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DECISÃO

'Geração NoMo': no Brasil,


37% das mulheres não
querem ser mães
Mulheres que optaram por não ter filhos levantam
a voz para defender decisão e constituem a
chamada ‘Geração NoMo’ – ‘Not Mothers’;
especialistas garantem que maternidade não é
sinônimo de felicidade

Por LETÍCIA FONTES


Qui, 01/10/20 - 03h00

A artista digital Caroline Barrueco, 34, está entre a geração de


mulheres que escolheram não serem mães | Foto:
Reprodução/Instagram

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Quando você vai engravidar? Bem que poderia ser


exceção, mas atire a primeira pedra a mulher que
nunca escutou essa pergunta. A chegada aos 30
então ainda é anunciada para as mulheres como o
momento ideal para se pensar em ter filhos –
alguns até dizem que o corpo parece “pedir por
uma gravidez”, como se o relógio biológico
começasse a apitar. O problema é que o
questionamento esconde a afirmação de um futuro
que é dado como certo, como se a maternidade
fosse um caminho natural para todas as
mulheres.

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Mas, enquanto há quem tenha o sonho de


engravidar e garanta que o sorriso do filho faça
tudo valer a pena, há também quem não sinta essa
vontade, seja pela decisão de priorizar os objetivos
profissionais e os estudos, fazer uma viagem
sozinha pelo mundo ou simplesmente por não se
identificar com a maternidade. Ser mãe não é
sinônimo de felicidade, garantem os especialistas.

“Vivemos em uma sociedade que historicamente


coloca a maternidade como um ideal feminino. Mas
por que não podemos optar pelo nosso próprio
corpo? Acreditar e dizer que toda mulher deve
sonhar ou viver um sonho com a maternidade é
uma pressão cruel e que pode ser traduzida como
pesadelo até para algumas mães que se sentem de
maneira diferente”, afirma a psicóloga Daiana
Quadros Fidelis. Mestre em psicologia clínica,
Daiana estuda em seu doutorado atualmente a não
maternidade e maternidade tardia. “A simples
afirmação ‘não quero ter filhos’ é seguida pela
pergunta: ‘mas por que não?’ É como se a mulher
fosse obrigada a se justificar, porque toda menina
cresceu ouvindo que se ‘nasce’ com esse desejo”,
pontua.

Caroline Mesquita, professora do curso de pós-


graduação do departamento de psicologia da PUC
Minas, é categórica: “Quando uma mulher disser
que não quer ser mãe, acredite. E ela nem precisa
se explicar sobre isso. É preciso trabalhar a ideia de
que a mulher é livre para escolher não viver a
maternidade e esquecer o mito de que ela só será
completa com um filho”, explica.

E os números estão aí para provar: cada vez mais


mulheres estão desistindo da maternidade ou
simplesmente estão fazendo prevalecer a vontade
de nunca ter filhos. No Brasil, 37% das mulheres
não querem ter filhos apesar da série de pressões
sociais e culturais do inabalável relógio biológico e
da ideia de feminilidade relacionada a
maternidade. Segundo uma pesquisa global
realizada pela farmacêutica Bayer, com apoio da
Federação Brasileira das Associações de
Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) e do Think
about Needs in Contraception (TANCO), no
mundo, o índice chega a 72%.

De acordo com socióloga, Bruna Angotti, os


motivos são vários e vão desde os gastos que se tem
com uma criança até pelo aumento do número de
mulheres no mercado de trabalho. Mas a professora
da USP, ressalta que o principal é: "Muitas
mulheres simplesmente não querem ser mães. É um
direito. A mulher que faz essa escolha não é
incapaz ou irá se arrepender", explica.

