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AULA 9 NARRATIVIDADE

VÍDEO 3

Procurarei nesse último vídeo mostrar o que poderia significar,

agora que já vimos duas aulas sobre esse tema, uma sociedade narrativa.

Para isso, partindo como até agora da obra de Cabrera, procurarei tecer

umas considerações baseadas num livro de Nancy Huston, que foi casada

com Todorov, e que focaliza a importância do mundo da ficção e da

narrativa para o desenvolvimento da sociedade e da pessoa.

A EDUCAÇÃO MORAL COMO FINALIDADE DA HISTÓRIA

Depois de afirmar que o fim da História é a utilidade pública

(Discurso IX) não se preocupa com definir nem conceituar o que seria isso,

mas, por outro lado, descreve com muita atenção o que poderia ser isso:

“enche os curiosos de curiosidades, ensina os idiotas com salutíferos

conselhos, converte as pessoas cautas em advertidas e atentas, e de fato

práticas”. Só isso já é por demais surpreendente. Independentemente do

conteúdo, é preciso advertir que se pensa na História como uma arte de

reforma e de transformação moral das pessoas. Por quê?

Porque a História “Dá o devido esplendor aos dignos de glória e

infâmia aos maus. Afasta os ânimos dos vícios e inflama-los na virtude.


(Discurso IX, 19). E, continua: “distingue as pessoas vis das que são

ousadas, os fáceis dos constantes, diz o valor nos empreendimentos, a

prudência nos fatos, a sabedoria nos progressos” (Discurso IX, p.19).

Ou seja, trata-se de manifestar, de fazer ver a moralidade dos atos e

das pessoas, porque não se pretende apenas narrar, com maior ou menor

verdade ou verossimilhança, os fatos, mas mostrar a prudência ou o

verdadeiro valor do que se faz ou se deixa de fazer, bem como distinguir e

separar os bons dos maus, tal como na parábola do Cristo quando falava

que, ao final dos tempos, seriam separados uns dos outros. E, mais ainda,

a narração da história procurará afastar as pessoas dos vícios e animá-las a

assumirem as virtudes.

E se quisermos, então, uma definição ou um conceito do que seria a

virtude que deveria ser mostrada ou lembrada ou manifestada, o recurso

ou método que Cabrera utiliza é o do EXEMPLO:

ou seja, mostra como alguém suficientemente conhecido, no caso

aqui uma personagem extremamente famosa da História Sacra,

Mardoqueu, tio da formosa Rainha Esther, teve sucesso perante o Rei

Asuero, da Pérsia e marido de Esther. Tudo deu certo e saiu bem, porque

o Rei lia “cada dia as histórias antigas e do seu tempo e, mais ainda, as da
sua casa....e graças a isso governou sobre cento e vinte e oito províncias

com prudência e valor” (Discurso IX, pp. 19-20).

E caso tudo isto não fosse suficiente para “provar”, mostrar” ou

“fazer ver” por que a História deveria ser uma forma de aprendizado

moral, ainda recorre a um outro recurso retórico que é o “paradoxo”:

“Quem haverá de tão inumano que não se moverá ao ver uma coisa torpe,

ou heroicamente feita, sendo próprio de quem ouve ou lê um fato

clemente, justo, moderado, forte, sábio, não apenas verdadeiro, mas

mesmo fingido, ficar aceso no seu afeto e amor de quem tal coisa fez,

mesmo que não o tenha visto?!” (ibidem).

Ou seja, aprende-se a viver corretamente lendo a História, porque

por meio dos exemplos e das coisas narradas, se a pessoa for humana se

moverá a imitá-los. Por isso, a História “recomenda a religião para com

Deus, a piedade para com os pais, a caridade para com todos. Exalta a

justiça, consola os aflitos, conforta os desesperados, anima a obras

heroicas e de virtude aos Príncipes....” (Discurso IX, p. 19).

