas de caráter.

Nino surge a princípio como um salvador,


oxigenando a vida tediosa de Lenu. Ao
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