Só que na prática, mesmo com toda liberdade


conquistada pelas mulheres nos últimos anos, ainda
existe estigma em torno daquelas que nunca
sentiram o tal desejo materno. A mulher que opta
por não ter filhos constantemente é acusada de ser
egoísta e fadada a ser solitária o resto da vida. O
preconceito é tão enraizado que, segundo um
estudo, publicado pela revista Sex Roles, em 2017,
muitas mulheres que não optaram pela
maternidade afirmaram se sentir culpadas e
moralmente erradas.

"A maternidade está ligada ao papel social e


cultural da mulher construído pela sociedade. A
gente vê isso nos brinquedos de meninas e nos
brinquedos de meninos. A mulher cresce
acreditando que tem a função de cuidar e isso só
compete a ela. Desde a infância, existe uma
exposição muito grande a vários estímulos que
reforçam que ela só será reconhecida socialmente
se exercer a função do cuidado", avalia Caroline
Mesquita.

Decidida.

A artista digital, Caroline Barrueco, 34, já cansou


de escutar frases como "você vai ficar sozinha" ou
ainda "isso é egoísmo, você vai mudar de ideia" por
defender a escolha. "Acho até estranho ter que
justificar isso. A maternidade nunca me atraiu,
assim como também nunca tive vontade de pular
de bungee jumping. Crianças são ótimas. Mas toda
a nossa sociedade acaba por excluir, sobrecarregar
e invisibilizar as mães. A maternidade, do jeito que
existe hoje em dia, não é o que quero para minha
vida. Não ser mãe também é uma possibilidade, e
não tem nada de errado nisso”, avalia.

Há alguns anos, a artista fez um aborto na


Alemanha, onde mora, e teve mais certeza da
decisão. “Quando descobri que estava grávida,
fiquei sem ar, me senti mal e assustada. Eu soube
instantaneamente que queria interromper a
gravidez. Eu fiz um aborto legalizado e sob
acompanhamento médico e psicológico. Acho
importante assegurar que toda gravidez seja
desejada. Assim todo mundo fica melhor, as
crianças, as mulheres e a sociedade como um todo
também”, afirma Caroline.

Esse também é o caso da roteirista e mestra em


Sociologia Samira Ramalho, 32, que até a suspeita
de uma gravidez acreditava no sonho de ser mãe.
Mas hoje, mesmo casada e em uma relação estável,
não inclui nos planos um filho. “Assim que eu
comecei a namorar meu atual companheiro, houve
um mês em que minha menstruação atrasou uma
semana. E isso me assustou e gerou tanto estresse
que eu ‘tomei ranço’ da ideia. Percebi que naquele
momento seria um grande transtorno, e isso não
mudou muito. Continuo estudando, cheia de
projetos que ainda não quero dividir com a
maternidade. Eu simplesmente não tenho nenhum
bom motivo para ter filhos, e está tudo bem. A
sociedade tradicional quer que a gente tenha filhos,
mas demite e desampara as mães”, reflete.

“Aos 32 anos decidi tirar as trompas”

Desde criança, a advogada Patrícia Marxs, 34,


sempre gostou das bonecas que tinham profissão.
Brincar de casinha e mamãe nunca foi do feitio da
cearense, que, aos 32 anos, realizou uma cirurgia
para a retirada das tubas uterinas. O método é
definitivo. No Brasil, segundo a Lei de
Planejamento Familiar, laqueaduras e cirurgias
desse tipo só podem ser realizadas após os 25 anos
ou por mulheres que já tenham dois filhos (veja as
regras abaixo). O procedimento pode ser feito pelo
SUS.

“Na adolescência eu já tinha essa certeza de que


não queria ser mãe. Terminei um casamento por
causa disso”, afirma. Patrícia se casou cedo, aos 19
anos. Fazendo faculdade e em dois estágios, a
prioridade sempre foi a carreira e a saúde. Mas, na
época, o ex-marido já queria ter filhos e escondia as
pílulas anticoncepcionais que ela tomava
diariamente. “Me falaram que se um homem estava
disposto a ter um filho era o maior sinal de amor
que poderia existir. Era uma forma de perpetuar
esse amor. Só que hoje eu vejo o tanto que isso é
abusivo. Eu não querer deveria bastar, eu não
preciso ceder e abrir mão dos meus objetivos para
provar o meu amor”, relata a advogada, que conta
que a gota d’água para a separação foi a escolha
que o marido a fez tomar, entre a cirurgia
bariátrica e a gravidez.