Parece-me, portanto, que podemos “ver”, tal como Cabrera

Córdoba propõe, que tipo de sociedade era essa que esperava que os seus

historiadores lhe contassem a História dessa maneira: com exemplos e

com fatos e com pessoas que lhes permitissem ver e compreender o


sentido moral da vida, de tal maneira que se animassem a viver

virtuosamente e se desestimulassem a viver viciosamente.

O que se deve dizer e o que se deve calar?

Um aspecto interessante que pode nos ajudar a formar-nos uma

ideia da sociedade da Primeira Modernidade aparece no texto de Cabrera

no Livro II, Discurso Terceiro, quando o autor fala “sobre a ordem dos

lugares e das coisas”.

O que importa acima de tudo é a educação moral. Não gostaria de

discutir aqui se os valores ou as praxes educativas eram corretas ou não.

O que me parece importante é, como já disse, tentar vislumbrar o

que se entendia como a forma correta de fazer e de contar a História. E,

nesse sentido, parece-me que não há dúvidas sobre esse ponto: antes de

mais nada, o historiador deve contar e apresentar a sua História sempre

com um viés que poderíamos chamar de “educação moral”.

Nesse sentido, como o próprio autor insiste, “não se deve ensinar

se não aquilo que é justo e honesto” (p. 54) e, por isso mesmo, será

preciso que “cale sobre as coisas feias e desonestas, para não ofender os

ânimos e os ouvidos” e dentre os vários exemplos que dá refere-se


àquelas vidas de reis que estavam carregados de vícios e cujas

“abomináveis torpezas excediam a natureza”(ibidem).

A partir daí, Cabrera entende que o olhar do historiador deve estar

mais dirigido à influência moral dos leitores do que à verdade dos fatos,

de maneira que será necessário “ajeitar” a narração, não propriamente

mentindo ou ocultando os fatos e as pessoas mas dizendo ou contando-os

de tal maneira que não escandalizem nem influenciem com seu mau

exemplo, porque “a Filosofia moral não há de ensinar senão o justo e o

honesto” (p. 55).

Reparem que se volta a insistir na ideia do ensino e na do justo e

honesto, ipsis litteris, contudo antes se falava de História e agora de

Filosofia moral, sem que propriamente o autor se empenhe em mostrar se

está ou não falando da mesma coisa. E isso já é de per si interessante. A

história é moral e a moral é histórica, porque se ensina por meio de

exemplos vivos narrados pelos historiadores, porque “os filósofos morais

tiram seus exemplos da História” (p. 55).

O argumento que oferece Cabrera para proceder desta forma, além

do já apontado, não deixa de ser interessante até porque é

constantemente repetido por todos os historiadores, penso agora em Caio

Prado ao falar do sentido da colonização, quando dizia que o historiador


deve saber ver entre o cipoal de fatos possíveis de serem narrados,

aqueles que são verdadeiramente interessantes....pois então, Cabrera

adverte que “como não todos os acontecimentos verdadeiros são sujeito

conveniente para uma história regular, seria uma falta derramar-se da

questão principal para estas minudências” (p. 57-8).

Mas de qualquer forma, e é isto que me parece mais significativo, é

a imagem que o autor coloca diante dos leitores quando tenta explicar,

depois de todas essas instruções, o “lugar de fala” dos historiadores. Do

seu ponto de vista, o historiador nem escreve nem está para louvar ou

adular todos aqueles que se encontram nas câmaras dos Príncipes, mas

“fala diante do juízo de Deus como Christiano e não como gentil orador”

(p. 59). E, voltando ao tema do que se deverá então dizer ou calar, insiste:

“quem escrever histórias, não há de dizer todas as particularidades, mas

aquilo que será de proveito para os descendentes(...) e por isso terá de

ter prudência tanto no falar quanto no falar com bom juízo” (p. 60-1).

E se alguém se estranhar ou quiser uma explicação mais apurada

sobre em que sentido se fala aqui da “prudência do historiador”, então, o

nosso autor responde criando o exemplo do pintor, “que tem licença para

fazer sombras, escorços, e colocar em tal perspectiva a figura que fique

encoberto aquilo que for representado se for caolho, manco, coxo,


evitando que pareça mal, quando não perder ou mudar o sentido e a

ação” (p. 61).