“Juntaram várias coisas, mas, nessa época, eu era


obesa, queria fazer a cirurgia de redução de
estômago. Era a vontade de toda a minha vida,
além da questão da minha saúde. Só que, se eu
fizesse a cirurgia, eu não poderia engravidar por
um tempo. Aí decidi seguir a minha vida sozinha”,
conta.

Só que o medo de engravidar continuou


acompanhando a advogada. O receio de uma
gravidez indesejada era tão grande que Patrícia
fazia exames de gravidez de 15 em 15 dias. "Virou
uma doença. Eu pesquisava se existia alguma
patologia em mulheres que não queriam ser mães.
Cheguei ao ponto de não ter relação sexual. Era um
pavor tão grande, que mesmo tomando todos os
cuidados, eu tinha medo. Não era algo saudável. Eu
queria fazer laqueadura para viver em paz",
explica.

Mas foi só depois de muitos anos de terapia que a


advogada aceitou que a escolha de não ser mãe não
precisava vir acompanhada de culpa. "Eu não sou
uma pessoa amarga e sem coração por isso, eu
adoro crianças. Sei até onde comprar fraldas mais
barato para as minhas amigas. Eu só não quero
para mim", pontua.

E foi só aí, a partir dos 28 anos, que Patrícia, com


todo o apoio do seu atual companheiro, começou a
buscar ajuda médica para encontrar um método
irreversível para evitar uma gestação. "Perdi a
conta de quantos médicos me consultei, alguns se
recusaram a fazer o procedimento porque
interpretaram que havia a necessidade de ambas as
exigências. Demorei para encontrar uma médica
que conseguiu entender que isso afetava a minha
saúde, o meu psicológico", conta

Hoje, Patrícia dá dicas na internet em uma página


que criou no instagram
(@laqueadurasemfilhossim) para quem passa pelas
mesmas dificuldades que ela passou. Lá, a
advogada dá apoio moral para quem ainda se sente
diferente só por não querer ser mãe. "Acolho e dou
informações. Há muita desinformação, é a forma
que encontrei de contribuir. Sempre sugiro que em
casos de recusas do procedimento se faça uma
denúncia à Agência Nacional de Saúde, nos casos
dos planos privados, ou procure a ouvidoria do
SUS. É um direito nosso".

Restrições

Apesar das normas para se realizar a laqueadura no


Brasil, a socióloga Bruna Angotti pondera. "Com
certeza tem muito a se discutir e aprimorar, mas a
grande questão é que vivemos processos de
esterilização em massa nos anos 80. As mulheres
iam dar à luz e só descobriram que tiveram o útero
retirado, porque paravam de menstruar. Isso tudo
na tentativa de evitar a reprodução de mulheres
pobres. A lei veio como uma forma de coibir essa
violência", observa.

Critérios para laqueadura

- No Brasil, o procedimento pode ser feito pelo


SUS. Mas, segundo a Lei 9.263, a cirurgia só é
permitida para mulheres maiores de 25 anos ou,
pelo menos, com dois filhos vivos.

- O procedimento é proibido em mulher durante os


períodos de parto ou aborto, exceto nos casos de
comprovada necessidade, por cesarianas sucessivas
anteriores.

- Para aqueles que são casados, a esterilização só


pode acontecer após comprovado o consentimento
de ambos os cônjuges.

- Atualmente tramita no Senado um projeto de lei


que tenta alterar a Lei do Planejamento Familiar.
Entre os pontos discutidos está a retirada da
exigência que o cônjuge autorize a laqueadura ou a
vasectomia.

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