Por outras palavras, da mesma forma que o juiz deve ser prudente e

a sua prudência só poderá ser exercida no ato do juízo, o historiador

também deve ser prudente e a sua prudência será exercida no ato de

escrever (“de mostrar” e “fazer ver” ) os atos e as personagens desde um

ponto de vista moral e adequado, sempre que se preserve o sentido

daquilo que for contado. Parece-me que é evidente que estamos diante

de algo muito, mas muito subjetivo. E, mesmo assim, e mais subjetivo

ainda, o historiador, por isso mesmo, deverá ter sempre presente que

escreve diante do juízo de Deus.

Caso se esteja pensando em algum tipo de censura ou num certo

pré-conceito de excessivo moralismo por parte do silêncio sobre certos

tipos de atos e condutas, seria interessante estabelecer um paralelo com

oq eu estamos vivendo agora com relação ao cancelamento e

silenciamento de atos, frases, vídeos ou textos e mensagens que são

considerados como prejudiciais ou falsos ou perigosos.

Sempre em todas as sociedades se estabelecem critérios sobre o

que se cala e o que se silencia, sobre o que se fala e se exalta. O que quero

mostrar nessas aulas sobre narratividade é, além disso, o valor e o


significado de transmitir tudo isso por meio de imagens e de narrações e

não por meio de conceitos e abstrações.

Uma sociedade baseada na narração

Parece-me extremamente difícil imaginar como poderia ser viver

dentro de uma sociedade que privilegiava e se comunicava muito mais por

figuras, metáforas, parábolas e histórias narradas do que por conceitos,

categorias e análises históricas.

A palavra humana, diferentemente da palavra do computador,

interpreta a realidade no mesmo processo e momento de ser dita. Pela

palavra dita, a realidade cobra um sentido dado por quem disse essa

palavra.

Nesse sentido, todo relato histórico é um relato narrado e, como já

falamos muitas vezes, fictício, no sentido de que é o narrador quem dá

forma, quem moldeia e configura o relato do acontecido e, portanto, dá

sentido à realidade passada. Seria preciso ler um, dois, três...quantos!?

livros de História da América para chegar a perceber que não há dois

relatos iguais e que, ao mesmo tempo, o fato aconteceu, sim, mas

precisamos que nos seja contado. É impossível captar e relatar esses fatos

sem interpretá-los.
O que tudo isto significa ou por que importa? Porque na sociedade

da Primeira Modernidade, era muito claro e evidente o sentido da

realidade. Não bastavam os fatos, nem as ações, nem sequer as palavras,

se não estivessem envolvidas dentro de um sentido e, por isso, o símbolo

e a metáfora eram mais importantes do que os conceitos e as categorias.

Muito mais claro e cheio de múltiplos sentidos era afirmar que o

direito era como o ar, igual em todo lugar e, ao mesmo tempo, mais

quente ou mais frio, dependendo também do lugar, do que dizer que o

direito era aquilo que estivesse expresso na lei.

Da mesma forma, para entender a ética, para ser e viver de maneira

ética e moral, ou seja, para saber que a ambição mata, é mais fácil fazê-lo

contando a história de Macbeth e sua mulher (que força tem os versos de

que essas mãos nunca poderão ser limpas, nem com todas as águas dos

oceanos...) do que estabelecendo uma regra de comportamento, ao estilo

de um código de conduta. Mais fácil falar da Rainha Esther ou do Rei David

do que falar sobre o devido processo legal e o Estado de Direito.

Basta pensar no Renascimento e no Barroco para perceber até que

ponto as artes mostravam o como se devia viver em sociedade.

As pinturas e esculturas e vitrais que representam a dor, o horror,

as torturas e as crueldades do inferno e dos homens perversos e ruins, e,


ao mesmo tempo, a doçura, a bondade, o gesto nobre e generoso dos

céus e dos homens bons. Cada quadro, cada pintura, cada gesto esculpido

é também uma palavra que dá sentido à realidade moral daquela

sociedade e isso se vê, se entende, se gosta e se vive. Ou não, mas é

apreendida mais rápida e mais facilmente do que por conceitos abstratos.

É interessante a percepção de Nancy Huston, ao dizer que ao longo

de toda a história humana as pessoas extraíram lições morais das

personagens que apareciam nas narrações, grandes ou pequenas, ao

estilo de “e a lição moral disto é....”, como se pode ver na Duquesa de

Alice no País das maravilhas.

Desde sempre, mesmo que a pessoa não saiba ler, os homens e

mulheres encontram-se e descobrem-se e identificam-se nas narrativas

que eram contadas, percebendo tudo aquilo que os identificava como

grupo: nossa liberdade, nossos direitos e obrigações, nossos sonhos e

nossa religião, nossas riquezas, nosso povo...São ficções simples que todos

conhecem e que não necessariamente distinguem entre realidade real e

realidade ficcional.

Para esses efeitos, de identificação, de reconhecimento do certo e

do errado, de aprendizado moral, não há muita diferença entre D. Quixote

e Sancho ou Cortés e Montezuma.


É interessante, nesse sentido, uma percepção muito aguda de

Huston. Os romances, os contos populares e mesmo as histórias

verdadeiras são textos que enunciam uma ética de base, ou se quisermos,

uma base ética, um berço moral comum, que já se perdeu.

As personagens são imperfeitas, que nem nós, e se por um lado se

movem pelo amor de Deus, por exemplo, também se movem pelo amor

das riquezas e dos prazeres. O que se aprende com as cenas das vidas

narradas é que o ser humano é, antes de mais nada, um ser ambíguo,

imperfeito e incompleto e muitas vezes contraditório.

Ninguém se assustaria ao saber que Colombo, por citar um exemplo

representativo, foi movido pelo amor a Deus, pela vontade de expandir a

fé, pelo desejo de riqueza e fama, pelo afã de poder....Nada disso é

estranho aos homens. Somos assim. Tudo o que somos, fazemos ou

falamos é junto e misturado, como diria Riobaldo em Grande Sertão.

É por isso que estão mais perto da incerteza, da ambiguidade e da

dúvida do que se pudessem ser reduzidos a ideias claras e distintas, como

pedirá Descarte na metade do XVII, criando uma outra ficção onde tudo se

passa em duas cores, ou preto ou branco, ou isto ou aquilo, ou certo ou

errado. Não há, no mundo cartesiano, nem a proporcionalidade, nem a

pluralidade do mundo da metáfora e da narração.


Dessa maneira, parece-me que estaríamos diante de uma sociedade

mais plural, mais heterodoxa, mais aberta e tolerante até, porque não

acreditava nos mitos e nas ficções do que podemos chamar de Segunda

Modernidade.

Não há a crença nem na perfeição do homem nem da sociedade.

Não há a crença de nenhuma utopia nem de um mundo melhor. O

cristianismo não pretendia ser a construção de uma sociedade melhor,

mais perfeita e feliz. Pretendia apenas ser um caminho de salvação.

Seguindo os exemplos da História Sagrada, em que o Cristo é

apresentado como um manso cordeiro levado ao sacrifício, ou onde os

exemplos dos Reis misturam grandezas e vilezas, como Davi ou Salomão,

ou seguindo os exemplos da História dos Homens, em que como diria

Shakespeare, vemos uma mistura de som e fúria, de fé e ambição, de

generosidade e egoísmo, como as inúmeras guerras dos Príncipes cristãos

entre si, ou as ambições e mortes de Pizarro, Almagro e tantos outros

conquistadores, os súditos do Rei e fiéis de Cristo aprendiam visualmente

a serem humanos como todos os outros humanos, ou como diria Pascal,

contemporâneo de Descartes, os homens teriam conhecimento da sua

grandeza e da sua miséria, aprendendo tudo isso pelo poder da narração

histórica.

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